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Proc. nº 278/02 Acórdão nº 265/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Tendo sido notificada da decisão sumária de fls. 363 e seguinte, a Sociedade E..., S.A., recorrida no processo mencionado em epígrafe, veio dela reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
2. A decisão sumária proferida é do seguinte teor:
'O Ministério Público veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do Tribunal Administrativo e Tributário do Funchal que, julgando inconstitucionais – por violação do disposto no artigo 103º, nºs 2 e 3, e no artigo 165º, nº 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa – as normas constantes da Portaria nº 996/98, de 25 de Novembro, e da respectiva Tabela Anexa de Emolumentos do Registo Predial, julgou procedente a impugnação deduzida por E..., S.A. contra a liquidação de emolumentos do registo predial devidos pela inscrição no registo predial de uma hipoteca sobre diversos prédios urbanos. Tal recurso fundamenta-se na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e tem por objecto as normas constantes da Portaria nº 996/98, de
25 de Novembro, e da respectiva Tabela Anexa de Emolumentos do Registo Predial, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo com fundamento na sua inconstitucionalidade. No acórdão nº 115/02, de 12 de Março de 2002, proferido no processo nº 567/00, tirado em Plenário (acórdão ainda inédito, de que se junta cópia), este Tribunal pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma correspondente contida no artigo 5º da Tabela de Emolumentos do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro. As razões que justificaram o julgamento do Tribunal no referido acórdão são inteiramente transponíveis para o caso dos autos, atenta a similitude da questão em discussão nos dois processos. Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e em aplicação da referida jurisprudência, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento sobre a questão de constitucionalidade.'
3. A reclamante invoca, em síntese:
'Inesperadamente, e quando aguardava ser notificada para contra-alegar, a E... surpreendida pela decisão sumária supra identificada. A E... considera que foram violados os seus direitos constitucionais de acesso ao direito e aos tribunais, de defesa e de contraditório, pelo facto de não lhe ter sido dada oportunidade de contra-alegar no processo. Efectivamente, de tais direitos, consagrados, nomeadamente, nos arts. 20º, n.º
1, e 32º, n.ºs 1, 5 e 10, da Constituição da República Portuguesa, resulta a garantia para os cidadãos de, para além de poderem introduzir em tribunal uma qualquer acção visando a defesa dos seus direitos e interesses legítimos, poderem igualmente contra-alegar em defesa desses mesmos direitos ou interesses.
[...] Nem se diga que o princípio do contraditório, consagrado no n.º 5 do art. 32.º, apenas é de aplicação prescritiva no processo penal. Na verdade, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de referir que «embora não expressamente formulados na Constituição para o processo cível, os princípios da igualdade processual das partes e do contraditório não podem deixar de ser exigências constitucionais também neste domínio, pois tal decorre da própria ideia de Estado de Direito». Ademais, decorreria do direito de acesso aos tribunais garantido no art. 20º da C.R.P. a possibilidade de cada uma das partes poder
«deduzir as sua razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 86/88 [...]). A E... não pode estar mais de acordo. Por isso é que, ao definir a resposta à questão controvertida sem ter dado oportunidade à recorrente de contra-alegar, a decisão sumária do Tribunal Constitucional violou os referidos direitos constitucionais. O facto de, no Acórdão indicado, o Tribunal Constitucional se referir apenas ao processo civil não deve servir para iludir o facto de que, sendo o alargamento do âmbito do princípio do contraditório justificado pela ideia de Estado de Direito, esta mesma ideia também vale ao nível do processo constitucional. Daí que o referido princípio se lhe imponha da mesma forma. Nem se invoque a este respeito, como parece fazê-lo a decisão sumária aqui em crise, o facto de o Plenário já se ter pronunciado no sentido da não inconstitucionalidade de norma contida na Tabela de Emolumentos do Notariado correspondente à norma em crise nos presentes autos, decorrente do art. 5° da Tabela de Emolumentos do Notariado.
É que tal não impedia a E... de apresentar novos argumentos, a favor da dita inconstitucionalidade, nas contra-alegações, cuja possibilidade de apresentação lhe foi negada da forma referida. O facto de uma outra recorrente ter anteriormente alegado no sentido da inconstitucionalidade de uma norma correspondente não constitui garantia para a E... de que o tenha feito da melhor forma, com todos ou com os melhores argumentos. Logo, também não se encontra garantida a avaliação desses argumentos pelo Tribunal Constitucional no referido e anterior processo. Poderia ser invocado o cumprimento da lei, nomeadamente do art. 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional [...]. Simplesmente, a este respeito, é irrelevante o que resulte do art. 78º-A, visto que a dita norma consta de um diploma com valor de lei, e a sua validade depende da sua conformidade face à Constituição (cf. arts. 3º, n.º 3, e 277º, n.º 1, da C.R.P.). Não se verificando, como é o caso, a referida conformidade, dado que da norma resulta a possibilidade de produção de uma decisão sem que as partes no processo a quo sejam convidadas a alegar e a contra-alegar, com o que se viola os direitos constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais, de defesa e do contraditório, a norma do n.º 1 do art. 78º-A é inconstitucional. Nenhum tribunal, e aqui se inclui o próprio Tribunal Constitucional, pode aplicar normas inconstitucionais (cf. art. 204º da C.R.P.), pelo que a decisão sumária está viciada por aplicação de norma inconstitucional. Por outro lado, e adicionalmente, é a própria Convenção Para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgarmente conhecida por Convenção Europeia dos Direitos do Homem) que, ao conceder aos cidadãos dos Estados a ela aderentes (entre os quais Portugal) o direito a um processo equitativo (cf. art. 6º da Convenção), tem sido interpretada, em diversos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como consagrando o direito de acesso aos tribunais e o princípio do contraditório [...]. O art. 78-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional encontra-se, portanto, em contradição com o art. 6º da Convenção, pelo que a decisão sumária está adicionalmente viciada por aplicação de norma contrária à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Termos em que se requer a revogação da decisão sumária agora reclamada, ordenando-se o prosseguimento do recurso e, nos termos do n.º 5 do art. 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a notificação das partes para apresentar alegações e contra-alegações, respectivamente.
[...].'
4. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, disse o Ministério Público :
'1 – A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
2 – Na verdade, não tem a menor consistência a tese sustentada pela reclamante – segundo a qual se inferiria do princípio do contraditório um impostergável
«direito de alegar», inviabilizando qualquer mecanismo de decisão liminar dos recursos carecidos dos respectivos pressupostos, manifestamente infundados ou objecto de questões dirimidas na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
3 – Sendo evidente que o mecanismo da «decisão sumária», previsto no processo constitucional, é plenamente justificado e adequado, traduzindo uma ponderação perfeitamente satisfatória das exigências de celeridade e eficácia e do respeito pelas garantias das partes – plenamente ressalvadas com a possibilidade de impugnação do decidido pelo Relator, mediante reclamação para a conferência.
4 – Acresce que o caso dos autos ilustra, de forma paradigmática, a plena justificabilidade da dita decisão sumária, já que a questão de constitucionalidade suscitada acabou precisamente por ser dirimida pelo Plenário deste Tribunal.
5 – Não se perspectivando minimamente qual a argumentação inovatória da reclamante que – só por si – seria susceptível de fazer inflectir a posição que o Tribunal, em plenário, acabou de tomar sobre a matéria.
6 – E sendo certo que, na reclamação ora deduzida, não tratou sequer a reclamante de fundar minimamente qual o teor da sua argumentação – necessariamente inovatória, por não ponderada no acórdão do Plenário – que justificaria uma nova pronúncia sobre a questão acabada de dirimir.'
5. A ora reclamante requer a revogação da decisão sumária de fls. 363 e seguinte, fundamentando a sua reclamação na inconstitucionalidade material do nº
1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
6. Não tem razão a reclamante. Vejamos por quê.
As normas constitucionais invocadas pela reclamante não vedam ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um processo de formação das decisões do Tribunal Constitucional, para os tipos de questões previstas no artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, que assente numa decisão individual.
O legislador ordinário goza de liberdade de conformação na definição das regras relativas ao processo de formação das decisões do Tribunal Constitucional.
Perante o cada vez maior número de processos no Tribunal Constitucional, o legislador ordinário, sem descurar a necessidade de assegurar uma tutela plena dos direitos dos recorrentes, criou a figura da decisão sumária, para acelerar o processo decisório de determinadas questões. Pode, e deve, ser proferida decisão sumária relativamente a questões caracterizadas pela sua simplicidade, nesse grupo se incluindo, 'designadamente', aquelas que já tiverem sido objecto de julgamento anterior pelo Tribunal Constitucional (cfr. artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
Prossegue-se, assim, o objectivo da mais célere administração da justiça, em função da menor complexidade do caso, sem esquecer as garantias de defesa das partes. É assegurado o princípio do contraditório, facultando-se às partes a oportunidade de reclamarem para a conferência (cfr. nº 3 do referido artigo 78º-A) – oportunidade que aliás a ora reclamante utilizou no presente processo. A conferência decide definitivamente as reclamações, desde que haja unanimidade dos juízes intervenientes; não existindo unanimidade, a decisão cabe ao pleno da secção (cfr. nº 4 do mesmo preceito).
7. Conclui-se assim que o regime instituído pelo artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional não contém qualquer violação das regras relativas à garantia do acesso ao direito e aos tribunais e do princípio do contraditório contidas na Constituição da República Portuguesa (ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo certo que a disposição convencional invocada não confere garantias adicionais às consagradas na Constituição Portuguesa).
8. Sublinhe-se, aliás, que a figura da decisão sumária prevista no artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional corresponde a uma solução geral do direito processual português.
O regime contido no artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional traduz uma concretização da remissão genérica contida no artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos do qual 'à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação'.
Na verdade, segundo o artigo 700º, nº 1, g) do Código de Processo Civil, incumbe ao relator 'julgar sumariamente o objecto do recurso, nos termos previstos no artigo 705º'. Por sua vez, o artigo 705º determina que 'quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia'.
9. Esta mesma conclusão quanto à conformidade constitucional do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional foi já afirmada por este Tribunal em diversos acórdãos (cfr., por exemplo, acórdão nº 19/99, publicado no Diário da República, II Série, nº 59, de 11 de Março de 1999, p. 3609 s., e acórdãos nºs
80/99, 550/99, 567/99 e 223/01, inéditos).
10. A tudo acresce, como bem refere o Ministério Público, que na sua reclamação, não aduziu a ora reclamante quaisquer argumentos susceptíveis de conduzirem à alteração da decisão sumária proferida nos presentes autos de recurso.
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação e confirmar a decisão sumária proferida em 6 de Maio de 2002 (fls. 363), que concedeu provimento ao recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 19 de Junho de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida