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Proc. nº 431/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Nos autos de processo-crime que corre termos no Tribunal Judicial de Montemor o Velho e em que são arguidos A., B e C, o mandatário dos arguidos expôs e requereu, em audiência de julgamento a que faltou o arguido B:
'São arguidos no processo a firma A, representada pelos seus dois sócios gerentes, C e B, bem como cada um destes dois senhores individualmente. A audiência de julgamento encontrava-se designada para dia 29 de Maio pelas 9:00 horas bem como para dia 5 de Junho também pelas 9 horas; nos termos – comina-se na douta notificação enviada aos arguidos e ao seu defensor constituído – do artigo 312º nº. 2 do Cód. Proc. Penal. Tomou agora conhecimento o defensor constituído no processo de ausência por doença do arguido B, sócio gerente da arguida A. Entende a defesa que o depoimento a prestar pelo arguido faltoso é mesmo crucial para o esclarecimento pormenorizado da verdade dos factos em análise. Por outro lado, os arguidos foram notificados rigorosa e expressamente nos termos constantes da notificação. Quer isto dizer que os arts. para o efeito mobilizados pelo Tribunal são expressamente o já citado 312° n°. 2 e por via deste também expressamente o 333º nº. 1 do C.P.P.. Chegados à leitura do art.
333º, podemos facilmente constatar que se o arguido não estiver presente na hora designada para o início da audiência, e se não for possível obter a sua comparência de imediato, a audiência é adiada, cabendo ao presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento.'. Esta
é segundo a interpretação clássica do direito processual penal a regra e a matriz do corpo do art. 333º. Tudo o restante poderão ser eventualmente interpretações acessórias que não substituíveis. Mesmo assim e tendo sempre presente o teor das notificações expressas dirigidas pelo Tribunal a todas as pessoas envolvidas, notificação esta que apenas menciona o já citado art. 312º nº. 2 e a designação já de segunda data para realização do julgamento - atendemos, todavia no teor dos restantes nºs. deste mesmo art. 333°... Ora o nº.
2 deste mesmo art. 333° diz-nos claramente que se o arguido não estiver presente na data designada e não for possível obter a sua comparência de imediato, a audiência é de novo adiada. Também este n° 2 reitera o principio geral e a matriz clássica do corpo do art. Privilegiando mesmo em segunda data designada uma terceira hipótese de cominação para que a presença do arguido se concretize. Ainda no mesmo sentido e reforçando este espirito clássico que não o ilide do art. 333°, o seu n°. 3 apenas permite que a audiência tenha lugar na ausência do arguido desde que com o seu consentimento, remetendo por sua vez para o art.
334° no.2 do C.P.P.. Para não ser cansativo ao Tribunal, não mencionamos outros dispositivos processuais que reforçam este espirito e conteúdo clássicos verdadeiramente enraizados na prática jurisprudencial, - que são a comparência abilicio dos arguidos na audiência de discussão e julgamento do seu julgamento. Estamos com isto a lembrarmo-nos dos arts. 334° 341 ° à cerca da ordem da produção da prova, 343°, 344º e seguintes1odos do Cód. Proc. Penal. Por outro lado a defesa tem como o Tribunal compreenderá pensada a sua estratégia probatória que passa ineizeravelmente pela audição prévia dos arguidos. Estratégia esta e prova esta que são direitos constitucionalmente reconhecidos e de que a defesa não abdica; além do que a mesma defesa se vê na obrigação de alterar toda a sua preparação probatória sem que os arguidos sejam ouvidos ab initio. Preparação esta que eventualmente alterada pela continuação dos trabalhos a defesa entende ficar fortemente abalada. Em conclusão a defesa requer, com base na falta do arguido B que a audiência de discussão e julgamento se inicie apenas em 5 de Junho como está expressamente designado. Caso o Tribunal entenda apesar de tudo prosseguir os trabalhos e uma vez que a sua estratégia probatória fica totalmente desvirtuada requer desde já - sem prejuízo do pedido de adiamento formulado - que nos termos do art. 386° do Cód. Proc. Penal lhe seja concedido prazo para preparação da sua defesa que dessa forma fica fortemente quartada e gravemente abalada.'
Sobre este requerimento foi proferido o seguinte despacho:
'Contrariando a matriz e o entendimento clássico de que a falta do arguido à audiência de julgamento é sem mais motivo de adiamento, veio o Legislador Processual Penal, através do Decreto-Lei 320-C/2000 de 15 de Dezembro instituir um regime que apenas excepcionalmente permite o adiamento da audiência por falta do arguido. Resulta claro, e é entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico que só no caso do Tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido faltosa desde o início da audiência, a mesma pode ser adiada – 333º nº. 1 do Cód. Proc. Penal. Ponderou o legislador ao instituir tal regime os interesses legítimos da defesa
(aonde tem relevância a estratégica de defesa do arguido) e por outro lado o interesse das testemunhas em ser ouvidas, dos ofendidos em verem reparada a sua situação, e acima de tudo o interesse decorrente de uma justiça mais célere. No caso em apreço, entende o Tribunal que estando em causa actos relativos à vida profissional dos arguidos, documentalmente descritos nos autos, a presença dos mesmos desde o início da audiência não é indispensável para a descoberta da verdade material, estando assegurados todos os direitos do arguido faltoso através da sua audição na Segunda data já agendada e na gravação de todos os depoimentos a prestar na presente audiência. Assim sendo, e sem mais considerações, indefere-se o requerido adiamento da audiência por falta do arguido. Quanto ao requerido prazo para preparação da defesa, por um lado o dispositivo invocado apenas tem aplicação no processo sumário, o que não é o caso nos presentes autos, e o Exmo. Mandatário estando constituído Mandatário desde
8/Março/2002, teve com o conhecimento da lei que é exigido, que definir a sua estratégia de defesa tendo sempre em atenção as vicissitudes que decorrem da aplicação da lei, designadamente do disposto do art. 333º do Cód. Proc. Penal. Assim sendo e também nesta parte se indefere o requerido.'
Deste despacho foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'As funções destinadas aos Tribunais estão expressamente consagradas na Constituição da República Portuguesa, e no caso vertente no Cód. Proc. Penal. Também as funções, direitos e deveres conferidos à acusação publica se encontram igualmente reconhecidos e consagrados na Constituição da República Portuguesa e também no caso vertente no Cód. Proc. Penal. O mesmo sucede de facto com os direitos, deveres e obrigações dos cidadãos em geral e dos cidadãos perante a Lei e os Tribunais. O Cód. Proc. Penal em vigor reconhece aos arguidos direitos e deveres nomeadamente por via do disposto no arf. 61° do C.P.P.. Logo a al. a) do n°. 1 deste mesmo art. do C.P.P. confere a qualquer arguido o direito de
'estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito'. Quer isto dizer que com o principio processual penal qualquer arguido tem esse direito inalienavelmente reconhecido pela lei processual. O art. 333° nº.3 do mesmo C.P.P. confere ao arguido a possibilidade de não estar presente na sua audiência de discussão e julgamento sendo para isso necessário e obrigatório o seu consentimento. Ora, o arguido B embora faltoso, não fez chegar ao tribunal o consentimento para que a audiência de discussão e julgamento prosseguisse na sua ausência. Quer isto dizer que subsiste com relevância especial o direito atrás referido de estar presente aos actos processuais que directamente lhe dizem respeito. É obvio que a realização da presente audiência de discussão e julgamento sem a presença do arguido B fere de morte este seu direito universal de pelo menos presenciar e intervir em actos processuais que directamente lhe dizem respeito. Direito este que por ser universal não se compadece nem se concilia com outros direitos que embora legítimos são menores; como é o caso dos direitos ao tempo por parte das testemunhas bem como ao principio que não de direito da celeridade processual. Tudo isto de facto para afirmar inequivocamente que a presente audiência de discussão e julgamento a eventualmente a realizar-se sem a presença do arguido faltoso fere mortalmente aquele seu direito fixado por via do art. 61°, n°. 1 al. a) do Cód. Proc. Penal. Por outro lado e na sequência do que se disse inicialmente, ao arguido e à defesa estão consagrados direitos universais e constitucionais. Se aos Tribunais são reconhecidas as funções superiores da realização da justiça consabidas, também é certo que aos Tribunais não está conferido o direito de se substituir à defesa, à sua estratégia processual e probatória. Ou seja, processual e constitucionalmente os cidadãos em geral, os arguidos em particular e o Sr. B em especial têm direito constitucional à sua defesa; no pleno uso de todos os seus direitos legais processuais e universais. De que o arguido em causa pela pessoa do seu Mandatário Constituído não abdica. Com o teor do mui douto despacho proferido, violam-se disposições constitucionais consagradas na Constituição da República Portuguesa em vigor. De facto com a pretensão do Tribunal em prosseguir com o julgamento apesar de ir contra a vontade já justificada do arguido B violam-se os direitos constitucionais que passamos a descriminar . Viola-se o principio da igualdade consagrado no art. 103° da Constituição da República Portuguesa. Viola-se o principio da força jurídica consagrado no art. 108° n°. 2 da Constituição da Republica Portuguesa. Viola-se o principio das garantias do Processo Penal consagrado no art. 32° da Constituição da República Portuguesa. Por tudo o que se tem dito os arguidos constituídos nos autos interpõem recurso de constitucionalidade do douto despacho proferido que ordena a continuação da audiência de discussão e julgamento sem a presença do arguido faltoso B. O presente recurso é interposto com base no disposto das als a) e f) do nº. 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Conclusões: O Douto despacho proferido é inconstitucional porque viola os dispositivos e princípios constitucionais consagrados nos arts. 13°, 18°, e 32° da Constituição da República Portuguesa. Por ser devido, legal, atempado deve este recurso de incontitucionalidade ser admitido e subir imediatamente ao Tribunal Constitucional para apreciação, com efeito suspensivo. Tudo de acordo com o disposto nos arts. 6°, 51º e seguintes da Lei n°. 28/82 de 15/Novembro conjugada com o disposto nos arts. 277° a 283° da Constituição da República Portuguesa.'
O recurso não foi admitido conforme o seguinte despacho:
'Vem o Defensor dos arguidos recorrer do despacho supra proferido fundamentando na sua inconstitucionalidade. Como resulta claro da leitura da motivação, não alega o arguido que o Tribunal tenha aplicado uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo nem que tenha recusado a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Apenas se alega que a decisão é em si mesma inconstitucional. Ora como resulta do art. 280º da C.R.P. e é entendimento unânime e pacífico pela doutrina e pela jurisprudência constitucional, o recurso de inconstitucionalidade apenas poderá versar sobre normas ou actos legislativos. A discussão das decisões dos Tribunais fora dos casos supra enunciados faz-se em sede de recurso no âmbito da jurisdição comum, isto é no caso em apreço, para o Tribunal da Relação de Coimbra. Pelo exposto e pelas razões supra enunciadas, não admito o recurso interposto, por inadmissibilidade legal do mesmo.'
É deste despacho que vem interposta a presente reclamação que assim se expressa:
'As razões e fundamentos para o recurso de inconstitucionalidade interposto são sucintamente aquelas que constam já do texto a ele introdutório. E por isso não se vão repetir nem o processorismo da presente reclamação sobre o indeferimento da admissão daquele recurso de inconstitucionalidade o permite. Todavia naquele recurso interposto teve-se o cuidado de mencionar as alíneas a) e f) do nº. 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n°. 28/82 de 15/Novembro), como sendo os dispositivos processuais que por sua vez fundamentam a vontade do recorrente. Quando se diz que o recurso interposto não se conforma com douto despacho proferido, é obvio que em ultima análise se põe em causa a constitucionalidade da norma processual na qual aquele douto despacho se alicerçou. Na verdade, quando o Tribunal ordenou a prosseguimento dos trabalhos naquela audiência de discussão e julgamento, fê-lo mobilizando uma norma processual; e essa norma processual é o ali invocado art. 333° n°. 1 do C.P.P.. Ora, a conflitualidade das normas não pertence ao domínio do abstracto. A conflitualidade das normas consuma-se quotidianamente na casuística dos factos. Tudo isto para dizer que a norma processual que a nosso ver é inconstitucional teve no caso vertente o efeito prático consubstanciado no douto despacho proferido e recorrido. Em suma, o recurso interposto, não poderia ter outro objecto que não o douto despacho proferido que por sua fez materializou neste caso a mobilizada norma processual já citada. Pelo que segue dito os ora recorrentes não se conformam com o douto despacho que indeferiu o recebimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por isso reclamam agora formalmente de tal atitude processual. Fazem-no nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 76°, 77°, 78° da já citada Lei do Tribunal Constitucional. CONCLUSÕES: Os arguidos reclamam do douto despacho de indeferimento sobre o recurso de inconstitucionalidade interposto e fazem-no porque os ora recorrentes fundamentaram devidamente tal recurso interposto. Agiram da forma processual correcta, invocaram os dispositivos processuais adaptados mormente as als. a) e f) do n°. 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugada com o disposto nas als. a) e b) do n°. 1 do art. 280° da Constituição da República Portuguesa. É obvio que a norma que se invoca colidir com princípios constitucionais gerais é aquela já citada – art. 333° n°. 1 do C.P.P.. Por ser devida, atempada e consistente, deve a presente reclamação ser apreciada imediatamente pelo próprio Tribunal Constitucional como decorre do texto do art.
76° no.4 da Lei do Tribunal Constitucional.'
O Magistrado do Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer sobre a reclamação, no sentido da sua improcedência.
Cumpre decidir.
2 - É patente a improcedência da reclamação.
Com efeito, e antes do mais, o recurso, interposto ao abrigo das alíneas a) e f) do nº. 1 do artigo 70º da LTC, carecia dos pressupostos especificamente exigíveis para o efeito.
É que não se vislumbra no despacho recorrido nem recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade (pressuposto do recurso ao abrigo da citada alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC) nem aplicação de norma cuja ilegalidade tivesse sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c) d) e e) do nº. 1 do mesmo artigo 70º da LTC
(pressuposto do recurso ao abrigo da alínea f) do nº. 1 do artigo 70º da LTC).
Na verdade, indicada agora, na presente reclamação, a norma em causa – artigo
333º nº. 1 do CPP – o que se vê do despacho reclamado é que se fez aplicação daquela norma, usando o tribunal do poder que ali lhe é conferido, de avaliar da indispensabilidade da presença do arguido desde o início da audiência para a descoberta da verdade material.
Mas também pela razão invocada no despacho reclamado improcede a reclamação.
O recurso de constitucionalidade visa o controle da conformidade de normas (ou de uma sua interpretação) com a Constituição e não das decisões judiciais impugnadas.
Ora, não subsistem quaisquer dúvidas de que o recorrente imputou a suposta inconstitucionalidade invocada no requerimento de interposição de recurso ao despacho que indeferiu a pretensão de adiamento da audiência, não questionando então a conformidade constitucional de qualquer norma.
De resto, dado o teor já referido do mesmo despacho, é manifesto que a impugnação do recorrente se dirige não à norma contida no artigo 333º nº. 1 do CPP (ou a uma sua interpretação) mas à sua aplicação, enquanto o tribunal faz uso do citado poder de avaliação da indispensabilidade da presença do arguido desde o início do julgamento.
3 – Decisão
Pelo exposto e em conclusão, por não se verificarem os pressupostos do recurso interposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa,28 de Junho de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa