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Processo nº 256/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
I
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sendo recorrente A.., e recorrida a Fazenda Pública, foi proferida, em 7 de Junho último, decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A, nº 1, do mesmo diploma legal, na qual não se tomou conhecimento do objecto do recurso.
2. - Escreveu-se, então:
'1. -A., com sede no Porto, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, de 4 de Abril de 2001, que declarou a caducidade do direito de impugnar a liquidação dos emolumentos notariais efectuada pelo 1º Cartório Notarial de Barcelos, no montante de
756.042$00, invocando, para o efeito, a violação, por parte daquela decisão, do disposto na alínea c) do artigo 10º da Directiva nº 69/335/CEE, do Conselho, de
19 de Julho de 1969, na redacção dada pela Directiva nº 85/303/CEE, do Conselho, de 10 de Outubro de 1985, na interpretação dada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), ocorrendo, em seu entender, uma errada interpretação do princípio da efectividade do direito comunitário, para o que requereu a suspensão dos autos, ao abrigo do artigo 234º do Tratado de Roma, a fim de suscitar a questão prejudicial. A sentença proferida concluiu ser extemporânea a reacção da impugnante e, como tal, declarou a caducidade do direito desta a impugnar a liquidação efectuada.
2. - Inconformada, recorreu a interessada para o Supremo Tribunal Administrativo, formulando as seguintes conclusões na peça processual de alegações:
'1ª - A liquidação de emolumentos de que foi alvo a A., viola frontalmente o direito comunitário;
2ª - Com efeito, o artº 5º da 'Tabela de Emolumentos do Notariado' enferma do vício de contrariedade ao direito comunitário, na medida em que a receita que origina é proibida por força do artº 10º, nº 1, al. C), da Directiva nº
69/335/CEE do Conselho de 17 de Julho de 1969 e não pode amparar-se no artº 12º, nº 1, al. e), por o seu montante aumentar directamente e sem limites na proporção do capital social;
3ª - A circunstância do Estado Português se ter apoderado, de forma ilegítima da quantia de 756.042$00 a coberto do artº 5º da Tabela, confere à A. o direito de ver anulado o acto de liquidação em causa e a ser reembolsada naquele mesmo montante, acrescido de juros legais, até efectivo e integral pagamento;
4ª - Os Estados-membros encontram-se obrigados a proceder à restituição das quantias que cobrem em violação do direito comunitário;
5ª - As ordens jurídicas nacionais dos Estados-membros têm competência para disciplinar o regime processual das acções destinadas a assegurar o reembolso das quantias cobradas em violação do direito comunitário;
6ª - O regime processual dessas acções tem de garantir o efectivo respeito pela aplicação do direito comunitário;
7ª - O prazo previsto na lei Portuguesa para a impugnação judicial não permite uma aplicação efectiva do direito comunitário na situação em apreço;
8ª - A douta sentença recorrida violou, pois, por errada interpretação o princípio da efectividade do direito comunitário;
9ª - Sempre que uma questão relativa à interpretação do Tratado de Roma é suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial no direito interno, esse
órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.' E, de acordo com a tese professada, acrescentou, após opinar deverá dar-se provimento ao recurso e revogar-se a decisão recorrida:
'Requer-se, ainda, nos termos do artº 234º do Tratado de Roma, que a instância seja oportunamente suspensa e formulada ao TJCE a seguinte questão prejudicial: Os princípios fundamentais do ordenamento comunitário, o artº 10º do Tratado de Roma ou qualquer outra disposição de direito comunitário, impedem que um Estrado-Membro aplique um prazo de caducidade de 90 dias, tal como o previsto no artº 123º do C.P.T. ou no artº 102º do C.P.P.T., para apresentação de uma impugnação judicial destinada a obter a restituição de uma quantia cobrada pelo mesmo Estado-Membro em violação do direito comunitário?'
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 6 de Fevereiro de 2002, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. Aí se entendeu estar esse Supremo dispensado de efectuar o suscitado reenvio prejudicial, uma vez que o regime nacional mostra-se compatível com o direito comunitário, tendo em conta a jurisprudência do TJCE sobre a questão. Como se observa, então, aderindo-se à jurisprudência firmada nomeadamente a partir do acórdão de 12 de Dezembro de 2001, proferido em processo instaurado pela ora recorrente – Rec. Nº 26.233 – torna-se desnecessário questionar o TJCE. Na verdade, acrescenta-se, 'entende-se que pode o administrado reagir contra actos ilegais de liquidação de tributos, quando está em causa a violação de normas de direito comunitário, quer pela via da impugnação judicial, para a qual dispõe do mencionado prazo de 9o dias, quer, no caso de não pagamento do tributo, pela impugnação, dentro do prazo de oposição à execução fiscal, nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 286º do C.P.T., quer pela revisão do acto tributário, nos termos dos artºs. 94º do C.P.T. e 78º da L.G.T., seguida de eventual impugnação contenciosa de decisão de indeferimento. E será perante o conjunto dos meios facultados ao administrado, para obterem a restituição de receitas tributárias ilegalmente cobradas, que será de aferir da compatibilidade do direito nacional com o direito comunitário e não apenas perante o processo de impugnação judicial. Na verdade o tribunal nacional encontra-se dispensado de suscitar o reenvio prejudicial, quando o T.J.C.E. já tiver apreciado, anteriormente, a questão que
é objecto do processo'. E, na sequência deste entendimento, remete-se para o acórdão do TJCE, de 17 de Novembro de 1998, proferido no processo nº C – 228/96, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1998, pág. I-714.
3. - De novo inconformada, A, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo obter a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 234º do Tratado de Roma, que institui a Comunidade Europeia, na interpretação conferida a essa norma no tribunal recorrido, que se entende violar os princípios consagrados nos artigos 32º, nº 9, 216º, nº 1, e 217º, nº 3, todos da Constituição da República (CR). Escreveu-se, a esse propósito:
'A recorrente considera violado o princípio do juiz legal (ou natural), consagrado nos artºs. 32º, nº 9, 216º, nº 1, e 217º, nº 3, da Constituição, na medida em que a interpretação conferida pelo douto Acórdão do STA à referida norma do artº 234º do Tratado de Roma implica a negação da competência exclusiva, atribuída ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), para julgar de questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, como foi o caso. O direito fundamental a que uma causa seja julgada pelo tribunal previsto como competente por lei anterior, decorrente do princípio do juiz legal, é incompatível com a referida interpretação. A recorrente tinha o direito de ver a questão prejudicial de interpretação, que suscitou no processo à margem melhor identificado, julgada pelo TJCE, e tal foi-lhe negado no douto Acórdão do STA, em virtude da interpretação inconstitucional da norma invocada. A recorrente não suscitou anteriormente a questão da inconstitucionalidade, por não ter nunca julgado verosímil a hipótese da recusa do reenvio da questão prejudicial por parte do STA, face aos termos claros e inequívocos do artº 234º do Tratado de Roma, do qual resulta a obrigatoriedade do reenvio por Aquele Alto Tribunal. A tal obrigatoriedade não está sujeito, por outro lado, o Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto. Assim, o facto de o mesmo não ter reenviado a questão ao TJCE não foi considerado anormal pela recorrente, nem um indicativo do que poderia suceder na instância superior, uma vez que a tal não estava o referido tribunal obrigado. Deste modo, a recorrente foi surpreendida pelo teor do douto Acórdão do STA, que interpretou inovatoriamente o artº 234º do Tratado de Roma num sentido inconstitucional, dado que o mesmo não era objectivamente previsível.'
4. - Entende-se ser de proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo
78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sendo certo que o facto de o recurso ter sido recebido no tribunal a quo não vincula o Tribunal Constitucional, de acordo com o disposto no nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
5. - Sobre esta questão foi, na verdade, pronunciada recentemente uma decisão ao abrigo daquele artigo 78º-A, nº 1, para uma situação idêntica à vertente
(proferida no processo nº 29//02, a correr termos na 1ª Secção deste Tribunal) que se passa a parcialmente transcrever:
'[...]Independentemente da questão – que se deixa em aberto – de saber se na competência do Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC se insere a apreciação da 'constitucionalidade' de normas do Tratado de Roma (direito comunitário originário) e nos termos em que a recorrente coloca a
'questão de constitucionalidade', sempre se imporia, para que o recurso fosse admissível, a observância dos requisitos exigidos por aquele preceito. Ora, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo das referidas norma e alínea está dependente da verificação, entre outros, do pressuposto processual que consiste na suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, suscitação essa que deve ser feita perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de modo processualmente adequado (artigo 72º, nº. 2 da LTC). Este pressuposto não se mostra preenchido no caso, o que se passa a demonstrar. Nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo – peça processualmente idónea para suscitar oportunamente a questão da constitucionalidade – a recorrente limita-se a argumentar, por um lado, no sentido de que a liquidação de emolumentos que lhe foi efectuada de harmonia com a Tabela de Emolumentos do Registo Comercial 'enferma do vício de contrariedade ao direito comunitário' e, por outro, no sentido de que o prazo previsto na lei portuguesa para a impugnação judicial para reaver quantias cobradas em violação do direito comunitário 'não permite uma aplicação efectiva do direito comunitário na situação em apreço'. A Recorrente termina essa sua alegação requerendo, nos termos do artigo 234º do Tratado de Roma que a instância seja oportunamente suspensa e formulada ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias uma questão prejudicial de interpretação que formula. Só no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional
– o que já não preenche o referido pressuposto processual – menciona a Recorrente uma norma legal em concreto (o artigo 234º do Tratado de Roma), relativamente à qual pretende que este Tribunal decida da sua inconstitucionalidade 'na interpretação que lhes foi conferida pelo douto Acórdão do STA', interpretação que, aliás, não explicita. Ora, do que se expôs resulta claro que ao tribunal recorrido – STA - não foi oportunamente colocada a questão de constitucionalidade para sobre ela se poder pronunciar, não se mostrando assim verificado o pressuposto processual. Tem, porém, este Tribunal tem entendido que o pressuposto da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo se considera também verificado naquelas situações em que o tribunal recorrido aplicou a norma ou a interpretou num sentido inovador, apresentando-se a decisão como 'surpresa', por não ser exigível ao recorrente que a prefigurasse como plausível.
É esta situação que a recorrente diz, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ocorrer no caso, tentando justificar a não suscitação da questão de constitucionalidade (previamente) perante o STA, 'por não ter julgado verosímil a hipótese de recusa do reenvio da questão prejudicial por parte do STA, face aos termos claros e inequívocos do art. 234º do Tratado de Roma, do qual resulta a obrigatoriedade do reenvio por aquele Alto Tribunal', dizendo-se ainda '(...) surpreendida pelo teor do douto Acórdão do STA, que interpretou inovatoriamente o art. 234º do Tratado de Roma num sentido inconstitucional, dado que o mesmo não era objectivamente previsível'. Mas não é assim. Com efeito, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem vindo há longos anos a aplicar e a interpretar o actual artigo 234º (ex-artigo 177º) do Tratado de Roma no sentido de que o tribunal nacional, cuja decisão não seja susceptível de recurso judicial à luz do direito interno, está dispensado de submeter a questão, a título prejudicial, ao TJCE em algumas situações, das quais se destaca a existência de anterior decisão do TJCE sobre a matéria, ainda que não haja completa identidade das questões a discutir. Ora, tal jurisprudência não só é pacífica como sobejamente conhecida dos
'operadores judiciários', constando, entre outros, dos seguintes acórdãos: a) Acórdão Da Costa, de 19 de Setembro de 1962, nºs. 28 a 30/62, in Recueil de Jurisprudence de la Cour de Justice des Communautés Européennes, 1963, em que o TJCE considerou inexistente a obrigação de reenvio quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a questão já objecto de decisão prejudicial em caso análogo; b) Acórdão CILFIT, de 6 de Outubro de 1982, nº. 283/81, in Recueil de Jurisprudence de la Cour de Justice des Communautés Européennes, 1982, p. 3415, que estabeleceu as condições da dispensa da obrigação de reenvio: necessidade de que a questão de direito resolvida por jurisprudência constante do TJCE, independentemente da natureza dos processos que se encontrem na sua origem e mesmo na falta de uma estrita identidade das questões objecto do litígio, ou de questão de interpretação evidente para o juiz nacional, se este verificar que ela também o é para as jurisdições dos outros Estados-membros e para o TJCE
(cfr. Moitinho de Almeida, O reenvio prejudicial perante o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Coimbra Editora, 1992). Entre nós, a mais autorizada doutrina, analisando o artigo 234º do Tratado de Roma, em especial, o seu § 3º (casos de reenvio obrigatório), ensina que 'a obrigação de suscitar a questão prejudicial por parte do juiz nacional não é, contudo, absoluta' (cfr. Fausto de Quadros e Ana Guerra Martins, Contencioso comunitário, Almedina, 2002, pág. 67. Ainda no mesmo sentido, Nuno Piçarra, O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias como juiz legal e o processo do artigo 177º do Tratado CEE - As relações entre a ordem jurídica comunitária e as ordens jurídicas dos Estados-membros da perspectiva dos tribunais constitucionais, AAFDL, 1991 e Ana Guerra Martins, Efeitos dos acórdãos prejudiciais do artigo 177º do TR (CEE), AAFDL, 1988). Acrescente-se ainda que, se o juiz nacional, mesmo aquele de cuja decisão não cabe recurso à luz do direito interno, não tiver dúvidas sobre a interpretação de questão de direito comunitário ou sobre a validade da norma de direito comunitário, necessária para resolução do litígio, não está obrigado a suscitar questão prejudicial junto do TJCE, não tendo as partes qualquer 'direito de suscitação de questão prejudicial junto do TJCE'. Neste sentido, disse o TJCE - no acórdão CILFIT - que o 3º § do artigo 177º
(actual 234º do Tratado de Roma) se integra no âmbito da colaboração entre juízes nacionais - incumbidos da aplicação do direito comunitário - e o TJCE, não constituindo, pois, um expediente jurídico colocado à disposição das partes em processo pendente num órgão jurisdicional nacional. Ou seja, não basta que uma questão de interpretação seja suscitada pelas partes para que o juiz de
última instância (aquele de cuja decisão não há recurso à luz do direito interno) fique obrigado ao seu reenvio (também neste sentido, Nuno Piçarra, ob. cit.). Ora, no caso dos autos, o STA não faz mais do que apelar a essa jurisprudência firme – de muitos anos – do TJCE. E fê-lo chamando a colação o acórdão do TJCE de 17/11/98, proferido no Processo nº C-228/96, publicado em Colectânea de Jurisprudência, 1998, I-714, que largamente transcreve e que, versando sobre 'restituição de impostos nacionais indevidamente cobrados', designadamente 'restituição de impostos ou taxas cobrados em violação do direito comunitário' trata de uma situação fundamentalmente idêntica à que se discutia nos autos. E esta é precisamente uma das situações – haver anterior decisão do TJCE sobre a matéria – em que é dispensável o reenvio prejudicial Não pode, assim, considerar-se o acórdão recorrido, ao recusar o reenvio prejudicial, como decisão surpresa, em termos de ser dispensável o cumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.'
6. - As considerações precedentes têm integral aplicação ao caso vertente, com elas se concordando inteiramente. Assim, pelo exposto e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.'
3. - Notificada, vem agora a recorrente reclamar para a conferência, consoante o disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, com o objectivo de obter a revogação da decisão sumária, ordenando-se o prosseguimento do recurso.
Defende, em síntese:
a)- que, ao adoptar a decisão sumária sem ter dado oportunidade à recorrente de alegar, nomeadamente com a apresentação de novos argumentos ou a melhor explicitação dos já apresentados, o Tribunal violou os direitos constitucionais de acesso ao direito e aos tribunais, de defesa e do contraditório assegurados nos artigos 20º, nº 1, 32º, nºs. 1, 5 e 7 e 10 da Constituição;
b)- de resto, ao contrário do sustentado na decisão sumária, o Supremo Tribunal Administrativo interpretou inovatoriamente a norma do artigo 234º do Tratado de Roma, de modo a configurar-se uma decisão
'surpresa' que não lhe era exigível prefigurar como plausível;
c)- a norma do nº 1 do artigo 78º-A é inconstitucional, ao possibilitar a produção de uma decisão sem que as partes no processo sejam convidadas a alegar, além de se contrariar o direito a um processo equitativo, tal como garantido está pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
d)- ao decidir-se sumariamente, impede-se à recorrente e ora reclamante submeter á apreciação do T.J.C.E. a interpretação daquela norma do Tratado de Roma a que se procedeu no Tribunal a quo, de forma surpreendente e inovatória.
A Fazenda Pública, notificada, não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, pacifica e reiteradamente, no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, na perspectiva da falta de audiência prévia do recorrente quando o relator usa dos poderes conferidos nesse preceito.
Como se ponderou no acórdão nº 714/98, não publicado, o regime que passou a vigorar com as alterações à Lei do Tribunal Constitucional introduzidas pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, visou uma maior aceleração na decisão dos recursos sem envolver perda dos direitos de audiência das partes: estes direitos são convenientemente assegurados com a faculdade dada às partes de reclamarem para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A, podendo aí, designadamente, defender-se, nessa reclamação, que não deveria ter havido lugar a decisão sumária, caso que, a obter vencimento, implica que se observem os termos previstos no nº 5 do mesmo preceito.
Na verdade, como mais se escreveu no acórdão nº 19/99
(publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Março de 1999), '[...] a decisão sumária, prevista no artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, refere-se apenas a questões relativas à possibilidade de conhecimento do recurso ou a questões simples, por terem sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por serem manifestamente infundadas, justificando-se por uma evidente razão de economia processual, sem qualquer diminuição do conteúdo garantístico do processo constitucional (uma vez que sempre fica aberta ao recorrente a possibilidade de reclamar para a conferência, nos termos do nº 3 – apresentando as razões da discordância com a decisão sumária –, e que a decisão na conferência deve ser tomada por unanimidade dos juízes intervenientes, sob pena de a decisão caber ao pleno da secção). O artigo 78º-A, nº 1 prossegue, assim, um objectivo de celeridade na administração da justiça – relativamente à impossibilidade de conhecimento do recurso ou a questões simples –, sem diminuição das garantias de defesa das partes, facultando-se, sempre, ao recorrente a possibilidade de reclamar para a conferência – oportunidade, essa, de resto, utilizada no presente caso pelo reclamante'.
Outros arestos do Tribunal Constitucional se têm pronunciado no mesmo sentido, seja sublinhando que a norma em referência não se recorta como limitadora dos poderes cognitivos do Tribunal nem obsta que a problemática da verificação dos pressupostos processuais se decida a final (caso dos acórdãos nºs. 26/99, de 13 de Janeiro, e 176/99, de 10 de Março, inéditos), seja destacando reflectir a mesma norma uma solução geral acolhida no direito processual português, observável mercê da remissão genérica constante do artigo
69º da Lei nº 28/82, nos termos da qual são subsidiariamente aplicáveis à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação. Na verdade, conforme se ponderou no acórdão nº 80/99, de 9 de Fevereiro, '[...] segundo o artigo 700º, nº 1, g), do Código de Processo Civil, incumbe ao relator ‘julgar sumariamente o objecto do recurso, nos termos previstos no artigo 705º’. Por sua vez, o artigo 705º determina que ‘quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia' (perfilhando idêntica orientação citem-se, v.g., os acórdão nºs. 348/99, 550/99 e 567/99, de 15 de Junho, 14 e 20 de Outubro de 1999, respectivamente, todos eles não publicados).
Não se descortinam razões válidas que aconselhem o afastamento desta jurisprudência.
2. - Acresce que, como decorre da decisão sumária ora reclamada, cingiu-se esta à matéria de verificação dos pressupostos processuais, designadamente o relativo à suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, que se considerou não preenchido no concreto caso.
Não obstante agora argumentar com o 'carácter inovatório e surpreendente da interpretação conferida pelo acórdão do STA no artigo 234º do Tratado de Roma' para, desse modo, considerar estar-se em face de uma situação consubstanciadora de 'surpresa', o certo é que se trata de uma matéria que tem vindo a ser interpretada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo em termos que lhe retiram ineditismo e a enformam de plausibilidade.
Ganha pertinência, a este respeito, o já ponderado e decidido em recente acórdão deste Tribunal – nº 339/02, de 11 de Julho –, recaindo sobre situação afim em que foi recorrente e reclamante a mesma pessoa jurídica.
Transcreve-se:
'Sob a epígrafe ‘o carácter inovatório e surpreendente da interpretação conferida pelo Acórdão do STA ao artº 234º do Tratado de Roma’, a ora reclamante tece vários argumentos, mas não consegue demonstrar, afinal, a verificação do pressuposto processual que motivou a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, requisito essencial para a presente reclamação ser atendida e o processo(recurso) prosseguir para alegações. Não colhe o argumento que este Tribunal Constitucional está a apreciar o mérito e não meros pressupostos processuais, quando afinal tudo se resume a apurar se, não tendo sido suscitada a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, a decisão que aplicou a norma do artigo 234º do Tratado de Roma e nos termos em que o fez pode constituir uma ‘decisão-surpresa’ com a qual a recorrente não podia razoavelmente contar. E apenas para análise dessa ‘surpresa’ – leia-se, preenchimento do requisito processual – este Tribunal trouxe à colação o direito comunitário aplicado pelo TJCE, em jurisprudência pacífica, de décadas e que o acórdão recorrido, por remissão para o acórdão do mesmo STA de 12/12/2001, refere. Essa jurisprudência é, antes de mais, a que dispensa o reenvio prejudicial nos casos em que existe anterior decisão do TJCE sobre a matéria, entendendo-se que não é necessária uma completa identidade das questões decididas (Acórdão do TJCE de 6/10/82 – Pº 283/82). E é, depois, a que se consubstancia no Acórdão do TJCE de 17/11/98 no Pº C-228/96, relativa à questão de mérito em apreço. Não sendo a primeira ‘surpreendente’ só a citação da segunda o poderia ser, enquanto no acórdão recorrido se entende que, tendo em conta a globalidade do regime, vigente no direito nacional, de impugnação de actos de liquidação das receitas tributárias violadoras do direito comunitário, com vista à restituição de impostos ou taxas ilegalmente cobrados, existe um mecanismo processual – revisão oficiosa de liquidação de tributo com fundamento em erro dos serviços
(que pode ser requerida) e subsequente faculdade de recurso de decisão desfavorável – cujos prazos de caducidade se aproximam – excedendo-o até – do prazo de três anos considerado no aresto citado do TJCS. Ora, pesem as dúvidas que a recorrente suscita sobre a justeza desta construção, a verdade é que ela não pode deixar de ser reconhecida como ‘plausível’ (e foi já adoptada em diversos acórdãos do STA), o que é suficiente para se exigir do recorrente a sua previsibilidade e a suscitação prévia da questão de constitucionalidade, tendo em consideração que a dispensa de o fazer se há-de ter sempre como excepcional. De todo o modo, convir-se-á que se não trata já aqui, em direitas contas, de uma interpretação da norma em causa do Tratado de Roma – essa é a que retira da norma as ressalvas à obrigatoriedade de reenvio prejudicial e não se configura, disse-se já, como surpreendente – mas da aplicação da jurisprudência do TJCE ao caso.'
Adere-se às condições expostas, na sua essencialidade.
III
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação e, consequentemente, confirma-se a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta. Lisboa, 23 de Setembro de 2002 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida