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Processo n.º 19/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em execução para pagamento de quantia certa que a Caixa Económica Montepio Geral moveu contra A., ora reclamante, a correr termos sob o n.º 401/07.3TBSCD no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, foi proferida decisão pelo agente de execução, nos termos do artigo 886.º-A, nºs. 1 e 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 20 de novembro, quanto à modalidade da venda dos bens imóveis penhorados e respetivos valores base.
O executado, discordando, quer do valor base atribuído aos bens penhorados, quer da modalidade da venda fixada, reclamou da referida decisão, ao abrigo do n.º 5 do citado preceito legal, tendo o Tribunal, por decisão de 4 de maio de 2012, indeferido a reclamação, no que respeita à modalidade da venda, determinando que esta se fizesse por propostas em carta fechada, como decidido pelo agente de execução, e fixando o valor base do bens penhorados nos exatos termos constantes do relatório pericial cuja realização, entretanto, se ordenou, com vista à avaliação do atual valor de mercado das frações a vender.
O executado dela recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de ver apreciada a inconstitucionalidade da «norma contida no n.º 2 do art. 889.º e no n.º 5 e nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 886.º-A do Código de Processo Civil – que permite fixar um valor base dos bens a vender inferior ao valor de mercado e promover a sua venda por um valor inferior a esse valor base – por violação do direito de propriedade privada e dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade consagrados nos arts. 1.º, 2.º, 13.º e 18.º, n.º 2 e 62.º da Constituição da República Portuguesa» (CRP).
O Tribunal recorrido não admitiu o recurso porquanto o recorrente não suscitou previamente a questão de inconstitucionalidade, tal como imposto pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, sendo certo que o podia e devia ter feito na reclamação que deduziu, nos termos do n.º 5 do citado artigo 886.º-A do CPC, contra a decisão do agente de execução, que precisamente convocou a norma sindicada para determinação do valor da venda dos bens penhorados.
O recorrente, não se conformado com tal decisão liminar, dela reclamou para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, invocando que não lhe foi possível suscitar a inconstitucionalidade da referida norma perante o Tribunal recorrido, pois que, contrariamente ao que se afirma na decisão que indeferiu o recurso de constitucionalidade, ela não foi aplicada, com os precisos contornos sindicados, na decisão do agente de execução que fixou o valor base dos bens a vender (à data, ainda não tinha sido determinado o respetivo valor de mercado, o que só veio a acontecer, cerca de um ano depois, com a realização da perícia ordenada para o efeito), mas apenas na decisão judicial que, já na posse do referido relatório pericial, apreciou a sua reclamação. Assim, não sendo legalmente admissível interpor recurso ordinário de tal decisão, atento o que dispõe o artigo 886.º-A, n.º 5, in fine, do CPC, estava dispensado de suscitar previamente a questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do recurso de constitucionalidade, tal como o Tribunal Constitucional vem admitindo em casos idênticos, devendo, por isso, em aplicação de tal jurisprudência, revogar-se a decisão reclamada e admitir-se o recurso.
O Ministério Público, em resposta, pugnou pelo indeferimento da reclamação, pelas razões que basearam a decisão de rejeição do recurso de constitucionalidade.
2. Cumpre apreciar e decidir.
O reclamante pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma prevista nos artigos 889.º, n.º 2, e 886.º-A, nºs. 2, alíneas a) e b), e 5, do CPC, que «permite fixar um valor base dos bens a vender inferior ao valor de mercado e promover a sua venda por um valor inferior a esse valor base», por violação do direito de propriedade privada e dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, e 62.º da CRP.
Mas sendo o recurso de constitucionalidade, na modalidade ora acionada, um instrumento de reapreciação do juízo de não inconstitucionalidade formulado pela instância recorrida, necessário seria que tivesse suscitado perante esta, antes de proferida a decisão recorrida, a questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do recurso (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
O reclamante assume que não o fez. Alega, contudo, que não teve, para tanto, oportunidade, pois que a norma em causa apenas veio a ser aplicada na decisão recorrida, e não antes, e a lei não admite que dela se interponha recurso ordinário.
Assim sendo, apenas cumpre verificar se era de exigir ao reclamante a observância do ónus legal de prévia suscitação.
Como relatado, o agente de execução, no uso da competência que lhe é atribuída pelo n.º 1 do artigo 886.º-A do CPC, decidiu vender os imóveis penhorados nos autos por propostas em carta fechada, determinando, ainda, que seriam aceites propostas iguais ou superiores a 70% dos respetivos valores, que especifica, calculados por aplicação dos fatores previstos no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis.
O executado reclamou da referida decisão, nos termos do n.º 5 do citado normativo legal, pedindo, além do mais, que o valor base dos imóveis penhorados na execução fosse fixado com recurso a valores de mercado, pois que os valores atribuídos pelo agente de execução, a esse título, aos referidos imóveis, eram substancialmente inferiores ao respetivo preço real ou de mercado. O Tribunal determinou, então, a realização de perícia com vista à avaliação do respetivo valor de mercado, tendo, a final, na decisão que julgou o incidente de reclamação deduzido pelo executado, atribuído aos imóveis penhorados nos autos os valores base resultantes da avaliação pericial efetuada.
Ora, mesmo admitindo que a decisão recorrida efetivamente aplicou a norma ora sindicada – o que não é líquido, considerando que a referida decisão, na parte relevante, se limita a atribuir aos imóveis penhorados, a título de valor base, os valores de mercado determinados em perícia ordenada para o efeito, tal como o executado havia requerido –, a verdade é que quaisquer dúvidas sobre a constitucionalidade da norma que, fixando o valor a anunciar para a venda em 70% desse valor base (artigo 889.º, n.º 2, do CPC), permite que os bens imóveis sejam vendidos por preço inferior ao seu valor de mercado, poderiam e deveriam ter sido suscitadas na reclamação deduzida ao abrigo do n.º 5 do citado artigo 886.º-A do CPC.
É que o que decisivamente releva, para esse efeito, não é o que antes se decidiu no processo mas o que virá a ser objeto de decisão judicial, competindo à parte antecipar a regra de direito material ou processual potencialmente aplicável à questão a decidir e, antes da sua resolução, invocar as razões de ordem constitucional que impedem a efetiva aplicação dessa norma, usando, para tanto, das possibilidades de intervenção processual prévia que a lei lhe faculta.
Por isso, é irrelevante saber se o agente de execução, na decisão a que alude o n.º 1 do artigo 886.º-A do CPC, aplicou ou não a norma que o reclamante reputa inconstitucional. O que exclusivamente importa verificar, para efeitos de observância do ónus legal de prévia suscitação, é se era ou não previsível a sua aplicação pelo Tribunal recorrido, atentas as variáveis normativas convocáveis para determinação do valor de venda dos imóveis penhorados em execução, e se o reclamante, de acordo com as regras de estruturação adjetiva do processo base, teve oportunidade de nele intervir antes de ser proferida a decisão que a aplicou como ratio decidendi.
E, a essa luz, parece não haver dúvidas de que o reclamante podia e devia ter suscitado perante o Tribunal recorrido a questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do recurso de constitucionalidade por si interposto.
Na verdade, determinando o n.º 2 do artigo 889.º do CPC que o valor a anunciar para a venda é igual a 70% do valor base dos bens, era expectável que, mesmo atribuindo-se aos imóveis penhorados nos autos um valor base correspondente ao respetivo valor de mercado, como veio a suceder, se viesse a aplicar norma que, baseando-se nuclearmente nesse dispositivo legal, permite a venda de imóveis em execução por preço inferior ao respetivo valor de mercado.
Por outro lado, inexistindo qualquer limitação ao exercício do direito de reclamação que o n.º 5 do artigo 886.º-A do CPC confere ao executado, poderia o ora reclamante ter suscitado, nesse preciso momento processual, a questão de inconstitucionalidade atinente àquela norma, por se tratar de questão materialmente conexa com o objeto desse incidente. Não o tendo feito, inviabilizou qualquer tomada de decisão sobre essa matéria que pudesse ser sindicada pelo Tribunal Constitucional, no recurso de constitucionalidade dela interposto, o que efetivamente impede a sua admissão.
Por tais razões, é, pois, de confirmar a decisão que, por inobservância do ónus legal de prévia suscitação, indeferiu o recurso, sendo certo que, analisada a jurisprudência constitucional invocada pelo reclamante em abono da solução inversa (Acórdãos nºs. 136/85, 94/88, 51/90 e 60/95), facilmente se constata que não ocorrem nos presentes autos quaisquer das razões excecionais por que então se julgou inexigível a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade que constituía objeto dos respetivos recursos.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 19 de fevereiro de 2013. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.