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Processo nº 469/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pelo despacho de 10 de Maio de 2002 do Tribunal Judicial da Comarca de Silves, de fls. 9, foi recusada a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma constante da al. B) do nº 1 do artigo 94º do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 96/2002, de 12 de Abril, cujo texto é o seguinte: Artigo 94º
(Instauração e instrução do processo)
1 – São competentes para instaurar processo disciplinar contra oficiais de justiça, além do Conselho dos Oficiais de Justiça:
(...) b) O juiz-presidente do tribunal em que o funcionário exerça funções à data da infracção;
(...) Como ali se indica, o referido despacho foi proferido pelo Juiz Presidente daquele Tribunal no Processo Comum Singular 5/00.1 TBSLV do 2º Juízo, em que é arguido A, processo que lhe foi concluso para 'apreciar a conduta da Srª Escrivã interina do 2º Juízo (...), para eventual aplicação do disposto no Estatuto dos Funcionários de Justiça (EFJ) aprovado pelo DL 343/99, com as recentes alterações introduzidas pelo DL 96/02, 12.04'. A fundamentação apresentada para a recusa foi a seguinte:
'Porém não aceitamos a competência definida no artº. 94º/1 al. B) EFJ, tal como esta ficou consagrada com a alteração do DL 96/02. Esta alteração, em nosso entendimento, não supre os vícios apontados no Acórdão 73/2002 do Tribunal Constitucional (in DR I-A de 16.03.02) e que determinaram o juízo de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas que atribuem ao Conselho dos Oficiais de Justiça competência para apreciar o mérito e exercer acção disciplinar relativamente aos oficiais de justiça.
Vejamos porquê. Como consta dos fundamentos do citado acórdão, com referência a decisão anterior do Tribunal Constitucional, 'A Constituição não consente, porém, que o legislador atribua tal competência a órgão diferente do CSM. Essa competência só o CSM a pode exercer'.
A alteração que o DL 96/02 veio introduzir apenas camuflou a atribuição de competência ao Conselho dos Oficiais de Justiça, conferindo ao Conselho Superior da Magistratura a qualidade de instância de recurso sobre as decisões daquele órgão, e atribuindo aos Magistrados, nomeadamente, e no que ora nos ocupa, ao Juiz Presidente, a competência para instaurar processos disciplinares contra funcionários de justiça.
Contudo, quem aprecia o mérito e exerce a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça continua a ser o Conselho dos Oficiais de Justiça.
Não cremos que a referência, no Acórdão do Tribunal Constitucional, a uma intervenção do Conselho Superior da Magistratura, e citamos '... não é portanto constitucionalmente admissível que a lei ordinária exclua de todo a competência do Conselho Superior da Magistratura para se pronunciar sobre tais matérias', tivesse em mente a solução adoptada pelo legislador. Este atribui a competência ao Conselho dos Oficiais de Justiça e tal opção ainda é, em nosso entender, inconstitucional.
Veja-se a suprema incongruência que é atribuir ao Conselho Superior da Magistratura a competência para instaurar um processo disciplinar contra oficiais de justiça (artº. 94º/1 al. D) EFJ), sendo esse processo tramitado, apreciado e decidido pelo Conselho dos Oficiais de Justiça. E, caso a decisão não fosse do agrado do Conselho Superior da Magistratura, este poderia recorrer para si mesmo ( artº. 118º/2 e 3 EFJ).
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Nestes termos, Julgamos inconstitucional o Estatuto dos Funcionários de Justiça (EFJ) aprovado pelo DL 343, 26.08, com as recentes alterações introduzidas pelo DL 96/02, 12.04, na parte em que atribui ao Conselho dos Oficiais de Justiça competência para apreciar o mérito e exercer acção disciplinar relativamente aos oficiais de justiça.
Como tal não recorremos ao disposto no artº. 94º/1 al. B) daquele diploma.
Ainda assim, e apenas por se encontrar temporariamente ausente a Mmª Juiz do titular do 2º Juízo, ordenamos a extracção de certidão de fls. 95 a 111 e do presente despacho e a sua remessa ao Conselho Superior da Magistratura para os efeitos disciplinares da Srª. Escrivã tidos por convenientes.'
2. Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por ter sido recusada a aplicação 'da norma do artigo 94º, nº 1, alínea b) do Estatuto dos Funcionários de Justiça aprovado pelo Decreto-Lei nº
343/99 de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 96/02 de 12 de Abril'. O recurso foi admitido. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar as suas alegações, nas quais veio precisar que a norma que constitui o objecto do presente recurso é a 'constante do artigo 94º, nº 1, alínea b), daquele estatuto, na versão actualmente em vigor, interpretada em termos de o juiz-presidente do tribunal em que o funcionário exerça funções à data da infracção dever remeter ao Conselho dos Oficiais de Justiça a certidão extraída para efeitos disciplinares, por ser esse o órgão competente para o exercício do poder disciplinar (nos termos estatuídos nos artigos 98º e 111º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma legal). E formulou as seguintes conclusões:
1º - Não é inconstitucional a norma constante do artigo 94º, n.º 1, alínea b) do Estatuto dos Funcionários de Justiça, na versão emergente do Decreto-Lei n.º
96/02, de 12 de Abril, interpretada em termos de o juiz-presidente dever remeter ao COJ certidão para efeitos disciplinares, relativamente a funcionário do tribunal, como decorrência de estar cometida a tal órgão administrativo a instrução do processo disciplinar e a prolação de uma primeira decisão sobre a matéria.
2º - Na verdade, estando assegurada a possibilidade de o Conselho Superior da Magistratura avocar ou revogar tal deliberação do COJ, sendo ainda competente, em via de recurso, para apreciar a deliberação de tal entidade administrativa, o regime legal em vigor não colide com o preceituado no artigo 218º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
3. Pelo acórdão nº 73/2002 (Diário da República, I Série A, de 16 de Março de
2002), proferido, nos termos previstos no nº 3 do artigo 281º da Constituição, na sequência de um pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade formulado em três casos concretos, foram declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, as 'normas constantes dos artigos 98º e 111º, alínea a), do Estatuto dos Oficiais de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, e das normas constantes dos 95º e 107º, alínea a), do Decreto-Lei n.º
376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que delas resulta a atribuição ao Conselho dos Oficiais de Justiça da competência para apreciar o mérito e exercer a acção disciplinar relativamente aos oficiais de justiça', por violação do disposto no nº 3 do artigo 218º da Constituição. Entendeu-se então, reiterando os julgamentos de inconstitucionalidade proferidos nos acórdãos-fundamento, que '«A Constituição da República Portuguesa, quando prescreve [no nº 3 do (actual) artigo 218º] que do CSM podem fazer parte funcionários de justiça que intervirão apenas na apreciação do mérito profissional e no exercício da função disciplinar relativa a tais funcionários, autoriza a lei a prever que do CSM façam parte funcionários. Não impõe, porém, tal intervenção. A Constituição não consente, porém, que o legislador atribua tal competência a órgão diferente do CSM. Essa competência só o CSM a pode exercer [transcrição do acórdão nº 145/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Outubro de 2000]». Ora, a norma do n.º 3 do (actual) artigo 218º da Constituição da República Portuguesa é, efectivamente, o parâmetro de aferição da constitucionalidade das normas infra-constitucionais que criam o Conselho dos Oficiais de Justiça e fixam a respectiva competência. Da norma do n.º 3 do (actual) artigo 218º da Constituição decorre, indiscutivelmente, a competência do Conselho Superior da Magistratura em matérias relacionadas com a apreciação do mérito profissional e com o exercício da função disciplinar relativamente aos funcionários de justiça. Perante essa norma, não é portanto constitucionalmente admissível que a lei ordinária exclua de todo a competência do Conselho Superior da Magistratura para se pronunciar sobre tais matérias. O que vale por dizer que são materialmente inconstitucionais as normas agora em análise, que atribuem ao Conselho dos Oficiais de Justiça a competência para apreciar o mérito profissional e para exercer a função disciplinar relativamente aos funcionários de justiça, excluindo, por completo, neste domínio, qualquer competência do CSM.' O julgamento de inconstitucionalidade assentou, assim, na incompatibilidade entre o nº 3 do artigo 218º da Constituição e a completa exclusão de qualquer competência do Conselho Superior da Magistratura, no que agora releva, 'para exercer a função disciplinar relativamente aos funcionários de justiça'.
Ao pretender dar cumprimento a este julgamento, como expressamente explica no preâmbulo do Decreto-Lei nº 96/2002, o legislador continuou a atribuir competência disciplinar sobre os funcionários de justiça ao Conselho dos Oficiais de Justiça (artigo 98º) mas veio prever a possibilidade de recurso para o Conselho Superior da Magistratura das suas decisões proferidas no âmbito dessa competência, no nº 2 do artigo 118º.
Para além disso, veio conferir ao Conselho Superior da Magistratura o poder de instaurar (alínea d) do nº 1 do artigo 94º) e de avocar processos disciplinares (nº 2 do artigo 111º), bem como o de revogar as deliberações do Conselho dos Oficiais de Justiça proferidas em matéria disciplinar (mesmo nº 2 do artigo 111º).
A consideração conjunta destas diferentes alterações permite concluir que a última palavra em matéria disciplinar, no que respeita aos funcionários de justiça, cabe ao Conselho Superior da Magistratura; não é, pois, possível continuar a entender que as normas que atribuem competência em matéria disciplinar ao Conselho dos Oficiais de Justiça, neste contexto, infringem o disposto no nº 3 do artigo 118º da Constituição.
É que não se encontra nesse preceito, nem a proibição de conferir tal competência em especial ao Conselho dos Oficiais de Justiça, nem a reserva exclusiva ao Conselho Superior da Magistratura do exercício do poder disciplinar sobre os oficiais de justiça. Não se vê, pois, fundamento para concluir pela inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do presente recurso.
Nestes termos, decide-se: b. Não julgar inconstitucional a norma contida na alínea b) do nº 1 do artigo 94º do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei nº
343/99, de 26 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº
96/2002, de 12 de Abril, interpretada em termos de o juiz-presidente do tribunal em que o funcionário exerça funções à data da infracção dever remeter ao Conselho dos Oficiais de Justiça a certidão extraída para efeitos disciplinares, por ser esse o órgão competente para o exercício do poder disciplinar; b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade.
Lisboa,26 de Setembro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida