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Proc. nº 316/01
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. Inconformado com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Junho de 2000, que julgou extinto, 'por efeito da prescrição' o procedimento criminal, revogando o despacho do Senhor Juiz do 1º Juízo B do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que havia pronunciado o arguido F... (ora recorrido) pelo crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 300º, nºs 1 e 2, al. a) do CP de 1982, interpôs o assistente V... (ora recorrente) recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. A concluir a alegação que apresentou, disse, designadamente, o seguinte:
'(...)
7. No acórdão recorrido julgou-se estar prescrito o procedimento criminal mas erradamente.
8. Pois, tendo os factos ocorrido em 1992 e 1993, estão eles sob a alçada do Código Penal de 1982 que punia o crime com pena de prisão até três anos e de 1 a
8 anos de prisão se o valor da coisa fosse consideravelmente elevado.
9. Ora, atendendo aos padrões vigentes em 1992-1993, o valor de 888.203$00 tem de ser entendido como consideravelmente elevado.
10. Nem se compreenderia, aliás, que se aplicasse a mesma pena no caso de o valor da coisa ser diminuto ou insignificante e no caso de o seu valor exceder os 800 contos como é o dos autos.
11. Assim se não entendeu no acórdão recorrido mas só porque se fizeram intervir disposições publicadas posteriormente com o novo Código Penal de 1995, nomeadamente o seu artigo 202º.
12. Ora, a aplicação retroactiva deste preceito legal conduz ao resultado chocante de se aplicarem pena diferentes para situações iguais e no domínio da mesma legislação (na óptica do acórdão, claro).
13. É que o disposto no art. 202º do novo Código Penal foi perspectivado tendo em conta um regime também novo de punição para os crimes patrimoniais.
14. Apareceram, assim, os conceitos novos de valor diminuto e valor elevado e, consequentemente, a alteração de toda a moldura penal então vigente.
15. Foi sempre entendido que no caso de aplicação de leis penais no tempo (art.
2º, nº 4 do CP), a aplicação do regime considerado mais favorável se faz em bloco e não por mistura das disposições de ambos, assim se evitando os resultados chocantes a que conduz o acórdão sob recurso.
16. Em nome da igualdade e da proporcionalidade, apregoadas no acórdão, levanta-se então a questão da constitucionalidade do artigo 202º invocado, na interpretação que lhe deu o acórdão, por ofensivo da igualdade e proporcionalidade asseguradas na Constituição.
(...)'
2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de Abril de 2001, negou provimento ao recurso. Na fundamentação dessa decisão pode ler-se, designadamente, o seguinte:
'(...) O facto imputado ao arguido, face à pronuncia de fls. 432 e ss. do processo principal verificou-se em 30-04-93. O crime é de abuso de confiança e a quantia que o arguido recebeu para suportar as despesas de legalização de um veículo automóvel e que ilicitamente se apoderou integrando-a no seu património em prejuízo do recorrente é de 888.203$00. Será esta importância, referida ao ano de 1993, de reputar 'valor consideravelmente elevado' ? Temos por certo que não. A redacção do CP vigente à data do facto [não] definia o que devia entender-se por «valor consideravelmente elevado» e o acórdão recorrido para preencher esse vazio legal serviu-se do critério que melhor conduz à desejável certeza e segurança – e consequentemente igualdade -, em detrimento da discricionaridade a que daria lugar aquela «imprecisa» expressão legal. Esse critério é o da redacção do CP introduzida pelo D.L. nº 48/95, de 15-03, - valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto – art. 202º, al. b) -.
(...) Daí que o crime que os factos imputados ao arguido consubstanciam seja não o de abuso de confiança p. e p. pelo art. 300º, nº 1 e 2 al. a) do C.P., versão de
1982, mas sim o de abuso de confiança simples daquele art. 300º e seu nº 1.
(...)'.
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade do artigo
202º, alínea b) do Código Penal de 1982, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, quando interpretado em termos de poder aplicar-se a factos praticados antes da sua entrada em vigor, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da confiança.
6. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1) O artigo 202º do Código Penal actual é inconstitucional na interpretação que lhe deu o acórdão sob recurso.
2) Por ofensa do princípio da igualdade consignado no artigo 13º da Constituição.
3) Pois, nos termos do acórdão, o crime, sendo o valor elevado, como o define o artigo 202º do Código Penal actual, é no momento punido diferentemente consoante tenha sido perpetrada antes ou depois da publicação do Código'.
7. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o Ministério Público, ora recorrido, a concluir:
'1 – Não constitui violação do princípio da igualdade a circunstância de o tribunal aplicar a lei penal nova, mais favorável ao arguido, a factos anteriores ao início de vigência desta – justificando-se, aliás, tal solução por força do princípio contido no nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso'. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II - Fundamentação
8. O artigo 202º, alínea b) do Código Penal, na redacção que lhe deu o Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, tem o seguinte teor:
'Artigo 202º
(Definições legais) Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se: a. (...); b. Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto; c. (...); d. (...); e. (...); f. (...); g. (...)'.
Entende o recorrente que este preceito é inconstitucional, na interpretação que o considera aplicável a factos praticados antes da sua entrada em vigor, por violação do princípio da igualdade, 'na medida em que, no domínio da mesma legislação – o Código Penal de 1995 – o crime sendo o valor elevado, será punido com pena até três anos ou até 5 anos consoante tenha sido cometido antes ou depois da sua entrada em vigor' (sublinhado nosso). Na perspectiva do recorrente a violação do princípio da igualdade resultaria assim de se punir diferentemente (com pena até 3 ou até 5 anos de prisão) o facto praticado antes ou depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 48/95, de
15 de Março.
É, contudo, manifesta a improcedência do argumento. A violação do princípio da igualdade apenas poderia resultar de se punirem diferentemente dois factos iguais praticados no âmbito da mesma legislação, e não, como é evidente, da circunstância de se punirem de forma diferente factos praticados no âmbito de diferentes legislações (antes ou depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março). O argumento do recorrente conduziria, aliás, a que tivesse de se considerar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, qualquer alteração da lei penal que agravasse as penas previstas para um facto, por o facto praticado ao abrigo da nova lei ser punido diferentemente
(de forma mais grave) do que o mesmo facto quando tivesse sido praticado ao abrigo da lei anterior. Em suma: ao punir, de forma diferente, factos praticados antes ou depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, não se está a tratar diferentemente o que é igual, mas a tratar diferentemente o que é diferente, precisamente por os factos serem praticados ao abrigo de distintas legislações. Acrescente-se, a concluir, que – como, bem, acentua o Ministério Público –, no caso dos autos, a aplicação retroactiva do disposto no artigo 202º, alínea b) do Código Penal, resulta de uma específica exigência constitucional, a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável (cfr. art. 29º, nº 4 da Constituição). Pelo que não faz sentido suscitar a sua inconstitucionalidade por ofensa dos princípios da legalidade ou da igualdade. III. Decisão. Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 28 de Maio de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida