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Proc. nº 799/01 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 – M..., recorrente nos autos supra identificados, reclama para a conferência da decisão sumária que negou provimento ao recurso por ele interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 112, nos seguintes termos:
1 – M..., identificado nos autos, interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão do STJ de fls. 511 que confirmou o despacho do Relator de não admissão do recurso por aquele interposto para o STJ, nos termos do artigo 678º nº 4 do CPC.
Nos termos do requerimento de interposição do presente recurso, pretende o recorrente que o Tribunal aprecie a constitucionalidade 'da parte ou segmento da norma – 'e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal' – que integra o artº 678-4 CPC, decorrente da interpretação e sentido adoptado na douta decisão recorrida'.
Este seria o 'de que a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, em caso de oposição de acórdãos, depende de o valor da causa, sobre o qual incidiu o acórdão recorrido, ser superior à alçada do tribunal recorrido'.
Tal sentido ou interpretação violaria 'a disposição do artº 206º da CRP, na medida em que estando os tribunais sujeitos à lei, compete-lhes aplicá-la com o sentido que se identifique com a vontade do legislador; por outro lado, o sentido com que aquela parte da norma foi aplicada opõe-se à uniformização da jurisprudência, que é uma concretização de um princípio de justiça e de segurança jurídica', envolvendo esse princípio 'a sanação de contradições interpretativas e implica a uniformização de aplicação da lei, como forma de evitar um casuísmo indesejado, sendo, pois, um corolário do princípio da igualdade, vertido no artº 13º da CRP.'
A questão de constitucionalidade foi suscitada pelo recorrente na reclamação para a conferência do aludido despacho do relator no STJ que não admitiu o recurso para aquele Alto Tribunal.
Cumpre decidir, o que se faz ao abrigo do artigo 78º- A nº 1 da LTC.
2 – Resulta dos autos:
- Inconformado com o acórdão da Relação do Porto de 2/11/00, de fls.
368 a 383 que, em acção de processo sumário para restituição judicial de posse, com o valor de 1.812.000$00, julgara improcedentes os recursos por ele interpostos e procedente o recurso interposto pelos intervenientes na dita acção, o ora recorrente interpôs recurso para o STJ, ao abrigo do artigo 678º nº
4 do CPC, invocando como acórdão em oposição o que pela Relação do Porto fora proferido em 11/5/95.
- O recurso foi admitido no tribunal então recorrido.
- Em contra-alegações, os recorridos suscitaram a questão prévia da não admissibilidade do recurso, a que os recorrentes responderam nos termos da peça de fls. 459 e segs.
- Remetidos os autos ao STJ, o MP suscitou, no seu parecer, idêntica questão prévia, também fundada na irrecorribilidade do acórdão da Relação por este ter sido proferido em acção com valor compreendido na alçada da relação, a que os recorrentes responderam nos termos da peça de fls. 483 e segs.
- Por despacho de fls. 492 e segs. o Relator julgou procedente a questão prévia suscitada e não admitiu o recurso.
- Os recorrentes requereram, então que sobre aquele despacho recaísse acórdão (fls. 495 e segs.) pondo em causa a interpretação dada à norma do artigo
678º nº 4 do CPC e sustentando que 'o recurso ordinário, não admitido por motivo estranho à alçada e referido no teor da disposição, não tem (...) relação com o valor da causa sobre o qual incidiu o acórdão em oposição, mas com a possibilidade de existência de recurso ordinário para o tribunal supremo, fixado por lei e independente da alçada do tribunal da relação'; no seu requerimento, sustentaram, ainda, a inconstitucionalidade da interpretação feita no despacho reclamado.
- O acórdão ora recorrido limitou-se a confirmar, nos seus precisos termos, o despacho em causa.
3 – A norma, ou segmento, constante do artigo 678º nº 4 do CPC, na interpretação dada pelo acórdão impugnado, foi já apreciada por este Tribunal no Acórdão nº 100/99 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', pp. 443 e segs; também norma semelhante, ínsita no artigo 764º do mesmo Código, na versão anterior à reforma resultante dos Decretos-Leis nºs 329-A/95 e 180/96, foi apreciada 'sub specie constitutionis' nos Acórdãos nºs 275/94 (não publicado) e
239/97 in Diário da República, 2ª Série, de 15/5/97.
Em todos os arestos citados não foram julgadas inconstitucionais as normas em causa, não se vendo agora razão para abandonar uma tal jurisprudência.
Os recorrentes, porém, para além de entenderem violados princípios ou normas constitucionais que foram ponderados nos referidos acórdãos, acrescentam duas novas infracções constitucionais: a violação do artigo 206º da CRP e a colisão com o princípio da segurança jurídica.
Preliminarmente, não deixará de se dizer que, não estando o Tribunal Constitucional condicionado pelos fundamentos do pedido para julgar inconstitucional uma determinada norma (artigo 79º-C da LTC), a verdade é que, como se viu, não o fez nos acórdãos citados, o que, desde logo, se afigura significativo.
Ora, quanto á primeira violação, há manifesto lapso dos recorrentes: o artigo 206º da CRP consagra o princípio da publicidade das audiências dos tribunais, o que, a todas as luzes, não é posto em causa pela norma em apreço.
Admitindo o lapso dos recorrentes e crendo que eles se reportam à sujeição dos tribunais à lei (artigo 203º da CRP), evidente é que eles não têm qualquer razão.
Com efeito, o que os recorrentes parecem pretender é que sempre que os tribunais interpretem erradamente uma norma de direito infraconstitucional, esta, com tal interpretação, é inconstitucional...
Ora, o Tribunal Constitucional limita-se a apreciar se a interpretação feita pelos tribunais de normas infraconstitucionais (cujo acerto, no estrito âmbito do direito ordinário, o Tribunal não sindica) ofende a Constituição. Nesta medida, não tem o Tribunal que aferir do bom ou mau uso dos cânones interpretativos (designadamente, do ajustamento à vontade do legislador, que não é mais do que um desses cânones) limitando-se, como se disse, a verificar se a norma (uma sua interpretação) aplicada viola a Constituição.
De resto, a norma do artigo 203º da CRP não contém qualquer critério aferidor da conformidade constitucional das normas ou de interpretações normativas.
Quanto à violação do princípio da segurança jurídica:
Considera-se o princípio da segurança jurídica (ao lado do princípio da protecção da confiança) como um dos elementos constitutivos do Estado de direito (cfr. Gomes Canotilho 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', p. 250).
De acordo com o ensinamento do autor citado, entende-se com uma das refracções mais importantes daquele princípio, 'relativamente a actos jurisdicionais', a inalterabilidade do caso julgado (ob. e p. cit). E diz mais adiante ´(p. 257) o mesmo autor:
'É diferente falar em segurança jurídica quando se trata de caso julgado e em segurança jurídica quando está em causa a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência. Sob o ponte do de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais (...)' (sublinhado nosso).
Não se discute as vantagens de um mecanismo processual (um meio processual) que permita a uniformização da jurisprudência. E a essa vantagens foi sensível o legislador ao prever o recurso por oposição de julgados.
Coisa diversa é, porém, a de saber se a Constituição vincula o legislador a consagrar, para todos os casos, e independentemente do valor económico dos pedidos, um tal recurso.
Ora, sendo jurisprudência pacífica deste Tribunal que o legislador ordinário goza de uma considerável margem de liberdade de conformação no estabelecimento de meios recursórios, não garantindo sequer a Constituição, em matéria não penal, um duplo grau de jurisdição (e o recorrente, no caso, até deste usufruiu) só aquela hipotética vinculação constitucional poderia impedir a limitação do recurso para uniformização de jurisprudência, com fundamento na irrecorribilidade da decisão por o valor da acção em causa não exceder a alçada da relação.
Mas a verdade é que se não vê na Constituição a consagração de um direito dos cidadãos à manutenção ou permanência da jurisprudência, funcionando sempre o resultado de um determinado litígio – ainda que haja uma jurisprudência dominante ou pacífica sobre o caso – como um risco para os litigantes, acrescido pela limitação, constitucionalmente admissível, dos graus de recurso em função do valor da acção.
Não se verificam, pois as apontadas inconstitucionalidades.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se negar provimento ao recurso, por ser manifestamente infundado.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.
2 - É contra esta decisão que vem deduzida a presente reclamação, dizendo o reclamante, em síntese, que:
· Foi mal interpretado no que expôs em sede do tribunal recorrido;
· O caso submetido à consideração do TC e que deu lugar ao Acórdão nº
100/99 foi diferente do que ora se coloca pois naquele a norma do artigo 678º nº
4 do CPC foi questionada 'por se partir do pressuposto de que o legislador ao exceptuar do recurso para uniformização de jurisprudência as causas cujo valor não excedam a alçada da relação violou os princípios constitucionais contidos no artº 20º e 13º', enquanto neste o recorrente 'parte do entendimento de que o legislador do CPC de 1995 não exceptuou do recurso para uniformização de jurisprudência as causas cujo valor não excedesse a alçada da Relação'
· O reclamante admite que a norma seja susceptível de duas interpretações, mas a Constituição 'não é neutra quanto a este aspecto atento ao fim em vista – uniformização de jurisprudência';
· Com o recurso de uniformização de jurisprudência procura-se a fixação de um sentido juridicamente relevante do preceito, cuja finalidade não deixa de ser a de garantir a segurança e igualdade jurídicas, postulados do princípio da justiça;
· O instituto procura a remoção das contradições interpretativas, que contendem fortemente com a unidade do direito o que é coisa diferente da uniformidade ou estabilidade da jurisprudência;
· Na medida em que o fim previsto pela uniformização da jurisprudência é o de sanar uma contradição interpretativa e declarar o sentido da vontade do legislador, então é forçoso acolher aquele como bem jurídico e salvaguardá-lo, escolhendo de entre as interpretações da norma a interpretação que conduza
àquele fim, numa relação de adequação ou meio-fim;
· A interpretação mais racional do preceito contido no artº 678º-4 CPC é mesmo a da não imposição da restrição do valor da causa;
· Concluindo-se que a norma contém o sentido apontado pelo reclamante e que este acolhe por causa do fim a que conduz os princípios do acesso ao direito, certeza e segurança e segurança do direito, deve, então ser recusado por desconformidade com tais preceitos constitucionais o sentido oposto com que foi aplicada;
Formulou, por fim, as seguintes conclusões:
1 – A norma do artº 678º-4 do CPC, na parte em que refere – e do qual não cabe recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal – pode ser objecto de duas interpretações, cujo resultado é o da admissibilidade ou não admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, quando a causa tem um valor inferior ao da alçada do tribunal.
2 – Atendendo ao teor literal da parte da norma em foco, ao seu contexto normativo e sua ratio, deve prevalecer a interpretação, nos termos do qual o recurso, nas condições apontadas deve ser admitido.
3 – Por outro lado, não sendo a Constituição neutra em termos de valoração, é forçoso que seja dada preferência à interpretação que acolha a admissão do recurso, na medida em que, tendendo para a uniformização de jurisprudência, vai concretizar através desta valores objectivos que são imanentes à Constituição, como a exigência da unidade do direito,. certeza e segurança jurídica, indispensáveis num estado de direito democrático (artº 2º CRP);
4 – Adoptado um sentido da norma, nos termos do qual não é admissível o recurso, foi consequentemente recusado o outro sentido que a norma contém, que é o que lhe dá uma dimensão em que os valores constitucionais se acolhem, violando-se deste modo a Constituição.
Responderam os recorridos sustentando que a reclamação deve ser indeferida.
Cumpre decidir.
3 - Como se viu, a decisão sumária reclamada assentou no facto de a questão de constitucionalidade suscitada – constitucionalidade da norma constante do artigo
678º nº 4 do CPC, interpretada no sentido de que ela não consente o recurso para uniformização de jurisprudência quando o valor da acção não excede a alçada da relação – ter sido já apreciada por este Tribunal no Acórdão nº 100/99, tal como acontecera com norma semelhante (artigo 764º do CPC, na redacção anterior às reformas do CPC de 95 e 97) nos acórdãos nºs 275/94 e 239/97.
Nos referidos acórdãos, a decisão foi sempre no sentido da não inconstitucionalidade daquelas normas.
Por tal motivo e entendendo o relator não haver razão para inflectir a jurisprudência que se firmara no Tribunal Constitucional, foi negado provimento ao recurso considerando-se a questão manifestamente infundada.
Vem agora o reclamante dizer que a questão apreciada no Acórdão nº 100/99 não é igual à que suscita, sendo mesmo o 'inverso', uma vez que o reclamante parte do pressuposto de que o legislador não excepcionou da recorribilidade as acções com valor inferior à alçada da relação.
É irrelevante, para a decisão do caso, esse pressuposto.
Com efeito, na apreciação das questões de constitucionalidade que lhe são colocadas em recurso de fiscalização concreta e quando se trata de uma questão de interpretação normativa, o Tribunal Constitucional parte necessariamente da interpretação que se faz na decisão recorrida e não da que o recorrente acolhe no plano da interpretação do direito infraconstitucional.
E é sobre aquela interpretação – que eventualmente pode até não coincidir com a que o Tribunal entenda como a mais correcta – que o Tribunal formula o seu juízo de constitucionalidade, ponderando a sua conformidade ou desconformidade com as normas ou princípios constitucionais.
No caso, é nítida a interpretação acolhida no acórdão impugnado, confirmando nos seus precisos termos o despacho sobre o qual o recorrente pretendeu que recaísse um acórdão.
E ela é a de que a norma em causa não permite o recurso para uniformização de jurisprudência quando o valor da acção não excede a alçada da relação, salvo nos casos em que a irrecorribilidade ordinária da decisão não tem que ver com essa alçada.
Cumpria, assim, ao Tribunal Constitucional apreciar se essa interpretação ofendia a Constituição, tal como o fizera relativamente a interpretações idênticas, nos seus anteriores arestos supra citados.
Aditou-se, no entanto, na decisão reclamada, a ponderação de vícios de inconstitucionalidade que não tinham sido apreciados naqueles arestos, em particular a violação do princípio da segurança jurídica; e não se vê razão para alterar o aí decidido, no sentido da inexistência de uma vinculação constitucional na consagração do recurso de uniformização de jurisprudência em todas as acções, qualquer que seja o seu valor.
Parece, agora, o reclamante distinguir entre a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência e a unidade do direito que se visa atingir com o meio recursório em causa, estando nesta ínsitos valores constitucionalmente relevantes; e acrescenta que, entre duas interpretações normativas, se deve adoptar a que conduza á finalidade constitucionalmente tutelada.
Trata-se, contudo, de exprimir a mesma realidade por diferentes palavras, sendo certo que, na decisão reclamada, sem embargo de se reconhecer as vantagens da uniformidade da jurisprudência, se entendeu que esta não é constitucionalmente imposta e menos ainda em todas as acções, independentemente do seu valor económico.
Por outro lado, nas chamadas decisões interpretativas do Tribunal Constitucional
– a que o reclamante parece fazer apelo na sua reclamação – a interpretação imposta, conforme à Constituição, resulta não só de ela ser comportada pelo teor do preceito, como da rejeição – por inconstitucionalidade – da que foi acolhida na decisão recorrida; ou, se se tratar de um recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC (e não é o caso), da verificação de que a norma recusada comporta ainda um sentido não contrário à Constituição.
No caso, para que o Tribunal Constitucional impusesse a interpretação do artigo
678º nº 4 do CPC, no sentido pretendido pelo reclamante – e admita-se que o preceito a comporta – tornava-se necessário rejeitar por inconstitucionalidade a que foi adoptada no acórdão recorrido, e isso não acontece, pelas razões expostas na decisão reclamada.
Em suma e sem necessidade de outras considerações, a argumentação do reclamante não infirma a decisão reclamada que, consequentemente, deve ser confirmada.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa,29 de Maio de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa