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Processo nº 112/02
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, proferiu o relator a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
'1. A..., com os sinais identificadores dos autos, ‘atento o disposto no preceito do artº 70º, nº 1, B) da Lei nº 20/82’ (de 15 de Novembro), veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional ‘contra o 2° douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, ou seja, o que se pronunciou sobre a matéria de direito‘ (acórdão da Secção Criminal de 18 de Outubro de 2001, que negou provimento ao recurso por ela interposto e manteve a decisão da instância que a condenou ‘pela autoria material de um crime de furto qualificado p. e p. pelo disposto nos artºs 296º e 297º 1 a) e 2 d), com referência ao artº 298º 2 do Código Penal, segundo a redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 400/82, de
23.9, na pena de dezoito meses de prisão, que ficou suspensa na sua execução pelo período de dois anos, sob a condição da mesma arguida depositar à ordem dos presentes autos, no prazo de um mês, para ser, subsequentemente, entregue à C...
(núcleo de Tavira), uma contribuição monetária de 500.000$00 (quinhentos mil escudos) ‘ e mais a condenou ‘no pedido de indemnização civil formulado pela Companhia de Seguros ..., e ainda condenada a pagar ao demandante cível D... a quantia de 300.000$00)’.
Do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – depois esclarecido, a convite do Relator – alcança-se, se bem se percebe a posição da recorrente, que ‘a matéria de constitucionalidade resumir-se-á, por um lado, à questão da não aplicação retroactiva pelo douto acórdão recorrido do critério de determinação de valor contido no artº 202º do C.Penal, em paralelo com a susceptibilidade de manutenção da qualificação dos factos como integrativos da previsão contida nos artºs 296º ou 297º , a) do C.Penal de 1982 e por outro à ilegal incriminação dos factos pelo crime do artº 204°, nº 1, a), do C.Penal revisto em 1995 ‘, porque ‘a incriminação dos factos pelo normativo contido no mencionado ano 204°, nº 1, a) do C. Penal revisto em 1995 é muito mais gravosa do que a que decorre da incriminação pelo preceituado no aludido artº 296º do C.Penal de 1982 ‘.
E acrescenta a recorrente:
i) Foi assim violada a norma do artº 2º, n° 4, do C. Penal, a qual dispõe que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se revelar mais favorável ao agente.
j) E a violação daquele dispositivo do C.Penal implicou o não acatamento do normativo contido no artº 29º , n° 4 da C.R.P ., que dispõe por um lado que ninguém pode sofrer pena mais grave que a vigente no momento da prática dos factos e por outro que se aplicam retroactivamente às leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido entre as quais se incluirá o mencionado artº
202°doC.Penal. I) Com efeito, por analogia, deverão considerar-se também aplicáveis todas as normas de natureza penal complementares e conexas com as normas penais incriminadoras julgadas mais favoráveis’.
2. Acontece que, parecendo ser esse o objecto do presente recurso, a suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa não se mostra feita com a exigência que para o tipo de recurso em causa se faz no nº 2 do artigo 72º, ou seja, feita ‘de modo processualmente adequado’ perante o tribunal a quo, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Com efeito, na peça processual própria para esse efeito – as alegações de recurso ou a motivação apresentada perante o Tribunal da Relação de Évora – a recorrente limitou-se a invocar que os ‘referidos artºs 2º, nº 4 e 296º, 297º, nº 1 do C.P. de 1982, conjugados com o regime contido no artº 202º do C.P., revisto em 1995, foram 'in casu' interpretados e aplicados em termos de violar o disposto no artº 29º, nº 4 da referida C.R.P.’ (isto porque a não aplicação ‘ao caso presente daquele regime mais favorável do que o vigente à data da prática do delito, constitui ilegalidade e inconstitucionalidade, por violação do disposto no artº 2º, nº 4 do C. Penal e 29º, nº 4, da C.R.P. ‘), conforme se lê nas respectivas conclusões. Ora, este modo de dizer não consubstancia uma arguição de inconstitucionalidade normativa, com referência àqueles citados preceitos legais, antes significa simplesmente uma censura à decisão da instância, por haver interpretado e aplicado tais preceitos ‘por violação do disposto no artº 2º, nº 4 do C. Penal e
29º, nº 4, da C.R.P.’. Tanto assim que as últimas conclusões são do seguinte teor:
‘f)O douto acórdão de fls , à semelhança do que aconteceu com o douto despacho de pronúncia de fls , violou ou não aplicou devidamente o disposto nos mencionados artºs 2º, nº 4, 212º, nº 1, 296º, 297º, nº 1 do C. P. de 1982, 202º, na versão da revisão de 1995, e 29º nº 4 da C.R.P g) Impõe-se assim a respectiva revogação oportuna, com as legais consequências ou seja a de vir a ser julgada prescrita a conduta delitual imputada à Recorrente, com o que se fará Justiça’. E o certo é que no acórdão recorrido, depois de se enunciar a ‘questão em apreciação’ e que se resume ‘à qualificação do crime pois a arguida foi condenada pelo crime de furto qualificado previsto no artº 297º nº 1 a) (valor consideravelmente elevado) e nº 2 d) (penetração em edificação, habitação ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outros espaços fechados, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, ou tendo-se aí introduzido furtivamente ou escondido com intenção de furtar), do Código Penal de 1982, por ser o regime concretamente mais favorável ‘ – sendo que a recorrente ‘entende que não se verifica a qualificação 'valor consideravelmente elevado' e atenta a autonomia do crime de furto este deve considerar-se na forma simples, uma vez que a penetração na habitação integraria o crime de introdução em casa alheia, cujo procedimento criminal foi declarado extinto por prescrição’ - e depois de se concluir que no caso dos autos ‘continua a verificar-se o crime de furto qualificado nos termos a que aludia a pronúncia pelo que a condenação havida aplicou o regime concretamente mais favorável’, acrescenta-se só isto: ‘Inexiste violação constitucional ou legal na definição da ilicitude por que foi condenada a arguida, cuja pena que lhe foi aplicada não vem discutida ‘. Ora não há aqui nenhum julgamento de (in)constitucionalidade de normas, pela simples razão de que o tribunal a quo não foi confrontado com nenhuma arguição de inconstitucionalidade normativa apresentada pela recorrente com tal ‘modo processualmente adequado’. Tanto basta para concluir que falta um pressuposto processual específico do tipo de recurso de constitucionalidade de que se serviu a recorrente, o que determina que dele não possa se tomar conhecimento.
3. Termos em que, DECIDINDO, não tomo conhecimento do recurso e condeno a recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta’. B. Dessa Decisão veio a reclamante, atento 'o disposto no artº 78º, nº 3 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro',
'formular a presente Reclamação para a Conferência', na qual, depois de tecer considerações sobre a interpretação do 'disposto no artº 72º, nº 2 da Lei do Tribunal Constitucional (alterada pela referida Lei nº 13-A/98, de 26/2)', que é feita 'em termos demasiado restritivos', pois 'o que haverá que fazer, salvo o devido respeito, será o equacionamento da questão constitucional de forma perceptível ou seja, de modo processualmente adequado, o que permitirá ao Venerando Tribunal Constitucional pronunciar-se concretamente apenas sobre a questão delimitada nas alegações', adianta as seguintes razões:
'9° Importará referir que a questão concreta de constitucionalidade foi logo suscitada quando se recorreu da pronúncia.
10° De facto, quer na acusação quer na pronúncia se fizeram constar a incriminabilidade pelos artºs. 203° e 204°. do C. P. de 1995 e não apenas pelas normas dos artºs 296° e 297° do C.Penal de 1982 e 202° do C. Penal revisto.
11° Aliás, a douta pronúncia julgou prescrita a incriminação por entrada em casa alheia da ora Reclamante ( que na altura era contitular com o marido da propriedade da moradia onde pernoitou com os filhos do casal) e não fez o mesmo em relação aos presumíveis danos na porta de entrada, forçada por um dos filhos do casal sendo certo que não é necessária a concreta referência ao crime de danos para que o Tribunal se pronuncie pela respectiva prescrição ou amnistia ( mesmo que se entenda que os danos, nas dobradiças, nomeadamente, foram cometidos em concurso ideal e não em concurso real com o furto resultante da retirada de coisas da casa de Verão do casal).
12° Por seu turno, em primeira instância, o Tribunal de Tavira surpreendentemente, deu como provado que a Reclamante, que é relativamente invisual e não tem idade para andar a saltar muros, entrou na própria casa ( contra a vontade do marido que estava então em vias de propor acção de divórcio contra ela) pela porta do terraço.
13° Face à inexistência de qualquer referência a escadas ou quaisquer outros meios susceptíveis de facilitar o acesso ao terraço da casa, o digno Magistrado do Ministério Público junto da Comarca de Évora , em alegações orais, defendeu a aplicabilidade ao caso do disposto no artº 202° do C.Penal revisto em 1995, com a inerente declaração de prescrição da conduta da Reclamante cuja absolvição pediu ( posição em que foi secundado pela defesa também nas alegações orais).
14° A licitização da introdução em casa alheia ( também susceptível de constituir ilícito incriminável em concurso ideal, até porque se tratava de casa de Verão que a Reclamante não utilizava) cindiria de modo irreversível o desígnio de furtar, o qual à partida não poderia existir pois a Reclamante ignorava o que se encontrava na casa de veraneio'. C. Apresentou resposta o 'representante do Ministério Público junto deste Tribunal', sustentando que 'deverá improceder a presente reclamação', porque:
'1 – Independentemente da questão de saber se a recorrente cumpriu o ónus de suscitação atempada e adequada de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, parece-nos evidente que o acórdão recorrido não realizou da norma do artigo 2º, nº 4, do Código Penal a interpretação normativa
– violadora do princípio constitucional da aplicação da lei mais favorável ao arguido – questionada pelo recorrente.
2 – Na verdade, como resulta de fls. 791, a Relação considerou aplicável o
‘regime concretamente mais favorável ao arguido’, acatando, deste modo, o disposto no artigo 2º, nº 4, do Código Penal.
3 – Não competindo obviamente ao Tribunal Constitucional sindicar, no plano infra-constitucional, a concreta operação das instâncias, traduzida em apurar qual era efectivamente o regime penal ‘mais favorável, em concreto ao arguido’'. D. Cumpre decidir. A reclamante não consegue infirmar o que ficou dito na Decisão reclamada e não adianta nenhum fundamento para demonstrar ter suscitado uma questão de inconstitucionalidade normativa na peça processual própria e adequada para o efeito, ou seja, nas alegações de recurso ou motivação apresentada perante o Tribunal da Relação de Évora (e não nas outras peças processuais que a reclamante indica, designadamente ao referir-se que 'a questão concreta de constitucionalidade foi logo suscitada quando se recorreu da pronúncia', pois o acórdão está perfeitamente delimitado na Decisão reclamada e ele é o 'acórdão da Secção Criminal de 18 de Outubro de 2001, que negou provimento ao recurso por ela interposto e manteve a decisão da instância que a condenou' 'pela autoria material de um crime [...]', nada tendo a ver com a dita 'pronúncia'). A reclamante continua a insistir na censura ao julgado pelas instâncias, quando se refere ao que 'o Tribunal de Tavira surpreendentemente, deu como provado', à
'aplicabilidade ao caso do disposto no artº 202° do C.Penal revisto em 1995, com a inerente declaração de prescrição da conduta da Reclamante cuja absolvição pediu ( posição em que foi secundado pela defesa também nas alegações orais)' e ao 'desígnio de furtar, o qual à partida não poderia existir pois a Reclamante ignorava o que se encontrava na casa de veraneio', sem se reportar a normas legais, numa óptica jurídico-constitucional. Ora, todo este modo de dizer não preenche a exigência de suscitação de inconstitucionalidade normativa, não havendo motivo para alterar a Decisão reclamada. De toda a forma, e como diz o Ministério Público, parece evidente que o 'acórdão recorrido não realizou da norma do artigo 2º, nº 4, do Código Penal a interpretação normativa – violadora do princípio constitucional da aplicação da lei mais favorável ao arguido – questionada pelo recorrente', pois 'a Relação considerou aplicável o ‘regime concretamente mais favorável ao arguido’, acatando, deste modo, o disposto no artigo 2º, nº 4, do Código Penal'. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se a reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa,19 de Junho de 2002- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa