Imprimir acórdão
Processo n.º 687/01 Plenário Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em plenário no Tribunal Constitucional: I. Relatório O presidente do governo regional da Região Autónoma da Madeira veio, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República, requerer a declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo
136º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto. O artigo em questão veio dispor o seguinte:
'Comunicação e apuramento dos resultados da eleição
1– Os presidentes das mesas das assembleias de voto comunicam imediatamente à junta de freguesia ou à entidade para esse efeito designada pelo governador civil ou pelo Ministro da República, consoante os casos, os elementos constantes do edital previsto no artigo anterior.
2– A entidade a quem é feita a comunicação apura os resultados da eleição na freguesia e comunica-os imediatamente ao governador civil ou ao Ministro da República.
3– O governador civil ou o Ministro da República transmitem imediatamente os resultados ao Secretariado Técnico dos Assuntos para o Processo Eleitoral.' O requerente alega, e em síntese, que aquela Lei Eleitoral veio regular 'de novo a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, revogando expressamente o Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro', o que fez sem audição prévia dos órgãos de governo próprio daquela Região Autónoma. Ora, no entender do requerente, o referido artigo 136º da LEOAL 'retirou ao Governo Regional da Madeira competência legal por este exercida há cerca de 25 anos e meio, no âmbito do processo organizativo das eleições autárquicas que lhe foi cometido pelo artigo 150º do Decreto-Lei n.º 701-B/76', o que ocasionou 'de surpresa, um imprevisível e injustificado esvaziamento dos poderes da Região Autónoma da Madeira', esvaziamento este que, continua o requerente, 'é índice evidente do interesse específico regional'. E conclui, assim, o requerente que a matéria em causa deveria ter sido sujeita à consulta prévia e obrigatória da Assembleia Legislativa Regional, nos termos do disposto na alínea vv) do artigo 40º do Estatuto Político-Administrativo da Região (Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, alterada pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, e pela Lei n.º 12/2000, de 21 de Junho), e ainda do artigo 4º, alínea a), da Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto, e como determina o artigo 229º, n.º 2, da Constituição, pelo que o artigo 136º da LEOAL está ferido de inconstitucionalidade formal. Notificado para se pronunciar, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou exemplares do Diário da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios da lei em que se inscrevem as normas impugnadas. Fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, após debate com base em memorando elaborado pelo Vice-Presidente do Tribunal, por delegação do Presidente (artigos 39.º, n.º 2, e 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional), cumpre decidir, acompanhando-se de perto o referido memorando. II. Fundamentos Desde logo, notar-se-á que não existe qualquer referência, nos debates parlamentares, às normas impugnadas, pelo que se não dispõe, por essa via, de quaisquer elementos ou indicações sobre os motivos ou interesses eventualmente invocados para justificar a sua inclusão na nova LEOAL. Na verdade, a situação a que tais normas se referem não se encontrava de todo prevista na anterior legislação, embora correspondesse a uma prática que se vinha verificando nos sucessivos actos eleitorais. Com esta prática pretendia-se recolher e divulgar com a máxima rapidez os resultados eleitorais, sendo a situação prevista e regulada por despacho normativo – vejam-se, assim, o despacho do Ministério da Administração Interna de 22 de Novembro de 1979, e os Despachos Normativos n.º 266/82, de 3 de Dezembro, n.º 111/85, de 22 de Novembro, n.º 105/89, de 17 de Novembro, n.º 393/93, de 4 de Dezembro, e n.º
72/97, de 9 de Dezembro, todos dimanados da Presidência do Conselho de Ministros e do Ministério da Administração Interna. Em todos esses despachos se previa que os presidentes das mesas das assembleias ou secções de voto deviam comunicar 'à junta de freguesia ou à entidade para esse fim designada pelo governador civil, prioritariamente e com a maior celeridade', os resultados apurados, e se previa ainda que 'as funções atribuídas pelo presente despacho aos governos civis serão, nos Açores e na Madeira, desempenhadas pelas entidades referidas no artigo 150º do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro'. Pois bem: o referido artigo 150º do Decreto-Lei n.º 701-B/76 dispunha expressamente:
'(Açores e Madeira) As funções atribuídas pelo presente diploma aos governos civis serão, quanto aos Açores e Madeira, desempenhadas pela entidade que o respectivo Governo Regional designe.' E deve notar-se igualmente que a LEOAL inclui, no seu artigo 232º, preceito de teor idêntico ao do citado artigo 150º do anterior diploma regulador desta matéria, e no qual se consagra solução discrepante da prevista na norma ora em questão:
'Funções atribuídas aos governos civis As funções atribuídas pela presente lei aos governos civis são desempenhadas, nas Regiões Autónomas, pela entidade designada pelo respectivo Governo Regional.' Por outro lado, não pode dizer-se que as normas em causa apresentem uma solução inteiramente inovatória, pois que se verificou uma primeira consagração expressa da atribuição das funções de designação das entidades competentes para o apuramento provisório dos resultados eleitorais na Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril), cujo artigo 145º tem o seguinte teor:
'Comunicação para efeito de escrutínio provisório
1 – Os presidentes das mesas das assembleias de voto comunicam imediatamente à entidade para esse efeito designada pelo governador civil ou pelo ministro da República, consoante os casos, os elementos constantes do edital previsto no artigo anterior.
2 - A entidade a quem é feita a comunicação apura os resultados do referendo na freguesia e comunica-os imediatamente ao governador civil ou ao ministro da República.' Este, pois, o quadro legal vigente, e a prática corrente desde os primeiros actos eleitorais, até à data da entrada em vigor da nova LEOAL e à consequente introdução das normas ora em apreço. Do teor da fundamentação do pedido resulta que o seu objecto se deve circunscrever à parte em que as normas dos números 1, 2 e 3 do artigo 136º da LEOAL se referem ao Ministro da República. Com efeito, apenas nessa estrita medida as normas em causa poderão ter ocasionado o alegado 'esvaziamento de funções' dos governos regionais, e se poderão referir a uma questão respeitante às regiões autónomas.
É, pois, ao referido 'esvaziamento' de funções resultante da introdução das normas em apreciação que se refere o requerente, uma vez que aquelas funções que eram na prática, e por via dos despachos normativos citados, exercidas pelo governo regional, passaram a ser atribuídas, por via destas normas, ao Ministro da República. Mas cabe notar que não pode, com propriedade, falar-se de um verdadeiro
'esvaziamento' de funções legalmente atribuídas, uma vez que, como resulta da descrição efectuada, a pretendida atribuição de funções não constava da lei. De todo o modo, entende o requerente que se verificou falta de audição dos
órgãos de governo próprios da Região, audição essa que se deveria impor no caso uma vez que nos encontramos perante matéria de interesse específico da região autónoma. Importa, pois, apurar se a matéria versada pelas normas a que se reporta o presente pedido versam matéria subsumível ou enquadrável nessa categoria de
'interesses específico regional'. Este Tribunal tem uma vasta e clara jurisprudência, expressa desde a Comissão Constitucional, sobre esta matéria e sobre o direito de audição das regiões autónomas – assim, vejam-se, por todos, e, entre muitos outros: o Parecer n.º
20/77, Pareceres da Comissão Constitucional, 2º vol., págs. 159 e segs.; o Acórdão n.º 42/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], 5º vol., págs. 181 e segs.; o Acórdão n.º 82/86 ATC, 7º vol., tomo I, pág. 140; o Acórdão n.º
160/86, ATC, 7º vol., tomo II, págs. 895 e segs.; o Acórdão n.º 264/86, ATC, 8º vol., págs. 169 e segs.; o Acórdão n.º 403/89, ATC, 13º vol., tomo I, págs. 465 e segs.; o Acórdão n.º 212/92, ATC, 22º vol., págs. 7 e segs.; o Acórdão n.º
583/96, ATC, 33º vol., págs. 65 e segs.; o Acórdão n.º 629/99, ATC, 45º vol., págs. 21 e segs.; o Acórdão n.º 684/99, ATC, 45º vol., págs. 91 e segs.; e o Acórdão n.º 529/01, Diário da República, I Série-A, de 31 de Dezembro de 2001. As Regiões Autónomas gozam de autonomia político-administrativa (artigo 225º da Constituição), na qual se inclui a necessária autonomia legislativa e administrativa (artigo 228º), a qual se há-de exercer no âmbito do artigo 229º da Constituição. Tratando-se de 'questões da competência dos órgãos de soberania que sejam respeitantes às regiões autónomas' – ou seja, de matérias incluídas na reserva de competência da Assembleia da República ou do Governo, mas que digam respeito a essas regiões –, então, para além de disporem de iniciativa legislativa sobre tais matérias, dispõem as regiões ainda do direito de se pronunciar sobre elas, nomeadamente, e quando não seja por sua própria iniciativa, sob consulta dos órgãos de soberania em causa, nos termos do n.º 2 do artigo 229º da Constituição. Como se escreveu no citado Acórdão n.º 82/86, 'estas questões são as que, saindo já fora da competência dos órgãos regionais, todavia respeitam a interesses predominantemente regionais, ou pelo menos merecem, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para estes territórios'. A matéria atinente à regulamentação dos actos eleitorais dos órgãos do poder local pertence à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do preceituado no artigo 164º, alínea l), da Constituição, pelo que se encontra obviamente 'fora da competência dos órgãos regionais'. Contudo, a norma questionada procede à atribuição de uma competência, no âmbito da actividade administrativa, a exercer nas regiões autónomas por entidades distintas das entidades que a exercem no restante território nacional. Tal revela, assim, que se considerou necessário um tratamento específico da questão nas mesmas regiões autónomas, em função das particularidades resultantes do respectivo regime político-administrativo. Há, portanto, que concluir que se está perante uma questão respeitante às regiões autónomas, pois que mereceu do legislador um tratamento específico no que toca à sua incidência nas referidas regiões. E, consequentemente, que a norma em apreço se encontra abrangida pelo dever de audição dos órgãos regionais a que se reporta o mencionado artigo 229º, n.º 2, da Lei Fundamental. Ora, como essa audição não teve lugar, há que reconhecer a inconstitucionalidade formal das normas impugnadas, na parte em que se referem ao Ministro da República. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 136º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, na parte em que se referem ao Ministro da República, por violação do dever de audição dos órgãos de governo regional, imposto pelo artigo 229º, n.º 2, da Constituição da República.
Lisboa, 29 de Maio
de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida