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Processo n.º 49/01
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 29 de Julho de 1998, A e outros, melhor identificados nos autos, interpuseram recurso directo de anulação do acto tácito de indeferimento do pedido de reversão de prédio expropriado, por eles formulado, em 28 de Abril de 1997, ao Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território. Por despacho de 24 de Novembro de 1999, o relator no Supremo Tribunal Administrativo declarou deserto o recurso por 'os recorrentes não [terem apresentado] as suas alegações de recurso, apesar de devidamente notificados para o efeito.' Apresentada reclamação para a conferência, veio esta, por Acórdão de 5 de Abril de 2000, a indeferi-la, invocando, como o despacho reclamado, o disposto nos artigos 67º, § único do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, 291º, n.º2, e 690º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Apresentado recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, os recorrentes escreveram nas suas alegações que:
'...não podia o art. 24º, al. b) da L.P.T.A. prever a aplicação subsidiária do R.S.T.A. aos recursos contenciosos de actos administrativos, na medida em que, conforme dispõe o art. 112º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, não pode essa lei conferir a actos de outra natureza, como é o caso, o poder de, com eficácia externa, interpretar ou integrar qualquer dos seus preceitos. Ao fazê-lo, pretendendo que sejam aplicáveis aos particulares normas com mera eficácia interna, por remissão para o R.S.T.A., o art. 24º, al. b) contém uma norma inconstitucional, por violação do art. 112º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa.' Por Acórdão de 24 de Novembro de 2000, o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, abordando a suscitada questão de desconformidade constitucional e resolvendo-a com dois argumentos: o de que 'é a própria LPTA que logo atribui força ao pré-existente RSTA' e o de que 'este é formalmente uma lei, pois consta do Dec.-Lei n.º 41234, de 20-8-57.' Insatisfeitos, os demandantes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para verem apreciada 'a inconstitucionalidade da alínea b) do art. 24º do DL 267/85, de 16 de Julho (L.P.T.A.), por violação do disposto no art. 112º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa.' Nas alegações, os recorrentes concluíram deste modo:
'1ª – O D.L. n.º 267/85, de 16 de Julho, como acto legislativo que é, não pode conferir a actos de natureza não legislativa a faculdade de o integrar;
2ª – O art. 24º, al. b) da L.P.T.A. procede a um reenvio normativo pelo qual admite a integração da Lei por via regulamentar;
3ª – O conteúdo das normas do R.S.T.A. para que o cit. art. 24º, al. b) remete incorpora-se e estende a sua aplicabilidade e âmbito de vigência da L.P.T.A., afectando a sua extensão e o seu alcance.
4ª – Porque as imposições processuais devem ser sustentadas por Lei, é inadmissível do ponto de vista jurídico-constitucional a invocação que o cit. art. 24º, al. b) faz do R.S.T.A.;
5ª – O Dec. n. 41234 de 20 de Agosto de 1957, é um Decreto Regulamentar;
6ª – O art. 24º, al. b) da L.P.T.A. é inconstitucional por violação do disposto no n. 6 do art. 112º da Constituição;
7ª – É inadmissível a aplicação do referido art. 24º al. b) no processo no qual se suscitou a sua inconstitucionalidade;
8ª – Não houve, por isso, deserção do Recurso em causa.' Por seu turno, escreveu o Ministro do Equipamento Social nas suas alegações:
'(...)
5º – Na verdade, a função regulamentar do Decreto n.º 41234 (RSTA) tem de ser reportada, sim, ao Decreto-Lei n.º 40 768, de 8 de Setembro, que regulou o funcionamento do Supremo Tribunal Administrativo, concretamente ao seu artigo
31º, ao abrigo do qual foi editado.
(...)
7º – Isto é, a lei – Decreto-Lei n.º 40 768 – remeteu para a Administração a faculdade de editar disciplina jurídica executiva no âmbito da matéria por si definida, mantendo cada um dos diplomas a sua autonomia.
8º – Configurando-se assim no quadro da Constituição de 1933, então vigente, um reenvio meramente formal, concretizado na edição de regulamento executivo, sob a forma de decreto regulamentar, promulgado pelo Presidente da República, aliás perfeitamente admissível se figurado à luz de uma norma (então inexistente) como a do actual art. 112º n. 6 da C.R.P.
9º – Diferente é a situação em que o art. 24º alínea [b)] da LPTA se limita a reconhecer que continuam a ser aplicáveis aos recursos contenciosos – distinguindo consoante se trate dos previstos nas alíneas a) d) e [j]) do n.º 1 do art. 51º do ETAF ou outros – leis já existentes, como o Código Administrativo
(alínea a) do art. 24º) a Lei Orgânica e o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo e respectiva legislação complementar (alínea b) do art. 24º).
10º – Com efeito, não se configurará aí um reenvio normativo em sentido jurídico estrito, visto não haver remissão para normas a editar mas sim para uma disciplina jurídica preexistente, emanadas em execução da respectiva lei habilitante, no seio de um diferente quadro constitucional.' Cumpre decidir. II. Fundamentos A única norma impugnada no presente recurso é o artigo 24º, alínea b) da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, que tem a seguinte redacção:
'Artigo 24º Lei aplicável Salvo o disposto no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e no presente diploma, os recursos contenciosos de actos administrativos e de actos em matéria administrativa são regulados: a) (...) b) Pelo estabelecido na Lei Orgânica e no Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo e na respectiva legislação complementar, os restantes.' Está em causa, porém, apenas a remissão para o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, aprovado pelo Decreto (e não Decreto-Lei) n.º 41 234, de 20 de Agosto de 1957. E isto porque, tendo tal diploma natureza regulamentar, segundo os recorrentes a norma de remissão incorreria em violação do n.º 6 do artigo
112º da Constituição – rectius, do n.º 5 do artigo 115º, que era o preceito onde se continha a mesma norma à altura da entrada em vigor do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 267/85 (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos). Anote-se, antes de mais, que, uma vez que os recorrentes não impugnaram as próprias normas do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo – designadamente a do § único do seu artigo 67º, que levou ao juízo de deserção do recurso –, o que está em causa nos presentes autos não é uma eventual inconstitucionalidade superveniente desse Regulamento de 1997 (rectius dessa norma desse Regulamento), em razão do quadro constitucional introduzido em 1976, ou das suas sucessivas revisões. Está em causa, antes, uma alegada inconstitucionalidade (necessariamente) originária da alínea b) do artigo 24º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. O que não implica que não seja relevante a distinção – que, consabidamente, releva em matéria de inconstitucionalidade superveniente – entre inconstitucionalidade material e inconstitucionalidade orgânica ou formal – cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 446/91, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 2 de Abril de 1992, onde se escreveu (citando o Acórdão n.º 261/86, publicado no DR, II Série, de 27 de Novembro), a propósito da 'questão de saber se a violação do princípio da legalidade tributária pelas portarias anteriores à Constituição de 1976 podia ser configurada como inconstitucionalidade material':
'(...) como quer que seja, subsiste que a infracção ao princípio da legalidade dos impostos radica sempre num vício relativo à ‘forma’ (em sentido amplo) de determinadas normas, de modo que, em se tratando de direito anterior à Constituição, a sua relevância implicará que se leve em conta,
‘retroactivamente’, o que a nova Constituição veio dispor em matéria de repartição de competência normativa ou de exigências formais dos diplomas. Isto, porém, não se vê que esteja de harmonia com o sentido do artigo 293º da nossa lei fundamental (...). A não se entenderem as coisas como vem de referir-se, dir-se-ia então que a
‘caducidade’ do direito ocorreria, pelo menos, quando não se houvesse nele observado uma forma correspondente à exigida pela nova Constituição. Só que este outro entendimento levaria pressuposta, por sua vez, uma particular sensibilidade do legislador constituinte de 1976 aos precedentes critérios orgânico-formais de legitimação constitucional, o que não é muito plausível em todas as situações.') Daqui decorre, pois, que, mesmo sem ter de discutir a questão da constitucionalidade do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, pode admitir-se, com base na distinção entre inconstitucionalidade material e formal
(ou orgânica), a inexistência de inconstitucionalidade orgânica e formal nesse Regulamento. Mas assim sendo, a 'remissão' que um decreto-lei faça para o referido Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo também não pode ser inconstitucional formal ou organicamente: o artigo 112º, n.º 6 (anterior artigo
115º, n.º 5) da Constituição não pode implicar, como é óbvio, a inconstitucionalidade superveniente de todas as normas legais que remetam para normas (ou diplomas) regulamentares anteriores à Constituição. A inconstitucionalidade da norma legal só pode resultar de atribuir a uma norma regulamentar um espaço de intervenção normativa que não é o seu. Ora, admitindo-se, como se viu, a constitucionalidade das normas do Regulamento de
1957 (que, aliás, não vêm impugnadas), a remissão que para esse Regulamento é feita na alínea b) do artigo 24º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos não poderia, por isso, ser inconstitucional. Dir-se-á mesmo mais: valendo o dito regulamento antes da entrada em vigor da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho), e continuando a valer depois dele (no que lhe não fosse incompatível), é claro que aquele diploma – mais precisamente a norma da alínea b) do artigo 24º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – nem cria outra categoria de actos legislativos, nem confere a acto de natureza não legislativa o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. Bem ao contrário: sendo hierarquicamente superior, e, em todo o caso, posterior, ao Regulamento de 1957, o Decreto-Lei n.º 267/85 determinou (escusada mas expressamente) a revogação de todas 'as disposições gerais ou especiais incompatíveis' com ele (artigo 134º n.º 1), o que implica que as normas do dito Regulamento não podem modificar, suspender ou revogar as suas.
É certo que, ainda que não possam interpretá-las (sendo anteriores, as normas do Regulamento não podem fixar a interpretação das normas do decreto-lei que surgiu
28 anos depois), se poderia dizer que as normas do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo podem integrar as normas da referida Lei de Processo – e que as normas que fixam prazos para alegações (artigo 34º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo) e as consequências da sua falta (§ único do artigo 67º – aliás remetendo aqui para normas do Código de Processo Civil, que era, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 267/85, direito subsidiário aplicável) fazem isso mesmo. Só que, a ser assim, tal não resulta de a alínea b) do artigo 24º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos lhes fazer referência, mas logo de tal decreto-lei não as ter revogado, sendo, pois, quando muito a norma impugnada nestes autos uma norma auxiliar de delimitação do âmbito de aplicação do diploma em que está inserida. Em suma: porque a única norma sob inquirição constitucional não é uma norma habilitante da intervenção regulamentar e não atribui às normas regulamentares nenhum poder ou valor normativo acrescido; porque as normas regulamentares a que faz referência foram emitidas antes da sua entrada em vigor e antes de 1976, e têm de se presumir, no presente processo, constitucionalmente conformes; porque, até, a norma do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo que seria relevante para o caso dos autos se limita a convocar normas do diploma legal que, em qualquer caso, seria subsidiariamente aplicável (o Código de Processo Civil); e porque, na fixação do regime legal, a mera remissão para normas (ou diplomas) regulamentares anteriores a 1976, e que continuam em vigor, não pode implicar violação da norma do n.º 6 do artigo 112º (anterior n.º 5 do artigo
115º) da Constituição, não pode conceder-se provimento ao recurso interposto.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a. Não julgar inconstitucional o artigo 24º, alínea b) da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, na parte em que remete para o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo; b. Por conseguinte, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no tocante à questão de constitucionalidade; c. Condenar os recorrentes em custas, com 15 (quinze ) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 10 de Julho de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa