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Proc. nº 583/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal de Contas, em que figuram como recorrente A, a recorrente interpôs recurso da decisão relativa a emolumentos proferida no processo de visto nº
7694/87. No mencionado processo foi visada a minuta de contrato de compra e venda ao Estado de um imóvel bem como das instalações nele construídas e do equipamento nele instalado, tendo intervindo como vendedoras a ora recorrente, na qualidade de proprietária do dito imóvel, e a empresa B, como construtora das benfeitorias e proprietária dos equipamentos instalados.
O valor dos emolumentos devidos pela concessão de visto à referida minuta foi de 2.490.000$00, a pagar pela recorrente, nos termos do § 2º do artigo 6º da Tabela de Emolumentos devidos ao Tribunal de Contas, aprovada pelo Decreto-Lei nº 356/73, de 14 de Julho.
Nas alegações de recurso, a recorrente sustentou a inconstitucionalidade do § 2º do artigo 6º da Tabela de Emolumentos devidos ao Tribunal de Contas, aprovada pelo Decreto-Lei nº 356/73, de 14 de Julho, na parte em que determina o pagamento dos emolumentos pelo particular que contrata com o Estado.
O Tribunal de Contas, por acórdão de 13 de Julho de 2001, negou provimento ao recurso.
2. A, interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 6º, § 2º, da Tabela de Emolumentos devidos ao Tribunal de Contas, aprovada pelo Decreto-Lei nº 356/73, de 14 de Julho.
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
1ª. A imposição estabelecida no art. 6° § 2° da Tabela de Emolumentos do Tribunal de Contas, anexa ao D.L. n° 356/73, na parte aplicável a contratos de direito privado e com o entendimento de que o encargo com o visto é exclusivamente devido pelo particular que contrata com o Estado, tem a natureza jurídica de um imposto, em face do seu carácter unilateral.
2ª. Tal visto visa exclusivamente assegurar a legalidade da actuação da Administração Pública e a cobertura orçamental dos encargos assumidos, pelo que a sua função é alheia à intervenção do particular que contrata com o Estado.
3ª. Assim sendo, o segmento do preceito legal em apreço viola o princípio da legalidade, uma vez que não consta de lei em sentido formal, nem existiu qualquer autorização legislativa para o efeito; esta questão não releva apenas para efeitos orgânicos ou formais, tendo uma relevância material, uma vez que tal princípio - como o seu percurso histórico demonstra - constitui uma garantia fundamental do cidadão.
4ª. Mas a estipulação legal em apreço ofende ainda o princípio constitucional da igualdade, na sua vertente fiscal, isto é, o chamado princípio da capacidade contributiva.
5ª. O princípio da capacidade contributiva pressupõe um critério razoável e pertinente - em função das finalidades do sistema fiscal: satisfação das necessidades financeiras do Estado e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza (art. 103° da CRP) - na definição da sua base de incidência.
6ª. Ora, no caso dos autos, inexiste tal critério razoável e pertinente. Impõe-se a tributação de quem contrata pelo Estado apenas 'porque está mais à mão'. Não há razão material, nem critério razoável, nem fundamento pertinente para tal imposição.
7ª. Por cautela, admita-se ainda que a figura tributável em causa é uma taxa.
8ª. Nessa hipótese, mostram-se violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da imparcialidade que regem a repartição dos encargos com o serviço público entre os seus efectivos beneficiários.
9ª. Quanto ao primeiro, porque aquela imposição teria sempre que ter em conta uma certa proporcionalidade das vantagens auferidas, o que, no âmbito do art. 6° da tabela emolumentar em análise, manifestamente não acontece.
10ª. Quanto ao segundo, porque ao estabelecer-se tal discriminação - entre o contraente público, que nada paga, e o contraente privado, que tudo suporta - está ainda a ofender-se uma regra de imparcialidade. Termos em que se deve declarar a inconstitucionalidade do art. 6° da tabela emolumentar em referência - na parte e no entendimento assinalados - por ofensa dos princípios constitucionais da legalidade e da igualdade, se for entendido que se está perante um imposto, ou - o que por cautela se admite - dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da imparcialidade na repartição dos encargos públicos, se for entendido que se está perante uma taxa.
Cumpre apreciar.
II Fundamentação
3. O artigo 6º da Tabela de Emolumentos devidos ao Tribunal de Contas tem a seguinte redacção: Pela concessão de «visto» em quaisquer contratos não abrangidos pelo artigo anterior, sobre o seu valor certo ou provável, 1‰.
§ 1º Nos contratos de arrematação ou de locação o emolumento será calculado sobre o seu valor anual.
§ 2º O emolumento, que não poderá ser inferior a 100$, constituirá encargo a pagar, nos trinta dias seguintes ao início da execução do contrato, pela parte que contrata com o Estado, mediante guia por este emitida para o efeito.
(...)
A recorrente entende que o emolumento em causa consubstancia um imposto, uma vez que 'tem um carácter unilateral'.
O Tribunal Constitucional, várias vezes chamado a apreciar questões desta natureza, tem seguido, na distinção entre taxa e imposto, um critério segundo o qual na taxa existe uma correspectividade jurídica entre o serviço prestado e o montante devido; o imposto, por seu turno, constitui uma receita coactiva unilateral, sem aquela correspectividade (cf. Acórdãos n.ºs 348/86 – D.R., I, de 9 de Janeiro de 1987 –, 76/88 – D.R., I, de 21 de Abril de 1988 –,
1140/96 – D.R., II, de 10 de Fevereiro de 1997 –, 558/98 – D.R., II, de 11 de Novembro de 1998 –, 410/00 – D.R., II, de 22 de Novembro de 2000 –, e 200/01 – D.R., II, de 27 de Junho de 2001).
No recente Acórdão nº 115/2002, o Tribunal Constitucional afirmou o seguinte:
(...) e licenças municipais, a relação sinalagmática característica da taxa implica uma contrapartida do ente público, sendo entendimento da doutrina que
'são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo menos, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares' (assim, Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed., Coimbra, 1995, págs. 252 e segs. e 'Noção Jurídica de Taxa' in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117º, págs. 289 e segs.; Paulo de Pitta e Cunha, José Xavier de Basto e António Lobo Xavier, 'Os Conceitos de Taxa e Imposto A Propósito de Licenças Municipais', in Fisco, nºs. 51/52, págs. 3 e segs.).
(...) Pode, assim, concluir-se que a qualificação como taxa de um dado tributo não depende da verificação de uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a prestar pelo utente desse serviço. Também no mesmo acórdão se dizia:
(...) O que é exigível é que, de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação - material, e não meramente formal - na percepção de um dado serviço (cfr., a este propósito, o acórdão nº 1108/96, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1996). É esta a fundamentação que justifica a subtracção das taxas ao princípio da legalidade, no seu sentido mais exigente, aplicável constitucionalmente aos impostos e a outras figuras que, para este efeito, lhe têm sido equiparadas - princípio este que constitui uma garantia perante 'uma intervenção do Estado no domínio da esfera jurídico-privada, [...]' (Cardoso da Costa, Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1972, pág. 163) em que se traduz o imposto.
No Acórdão nº 200/01, o Tribunal Constitucional qualificou como taxa os emolumentos devidos pela verificação de contas das autarquias locais pelo Tribunal de Contas.
Nesse aresto, depois de citar jurisprudência anterior, o Tribunal Constitucional considerou o seguinte: Aplicando tais considerações à norma em apreço, conclui-se pela qualificação como taxas dos emolumentos devidos pela verificação de contas pelo Tribunal de Contas. Trata-se, na verdade, de uma receita bilateral, a cuja obtenção corresponde a prestação pelo Tribunal de Contas de um serviço – no caso, a verificação das contas cuja elaboração e prestação é obrigatória para as autarquias locais (v. o artigo 51º, n.º 1, alínea m) da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto – Lei da Organização e Processo do Tribunal de Contas) –, como transparece logo da própria formulação do artigo 9º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 66/96. Por outro lado, não pode dizer-se que o carácter bilateral da receita seja infirmado pela consideração da forma como o seu montante é fixado – aliás, de forma idêntica ao que acontecia no anterior regime dos emolumentos no Tribunal de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 356/73, de 14 de Julho (artigo 1º, n.º
1) –, isto é, como percentagem da receita das entidades em questão, com um limite máximo do montante a pagar pelo serviço (n.ºs 1 e 3 do citado artigo 9º). Na verdade, a finalidade da fixação das receitas a cobrar a título emolumentar é a repartição pelos utentes do custo dos serviços prestados, ainda que obrigatoriamente, pelo Tribunal de Contas, sendo que tais receitas são perspectivadas pelo legislador como um 'âutêntico pressuposto da independência e condição de exercício das competências do Tribunal' (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio). Ainda que a forma de fixação dos emolumentos prevista na lei possa ter como resultado, em determinados casos, um montante superior ao do custo, para o Tribunal, do serviço prestado à entidade concreta em questão – tal como, por exemplo, a fixação da taxa de justiça (ou seja, pela prestação do respectivo serviço), em regra, também em função do valor do processo em questão, pode conduzir a um montante sem correspondência nos custos da concreta actividade processual –, não pode dizer-se que seja 'completamente alheia' a tal custo. Tal montante, fixado segundo o valor da receita própria do município em causa, reflecte ainda a intensidade da utilização do serviço de verificação das contas, sendo certo poder aceitar-se que, pelo menos em princípio, a verificação das contas (ainda que apenas interna, com 'análise e conferência da conta' para
'demonstração numérica das operações realizadas que integram o débito e o crédito da gerência com evidência dos saldos de abertura e de encerramento e, se for caso disso, a declaração de extinção da responsabilidade dos tesoureiros caucionados' – artigo 53, n.º 2, da citada Lei da Organização e Processo do Tribunal de Contas) tenderá a ser tanto mais complexa, e a implicar tanto mais custos, quanto maior for aquele valor. Justamente porque a aplicação, acima de determinado valor, da percentagem da receita como critério de fixação dos emolumentos – da qual, repete-se, pode resultar, num caso concreto, um montante superior ao custo do serviço – poderia já não ser justificada pela (tornar-se 'completamente alheia' à) finalidade de custeio do serviço e concomitante financiamento do Tribunal de Contas, o legislador estabeleceu um valor máximo no artigo 9º, n.º 3, que foi o aplicado no caso em apreço. Prevendo uma verdadeira taxa, não pode, pois, considerar-se que a norma em questão esteja ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Ora, no presente caso, o visto do Tribunal de Contas foi aposto num contrato de compra e venda de um imóvel celebrado entre o Estado e um particular.
A aposição de visto tem por finalidade a fiscalização das despesas públicas pela instância constitucionalmente competente, ou seja, pelo Tribunal de Contas (cf. artigo 216º da Constituição). Trata-se do controlo da legalidade e do cabimento orçamental das despesas inerentes à actuação das entidades públicas, necessário por força de princípios de transparência, adequação e racionalização aplicáveis na gestão das finanças públicas.
Na perspectiva atrás enunciada, é, com efeito, a comunidade em geral que justifica a fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas. Porém, isso não impede que, sob uma outra perspectiva, a do particular que concretamente contrata com a entidade pública, aquele controlo revele a prestação, directa ou indirectamente, de um serviço ao particular. Com efeito, a sujeição legal à fiscalização do Tribunal de Contas de determinados contratos celebrados pelo Estado consubstancia uma condição de admissibilidade desses actos jurídicos que decorre do regime geral do relacionamento negocial entre particulares e entidades públicas. Essa fiscalização é, nessa perspectiva, um requisito necessário à própria negociação e o seu preenchimento o afastamento de um obstáculo ou restrição à negociação com o Estado. É, assim, também um factor que o particular tem de ponderar na decisão de celebrar o negócio com a entidade pública, não estando, aliás, obrigado a celebrar tais contratos. É, portanto, um serviço para quem contrata com o Estado. A realização de tal serviço ao particular permite a certificação da legalidade do contrato com a entidade pública e, portanto, a possibilidade de concretizar esse negócio. E esse serviço não se traduz numa vantagem meramente reflexa e indirecta, equiparável ao benefício colectivo decorrente da actividade do Tribunal de Contas, mas corresponde ao levantamento de uma restrição, justificada pelo interesse colectivo, e ao alargamento das possibilidades concretas de celebrar negócios jurídicos com o Estado, que beneficie concretamente o contraente particular. Também numa lógica de distribuição de custos em função dos benefícios, o visto é um encargo do contrato com entidades públicas que pode ser, numa perspectiva de constitucionalidade, suportado por quem beneficia directa, concreta e individualmente desse contrato. É meramente uma exigência acrescida da negociação com entidades públicas, sob uma certa óptica, legitimada e justificada pelo interesse colectivo. E o cumprimento de tal exigência até produz um directo benefício para o particular que contrata com o Estado.
Os emolumentos devidos pela aposição do visto não consubstanciam, assim, um imposto, sendo antes uma taxa, pois o responsável pelo seu pagamento
(o particular) utiliza um serviço que, no caso, se traduz, aliás, na obtenção de uma vantagem: a fiscalização levada a cabo pelo Tribunal de Contas permite-lhe a celebração do contrato com a entidade pública (são aqui invocáveis, razões semelhantes – apesar de naquele caso se tratar até de uma fiscalização obrigatória – às que levaram o Tribunal Constitucional a considerar, no citado Acórdão n.º 200/01, que a fiscalização das contas das Autarquias é um serviço prestado pelo Tribunal de Contas a essas entidades). Desse modo, e uma vez que a recorrente faz assentar a violação do princípio da legalidade e da igualdade na qualificação da quantia devida como imposto, não procedem as considerações desenvolvidas acerca da violação desses princípios.
4. A recorrente, numa argumentação alternativa, admite, porém, que a prestação em causa consubstancia uma taxa. Nesta linha argumentativa, a recorrente sustenta que tal taxa será ainda inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da imparcialidade, uma vez que o particular é o responsável pela totalidade do encargo com o serviço de fiscalização prestada pelo Tribunal de Contas e, segundo o recorrente, o Estado é a causa e o principal beneficiário dessa actividade.
Ora, como se demonstrou, o particular que celebra o contrato com a entidade pública obtém uma vantagem concreta e individualmente, que resulta imediatamente da actividade do Tribunal de Contas. Não existe, portanto, qualquer inadequação ou desproporcionalidade na atribuição ao particular de tal encargo, que se fundamenta nessa vantagem. Por outro lado, não tem igualmente cabimento apelar, neste contexto, à violação de um princípio de imparcialidade, na medida em que não se pode afirmar que o Estado repercuta custos causados pela sua actividade. A causa directa dos custos é o cumprimento de condicionamentos justificados pelo interesse colectivo, tal como acontece na concessão de uma licença, à efectivação de negócios jurídicos com o Estado que, assegurando a legalidade de um negócio, constituem uma vantagem para o particular. O benefício directo da aposição do visto é, pois, a certificação da legalidade do contrato e, consequentemente, a possibilidade de celebração do negócio pretendido.
5. Pelas razões expostas, improcede o presente recurso.
III Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 10 de Julho de 2002 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa