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Proc. nº 324/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - No recurso interposto pelo Ministério Público, nos autos supra identificados, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – A, identificado nos autos, em acção declarativa com processo sumaríssimo, intentada por B no Tribunal Judicial de Águeda, foi condenado no pedido e na multa de 2 Ucs como litigante de má-fé, nos termos do artigo 456º nºs. 1 e 2 alíneas a), b) e d) do CPC.
Da decisão que o condenou como litigante de má-fé, o então Réu agravou para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de fls. 100 e segs., decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Nesse acórdão, sustentou-se, em síntese, que '(...) emergindo dos autos um comportamento processual que retrata uma manifesta situação de litigância de má-fé passível de sancionamento, não se justifica a necessidade de respeitar o princípio do contraditório, concedendo-se-lhe um prazo para se pronunciar.' manifestando-se, ainda, discordância relativamente á interpretação que o Tribunal Constitucional faz dos preceitos em causa, quando impõe que ao litigante seja concedido um prazo para se defender.
O Ministério Público, junto da Relação de Coimbra, veio, então, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
70º nº. 1 alínea g) da LTC, daquele Acórdão a que atribuiu uma interpretação das normas do artigo 456º nºs. 1 e 2 do CPC, no sentido de que 'a condenação por litigância de má-fé não está condicionada pela prévia audição dos interessados', o que violaria o princípio do contraditório e estaria em discordância com o que foi julgado por este Tribunal no Acórdão nº. 357/98, publicado in DR, II Série, de 16/7/98.
O recurso foi admitido no tribunal 'a quo', o que, nos termos do artigo 76º nº 3 da LTC não vincula o Tribunal Constitucional.
Cumpre decidir, o que se faz nos termos do artigo 78º-A nº. 1 da LTC.
2 – O recurso vem, como se disse, interposto ao abrigo da alínea g) do nº. 1 do artigo 70º da LTC, o que pressupõe que a norma aplicada tenha sido já julgada inconstitucional pelo TC (impendendo sobre o recorrente o ónus de indicar o Acórdão que assim decidiu).
Ora, tal pressuposto não se mostra verificado no caso.
Com efeito, o acórdão citado pelo magistrado recorrente (nº 357/98) não julgou as normas em causa inconstitucionais, procedendo, antes, a uma interpretação dos preceitos conforme à Constituição, nos termos do artigo 80º nº
3 da LTC.
Não poderia, assim, o Magistrado recorrente lançar mão do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea g) da LTC, por falta do referido pressuposto.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, não se admite o recurso.
Sem custas.'
2 – Desta decisão vem o Minstério Público reclamar para a conferência sustentando, em síntese, que:
- A decisão sumária reclamada procedeu a uma interpretação excessivamente restritiva do disposto no artigo 70º nº 1 alínea g) da LTC;
- Esta norma abrange igualmente as decisões interpretativas, previstas no artigo 80º nº 3 da LTC, que têm implícito e subjacente um juízo de inconstitucionalidade reportado ás interpretações normativas que se não coadunam com a que o Tribunal Constitucional estabelece como único meio de salvar uma norma que, interpretada de outro modo, colidiria com a Constituição;
- Deverão considerar-se preenchidos os pressupostos do recurso previsto na citada alínea g) do nº 1 do artigo 70º da LTC quando a decisão recorrida optar por uma interpretação diversa da única que o TC considerou evitar a inconstitucionalidade da norma, só assim se impedindo que subsistam nas diferentes ordens jurisdicionais, decisões colidentes com o decidido previamente pelo TC àcerca da inconstitucionalidade de certa norma ou interpretação normativa;
- No caso, o tribunal recorrido extraíu do artigo 456º nºs 1 e 2 do CPC uma interpretação que colide com o decidido no acórdão fundamento;
- O Plenário do TC, no acórdão nº 466/00, decidiu já que não implicava julgamento divergente sobre a constitucionalidade de uma norma uma decisão interpretativa, mediante a adopção de certo e determinado sentido e uma decisão de inconstitucionalidade parcial que fulminava com inconstitucionalidade a mesma norma interpretada em sentido diverso, tido como violador da Constituição;
- Para efeitos do disposto no artigo 70º nº 1 alínea g) da LTC, devem equiparar-se as situações em que o tribunal recorrido aplica uma dimensão interpretativa expressamente julgada inconstitucional pelo TC e aquelas em que, divergindo do decidido em precedente decisão interpretativa, acolhe e aplica um sentido normativo manifestamente colidente com a interpretação conforme à Constituição realizada no acórdão-fundamento.
Cumpre decidir.
2 – Como se deixou relatado, interposto um recurso pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea g) da LTC, a decisão reclamada não o admitiu por entender que o acórdão fundamento – Acórdão nº 357/98, publicado in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 40º vol., p. 275 – não julgara inconstitucional a norma em causa aplicada pela decisão impugnada, antes procedera a uma interpretação conforme da mesma norma, nos termos do artigo 80º nº 3 da LTC.
Fez-se, deste modo, uma interpretação daquele primeiro preceito legal em estrita conformidade com o que literalmente nele se dispõe, ou seja, no sentido de que o recurso aí previsto cabe de decisões 'que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou legal pelo próprio Tribunal Constitucional'.
E, de facto, o acórdão fundamento invocado não julgara inconstitucional a norma extraída do artigo 456º nºs 1 e 2 do CPC.
Aceita-se, contudo, que uma tal interpretação não acautela devidamente a finalidade que se pretende com a previsão daquele meio recursório: evitar que nas diversas ordens jurisdicionais sejam aplicadas normas (ou uma sua interpretação) com um sentido que o Tribunal Constitucional já anteriormente entendera colidente com a Constituição.
Ora, é inegável que, ao proceder a uma interpretação conforme à Constituição, nos termos do artigo 80º nº 3 da LTC, o Tribunal Constitucional afasta a aplicação da norma interpretada, com sentido diverso, sendo aquela interpretação a única que permite salvar a constitucionalidade da norma; implicitamente, não deixa o TC de fazer um juízo de inconstitucionalidade da norma tal como é interpretada na decisão impugnada e é por isso que esta terá que ser reformada com a aplicação da norma tal como o Tribunal Constitucional a interpreta, em conformidade com a Constituição.
Aceita-se, assim, que, a perfilhar-se a tese da decisão reclamada, e salvo se o recurso vier interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, podem ser aplicadas normas, sem controlo do Tribunal Constitucional, com um sentido que o próprio TC afastou já, por ofensa á Constituição, quando procede a uma interpretação conforme, o que não é de admitir.
Seria, aliás, o resultado a que se chegaria no caso, uma vez que não pode deixar de se entender que o tribunal recorrido aplica a norma extraída dos citados preceitos do CPC, com a interpretação repudiada, por inconstitucionalidade, pelo Tribunal Constitucional, no acórdão-fundamento, assente num entendimento que é até expressamente criticado pelo acórdão impugnado.
Com efeito, neste acórdão entende-se que a condenação como litigante de má-fé pode ocorrer sem prévia audição da parte condenada, sendo 'exagerada' a necessidade de ser respeitado o princípio do contraditório quando, como era o caso, os autos revelavam um comportamento censurável da parte ao longo do processo claramente violador dos deveres de probidade, de lealdade e de boa-fé, a impor oficiosamente a sua punição como litigante de má-fé.
Este juízo é, de resto, antecedido da citação de trechos do Acordão nº 440/94 do TC (cuja doutrina foi seguida no acórdão-fundamento), com a expressa discordância da interpretação nele acolhida.
Ora, no acórdão fundamento, citam-se largos trechos do acórdão nº
440/94, nomeadamente o seguinte:
'Definido assim o conteúdo genérico do direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição da indefesa, tem-se por seguro que o regime instituído nas normas do artigo 456º nºs 1 e 2 do CPC, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa por litigância de má-fé não pressupor a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação, padecerá de inconstitucional por ofensa daquele princípio constitucional'.
Mas, tal como no acórdão citado, o acórdão-fundamento entende que a norma é passível de uma interpretação conforme à Constituição, condicionando o juízo de condenação à prévia notificação da parte para se poder pronunciar sobre a anunciada e previsível condenação; e é esse, formalmente, o juízo que formula.
Fica, pois, claro, que, a não se admitir o recurso, o acórdão impugnado aplicava, sem controlo do Tribunal Constitucional, uma interpretação normativa que este Tribunal não deixara de rejeitar por inconstitucionalidade, com o que se malograva o fim último do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea g) da LTC.
Defere-se, assim, a reclamação.
3 – Deferida a reclamação e havendo de conhecer de mérito, não se torna necessário determinar a produção de alegações, pois a questão a decidir é simples e cabe nos poderes de cognição da conferência resolvê-la.
Não se vê razões para inflectir a jurisprudência do Tribunal Constitucional firmada quer no acórdão-fundamento (nº 357/98), quer no Acórdão nº 440/94, que se dá aqui por reproduzida.
E nem se diga que, atentas a forma de processo em causa (processo sumaríssimo) e a exigência de celeridade, a Constituição não imporia a audição prévia da parte condenada como litigante de má-fé.
Com efeito, a relevância constitucional da proibição da indefesa não pode ser radicalmente postergada, como o foi, considerando a forma de processo em causa, sendo certo que a celeridade processual – valor igualmente tutelado na Constituição, mas que não pode restringir desproporcionadamente, ou mesmo anular, o direito de a parte ser ouvida sobre uma anunciada condenação por litigância de má-fé – apenas seria afectada em grau muito reduzido com a concessão de um prazo para a parte se pronunciar.
Reconhece-se, assim, que a norma extraída do artigo 456º nºs 1 e 2 do CPC, tal como interpretada no acórdão impugnado (a condenação como litigante de má-fé não exige a prévia notificação da parte para se pronunciar) viola o direito de acesso aos tribunais (artigo 20º da CRP) e o princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2º da CRP).
Mas, sendo a mesma norma susceptível de outra interpretação que a compatibiliza com a Constituição – e ela é a de que a condenação como litigante de má-fé deve ser precedida de audição da parte – entende o Tribunal lançar mão do poder conferido pelo artigo 80º nº 3 da LTC e proceder a tal interpretação, como interpretação conforme à Constituição.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se:
a) Deferir a reclamação;
b) Interpretar a norma extraída do artigo 456º nºs 1 e 2 do CPC, em termos de a parte só poder ser condenada como litigante de má-fé, depois de previamente ser ouvida, a fim de se poder defender da imputação de má-fé;
c) Em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado por forma a que aquela norma seja aplicada no sentido que se deixa indicado.
Sem custas. Lisboa, 3 de Julho de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa