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Proc. nº 477/02
1ª Secção Rel.: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lhe negou provimento ao recurso por ele interposto de anterior acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que decretara a «ampliação de extradição» do ora recorrente «para cumprimento da pena de seis anos e seis meses de prisão em que foi condenado, pela prática de crimes de detenção e porte ilegal de explosivos em local público, de armas de guerra e de munições, todos previstos nos artigos 1º e 2º, da Lei nº 895, de 2 de Outubro de 1974, da legislação penal italiana»
Para fundamentar sumariamente o recurso, o recorrente afirmou no respectivo requerimento de interposição:
O fundamento do presente recurso assenta, assim: a. na interpretação e aplicação do art.º 14º da Convenção Europeia de Extradição em desconformidade com as garantias constitucionais dos supracitados artºs 32º, nº 1 e 32º, nº 5, ambos da C.R.P. e art.º 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art.º 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos da Homem; b. devendo ainda o recorrente indicar aqui a jurisprudência constitucional que consagra a orientação que sustenta o presente recurso, vale-se do acórdão do Tribunal Constitucional nº 172/92, de 93/05/06, nos termos enunciados em 7º.
2. Entendendo que se não podia tomar reconhecimento do recurso, o relator lavrou decisão sumária, ao abrigo do preceituado no nº 1 do art.º 78º-A da LTC.
Afirmou-se nessa decisão sumária:
Nos termos do referido requerimento de interposição do recurso, pretende, pois, o recorrente que o Tribunal Constitucional vá apreciar a compatibilidade intrínseca entre o artigo 14º da Convenção Europeia de Extradição, tal como interpretado e apreciado pelo tribunal a quo, e as normas constitucionais ou constantes de instrumentos internacionais sobre direitos do Homem que identifica.
Tal pretensão não se enquadra, porém, no objecto do recurso previsto na alínea i) do nº 1 do artigo 70º e delimitado no nº 2 do artigo 71º da LTC.
Com efeito, nos termos desta última disposição legal, nestes casos,
«o recurso é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicados na decisão recorrida».
Sobre a natureza destas questões, assinala José Manuel M. Cardoso da Costa ( A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed. rev. e act., Coimbra,
1992, pág. 27, nota 27):
Note-se que, no seu desenho legal, a competência agora reconhecida ao Tribunal não apresenta inteira homologia com a do controlo da constitucionalidade (ou da «legalidade»): não só porque apenas é contemplada em sede de controlo concreto, como ainda porque é limitada aos casos, referidos no art. 70º, nº 1, alínea i), cit., de desaplicação da lei interna pelos tribunais ou, então, de decisão destes contrária a orientação anterior do Tribunal Constitucional; e sublinhe-se, por outro lado, que o legislador se absteve intencionalmente de qualificar a situação, assim, e desde logo, não tomando posição sobre o controverso problema da primazia do direito convencional. Este, justamente, será um ponto a decidir pelo Tribunal, nele residindo o núcleo da questão ou das questões «jurídico-internacionais» que entram na sua competência; quando às questões «jurídico-internacionais», nelas caberá antes de mais, certamente, a da vigência e validade da convenção como instrumento jurídico-internacionalmente vínculante (cfr. cit. art. 71º, nº 2). Face a uma sua tal configuração, bem se poderá dizer que esta competência do Tribunal se aproxima de (se não rigorosamente se identifica com) uma competência de
«qualificação normativa» (à semelhança de certa competência do Tribunal Constitucional Federal alemão, por vezes assim catalogada).
E, no mesmo sentido, sublinha J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, págs. 1031 e segs.):
São questões jurídico-constitucionais as que se localizam em sede de direito constitucional (cfr. art. 8º), devendo ser analisadas e resolvidas segundo as normas e princípios constitucionais consagrados e de acordo com os instrumentos hermenêuticos de interpretação e concretização específicos deste ramo de direito. Estão neste caso, por ex., as questões referentes ao sistema de «incorporação» das normas internacionais no direito interno (recepção plena, recepção condicionada), os problemas referentes à posição hierárquica das normas de direito internacional (valor supraconstitucional, valor constitucional, valor infraconstitucional mas supralegal, valor de lei) e os problemas relacionados com a qualificação de normas reguladoras de actos ou relações internacionais (ex.: exclusão do carácter jurídico-constitucional do direito diplomático).
Serão questões jurídico-internacionais as que se localizam no plano do direito internacional, geral, convencional e consuetudinário, cabendo discuti-las e analísá-las à face dos princípios e normas deste direito e segundo as suas regras de interpretação e concretização específicas. Estarão, porventura, neste caso, as questões relativas às relações entre o direito internacional e o direito interno (monismo, dualismo), ao campo de aplicação das normas internacionais (relação entre os estados, criação de direitos e deveres também para particulares), ao problema da vigência do direito internacional e aos conflitos entre as normas internacionais e as leis internas do estado
(cumprimento de obrigações, responsabilidade internacional dos Estados).
[...]
Diferentemente, porém, dos processos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, não se trata de um verdadeiro processo de controlo de normas mas de um processo de verificação das questões jurídico-constitucionais ou jurídico-internacionais implicadas na decisão. Assim, por exemplo, num recurso motivado pela recusa de aplicação de uma norma legal contrária ao direito internacional convencional, o Tribunal Constitucional verifica se se trata de um tratado solene, caso em que admitirá porventura a superioridade hierárquica em relação a actos legislativos internos em contradição com ele, ou de um acordo em forma simplificada, hipótese em que poderá porventura julgar constitucionalmente mais correcto a decisão da questão partindo do princípio da igualdade hierárquica entre lei e acordo internacional ou até do princípio de supremacia do direito interno quando estejam em causa leis com valor reforçado. Da mesma forma, o recurso para o Tribunal Constitucional permitirá a verificação e qualificação das regras de direito internacional. Assim, por exemplo, o Tribunal averiguará se a questão de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional relativa ao valor normativo de tratado-contrato deve, no caso concreto, ser decidida no sentido de o tratado-contrato ser um acto normativo, com possibilidade de fiscalização da constitucionalidade, ou se ele não reúne as características de uma norma, caso em que será arredado o «controlo de normas» (cfr., Ac 494/99 – Caso do Acordo de Segurança Social com o Chile).
O recurso para o Tribunal Constitucional permitirá ainda a este verificar, por exemplo, a vigência ou não de uma norma convencional ou se esta deixou de vincular o Estado português pela ocorrência da cláusula rebus sic stantibus (questão de natureza jurídico-internacional).
A LTC eleva, deste modo, o Tribunal Constitucional a intérprete qualificado (cfr. LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte, e 72º/4) das questões jurídico-constitucionais (cfr. CRP, art. 221º) e jurídico-internacionais implicadas num processo concreto (cfr., sobretudo, LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte) e a «guardião do valor paramétrico do direito internacional convencional» nos casos onde a parametricidade deste direito em relação ao direito interno se revelou justificada através da interpretação/concretização de normas constitucionais e normas internacionais. O processo de verificação consagrado nos art. 70º/1/i e 71º/2 da LTC converte-se, assim, no instrumento processual de concretização das normas constitucionais, em especial do art. 8º da CRP. Ao mesmo tempo, o processo de verificação de contrariedade de normas do direito interno com normas de direito internacional ou da desconformidade de decisões dos tribunais incidentes sobre o mesmo problema em relação a anteriores decisões do Tribunal Constitucional, abre o caminho para uma espécie de processo de qualificação de normas. Com efeito, se por qualificação de normas se entender a determinação da hierarquia de normas de direito internacional, então o TC tem um meio processual de, caso a caso, proceder a essa qualificação. Em conclusão: o TC verifica se uma norma convencional internacional faz parte do direito interno, se ela cria direitos e deveres para os particulares e qualifica essa norma para efeitos de inserção no plano da hierarquia das fontes de direito
(cfr. CRP, art. 119º/1/b).
Ora, no caso vertente, como vimos, não é esta verificação e qualificação que se pretende que o Tribunal Constitucional efectue. É antes um juízo de conformidade material entre uma norma de direito convencional e a Constituição, por um lado, e certos instrumentos de direito internacional no domínio dos Direitos do Homem, por outro lado, que se requer.
Só que um tal juízo não cabe no âmbito do recurso previsto na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da LTC, pelo que, in casu, o recurso não é admissível.
3. Não se conformando com esta decisão sumária, nos termos da qual não se conheceu do objecto do recurso, veio o recorrente reclamar para a conferência nos termos do disposto no nº 3 do art.º 78º-A da LTC, sem adiantar qualquer fundamento.
O Ministério Público, na sua resposta, considera a presente reclamação manifestamente improcedente.
4. Não invocando o reclamante qualquer razão substancial que ponha em causa o conteúdo da decisão sumária reclamada, cujo teor na sua essencialidade se subscreve, nada mais resta senão confirmá-la.
5. Nestes termos indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não reconhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s
Lisboa, 3 de Julho de 2002 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa