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Processo nº 403/2002 Plenário Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. Nos termos do disposto nos artigos 281º, nº 3 da Constituição e 82º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional veio requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da 'norma constante do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (e que integra, após a renumeração daquele Código, operada pelo Decreto-Lei nº 198/01, de 3 de Julho, sem qualquer alteração substancial de regime, o artigo 111º) quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil'. Invocou, para o efeito, ter sido a mesma norma julgada inconstitucional, 'por violação do artigo 2º da Constituição', pelos acórdãos nº 109/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 2002), 128/2002 e 132/2002
(estes dois não publicados), e não implicar qualquer perda de interesse na sua apreciação a circunstância de ter entretanto sido inserida num preceito diverso do mesmo Código.
2. Notificado para o efeito, nos termos previstos nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, o Primeiro Ministro veio oferecer o merecimento dos autos e solicitar ao Tribunal Constitucional 'que pondere a utilização da competência que lhe assiste, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição, de limitar os efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral'. Em síntese, o Primeiro Ministro sustenta que a existência do privilégio 'decorre da urgência do Estado em garantir e satisfazer necessidades básicas ligadas ao funcionamento e garantia do sistema fiscal (artigo 103º da Constituição); que está em causa 'um dever jurídico fundamental', o de cumprir as obrigações fiscais; e que, 'de momento', a norma que o prevê contém 'a única garantia de que (...) dispõe o Estado de fazer cumprir e garantir os débitos tutelados, e através deles, o próprio equilíbrio e justiça do sistema fiscal'. Existem portanto, em seu entender, 'ponderosas razões de equidade e interesse público, que se prendem não apenas com a garantia do sistema fiscal e sua operacionalidade, mas também com uma justa repartição dos rendimentos e da riqueza, um objectivo constitucional, que justificam e fundamentam a solicitação do Governo de limitação dos efeitos da eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação da norma identificada nos autos, com efeitos a partir da data de publicação da decisão do Tribunal, com ressalva das situações litigiosas pendentes'. Nos termos do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 63º da Lei nº 28/82, foi apresentado, discutido e aprovado por maioria, em plenário, o memorando do Presidente do Tribunal. Cumpre agora decidir.
3. A norma em apreciação, constante do artigo 104º (primitiva versão) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e actualmente contida no artigo 111º do mesmo Código, na numeração resultante do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, tem o seguinte conteúdo:
'Para pagamento do IRS relativo aos últimos três anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.'
É assim concedido à Fazenda Pública, para garantia dos créditos de imposto em causa (e dos juros de mora relativos aos últimos dois anos, como resulta do disposto no artigo 734º do Código Civil), um direito real de garantia, dotado de sequela e de prevalência nos termos previstos no artigo 751º do Código Civil, que onera todos os imóveis existentes no património do devedor no momento da penhora (ou de acto equivalente). Como qualquer privilégio creditório, tal direito não está sujeito a registo
(artigo 733º do Código Civil); e, tal como a generalidade dos privilégios creditórios imobiliários, em caso de penhora de imóvel então existente no património do devedor, importa para o beneficiário a faculdade de vir a ser pago com preferência sobre o credor que detenha uma hipoteca (é a interpretação agora relevante) sobre esse bem, ainda que registada anteriormente à constituição do crédito de imposto. Diferentemente da mesma generalidade dos privilégios imobiliários, não é um privilégio especial, pois onera todos os imóveis existentes no património do devedor naquele momento; e, também diferentemente daquela generalidade (cfr. os artigos 743º e 744º do Código Civil, bem como o seu artigo 733º), não incide necessariamente sobre bens especialmente ligados ao facto que gerou a dívida de imposto.
4. Nos três acórdãos invocados como fundamento, tal norma foi julgada inconstitucional quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil; é, pois, com esta interpretação que assim se define a norma que constitui o objecto deste pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, não curando agora o Tribunal de saber se seria ou não possível interpretação diversa.
Cabe, todavia, esclarecer que a circunstância de aquela norma ter passado a figurar num preceito com numeração diferente não implica o não conhecimento do pedido. Com efeito, o Tribunal Constitucional tem entendido que se está perante a mesma norma no caso de se haver operado uma simples renumeração ou reordenação de certo preceito, não acompanhada de qualquer alteração substancial ou, sequer, sistemática, e mantendo o preceito o mesmo teor verbal, o mesmo sentido e o mesmo alcance (crf. o nº 6 do Acórdão nº
308/2001, Diário da República I-A, de 20 de Novembro de 2001, e a jurisprudência ali citada).
É certo que esta jurisprudência foi desenvolvida a propósito e para o efeito da aplicação do princípio que limita o poder de cognição do Tribunal às normas que são objecto do pedido (nº 5 do artigo 51º da Lei nº 28/82); mas é igualmente certo que não se encontra qualquer razão para que o critério não possa ser utilizado no quadro da utilização da faculdade prevista no nº 3 do artigo 281º da Constituição, ou seja, no âmbito de um pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade proferido sobre certa norma em recursos de fiscalização concreta. Também aqui, quando a situação apresente os contornos descritos, há-de o pedido poder basear-se em decisões que recaíram sobre essa norma com a primitiva (ou anterior) numeração), mas tê-la como objecto, também, já com a nova numeração. Note-se, aliás, que a identidade normativa em apreço foi assinalada em todos os acórdãos-fundamento.
5. Pelo acórdão nº 160/2000 (Diário da República, II Série, de 10 de Outubro de
2000), foram julgadas inconstitucionais 'por violação do artigo 2º da Constituição da República, as normas constantes dos artigos 2º do Decreto-Lei nº
512/76, de 3 de Julho, e 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, [que concedem um privilégio imobiliário geral, em determinadas condições, aos créditos por contribuições à Segurança Social] interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil'. Tal julgamento de inconstitucionalidade [repetido, aliás, nos acórdãos nºs
354/2000 (Diário da República, II Série, de 7 de Novembro de 2000) e 193/2002} foi acolhido nos três acórdãos-fundamento, que nele se basearam, entendendo que as diferenças de regime existentes nos dois casos não relevavam. Assim, no acórdão nº 109/2002, escreveu-se o seguinte:
'No seu acórdão n.º 160/00, este Tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
«5. - É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos 2º do Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 pretendeu dar alguma preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748º do Código Civil. No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência sobre direitos reais de garantia – a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção – ainda que anteriormente constituídos. Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751º, designadamente a hipoteca – que é o caso dos autos. Não se questiona que face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas – como é o caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º –, se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da ‘par conditio creditorum’ (como se concluiu no já citado acórdão
688/98), nem, tão pouco, que se atribua um regime procedimental específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cfr. acórdãos 51/99 publicado no Diário da República, IIª série, de 05/04/99, e 281/99, inédito).
6. - A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não pode, no entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio imobiliário geral. Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e
625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e
18 de Março de 1999, respectivamente). A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág.
333; Isabel Pereira Mendes, 'Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial' in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; Paula Costa e Silva, 'Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente', in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58,
1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862). Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social. Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece. Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio ‘geral’, e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico. Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80. A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República.»
5. Pesem embora as diferenças de regime existentes entre o privilégio concedido pelas normas objecto de julgamento neste acórdão nº 160/00 e aquele que o artigo
104º confere à Fazenda Pública, procedem, também aqui, as razões que levaram
àquele julgamento de inconstitucionalidade. Com efeito, em ambos os casos a lei garante com um privilégio imobiliário geral
(portanto, onerando todos os imóveis do património do devedor, e não sujeito a registo) um crédito, desprovido de qualquer conexão com aqueles imóveis, no caso da segurança social, não necessariamente com eles relacionado, no caso presente
(diferentemente do que se verifica com os privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos 743º e 744º do Código Civil), de que é titular uma entidade pública, que visa 'permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas' (acórdão nº 160/00); em ambos os casos a norma que o prevê foi interpretada no sentido de tal privilégio ser dotado de preferência sobre direitos reais de garantia, da titularidade de terceiros, sobre os bens onerados; e em ambos os casos são atingidos terceiros a quem não é acessível o conhecimento, nem da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo segredo fiscal, nem da oneração pelo privilégio, devido à inexistência de registo. Estas semelhanças justificam que se siga, também neste caso, o juízo de inconstitucionalidade, por se mostrar violado, nos mesmos termos, o princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
6. Na verdade, as referidas diferenças de regime não são suficientes para afastar esta conclusão.
É exacto, como afirma o Ministério Público nas suas alegações, que o privilégio conferido à Fazenda Pública pela norma agora em apreciação é menos 'agressivo', pois que apenas beneficia os créditos constituídos nos últimos três anos, e só incide sobre os imóveis existentes no património do devedor à data da penhora. Igualmente exacto é que a Fazenda Pública não goza da hipoteca legal que é conferida à Segurança Social, que a pode registar, como se observou no acórdão nº 160/00. Todavia, e em primeiro lugar, não se vê que aquela limitação temporal seja apta a inverter o juízo de inconstitucionalidade, pois que, não tomando em consideração nenhuma relação de valores entre o crédito de imposto e o crédito do exequente, pode conduzir ao mesmo resultado a que levaria a inexistência de limite. Em segundo lugar, não há grande diferença, dentro da tramitação normal da execução, entre o momento da sua instauração e o da penhora; e a que existe não
é relevante para o efeito. Finalmente, não é a circunstância de a lei não ter curado de proteger o crédito de imposto com uma hipoteca legal que há-de justificar o sacrifício dos terceiros nos termos em que a norma em crise os afecta.'
É este julgamento de inconstitucionalidade que agora se reitera, pelo mesmo fundamento.
6. Na sua resposta, como se referiu, o Primeiro Ministro solicita que o Tribunal Constitucional pondere uma eventual limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de forma a que se produzam apenas após a sua publicação,
'com ressalva das situações litigiosas pendentes'. A verdade, porém, é que não se encontra motivo suficiente para a pretendida restrição. Em primeiro lugar, porque é em razões de 'segurança jurídica' e de 'equidade'
(cfr. nº 3 do artigo 282º da Constituição) que assenta o juízo de inconstitucionalidade, não se vendo – nem sendo apontadas – quaisquer outras que sobre elas possam prevalecer. Em segundo lugar, porque – e note-se, a propósito, que das justificações apresentadas apenas poderia relevar a afirmação de que o privilégio em questão se mostra, 'de momento', como sendo 'a única garantia de que (...) dispõe o Estado de fazer cumprir e garantir os créditos tutelados', já que as demais se traduzem antes numa fundamentação material da consagração legal do privilégio – não ocorre aqui uma razão 'de interesse público de excepcional relevo' que a exija. Com efeito, por um lado a não restrição de efeitos não implica a destruição dos casos julgados entretanto formados (cfr. nºs 1 e 3 do artigo 282º da Constituição); por outro, a verdade é que, independentemente de sempre ser possível à lei criar outras garantias, o julgamento de inconstitucionalidade apenas afecta a preferência sobre a hipoteca, e não a subsistência do privilégio. O Estado não fica seguramente impedido de promover as execuções necessárias à efectiva cobrança das dívidas de imposto. Não se procede, assim, a qualquer limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
7. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 2º da Constituição, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, do seu artigo 111º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil. Lisboa, 17 de Setembro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos da declaração de voto que acompanha o acórdão nº 109/2002) José Manuel Cardoso da Costa