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Proc. nº 148/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – Por decisão sumária proferida a fls. 270 e segs. foi decidido não se admitir o recurso interposto pela Magistrada do Ministério Público, junto da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea a) da LTC, do acórdão daquele Tribunal de fls.
232 e segs..
Escreveu-se na referida decisão:
'1 - A Magistrada do Ministério Público junto da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo interpõe recurso do acórdão de fls. 232 e segs. para este Tribunal, nos seguintes termos:
'A Magistrada do Ministério Público, junto desta Secção, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 70º nº 1 al. a) e
72º nºs 1 al. a) e 3 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, alterada pelas Leis nºs 143/85 de 26/11, 85/89 de 7/9, 88/95 de 1/9 e
13-A/98 de 26/2) do acórdão de fls. 232 e segs que recusou a aplicação do art.
2º do Dec.-Lei nº 99/95, de 19/5, interpretado no sentido de abranger tão somente a remuneração base, por tal violar o art. 59º nº 1 al. a) da CRP.'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 264, o que, nos termos do artigo 76º nº 3 da LTC, não vincula este Tribunal.
Cumpre apreciar se o recurso é admissível.
2 - O recurso vem interposto, como se viu, ao abrigo do artigo 70º nº
1 alínea a) da LTC.
Cabe este recurso das decisões que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade.
No caso, vem invocada a recusa de aplicação de uma determinada interpretação da norma ínsita no artigo 2º do Decreto-Lei nº 99/95 – a de que ela abrangeria 'tão somente a remuneração-base' – recusa essa que se teria fundado em inconstitucionalidade (violação do artigo 59º nº 1 alínea a) da CRP).
Será assim ?
Prima facie, importa salientar que se não verifica no acórdão recorrido qualquer declaração formal, expressa, de recusa de aplicação da referida norma, com a apontada interpretação, por violação do artigo 59º nº 1 alínea a) da CRP.
Tal não significa que, substancialmente, essa recusa não tenha ocorrido; mas, a ocorrer, ela não pode deixar de ser implícita.
Como recusa implícita e tratando-se, como se trata, de uma determinada interpretação normativa, a verificação do pressuposto do recurso ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC passa necessariamente pela questão de saber se a decisão judicial impugnada, na aplicação aos factos do preceituado no artº 2º do Decreto-Lei nº 99/95 assentou numa interpretação normativa que substancialmente foi determinada por se ter afastado outra das interpretações possíveis, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
E porque o recurso em causa é também um recurso instrumental há-de apurar-se se, independentemente do afastamento da questionada interpretação por afrontar a Constituição, a decisão não seria sempre a mesma, tendo em conta a lógica fundamentadora do julgado.
O trecho a este propósito mais significativo do acórdão recorrido é o seguinte:
'Resta, pois, saber, em face do decidido, se reconhecido pela sentença recorrida o direito ao valor actualizado da remuneração suplementar, esse direito deve ser mantido, a efectuar-se, ou estando já efectuada a transição do pessoal em causa para os quadros a que se refere o artº 1º do DL nº
99/95.
As razões que poderiam levar à não consideração daquela remuneração suplementar, referida como suplemento, relacionam-se com o princípio de que o legislador ao integrar pessoal em novas careiras não o fazer, em regra, com a incorporação dos suplementos remuneratórios.
E a sentença recorrida também foi por aí ao considerar que a remuneração suplementar não integra a remuneração base, citando os artºs 15º e
19º do DL nº 184/89 de 02/06.
Só que a questão, no caso, é diferente, tendo-se em conta a natureza permanente e de remuneração, não de suplemento, que a própria sentença recorrida atribui aos referidos abonos.
Na verdade, como salientam os AA, a referida remuneração permanente foi enquadrada transitoriamente como suplemento para os efeitos definidos no artº 19º do DL nº 184/89, de 02/06, mantendo-se esse 'suplemento', transitoriamente, até ao momento em que diploma legal definisse o respectivo regime.
Tal diploma nunca veio a ser criado e o DL nº 9/95, de 19/95 não fez qualquer referência à manutenção daquele 'suplemento'. Ou seja, face ao DL nº
99/95, de 1/05, os recorrentes deixarão de receber o referido 'suplemento' interpretado e qualificado como tal.
Porém, se se atender aos efeitos que decorreriam directamente da decisão recorrida e à natureza permanente daquela remuneração, verificar-se-ia que o tribunal estaria a reconhecer um direito aos recorrentes (valor actualizado da remuneração suplementar, dita suplemento) até à sua integração nos quadros e que esse direito desapareceria após a integração, dada a qualificação atribuída à mesma remuneração suplementar como 'suplemento'. Daí que interpretado o artº 2º do DL nº 99/95, de 19/05 como efectuando-se a transição para o escalão a que correspondesse o mesmo índice remuneratório, atendendo só à remuneração base, sem ter em conta a remuneração suplementar, estava-se a ignorar a natureza permanente daquela remuneração, a extinção dos suplementos que decorreria da transição dos quadros, e, sobretudo e de forma mais gravosa, a dar aos recorrentes após a sua transição para os quadros um regime de remuneração muito mais desfavorável que o anterior (perderiam a referida remuneração suplementar a partir da integração), apenas compensada, parcialmente, com o reconhecimento do direito ao valor actualizado dos suplementos até ao momento da transição.
Este regime, como salientam os recorrentes, além de corresponder a uma redução da sua retribuição após e quando se efectue a transição, com violação do artº 59º nº 1 alínea a) da CRP, corresponderia a uma interpretação dos preceitos legais que, contrariando o princípio geral de os trabalhadores da função pública não poderem ver diminuídas as suas remunerações, face ao nosso regime retributivo, seria, ainda, uma solução manifestamente desajustada e desadequada na interpretação dos normativos em causa (artº 9º nº 3 do Código Civil).
A transição do pessoal a que se referem os artºs 1º e 2º do DL nº
99/95, de 19/05, tem de ser assim entendida no sentido de na transição das categorias para as categorias correspondentes se atender ao escalão que corresponda ao índice remuneratório correspondente às remunerações base e à remuneração suplementar devidamente actualizada dos recorrentes, dada a sua natureza permanente, considerando, pois, tal remuneração no cálculo das remunerações já auferidas pelos referidos funcionários, nos termos do artº 2º do DL nº 99/95, de 19 de Maio.'
Ora do texto que acaba de se transcrever ressalta uma razão fundamental da decisão: a natureza permanente da remuneração suplementar que os então recorrentes tinham auferido até à sua integração nos novos quadros, remuneração essa que, ademais, se reconhecera dever ser transitoriamente actualizada até à referida integração.
E é essa natureza permanente que, desde logo, começa por afastar ou por em crise o fundamento em que assentava a sentença então impugnada no sentido de a integração se fazer sem a consideração do que se entendia ser um
'suplemento' ou 'remuneração suplementar' e que, nesta medida, não integrava a remuneração base.
Sendo certo que a norma em causa – ínsita no artigo 2º do Decreto-Lei nº 99/95 – não deixa de comportar o sentido que lhe foi atribuído no acórdão recorrido, ela é, pois, interpretada fundamentalmente com base na natureza permanente da aludida remuneração suplementar, o que, em si, nada tem a ver com hipotética recusa de outra interpretação normativa com fundamento em inconstitucionalidade.
Por outro lado, ao sufragar tal interpretação, o acórdão recorrido pondera que a interpretação acolhida na sentença do TAC, determinando uma diminuição da remuneração auferida pelos recorrentes, contrariaria um alegado princípio geral de os trabalhadores da função pública não verem reduzidos os seus vencimentos; concomitantemente, suporta a sua interpretação no disposto no artigo 9º nº 3 do Código Civil, ou seja na presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.
É certo que o acórdão em causa alude, também, ao facto de a diminuição da remuneração contrariar o disposto no artigo 59º nº 1 alínea a) da Constituição, mas no contexto argumentativo referido, tal alusão é apenas um plus relativamente ao que se entende ser o fundamento essencial do decidido que, manifestamente, se não alteraria sem essa pretendida infracção constitucional.
Isto significa que se não vê que a norma em causa tenha sido interpretada no sentido em que o foi por se ter recusado a interpretação contrária com fundamento em inconstitucionalidade – a interpretação acolhida tem suporte autónomo e bastante à margem de hipotéticos julgamentos implícitos de inconstitucionalidade.
Em suma, pois, não se verificam os requisitos do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC no ponto em que a interpretação da norma do artigo 2º do Decreto-lei nº 99/95 não foi substancialmente determinada por recusa de aplicação da mesma norma, com outra interpretação, por infracção à Constituição.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decido não admitir o recurso.
Sem custas.'
O representante do Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, inconformado com aquela decisão, veio dela reclamar para a conferência, dizendo, em síntese, o seguinte:
- a decisão recorrida recusou implicitamente um dos sentidos plausíveis do artigo 2º do Decreto-Lei nº 99/95, 'segundo o qual na transição dos funcionários aí previstos, se atende exclusivamente à remuneração-base, com exclusão de quaisquer remunerações suplementares, ainda que de natureza permanente', o que traduziria uma redução da retribuição colidente com o artigo
59º nº. 1 alínea a) da CRP;
- citando Rui Medeiros in 'A Decisão de Inconstitucionalidade', pp.
331, para ocorrer uma situação paralela à recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade basta que o juízo de inaplicabilidade de certo sentido normativo se não funde, 'única ou primacialmente' no princípio da interpretação conforme à Constituição, não desempenhando o 'apelo à Constituição em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação, ou em que a norma recusada constitui, mesmo à luz das demais regras de interpretação, uma norma imaginária, impossível ou inconsistente';
- a decisão recorrida recusou implicitamente a aplicação de um certo sentido normativo do artigo 2º do Decreto-Lei nº 99/95 primacialmente com base numa razão ou motivo situado no plano juridico-constitucional, sendo perfeitamente plausível, face à letra da lei, aquele sentido normativo.
Os recorridos não responderam.
Cumpre decidir.
2 – A divergência do reclamante face à decisão sumária reclamada não se situa no plano dos princípios dogmáticos, mas tão só no da interpretação que
é feita do acórdão recorrido, em particular no que concerne à relevância que nele se confere ao artigo 59º nº 1 alínea a) da CRP.
Com efeito, não está em causa qualquer dissentimento teórico na resposta à questão de saber quando se está perante uma recusa implícita de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
Nada, na decisão reclamada, se diz em contrário da tese exposta, a tal propósito, na presente reclamação, admitindo-se também que a letra do artigo
2º do Decreto-Lei nº 99/95 comporta, como um dos sentidos plausíveis, aquele que foi afastado no acórdão recorrido.
O que se disse – e aqui se reitera – sem que o reclamante abale essa convicção, é que o apelo à Constituição feito naquele aresto traduz, apenas, um reforço do resultado interpretativo a que se chegou por via do direito infraconstitucional. Esse resultado radica, essencialmente, na consideração de que a remuneração em causa não tem carácter de suplemento, mas natureza permanente.
Do trecho do mesmo acórdão, transcrito na reclamação ('face ao DL nº
99/95, de 19-05, os recorrentes deixarão de receber o referido 'suplemento' interpretado e qualificado com tal') não se retira qualquer argumento favorável
à tese do reclamante no sentido de que a recusa de tal sentido se deve a desconformidade com a Constituição, mas apenas – o que se não nega – que a norma
é susceptível de ser interpretada em termos de abranger a referida remuneração. Simplesmente – e é isto que releva – a opção feita no acórdão recorrido assenta na qualificação substancial da mesma remuneração (a que formalmente a lei se referiu como 'suplemento') como 'remuneração permanente' e não, primacialmente, por apelo à Constituição, na medida em que, de outro modo (ou seja, com outra interpretação), se infringiria a Constituição.
Assim e sem necessidade de outras considerações é de confirmar a decisão sumária reclamada.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Sem custas. Lisboa, 28 de Junho de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa