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Proc. nº 564/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como reclamantes A e M e como reclamado o Ministério Público, foi proferida decisão, em 3 de Julho de 2002, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional que os ora reclamantes pretenderam interpor de um acórdão daquele Supremo Tribunal, de 20 de Junho de 2002, que havia indeferido um requerimento de habeas corpus por si apresentado. Para não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, o Exmo. Conselheiro Relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça escudou-se na seguinte fundamentação:
'Depois de em incidente absolutamente anómalo terem requerido a reforma do acórdão que indeferiu a sua petição de «habeas corpus», vêm agora os requerentes interpor recurso para o Tribunal Constitucional daquele acórdão, usando para o efeito um requerimento de 12 folhas, como se estivesse a produzir alegações. Porém, os requerentes esquecem o que se disse no acórdão que indeferiu o seu pretenso pedido de reforma do acórdão que se pronunciou sobre o pedido de
«habeas corpus». Aí se disse, efectivamente, que tal pedido de reforma, porque implicava modificação essencial do decidido, não era consentido pelo preceituado no art.
380º, nº 1, al. b) do CPP, única norma que se aplica à correcção das decisões, em processo penal, o que afasta, obviamente, a aplicação do disposto no art.
669º, nº 2 do CPC. Mais se disse no referido acórdão que o acórdão pretensamente impugnado pelo anómalo pedido de reforma já transitou em julgado, por não ter sido impugnado, no prazo legal, por meio legítimo. De facto, por ser absolutamente ilegal, o pedido de reforma do acórdão sobre a providência em apreço não têm, obviamente, a virtualidade de diferir o início do prazo para o recurso para depois da notificação do acórdão sobre aquele pedido. Cfr. o art. 686º, nº 1 do Cód. Proc. Civil a respeito dos pedidos, correctamente formulados, de rectificação, aclaração ou reforma da sentença. O entendimento contrário levaria a um alargamento ilegal do prazo do recurso. Bastaria o recorrente, antes de interpor o recurso, requerer algo que lhe viesse
à cabeça depois de notificado da decisão para depois interpor recurso, beneficiando de um prazo mais dilatado. Por conseguinte, o recurso ora interposto pelos requerentes, cujo prazo é de dez dias (art. 75º, nº 1 da Lei nº 28/82, de 15-11), está manifestamente fora de prazo (notificação da decisão em 23-5-2002 e interposição do recurso em
1-7-2002), pelo que não o admito'.
2. É desta decisão que vem interposta a presente reclamação (fls. 1 a 13), que os reclamantes concluem da seguinte forma:
'1ª - Tal como acima se demonstra, o recurso para este Tribunal é tempestivo e é apresentado por quem tem legitimidade para o efeito;
2ª - As questões de ilegalidade e inconstitucionalidade na interpretação normativa das normas acolhidas na decisão proferida, foram colocadas tempestivamente no Tribunal «a quo», muito embora este não tenha conhecido das mesmas;
3ª - As questões que os recorrentes pretendem ver apreciadas por este V. Tribunal são, no essenciais para a decisão do recurso de habeas corpus pendente;
4ª - Esgotados estão assim os meios de recurso judicial para que tal questão possa ser conhecida por este Tribunal.
5ª - A decisão recorrida violou o art. 677º do CPC, aplicável por força do disposto no art. 4º do CPP; art. 280º/1/b; 2/d; nº 4 e 6 da CRP e art. 70º/1/b e f) da Lei 28/82 de 15 de Setembro, na redacção introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro porquanto tendo em vista o acima exposto, verificados estão os legais pressupostos para a admissibilidade do recurso'.
3. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer (fls. 54 e 55) no sentido da manifesta improcedência da reclamação apresentada, por os reclamantes não terem suscitado, durante o processo, as questões de constitucionalidade que pretendiam ver apreciadas. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
4. Entendem os reclamantes (nesta parte secundados pelo Ministério Público) que, ao contrário do que considerou a decisão reclamada, o recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional através do requerimento de fls. 38 a 50, apresentado em 1 de Julho de 2002, é tempestivo, por o prazo para a sua interposição não começar a contar com a prolação da decisão recorrida, mas com a notificação da decisão que indeferiu o requerimento para a sua reforma. A verdade, porém, é que – como, bem, demonstra o Ministério Público –, ainda que se considere que lhes assiste, nesta parte, razão, uma outra circunstância sempre impedirá a admissão do recurso: é que os reclamantes não colocaram, durante o processo, como exige a alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, as questões de constitucionalidade que pretendem ver apreciadas. Na verdade, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que, em princípio, uma questão de constitucionalidade só é suscitada durante o processo (no sentido exigido por aquela alínea) quando o seja antes da prolação da decisão recorrida.
5. Dessa forma, não interessa sequer apurar agora se há ou não, em processo penal, lugar à reforma da sentença, por aplicação do artigo 669º do Código de Processo Civil. É que, como este Tribunal vem afirmando desde o Acórdão nº
418/98 (Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 1998), o requerimento de reforma da decisão recorrida não constitui, em regra, meio ou momento processualmente adequado para suscitar, pela primeira vez, como aconteceu in casu, as questões de inconstitucionalidade. Nesse sentido, ponderou-se naquele aresto:
'É certo que na sequência das alterações legislativas introduzidas ao Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 329º-A/95, de 12 de Dezembro, se alargaram os termos da possibilidade de reforma da sentença, permitindo-se hoje inclusivamente, se verificados determinados pressupostos, a alteração da própria decisão de mérito. Só que, e é isto que o recorrente parece esquecer, a possibilidade de reforma da sentença por parte do tribunal a quo depende da verificação dos respectivos pressupostos do instituto que, como decidiu, aliás, o próprio tribunal recorrido, no caso manifestamente não se verificam. Nos termos do nº 2 do art. 669º do Código de Processo Civil só é possível a reforma da sentença, designadamente em termos de permitir a alteração da decisão de mérito, quando (A) tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; ou, (B) constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração. Ora, é manifesto que nada disto se verifica no caso que é objecto dos autos. A eventual aplicação de uma norma inconstitucional não configura (ressalvada alguma hipótese anómala e excepcional, como seja a da inexistência jurídica da norma) uma situação de manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos. (...) E, não se verificando os pressupostos de que depende a possibilidade de reforma da sentença, designadamente quanto à decisão de mérito, vale a regra do nº 1 do art. 666º do Código de Processo Civil, segundo a qual, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
6. Ao que vai dito acresce que também não estamos perante um daqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão. Para o demonstrar bastará recordar, no que se refere à norma que, na interpretação da decisão recorrida, se extrai do artigo 54º, nº 3 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, não só que já existiam várias decisões do Supremo Tribunal de Justiça (algumas citadas, aliás, na própria decisão recorrida) a sustentar aquele entendimento, como ainda que o próprio Tribunal Constitucional já havia sido chamado a pronunciar-se sobre essa mesma questão, decidindo, no acórdão nº 246/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de
1999), pela sua não inconstitucionalidade. Já no que se refere à norma que se extrai do artigo 216º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, também não se pode considerar de todo em todo imprevisível ou inesperada uma interpretação normativa perfeitamente enquadrável no teor literal do preceito (se não é mesmo, por ele, sugerida), que se limita a dizer que os prazos do artigo anterior se suspendem quando tiver sido ordenada perícia cujo resultado seja determinante para a decisão de acusação, de pronúncia ou final, não fazendo qualquer referência à necessidade de qualquer prévia declaração judicial nesse sentido. Assim, sendo previsível que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse vir a dar
àqueles preceitos aquele sentido normativo, era efectivamente exigível aos ora reclamantes (então requerentes) que, a entenderem que tais preceitos eram, com aquele sentido normativo, inconstitucionais, tivessem, antes de proferida a decisão recorrida, suscitado a questão da sua inconstitucionalidade. Não o tendo feito, não pode agora, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade; a saber: terem as questões de constitucionalidade sido suscitadas pelos recorrentes durante o processo.
III – Decisão Por tudo o exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze UC. Lisboa, 26 de Setembro de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida