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Proc. nº 194/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – Pela decisão sumária proferida a fls. 340 e segs., foi decidido não se conhecer do objecto do recurso interposto por D... ao abrigo do artigo
70º nº. 1 alínea b) da LTC (concedendo-se ter existido lapso da recorrente na interposição do recurso de acordo com a alínea a) do mesmo preceito], do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
Escreveu-se na referida decisão:
'D..., identificada nos autos, interpõe recurso para este Tribunal, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 23º do Código das Expropriações, com a interpretação feita no acórdão recorrido, que sustenta infringir o disposto no artigo 62º nº 2 da CRP.
O recurso vem interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC e foi admitido no tribunal 'a quo' pelo despacho de fls. 328 v.
Cumpre agora apreciar se se mostram preenchidos os requisitos de admissibilidade de recurso, já que aquele despacho não vincula este Tribunal por força do disposto no artigo 76º nº 3 da LTC.
O recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC cabe das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade.
Ora, não se vê em parte alguma do acórdão impugnado a recusa de aplicação de qualquer norma do Código das Expropriações, nomeadamente a que consta do citado artigo 23º, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Desde logo, pois, com este fundamento, o recurso não é admissível.
Vai, porém, conceder-se que a indicação da referida alínea do artigo
70º nº 1 da LTC (alínea a)) se deveu a mero lapso da recorrente, querendo ela mencionar a alínea b) do mesmo artigo 70º nº 1.
Requisitos deste recurso são, no que ao caso interessa, o de a norma em causa ter sido aplicada na decisão recorrida e o de o recorrente ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo, devendo fazê-lo perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada, de modo processualmente adequado (artigos 70º nº 1 alínea b) e 72º nº 2 da LTC).
No caso, impunha-se, assim, que o acórdão recorrido tivesse aplicado a norma do artigo 23º do Código das Expropriações (de 91) e a recorrente suscitado a questão da constitucionalidade dessa norma nas alegações do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça.
Vejamos se o fez.
O acórdão da Relação de Évora que a recorrente impugnou no recurso interposto para o STJ decidiu duas questões, a saber:
· como se deve actualizar o montante da indemnização devida por expropriação por utilidade pública;
· se acrescem a esse montante juros de mora.
Relativamente à primeira questão o recorrente sustentara que o montante da indemnização deveria ser actualizada de acordo com as variações de preços sucessivamente cumuladas e quanto à segunda que eram devidos juros de mora.
No referido acórdão da Relação de Évora começou por se definir a lei aplicável ao caso, atendendo a que a declaração expropriativa datava de 1981: quanto ao direito substantivo a lei aplicável seria o Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, que, no seu artigo 27º, estabelecia que a indemnização era fixada com base no valor real dos bens expropriados e calculada em relação à propriedade perfeita.
Salientou-se, depois, que aquela lei nada dispunha, expressamente, sobre a actualização da indemnização, mas que a jurisprudência há muito adoptara o critério que viria a ser consagrado no artigo 23º nº 1 do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, ou seja o da actualização de acordo com a evolução do índice dos preços no consumidor.
Acolhe, então, o referido critério, decidindo que o montante da indemnização deve ser actualizado de acordo com a evolução do índice dos preços no consumidor, mas sem cumulação sucessiva das actualizações, como aliás se decidira em 1ª instância.
No que concerne aos juros de mora, decide-se que eles não são devidos, não se enquadrando a situação em nenhuma das previstas nos artigos 804º a 806º do Código Civil.
Conclui dizendo que não foram violadas 'as disposições legais aludidas na apelação, designadamente o artº 27º do Código das Expropriações aprovado pelo Dec-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, o artº 806º do Código Civil ou o artº 62º da Constituição da República Portuguesa'.
Deste acórdão, recorreu para o STJ a recorrente, concluindo as suas alegações, na parte que interessa, nos seguintes termos:
'a) O artº 62º nº 2 da Const. preceitua que a expropriação seja feita contra o pagamento da justa indemnização; b) e o artº 20º 4º interpretado e integrado com a decl. Universal dos Direitos do omem, ex vi nº 2 do artº 16º Id., exige que esse pagamento se faça 'em prazo razoável'; c) por outro lado, por força do nº 2 do artº 566º do CPC, a presação pecuniária indemnizatória deve ser, sucessiva e cumulativamente, actualizada de acordo com a variação do índice de preços no consumidor sem habitação d) e o Estado expropriante se não promove a liquidação de tal prestação dentro dos prazos previstos no artº 49º, 2 e no artº 68º do anterior C.E. aplicável in casu, constitui~se em mora em relação a ela, ex vi artº 806º, 2, a) e 3 1ª parte, do C.C. e) acresce, ainda, que o artº 565º do C.C. e o nº 2 do artº 661º do CPC impõem que a sentença, para além do já vencido à data da sua prolacção, dev mais condenar nas actualizações e juros vincendos após ela e até efectivo pagamento
........................................................................................................ h) (a sentença de 1ª instância actualizou o montante correspondente ao valor reportado á data da declaração expropriativa) sem fazer a aplicação cumulativa dos índices da variação anual dos preços, nem considerar juros de mora, nem a correcção monetária e os juros vincendos; i) este julgamento foi confirmado pela Relação (...)
...................................................................................................... Portanto
1. o douto ac. Recorrido, confirmativo da douta sentença da 1ª instância, violou os preceitos constitucionais e legais acima citados.
..........................................................................................................'
O acórdão ora recorrido confirmou o decidido relativamente ao direito aplicável, nele se escrevendo a este propósito:
'Este recurso deve ser decidido, no tocante ao Direito Substantivo, face ao disposto no art. 12º do CCivil, nos termos dos arts. 27º do CExpropriações, aprovado pelo DLei nº 845/76, de 11/12, 566º e 806º do CCivil e
62º da Constituição da República'.
No que concerne à actualização da indemnização, manteve-se o critério seguido no aresto então impugnado. E escreveu-se:
'Esse critério, seguido de modo praticamente unânime pela jurisprudência no decurso da vigência do CExpropriações de 1976, é sem dúvida o mais adequado á defesa equânime dos vários interesses em jugo e, por cia disso, veio a ter consagração legislativa expressa no art. 23º do CExpropriações que, aprovado pelo Dlei nº 438/91, de 9/11, ao mesmo sucedeu.'
Quanto aos juros de mora, entendeu-se igualmente que eles não eram devidos, por não se poder falar de mora 'à luz do disposto no art. 804º nº 2 do CCivil'.
Ora, do que se acabou de transcrever resulta claramente que o acórdão recorrido, tal como sucedera já com o acórdão da Relação de Évora, não fez aplicação do artigo 23º do Código das Expropriações de 91.
Na verdade, quer um quer outro dos acórdãos citados não deixam dúvidas sobre o direito substantivo aplicável – e este é o que vigorava à data do acto expropriativo, ou seja o Código das Expropriações de 1976.
Daí que sempre fosse incongruente que, depois de definido um tal quadro normativo, o acórdão em causa fizesse aplicação de uma norma de um Código que se não inseria nesse quadro.
É certo que o aresto convoca o artigo 23º do Código de 91; fá-lo, porém, apenas para demonstrar a justeza da jurisprudência que, na vigência do Código de 76 e apesar de neste não existir norma expressa sobre a actualização da indemnização, se formara – aquele preceito viria consagrar o que decorria dessa jurisprudência.
Mas isso obviamente não significa que o acórdão tenha feito aplicação
– como não fez - do disposto no artigo 23º do Código das Expropriações de 91.
Não se verifica, ainda, o outro requisito do recurso supostamente interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) – a suscitação da questão de constitucionalidade (que é uma questão de constitucionalidade normativa e não de decisões) durante o processo.
Com efeito, para além de nem uma única vez a recorrente ter expressamente aludido ao artigo 23º do Código de 91 nas alegações de recurso para o STJ, a imputação de inconstitucionalidade que faz é não à norma contida naquele preceito legal, na interpretação dada pela Relação, mas à própria decisão judicial ('o douto Ac. Recorrido (...) violou os preceitos constitucionais (...) acima citados') que, hipoteticamente, a teria aplicado.
Em face do exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.'
Desta decisão, vem a recorrente reclamar para a conferência, concluindo nos seguintes termos:
'A – O Tribunal Constitucional está adstrito à garantia da tutela jurisdicional efectiva, cabendo-lhe, na sua área de jurisdição, garantir os cidadãos contra o desrespeito pelas normas e princípios constitucionais que se produzam por via de decisões que apliquem normas inconstitucionais ou façam interpretação de normas constantes em legislação ordinária que violem normas ou princípios constitucionais.
B – A garantia da tutela jurisdicional efectiva implica, entre outros, a observância dos princípios do inquisitório. Da prevalência da decisão de mérito e da cooperação entre o tribunal e as partes. C – O princípio pro actione e o princípio da cooperação impõem ao Tribunal Constitucional que, face a um requerimento que enferme de lapsos manifestos, que não seja suficientemente claro ou que sofra de irregularidades que possam levar ao não conhecimento do fundo por parte do Tribunal convide a parte a esclarecer obscuridades, suprir omissões ou insuficiências ou reformar o requerimento. D – Tal procedimento constitui um dever que é imposto ao Tribunal quer pela força vinculativa directa da garantia da tutela jurisdicional efectiva, tal como vem consignada no artº 18.1 da Constituição, quer pelos arts 266.3 e 265.2 do Cod. Proc. Civil, quer pelo artº 75º-A nºs 5 e 6 da Lei nº 28/82. E – Da análise do acórdão recorrido resulta claro que o Supremo Tribunal de Justiça fundamentou a sua decisão na norma do artº 27.2 do Cód. das Expropriações de 1976 e não no artº 23º.1 do Cód. das Expropriações de 1991. F – A invocação, por parte da recorrente, desta última norma como norma aplicada pela decisão recorrida, é assim claro lapso facilmente verificável e que de todo não justifica a gravíssima e desproporcionada consequência com que o Tribunal a sancionou: o não conhecimento do recurso. G – Ao contrário, deveria o Tribunal Constitucional ter prevenido e convidado a recorrente a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso, por forma a expurgá-los dos vícios que pudessem a não conhecer ao não conhecimento do mesmo. H – No sistema português, o recurso das decisões jurisdicionais em termos de fiscalização concreta de constitucionalidade faz-se no âmbito do contencioso subjectivo, isto é, para a tutela de direitos ou situações jurídicas subjectivas sobre que recaem as decisões recorridas. I – Daí que tenha pleno cabimento que, nos tribunais judiciais ou nos administrativos, as partes se refiram à inconstitucionalidade como das decisões e não das normas que lhes sirvam de fundamento. J – Tal não exime os tribunais judiciais de recurso de conhecer da inconstitucionalidade das normas que fundamentaram as decisões sob recurso e não deve servir de fundamento ao não conhecimento do recurso no Tribunal Constitucional. K – A questão da inconstitucionalidade foi levantada pela recorrente nas suas alegações para a Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça e este conheceu implicitamente da questão ao referir que o problema de fundo deveria ser resolvido face ao disposto no artº 12º do C. Civil, nos termos dos artºs 27º do C. Expropriações, aprovado pelo DLei nº 845/76, de 11/12, 566º e 806º do C. Civil e 62º da Constituição da República'
O Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
2 – Como se deixou transcrito, a decisão sumária reclamada assentou, principalmente, no facto de a norma que a recorrente pretendia ver apreciada, de acordo com o requerimento de interposição do recurso, não ter sido aplicada no acórdão recorrido.
Subsidiariamente, ali se entendeu, também, que a recorrente não suscitara, durante o processo – particularmente, no recurso interposto para o STJ – uma questão de inconstitucionalidade normativa, imputando a inconstitucionalidade à própria decisão recorrida.
Na sua reclamação, a recorrente reconhece que 'o requerimento de interposição do recurso é formalmente incorrecto', entendendo, contudo que ele enferma de 'lapso manifesto' na indicação da norma que a recorrente pretende ver apreciada. E porque é assim, competia ao Tribunal Constitucional, por força de princípios constitucionais e gerais de processo civil, que enumera, facultar ao recorrente o aperfeiçoamento de tal requerimento.
Não tem qualquer razão.
Em primeiro lugar, não se está perante um requerimento de interposição de recurso formalmente incorrecto: ele indica o preceito ao abrigo do qual o recurso é interposto, a norma que se pretende ver apreciada, o preceito constitucional que se considera violado e, finalmente, a peça processual em que se suscitou a questão de constitucionalidade.
O que tão só ocorreu foi a indicação de uma norma para apreciação que não fora aplicada no acórdão recorrido.
Seria caso de aperfeiçoamento ? Certamente que não.
Estabelece, com efeito, o artigo 75º-A nº 5 da LTC os casos em que deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento; e eles são aqueles em que o requerimento de interposição do recurso 'não indicar alguns dos elementos previstos no presente artigo', isto é, para o caso, os que vêm prescritos nos nºs 1 e 2 (este porque se entendeu que teria havido lapso ostensivo na indicação da alínea do artigo 70º nº 1 da LTC ao abrigo do qual vinha interposto o recurso) do mesmo preceito.
Nenhuma destas situações se verificava.
Por outro lado, a circunstância de se ter entendido que a norma indicada pela recorrente não fora aplicada na decisão recorrida não significa necessariamente que a indicação feita se devesse a lapso manifesto, tanto mais que o acórdão impugnado citara o artigo 23º do Código das Expropriações de 91.
Cabe, ainda, dizer que se não trata aqui do incumprimento de um ónus processual ou da verificação de meros obstáculos processuais ao conhecimento do mérito do recurso.
É ao recorrente – e a ele só - que compete eleger o objecto da sua impugnação, não podendo o Tribunal substituir-se-lhe conhecendo da constitucionalidade de uma norma que por aquele não foi indicada. E é isto que, no rigor das coisas, aconteceria se, como a recorrente parece pretender, o relator, proferisse despacho de um suposto 'aperfeiçoamento', dando conta ao recorrente do que entendia ser a norma aplicada na decisão impugnada e permitindo que ele viesse, depois, eleger essa norma como objecto da sua impugnação 'sub specie constitutionis'.
A tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, constitucionalmente garantida e os princípios que a reclamante extrai dos artigo
265º nº 2 do CPC que, no entendimento da mesma reclamante, imporiam uma decisão diferente, não eliminou do quadro das decisões judiciais possíveis (inclusivé das que são proferidas pelo Tribunal Constitucional, como se vê até do artigo
78º-A nº 1, primeira parte, da LTC) as que não conhecem do mérito dos pedidos, e, destas, mesmo as que se fundamentam na verificação de óbices processuais (o que não é, rigorosamente, o caso).
A lei confere aos interessados os meios necessários para defenderem, judicialmente, os seus direitos e nenhum princípio constitucional ou legal impõe que o julgador se substitua às partes, devidamente representadas por profissionais do foro, no que só a elas compete fazer e no modo ou estratégia que entenderam adequado para aquele efeito.
Por último e no que concerne ao fundamento subsidiário da decisão reclamada, nada do que diz a reclamante infirma o julgado.
É pacífica a jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de que as questões de constitucionalidade de que o Tribunal conhece e que os recorrentes devem ter suscitado de modo processualmente adequado (artigo 72º nº 2 da LTC) durante o processo, se reportam a normas e não a decisões judiciais.
E não subsistem dúvidas de que, no recurso para o STJ, não foi suscitada pela reclamante qualquer questão de constitucionalidade normativa, como se disse na decisão reclamada e aqui se reitera.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, indefere-se a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 29 de Maio de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa