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Proc. nº 341/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, de 2 de Maio de 2001, foi o ora recorrente, A, condenado: a) como co-autor material de um crime de rapto, previsto e punido pelo artigo
160º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão; b) como co-autor material de um crime de extorsão, previsto e punido pelo artigo
222º, nºs 1 e 3, al. a), com referência aos artigos 204º, nº 2, als. A) e f) e
202º, al. b) do Código Penal de 1995 e art. 4º do D.L. nº 48/95, de 15 de Março, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão; c) como co-autor material de um crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212º, do Código Penal, na pena de 8 meses de prisão. Operado o cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em b) e c), foi o ora recorrente condenado na pena única de 7 anos e 10 meses de prisão, da qual foi declarada perdoada, nos termos do art. 1º, nº 1, al. a), da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, 15 meses e 10 dias de prisão, sob a condição resolutiva prevista nos nºs 4 e 5 da mesma Lei. Procedendo depois ao cúmulo jurídico do remanescente da referida pena unitária com a pena de 5 anos de prisão, aplicada ao crime de rapto (excluída daquele perdão), foi o ora recorrente condenado na pena global e única de 9 anos de prisão. O ora recorrente foi ainda condenado, juntamente com outro, a pagar ao lesado
(ora recorrido), a título de indemnização pelos prejuízos sofridos a quantia global de 6.750.000$00.
2. Inconformado com a assim decidido o assistente, B, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído a sua alegação da seguinte forma:
'1ª - Ao levarem a cabo os seus intentos criminosos, os arguidos, mesmo depois de apontarem uma arma à cabeça do ora recorrente e de lhe terem desferido um choque eléctrico, com o que este deixou de oferecer qualquer resistência, ainda assim deram-lhe posteriormente pancadas na cabeça, com um pau, encapuçaram-no, algemaram-lhe as mãos, amarralham-lhe os pés, deram-lhe soníferos, ameaçaram-no de levar um tiro e colocaram-no na bagageira do seu veículo, durante cerca de duas horas, num dia de verão, à hora de maior calor.
2ª - Numa perspectiva objectiva, todo este comportamento excede, claramente, a violência necessária e suficiente è perpetração do rapto, tendo causado ao ora recorrente acentuado, grave e intenso sofrimento físico e psicológico.
3ª - A conduta dos arguidos assume, assim, características marcadamente cruéis, degradantes e desumanas, tal como estes conceitos se encontram definidos no nº 3 do art. 243º do Código Penal.
4ª - Mais, ainda, cai na alçada da alínea b) do nº 1 do art. 244º do Código Penal, que considera o tratamento inflingido ao ora recorrente, acima descrito, além de cruel, degradante e desumano, como especialmente «grave».
5ª - A conduta dos arguidos deve, por isso, ao contrário do que decidiu incorrectamente o douto acórdão recorrido, ser punida ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 2 do art. 160º, com referência à al. b) do nº 2, do art. 158º, ambos do Código Penal, norma legal esta que, nesta medida, foi violada pelo douto acórdão recorrido.
6ª - Em consequência e por inerência, ao abrigo do disposto nos art.s 496º e
494º do Código Civil, que não foram devidamente valorados e, nessa medida, foram violados pelo douto acórdão recorrido, deve ser reponderado o montante dos danos não patrimoniais sofridos pelo ora recorrente, atendendo ao maior grau de culpabilidade dos arguidos e ao maior nível de sofrimento físico e psicológico do ora recorrente.
7ª - Reponderação que implica necessariamente a agravação do montante fixado pelo douto acórdão recorrido, considerando-se adequado um montante não inferior a Esc. 5.000.000$ 00 (cinco milhões de escudos), a fixar segundo o alto critério de V. Exas.
8ª - O que tudo se requer, com as consequências legais, devendo, por isso, ser revogado, nestas partes, o douto acórdão recorrido, substituindo-se por outro que, tendo em conta o acima exposto, faça um correcto e adequado enquadramento jurídico dos factos provados nos autos'.
3. O ora recorrente, notificado para responder ao recurso interposto pelo assistente, disse, em conclusão, o seguinte:
'1. A matéria provada permite concluir que no caso não estamos ante a situação delineada no nº 2, al. a) do artigo 160º do Código Penal, porque não se verifica a factualidade tipificada na alínea b) do nº 2 do artigo 158º do Código Penal.
2. Na verdade, não houve ofensa à integridade física grave, pois os factos dados como apurados não integram de modo suficiente tal conceito.
3. Dado o carácter limitado da violência usada, a necessária para a consumação do rapto, também não ocorre a tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano, tal como o define o art. 243º do Código Penal.
4. Deste modo não há lugar à modificação do quanto da indemnização decretada, pois que um dos pressupostos de que decorre a respectiva fixação se mostra inalterado'.
4. Já no Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, na sua alegação, depois de referir que limitaria a sua observação 'ao enquadramento jurídico-penal dos factos configurativos do crime de rapto, que foi ainda objecto de impugnação por parte do assistente', concluiu da seguinte forma:
'1º - Preenchendo a conduta havida pelos arguidos e dada como provada em II ponto 44 a 49 e 53 a 54 do douto aresto recorrido, o conceito de tratamento cruel e desumano, objecto de definição no nº 3 do art. 243º do Código Penal;
2º - Pelo crime de rapto qualificado nos termos da al. a) do nº 2 do art. 160º, com referência à al. b) do nº 2 do art. 158º, todos do Código Penal, deverão ser sancionados os arguidos;
3º - que, ao invés do decidido, não usaram da violência estritamente necessária
à concretização do crime de rapto;
4º - Até porque, mercê do concreto circunstancialismo em que os factos ilícitos ocorreram, praticamente inexistente foi a resistência oposta pelo ofendido aos seus raptores;
5º - Que, não obstante isso, reiteradamente e usando armas de fogo, ameaçaram-no de morte, produziram-lhe choque eléctrico no braço, agrediram-no na cabeça com um pau, encerraram-no na bagageira do seu próprio veículo, onde permaneceu cerca de duas horas, encapuçado, algemado com as mãos atrás das costas, amarrado pelos pés e coberto por uma lona;
6º - tudo isto, num dia de verão e a hora de intenso calor, o que produziu no ofendido momentos de pânico e angústia, e fê-lo experimentar ansiedade e incerteza acerca do que poderia acontecer-lhe, face às ameaças de morte que lhe foram feitas, algumas delas com a arma apontada à sua cabeça'.
5. Por sua vez, o assistente, que havia requerido que as alegações fosse prestadas por escrito, depois de dar por integralmente reproduzidas as conclusões formuladas na parte final da motivação de recurso por si apresentada, ainda acrescentou, designadamente, o seguinte:
'Sumariamente o recorrente acrescenta apenas que a moldura penal da conduta dos arguidos, no que ao crime de rapto diz respeito, deve ser aferida tendo por base uma análise objectiva dos factos praticados e que resultaram provados nos autos. Dessa análise resulta, inequivocamente, que foi excedida a violência necessária e suficiente à consumação do rapto, o que causou ao recorrente um tão acentuado e intenso quanto inútil sofrimento físico e psicológico.
(...) Motivo pelo que se impõe a sua condenação ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 2 do art. 160º, com referência à al. b) do nº 2 do art. 158º, ambos do Código Penal (...)'.
6. O arguido, ora recorrente, nada mais disse.
7. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 13 de Março de 2002, decidiu conceder parcial provimento ao recurso e, relativamente ao ora recorrente, considerou, relativamente ao crime de rapto, que os factos por ele praticados integravam a situação prevista na alínea b) do nº 2, do art. 158º, passando a pena de prisão, por esse facto, a ter como limites 3 e 15 anos de prisão de acordo com a al. a) do nº 2 do art. 160º, ambos do Código Penal. Em consequência, decidiu aplicar ao ora recorrente, no que se refere ao crime de rapto, a pena de 7 anos de prisão e, efectuado o cúmulo jurídico com as penas aplicadas aos crimes de extorsão e de dano, condenar o arguido (ora recorrente) na pena única de 10 anos e 6 meses de prisão.
8. Foi desta decisão que foi interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade dos artigos 401º, nº 1, b), 409º, nº 1 e 358º do Código de Processo Penal, 'quando interpretados no sentido de o recurso do assistente quanto ao acórdão condenatório proferido em primeira instância, não acompanhado pelo recurso do Ministério Público, permitir ao tribunal ad quem, sem garantia do contraditório, proceder a uma reformatio in pejus, decorrente de uma alteração da qualificação jurídica dos factos', por alegada violação do disposto no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
9. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso (fls. 2187 a 2197).
É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
'9. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, constituindo desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que, em princípio, tal exige que a questão de constitucionalidade seja suscitada pelo recorrente antes da prolação da decisão recorrida. Em consequência, tem este Tribunal afirmado repetidamente que, em regra, o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional não constitui meio ou momento processualmente adequado para suscitar, pela primeira vez, como aconteceu in casu, a questão de inconstitucionalidade. Somente tem este Tribunal admitido que a questão de constitucionalidade seja suscitada já depois de proferida a decisão recorrida em hipóteses, de todo em todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional é precisamente a daqueles casos em que é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão. Ora, é precisamente esta a hipótese que o recorrente entende verificar-se nos autos. Vejamos então. Argumenta o ora recorrente, no requerimento de interposição do recurso, que foi
'surpreendido pela aplicação das normas em causa pela forma como o foram', pois
' o recurso do assistente, se bem que referente a uma diversa qualificação jurídica dos factos, não extraia nas suas conclusões qualquer efeito a nível do agravamento da pena, mas apenas a nível do valor da indemnização civil (...)' pelo que 'não era crível nem expectável que não havendo recurso interposto pelo Ministério Público e não suscitando o assistente no seu recurso a questão da medida da pena, que o STJ procedesse ao seu agravamento'. A verdade, porém, é que não lhe assiste razão. E desde logo porque, ao contrário do que alega, não é verdade que o assistente tenha limitado o recurso à questão do valor da indemnização cível, não extraindo da sua motivação qualquer consequência ao nível da medida da pena criminal a aplicar. Para o demonstrar basta transcrever aqui as passagens quer da motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, quer das posteriores alegações apresentadas por escrito já nesse Tribunal, de onde resulta claramente o contrário do afirmado pelo ora recorrente. Assim, logo na motivação que acompanha o requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, refere o assistente (então recorrente), depois de argumentar no sentido de que a conduta dos arguidos deveria ser subsumida à al. a) do nº 2 e não à al. a) do nº 1 do art. 160º do Código Penal
(fls. 1934):
'Termos em que a conduta dos arguidos, relativamente ao crime de rapto, comporta a agravante prevista na alínea a) do nº 2 do art. 160º, aplicável por referência
à al. b) do nº 2 do art. 158º, ambos do Código Penal, isto é, deve ser punida como «rapto qualificado», a que corresponde a pena de 3 a 15 anos de prisão, o que se requer seja determinado'. (Sublinhado nosso). E, na conclusão 5ª da mesma peça processual, refere-se (fls. 1935):
'A conduta dos arguidos deve, por isso, ao contrário do que decidiu incorrectamente o douto acórdão recorrido, ser punida ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 2 do art. 160º, com referência à al. b) do nº 2 do art. 158º, ambos do Código Penal, norma legal esta que, nesta medida, foi violada pelo douto acórdão recorrido'. (Sublinhado nosso). No mesmo sentido, nas alegações escritas que apresentou mais tarde, refere o então recorrente, depois de dar por integralmente reproduzidas as conclusões formuladas na motivação de recurso apresentada (fls. 2100 e 2101): Sumariamente o recorrente acrescenta apenas que a moldura penal da conduta dos arguidos, no que ao crime de rapto diz respeito, deve ser aferida tendo por base uma análise objectiva dos factos praticados e que resultaram provados nos autos. Dessa análise resulta, inequivocamente, que foi excedida a violência necessária e suficiente à consumação do rapto, o que causou ao recorrente um tão acentuado e intenso quanto inútil sofrimento físico e psicológico.
(...) Motivo pelo que se impõe a sua condenação ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 2 do art. 160º, com referência à al. b) do nº 2 do art. 158º, ambos do Código Penal (...)' (Sublinhados nossos). Aliás, o próprio Ministério Público, na alegação que também apresentou no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 2083 a 2095), refere expressamente que limitará a sua observação 'ao enquadramento jurídico-penal dos factos configurativos do crime de rapto, que foi ainda objecto de impugnação por parte do assistente' (fls. 2085), por não ter legitimidade para se pronunciar sobre o quantitativo indemnizatório fixado pelo Tribunal. Em face do exposto, resulta evidente que, ao contrário do que refere o ora recorrente, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o assistente expressamente solicitou a esse Tribunal que, no que se refere ao crime de rapto, subsumisse os factos à al. a) do nº 2 do artigo 160º do Código Penal - e não à al. a) do nº 1, como havia feito a primeira instância - e que daí extraísse as devidas consequências quer ao nível da pena criminal a aplicar ao aplicar ao arguido pela prática desse crime, quer ao nível da indemnização em que o mesmo havia sido condenado. E, sendo assim, manifesto se torna igualmente que não pode depois qualificar-se como imprevisível ou inesperado que o Supremo Tribunal de Justiça, concordando com os fundamentos do recurso, tivesse procedido à alteração da subsunção dos factos requerida pelo recorrente para daí extrair consequências, também expressamente requeridas pelo assistente, ao nível da pena criminal em que decidiu condenar o arguido. Assim, sendo previsível que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse vir a subsumir os factos ao tipo da alínea a) do nº 2 do art. 160º do Código Penal, e que, em consequência, viesse a alterar a pena em que a decisão recorrida havia condenado o arguido pelo crime de rapto - consequência expressamente requerida pelo assistente, como vimos - era efectivamente exigível ao ora recorrente que, a entender que tal não poderia ser feito sem a aplicação de uma dimensão normativa inconstitucional de preceitos do Código de Processo Penal, tivesse, antes de proferida a decisão recorrida, suscitado a inconstitucionalidade desses mesmos preceitos. Não o tendo feito, não pode agora, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade; a saber: ter a questão de constitucionalidade sido suscitada pelo recorrente durante o processo.
10. Ao que vai dito acresce que uma outra razão sempre conduziria ao não conhecimento do objecto do recurso. Como o Tribunal Constitucional tem, também, afirmado repetidamente, só pode julgar inconstitucional a norma – ou dimensão normativa - cuja apreciação é requerida pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso, e desde que tal norma – ou interpretação normativa – tenha sido efectivamente aplica, como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Ora, in casu, no requerimento de interposição do recurso o recorrente refere pretender ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 401º, nº 1, b), 409º, nº 1 e 358º do Código de Processo Penal, na interpretação normativa desses artigos que, no caso de recurso interposto só pelo assistente, 'permite ao tribunal ad quem, sem garantia do contraditório, proceder a uma reformatio in pejus, decorrente de uma alteração da qualificação jurídica dos factos'. A verdade, porém, é que o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou os artigos
401º, nº 1, b), 409º, nº 1 e 358º do Código de Processo Penal, com o exacto sentido que vem questionado pelo recorrente, não podendo afirmar-se que aquele Tribunal tenha procedido a uma reformatio in pejus, decorrente de uma alteração da qualificação jurídica dos factos, sem garantia do contraditório, na medida em que ao arguido (ora recorrente) foi dada a oportunidade de responder ao recurso do assistente na parte em que este pedia precisamente a alteração da qualificação jurídica dos factos e, consequentemente, a punição do arguido à luz de uma moldura de pena mais grave, sendo apenas da sua responsabilidade que tenha - erradamente, como vimos - interpretado o recurso do assistente como pretendendo apenas extrair consequências ao nível da indemnização cível e, consequentemente, se tenha apenas pronunciado sobre este aspecto do recurso.
11. Por tudo o exposto, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso, por não se verificarem os pressupostos de que depende a sua admissibilidade'.
10. Inconformado com esta decisão o recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que fundamentou da seguinte forma:
'1. São duas as questões em apreço: ter o recorrente sido surpreendido pela aplicação da norma cuja constitucionalidade pretende discutir; ter sido ela efectivamente aplicada no caso.
2. A decisão reclamada entendeu que o recorrente não foi surpreendido pela aplicação da norma jurídica em causa e por isso poderia ter suscitado a questão no recurso no quadro do contraditório que lhe foi oferecido; e entendeu também que a norma em causa – na dimensão normativa suscitada pelo recorrente – não foi aplicada pois, não houve lesão do contraditório.
3. Não se aceitam, salvo o merecido respeito, ambos os enunciados.
4. Primeiro, o recorrente não poderia imaginar que a reformatio in pejus, nisso que implica uma pena diversa mais gravosa ou da mesma espécie de maior duração, tal como a enuncia o CPP, pudesse decorrer do provimento de um recurso interposto por um assistente em processo penal, recurso esse desacompanhado do MP.
4.1. Na verdade, a legitimidade dos assistentes em matéria de recurso atinente à medida da pena é muito restrita, pois de acordo com um Assento do STJ nº 8/99
(DR, 185/99, de 10.08.99) «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
4.2. Por isso, o CPP na norma em que tipifica a proibição de reformatio in pejus
(art. 409º do CPP) não revela a situação de recurso interposto pelo assistente desacompanhado do Ministério Público, pelo que tal norma, interpretada de acordo com a sua letra e conforme o seu espírito, apenas permite a reformatio in pejus em função de recurso do Ministério Público.
4.3. Na verdade, a restrição da reformatio in pejus aos casos em que houver recurso nesse sentido interposto pelo MP, é a única interpretação lógica e expectável, porque compatível com a letra e com o espírito do artigo 409º do CPP e com a história do preceito em causa.
4.4. Não se conhece qualquer jurisprudência ou doutrina que viabilize, como algo juridicamente expectável, que o recurso do assistente, desacompanhado de recurso do MP, no qual se coloque como seu objecto, a questão da qualificação jurídica dos factos – ergo, de modo indirecto – a medida da pena – possibilite ao tribunal ad quem a reformatio in pejus.
4.5. A história do preceito mostra que a reformatio in pejus é consentida por intervenção do MP. Introduzida pela Lei nº 2139, de 05.03.69, por alteração do art. 667º do CPP de
1929, a reformatio in pejus derivava então de uma intervenção do MP junto do tribunal ad quem. Veja-se Doutor Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, páginas 259 e seguintes.
5. Deste modo o recorrente foi de facto surpreendido com a aplicação da norma em causa.
6. Diga-se além disso que é verdade que lhe foi garantido o contraditório inerente ao recurso do assistente, mas essa garantia foi-lhe concedida e foi usada no quadro do que estava então conjecturalmente m causa, ou seja, em relação a um recurso do qual poderiam resultar vários efeitos, mas não a agravação da pena, como viria a suceder.
7. Na verdade, não se pode pretender que, o contraditório, se exerça em relação a todas as questões suscitadas e os seus efeitos possíveis, por mais insólitos e inovadores que possas surgir.
8. Ora, no caso, a verdade ´q eu, na lógica da legitimidade do assistente para recorrer, desacompanhado do MP, e no quadro da configuração típica do art. 409º do CPP, parece excessivo esperar-se que o arguido tivesse de equacionar a eventualidade de, para efeito de tal recurso, haver lugar a um agravamento da pena'.
11. O Representante do Ministério Público, notificado da presente reclamação, veio responder-lhe no seguintes termos:
'1 – A presente reclamação é claramente improcedente, já que não pode seguramente configurar-se como decisão-surpresa, de conteúdo insólito e imprevisível, a que se traduz em – no âmbito do recurso interposto pelo assistente e não circunscrito à matéria civil – agravar a pena aplicada pelas instâncias ao arguido, em consequência de uma alteração da qualificação jurídica dos factos.
2 – Acresce que – como bem nota a decisão reclamada – não houve, na aplicação normativa questionada, qualquer preterição da regra do contraditório, já que ao arguido foi naturalmente facultada plena oportunidade processual para se pronunciar sobre a configuração ou qualificação jurídica dos factos feita pelo assistente/recorrente'. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
12. Sustenta o reclamante, em primeiro lugar, que, ao contrário do que se decidiu na decisão reclamada, teria sido confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa do artigo 409º do Código de Processo Penal, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão da sua inconstitucionalidade antes da prolação da decisão recorrida. A esta questão já se respondeu, em termos que mantém inteira validade e para os quais se remete, na decisão reclamada. Agora apenas se acrescenta que o Assento nº 8/99, invocado pelo reclamante, não infirma quanto se disse, por não ser aplicável à situação que é objecto dos autos. A questão que foi decidida por aquele Assento foi a da legitimidade do assistente para recorrer, desacompanhado do MP, quando o objecto do recurso seja exclusivamente a espécie ou a medida da pena aplicada. Ora, diferentemente, nos presentes autos, o assistente ao recorrer não questionou exclusivamente a espécie ou medida da pena, mas a própria qualificação jurídica dos factos.
É, aliás, o próprio Assento citado pelo ora reclamante que, começando por fazer uma delimitação negativa do seu objecto, refere que 'não está em crise a legitimidade do assistente, desacompanhado do MP, no concernente (...) à divergência sobre a qualificação jurídico-penal operada na decisão (...). Questiona-se aquela [legitimidade] apenas quando o objecto do recurso for ou onde seja a discordância em relação à espécie ou à medida da pena aplicada'
(Diário da República, I Série- A, de 10 de Agosto de 1999, p. 5192). Mais à frente (loc. cit., fls. 5195), no mesmo sentido, pode ainda ler-se: 'Por outro lado, mais do que a discordância sobre o quantum o que existe é a divergência sobre a qualificação jurídico-criminal (...) e que a Relação sancionou (...). Portanto, a questão sub judicio não é influenciada pela jurisprudência obrigatória a firmar'.
13. Reafirma-se, finalmente, que, como se disse já na decisão reclamada, a decisão recorrida não aplicou os artigos 401º, nº 1, b), 409º, nº 1 e 358º do CPP, com o exacto sentido que vinha questionado pelo recorrente; ou seja: na interpretação normativa desses artigos que, no caso de recurso interposto só pelo assistente, permite ao tribunal ad quem, sem garantia do contraditório, proceder a uma reformatio in pejus, decorrente de uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Como então se referiu, em termos que não são abalados pela presente reclamação, o Tribunal não procedeu a uma reformatio in pejus, sem garantia do contraditório, na medida em deu ao arguido a oportunidade de responder ao recurso do assistente, também na parte em que este solicitava a alteração da qualificação jurídica dos factos e, consequentemente, a punição do arguido à luz de uma moldura penal mais grave. Era, pois, este o quadro que estava em causa (o objecto do recurso), sendo apenas da responsabilidade do ora reclamante que sobre ele não se tenha pronunciado. III – Decisão. Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta Lisboa, 23 de Setembro de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida