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Proc. nº 248/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do Colectivo do Tribunal da Comarca de Tavira de 29 de Novembro de 2001, de fls. 159, A foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos previstos no nº 1 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Este Tribunal, porém, negou provimento ao recurso, confirmando a sua condenação pelo acórdão de 27 de Fevereiro de 2002, de fls. 219. De novo recorreu A , agora para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, afirmando que o 'tribunal de recurso violou a Constituição da República Portuguesa (...)' e pretendendo que o Tribunal aprecie três questões :
– Em primeiro lugar, uma questão relativa à alegada participação no colectivo do julgamento de Juíza que 'aplicou prisão preventiva ao arguido e procedeu ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva até ao fim do processo', o que poria 'irremediavelmente em causa a independência e isenção da Meritíssima Juiz'. Assim, o recorrente afirma:
'É, pois, inconstitucional a interpretação do artigo 40º do C.P.P., no sentido de permitir que o Meritíssimo Juiz que aplica e mantém a prisão preventiva não se encontra impedido para proceder ao Julgamento do arguido. Devendo ser interpretado no sentido e de acordo com o artº 35º [32º], nº 5 da C.R.P, de se encontrar impedido, com vista a se assegurar o contraditório e bem assim garantir a independência do Julgador e fé pública do mesmo';
– Em segundo lugar, uma questão relacionada com a não realização imediata de determinada perícia médico-legal, nos seguintes termos:
'(...) requer-se que deve ser declarada inconstitucional a interpretação realizada ao (...) artigo 52º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro no sentido em que a sua realização poderá ser realizada em qualquer altura do processo, devendo a mesma ser interpretada no sentido de que havendo conhecimento da toxicodependência do arguido, a não realização de imediato dessa perícia médico-legal viola o princípio da garantia de defesa do arguido determinado pelo art. 32º nº 1 da C.R.P.'.
– Em terceiro lugar, de uma questão relacionada com a falta de fundamentação do Acórdão condenatório, pedindo então o recorrente que seja 'declarada inconstitucional a interpretação dada ao artigo 374º nº 2 do C.P.P. no sentido
[de] não ser necessária a indicação dos meios de prova utilizados para fundamentar a decisão e bem assim de não se indicar quais os meios de prova que determinaram os factos dados como provados e os dados como não provados', relacionando tal inconstitucionalidade com a violação do nº 1 do artigo 205º da Constituição e com o nº 5 do seu artigo 32º.
2. Notificadas para o efeito, as partes vieram apresentar alegações. No que toca ao recorrente, terminou-as com as seguintes conclusões:
'1° O Supremo Tribunal de Justiça interpretou o artigo 40º do Código de Processo Penal, no sentido de permitir que o juiz que aplica e mantém a prisão preventiva não se encontra impedido para proceder ao julgamento do arguido.
2° Tal interpretação viola o artigo 32° n° 5 da Constituição da República, e o princípio do contraditório nele plasmado, bem como a garantia da independência do julgador.
3º Deve ser declarada inconstitucional a norma, na interpretação dada pelo julgador ao supra referido artigo 40° do CPP.
4° O Supremo Tribunal de Justiça interpretou o artigo 52° do Dec. Lei 15/93 de
22 de Janeiro, no sentido em que a perícia médica do arguido pode ser realizada em qualquer altura do processo.
5º Tal interpretação viola o artigo 32º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da garantia de defesa do arguido.
6° Deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo 52° do Dec. Lei 15/93 de 22/1, na interpretação dada pelo julgador, quando admite que a perícia médico-legal se possa fazer em qualquer altura, e não imediatamente após o conhecimento da situação de toxicodependência do arguido.
7° O Supremo Tribunal de Justiça interpretou o artigo 374° n° 2 do Código de Processo Penal, no sentido de não ser necessária a indicação dos meios de prova utilizados para fundamentar a decisão e bem assim de não se indicar quais os meios de prova que determinaram os factos dados como provados e dados como não provados.
8° Tal interpretação viola o artigo 32° n° 5 da Constituição da República Portuguesa, e o princípio do contraditório ali garantido ao arguido.
9° Deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo 374° n° 2 do CPP, quando interpretada no sentido de ser necessária a indicação dos meios de prova utilizados para fundamentar a decisão e bem assim a indicação dos meios de prova que determinaram os factos dados como provados e dados como não provados. São termos em que, deverá ser dado provimento ao recurso, declarando-se a inconstitucionalidade das normas com a interpretação dada às mesmas pelo Supremo Tribunal de Justiça.' Por seu lado, o Ministério Público começou por referir a inadmissibilidade do recurso, por ter sido interposto ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, sem que nele tivesse sido suscitada qualquer ilegalidade susceptível de se referir a tal hipótese; para o caso de se poder entender interposto o recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da mesma lei, considerou que o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal não tinha sido interpretado pela decisão recorrida no sentido acusado de ser inconstitucional pelo arguido; que era duvidoso que, relativamente ao artigo 52º do Decreto-Lei nº 15/93, tivesse sido colocada qualquer questão de 'natureza ‘normativa’' e que, a entender-se que sim, era
'manifestamente infundada'; quanto ao artigo 40º do Código de Processo Penal, que não ocorria a inconstitucionalidade apontada pelo recorrente. Concluiu da seguinte forma:
'1º - Não se verificam os pressupostos do tipo de recurso de fiscalização concreta interposto, explicitamente fundado na alínea f) do n° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, por se não vislumbrar minimamente (e nem sequer vir invocada) qualquer ilegalidade 'qualificada', cognoscível pelo Tribunal Constitucional, e susceptível de lhe servir de base.
2° - Não tendo o recorrente aproveitado a oportunidade processual para suprir o possível lapso ou erro de enquadramento jurídico cometido, não é possível ao Tribunal Constitucional convolar oficiosamente de tal tipo de recurso, especificado pelo recorrente, para o que se mostraria adequado às questões suscitadas, convolando da apreciação de questões de ilegalidade para questões de inconstitucionalidade.
3° - Acresce que a decisão recorrida não realizou a interpretação normativa do n° 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, especificada pelo recorrente, já que entendeu que a decisão, proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, estava adequada e devidamente fundamentada.
4°- E que se revela manifestamente infundada a questão suscitada quanto à norma constante do artigo 52° do Decreto-Lei n° 15/93, já que não pode obviamente inferir-se do princípio constitucional das garantias de defesa em processo penal o preciso momento processual de realização de certo exame pericial - que veio efectivamente a realizar-se em momento anterior à discussão e julgamento da causa.
5° - Não afecta as garantias objectivas de imparcialidade e isenção do juiz, na fase de julgamento, a circunstância de este ter, na fase liminar do processo, apreciado a legalidade da detenção do arguido e determinado – perante a situação de facto existente à data do primeiro interrogatório judicial – a aplicação ao mesmo da medida de coacção de prisão preventiva, sem que tenham ocorrido outras e posteriores intervenções desse mesmo julgador no decurso do inquérito, que implicassem uma apreciação substancial dos indícios entretanto recolhidos.
6°- Tais garantias não são afectadas pelo facto de o mesmo juiz, já na fase de julgamento, se ter pronunciado – após recebimento da acusação – sobre o estatuto processual do arguido, entendendo que – perante a inexistência de circunstâncias supervenientes relevantes – se deveria manter o estatuto préexistente.
7° - Não padece de inconstitucionalidade a norma constante da versão actual do artigo 40° do Código de Processo Penal, quando interpretada e aplicada em termos de não estender o impedimento que nela se prescreve aos casos em que o juiz, competente para o julgamento, se limitou a proceder ao primeiro interrogatório do arguido, a validar a captura e a ajuizar liminarmente dos pressupostos da respectiva prisão preventiva, sem ulteriormente ter lugar qualquer outra intervenção do mesmo magistrado no decurso do inquérito – e sendo a última pronúncia sobre o estatuto processual do arguido, no referente a medidas de coacção, levada a cabo pelo julgador apenas na fase de julgamento, após recebimento da acusação, sendo as decisões proferidas sobre a matéria desprovidas de carácter ou natureza inovatória.
8°- Termos em que não deverá conhecer-se do recurso, por inverificação dos respectivos pressupostos; ou, subsidiariamente, se assim se não entender, deverá o mesmo ser julgado improcedente.'
3. Pelo despacho de fls. 264, o recorrente foi convidado a pronunciar-se sobre os obstáculos ao conhecimento do recurso suscitados pelo Ministério Público; e foi determinado que as partes fossem notificadas do seguinte parecer:
'Admitindo que se pudesse considerar este recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e não da respectiva alínea f), poderiam suscitar-se outros obstáculos ao conhecimento respectivo, para além dos que são colocados pelo Ministério Público. Assim, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, convida-se as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre os seguintes pontos:
1. Não foi oportunamente suscitada – ou seja, perante o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 e do nº 2 do seu artigo 72º – a questão de inconstitucionalidade que o recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, refere ao artigo 40º do Código de Processo Penal; de qualquer forma, não parece que o Supremo Tribunal de Justiça tenha interpretado tal preceito com o sentido que, no mesmo requerimento de interposição de recurso, o recorrente acusa de ser inconstitucional.
2. Também não foi oportunamente suscitada a questão de inconstitucionalidade que, no mesmo requerimento de interposição de recurso, o recorrente refere ao artigo 52º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. O que o recorrente afirmou na motivação de recurso para Supremo Tribunal de Justiça foi que não teria sido
'em momento algum realizada a perícia e cumprida a lei', o que geraria nulidade do acórdão nos termos da alínea a) do artigo 120º do Código de Processo Penal. Ao mesmo tempo, invocou que 'foi também violado o artigo 32º nº 1 e 5 da C.R.P., e isto porque não foi facultado ao arguido o seu direito de defesa, ou seja, não se determinou se o arguido estava capaz de se determinar e optar por uma outra conduta, e ter, em conclusão, uma ausência de discernimento, com a consequente diminuição ou mesmo isenção de ilicitude e da culpa'; e, de todo o modo, também não parece que o Supremo Tribunal de Justiça tenha interpretado tal preceito com o sentido que, no mesmo requerimento de interposição de recurso, o recorrente acusa de ser inconstitucional.
3. Finalmente, e no que toca ao nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, também não foi oportunamente invocada a inconstitucionalidade que no requerimento de interposição de recurso se lhe aponta; na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente considerou, diferentemente, que houve 'violação do postulado no artigo 374º, nº 2 do C.P.P.', tendo acrescentado:
'Violou-se ainda os princípios constitucionais do direito ao recurso do arguido, já que lhe não é permitido saber que depoimento ou que documento relevou para se considerar provado um determinado facto, e, bem assim, o artigo
210º da C.R.P., que determina a obrigatoriedade da fundamentação da decisão'.
Parece, pois, que o recorrente referiu a inconstitucionalidade que invocou à decisão, que considerou não suficientemente fundamentada, e não a qualquer norma, ou interpretação normativa.' Na resposta que apresentou, o recorrente nada disse sobre ter indicado que recorria ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro; relativamente à inconstitucionalidade que refere ao artigo 40º Código de Processo Penal, repetiu o que sustentara perante o Supremo Tribunal de Justiça e acrescentou, em síntese, que o acórdão recorrido 'é sem dúvida nulo por inconstitucional porque interpretou a determinação da prisão preventiva como acto pontual' e concluiu que considera 'que é inconstitucional a interpretação dada ao artigo 40º do CPP, no sentido de que a determinação da prisão preventiva e a manutenção da mesma por despachos subsequentes realizados pela mesma Juiz que realiza a Audiência de Julgamento, se tratam de actos pontuais'. Quanto à inconstitucionalidade que aponta ao artigo 52º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Fevereiro, disse o seguinte: 'Na verdade, pensa-se que o legislador pretendeu que fosse observado o arguido para que se determinasse o seu estado no momento da prática do facto, e foi essa extemporaneidade que foi alegada, tendo aliás sido referido que é inconstitucional a interpretação conferida ao artigo
42º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, no sentido de que basta a realização da perícia e a sua junção aos autos para o cumprimento do estatuído legalmente, devendo ser interpretado o referido artigo 52º do alegado Decreto-Lei no sentido de que deve ser realizada a perícia médica de imediato, mal surja a notícia da toxicodependência do arguido (...)'.
4. Cumpre começar por analisar se estão reunidos os pressupostos de admissibilidade do presente recurso. E a verdade é que, tendo sido interposto ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do respectivo objecto, como observou o Ministério Público nas suas alegações. O recurso previsto nesta alínea f) destina-se a conhecer da alegada ilegalidade de uma norma, nos termos e nos casos ali previstos (violação de lei com valor reforçado, por exemplo), aplicada na decisão recorrida não obstante ter sido oportunamente suscitada a questão da ilegalidade (cfr. nº 2 do mesmo artigo
70º). Ora no caso concreto o recorrente não alega a ilegalidade de norma alguma, nem invoca nenhum fundamento admissível nos termos da referida alínea f). Não pode considerar-se tratar-se de um erro de escrita, susceptível de correcção
(aliás nunca requerida), desde logo porque o recorrente foi notificado para se pronunciar sobre os obstáculos ao conhecimento do recurso suscitados pelo Ministério Público, entre os quais se contava a interposição de recurso nestes precisos termos. Ora o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente que não é possível a convolação – no caso, teria de ser oficiosa, note-se – do tipo de recurso interposto (cfr., a título de exemplo, acórdãos nºs 232/97 ou 179/2002). Diferente seria se tivesse sido requerida a correcção de um eventual erro material (cfr., por exemplo, o acórdão nº 518/98, Diário da República, II Série, de 11 de Novembro de 1998). Com efeito, não só por terem pedidos diferentes
(julgamento de ilegalidade ou de inconstitucionalidade), mas também por serem diversas as condições de admissibilidade, como se pode verificar da simples leitura do artigo 70º da Lei nº 28/82. Não pode, pois, o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso relativamente a nenhuma das questões suscitadas. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. Lisboa, 12 de Julho de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida