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Processo nº 172/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - A A, remeteu, em 15 de Março de 2001, ao Tribunal do Trabalho de Braga, de acordo com o disposto no nº 3 da Portaria nº 11/2000, de
13 de Janeiro, uma listagem relativa aos pensionistas com pensões anuais actualizadas superiores a 80.000$00 e iguais ou inferiores a 120.000$00, para efeitos de remição das pensões aí elencadas. Entre elas consta a pensão de que beneficia B, na qualidade de mãe de C, falecido em consequência de acidente de trabalho, o que deu origem aos autos nº
16/1977, existentes no 1º Juízo daquele Tribunal. A pensão anual, inicialmente fixada em 5.634$00 (10 de Janeiro de 1978), tinha, então, com início em 1 de Janeiro de 2001, o valor anual de 117.970$00, calculado nos termos do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 142/99, de 30 de Abril, em conjugação com o nº 3 daquela Portaria, entretanto actualizado pelo nº
1 do artigo 3º da Portaria nº 1141-A/2000, de 30 de Novembro. Nos referidos autos, em 24 de Maio de 2001, foi proferido despacho judicial onde se julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, a interpretação normativa do nº 1 do artigo 56º do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, com referência ao nº 1 do artigo 33º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, consistente em considerar incluídos no conceito de 'beneficiários legais', aí previsto para efeitos de remição obrigatória das pensões resultantes de acidentes de trabalho, os 'beneficiários em caso de morte' do sinistrado, de modo a verificar-se, também quanto a estes, a remição obrigatória estabelecida quanto às pensões vitalícias que 'não sejam superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão'.
Como consequência decorrente desse juízo, o Tribunal não aplicou ao concreto caso aquela norma, indeferindo a remição requerida.
1.2. - O magistrado do Ministério Público competente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional dessa decisão, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'por imperativo legal'.
2.1. - Escreveu-se na decisão recorrida, a este propósito:
'Nos termos do disposto no artº 33º. nº 1 da Lei nº 100/97, de 13/09, são obrigatoriamente remidas as pensões de reduzido montante, ‘nos termos que vierem a ser regulamentados’. A regulamentação foi feita pelo artº 56º do Dec-Lei nº 143/99, de 30/04, que impõe a remição quando as pensões ‘devidas a sinistrados e a beneficiários legais de pensões vitalícias’ não sejam superiores a seis vezes e meia a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão. Pretendeu-se com aquele artº 33º da Lei nº 100/97 diminuir a existência das
‘comummente designadas pensões de miséria’(...). Com o novo regime de acidentes de trabalho quis-se melhorar o ‘sistema de protecção e de prestações conferidas aos sinistrados em acidentes de trabalho’, como vem escrito no preâmbulo do referido Dec.-Lei nº 143/99. A questão que nos preocupa é a de saber se aquelas disposições legais, que impõem a remição da pensão, abrangem também as resultantes de acidentes de trabalho de que resulta a morte do trabalhador, atentos os efeitos extintivos da obrigação, no que se refere à pensão, resultantes do pagamento do capital de remição – cfr. artºs. 67º do Dec.-Lei nº 360/71 e 58º do Dec.-Lei nº 143/99, ‘a contrario’ –, sabendo-se, como se sabe, que as referidas pensões gozam de actualizações anuais e conhecem um aumento, pelo menos visível (de 30% para
40%), quando o cônjuge do sinistrado atinge os 65 anos de idade. Prima facie parece que, referindo-se o legislador, no nº 1 do artº 56º aos
‘beneficiários legais’, e considerado o sentido que normalmente é atribuído a este conceito, pareceria que quis abranger, de facto, também as pensões resultantes de acidentes de morte. Sem embargo, não nos parece que tenha de ser assim.
É que, se tivermos de considerar que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3 do artº 9º do Cód. Civil), então temos de concluir que as pensões de beneficiários em caso de morte somente podem ser parcialmente remíveis, nos termos do nº 2 do artº 56º, porque apenas aqui o legislador se lhes refere expressamente. Com efeito, se o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento, caso pretendesse abranger na alínea a) do nº 1 as pensões de ‘beneficiários em caso de morte’, ter-se-lhes-ia referido expressamente como o fez no nº 2, não fazendo uso de um conceito cuja definição não consta do artº 2º do referido Diploma Legal. Por outro lado, e com o devido respeito, não vemos em que o preceito legal em causa, se aplicável à presente situação, ‘melhora o sistema de protecção e de prestações’ que é a filosofia subjacente ao Dec.-Lei nº 143/99. Finalmente, cremos, o preceito legal em causa, se entendido no sentido de abranger na obrigatoriedade da remição da pensão também as pensões devidas aos beneficiários em caso de morte, viola o princípio constitucional da igualdade, consagrado o artº 13º da Constituição. Com efeito, e como vem sendo decidido pelo Trib. Constitucional, aquele princípio proíbe que se estabeleçam diferenciações de tratamento irrazoáveis
‘porque carecidas de fundamento ou justificação material bastante’ – cfr., por todos, o Ac. de 17/05/1989, in B.M.J. nº 387º, págs. 180 e segs. – e proíbe que se beneficie ou privilegie alguém em razão da sua situação económica. Ora, como se sabe, a fixação da pensão tem por base o montante da retribuição auferida pelo sinistrado – quanto mais elevada for esta retribuição, mais elevada é a pensão. Assim, parece-nos, a confessada intenção de acabar com as pensões de miséria não poderá servir de fundamento para retirar, sem outra justificação, o direito dos beneficiários mais pobres de perceber os montantes resultantes das actualizações anuais e da idade, quando perfizerem os 65 anos. Este juízo de inconstitucionalidade impede o Tribunal de aplicar aquele preceito legal à situação sub judicio(...).'
2.2. - Recebido o recurso foram, neste Tribunal, notificados para alegações o Ministério Público e a A., como requerente da medida de remição.
Apenas o magistrado recorrente alegou, assim concluindo as suas alegações:
'1º Não pode configurar-se como traduzindo a consagração de uma solução legislativa arbitrária o estabelecimento do princípio da obrigatória remição das pensões vitalícias de reduzido montante, quer delas sejam titulares os próprios sinistrados, quer outros beneficiários legais, nomeadamente no caso de morte do trabalhador.
2º Na verdade, tal solução jurídica visa facultar ao titular da pensão a disposição de um capital, susceptível de ser utilizado em aplicações mais rentáveis do que a percepção, ao longo dos anos, de uma pensão de valor manifestamente degradado e irrisório.
3º Não constituindo arbítrio ou discriminação a circunstância de – como decorrência inelutável do efeito extintivo da dita remição – o interessado ou beneficiário ficar privado da expectativa de futuras e eventuais actualizações da pensão.
4º Termos que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.'
Cumpre decidir.
II
1. - A Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, que aprovou o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, veio dispor no nº 1 do seu artigo 33º, submetido à epígrafe 'remição de pensões', que, sem prejuízo do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 17º, que não está em causa, 'são obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados'.
Ora, a regulamentação deste diploma no que respeita à reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho, foi efectivada pelo Decreto-Lei nº 143/99, citado, o qual, pronunciando-se sobre as condições de remição de pensões, estabeleceu, na alínea a) do nº 1 do seu artigo 56º (única parte do normativo que interessa reter), a obrigatoriedade de remição das pensões anuais 'devidas a sinistrados e a beneficiários legais de pensões vitalícias que não sejam superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão'.
2. - A decisão recorrida considerou, em síntese, que – presume-se – o legislador sabe exprimir-se em termos adequados, não abrangendo, intencionalmente, no âmbito da norma questionada, as pensões resultantes de acidentes por morte; de resto, não se vê de que modo a aplicação ao concreto caso da referida norma melhoraria o sistema de protecção e de prestações subjacente ao regime do Decreto-Lei nº 143/99; de qualquer maneira, a entender-se obrigatória a remição das pensões devidas aos beneficiários, em caso de morte dos acidentados, desvirtuar-se-ia o princípio constitucional da igualdade. Com efeito – observa-se – se é intenção confessada acabar com as pensões degradadas e se a fixação da pensão tem por base o montante de retribuição auferida – de modo que, quanto mais alta for a retribuição, mais elevada é a pensão – não se justifica que, sem mais, se retire aos beneficiários mais pobres o direito de perceberem os montantes resultantes das actualizações anuais e do factor idade, ao perfazerem os 65 anos.
Representar-se-ia, neste quadro, uma discriminação materialmente infundada, daí advindo o juízo desaplicativo, por inconstitucionalidade.
É uma interpretação cuja eventual correcção só compete ao Tribunal Constitucional sindicar na perspectiva de lesão de norma ou princípio constitucional.
3. - O regime aprovado pela Lei nº 100/97, relativo aos acidentes de trabalho, ao estabelecer, em matéria de remição de pensões, a remição obrigatória das pensões vitalícias de reduzido montante, como explicitamente se preceitua no citado nº 1 do artigo 33º, consentiu, no entanto, uma remição parcial das pensões correspondentes a graus de incapacidade severos
(30% ou mais), desde que a pensão sobrante assegure um mínimo de remuneração mensal ao respectivo beneficiário (nº 2 do preceito).
O artigo 56º do Decreto-Lei nº 143/99, no desenvolvimento daquela norma, veio prever, no seu nº 1, casos de remição obrigatória:
a) quanto a pensões vitalícias, devidas aos sinistrados ou aos beneficiários das pensões, de valores não superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão;
b) quanto a pensões que, independentemente do seu valor, compensem uma incapacidade reduzida, que não afecte em termos drásticos e irremediáveis a capacidade de ganho remanescente do trabalhador (quando a incapacidade permanente e parcial seja inferior a 30%).
Por sua vez, o nº 2 do artigo 56º prevê a remição parcial das pensões, se pedida pelos interessados, desde que haja prévia autorização do tribunal e a garantia de um rendimento sobrante garantido mínimo.
A filosofia subjacente é a de permitir que a compensação correspondente à pensão fixada ao trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional, não impeditivos de posterior exercício da sua actividade, possa converter-se em capital e, assim, ser aplicada porventura de modo mais rentável do que a permitida pela mera percepção de uma renda anual.
Se a via que o legislador encontrou é válida perante uma incapacidade diminuta, a que corresponda montante de pensão reduzido, já não o será em casos de maior gravidade, de modo a colocar, porventura, em causa, dada a álea inerente, a aplicação do capital. Daí o não se aceitar que, nos casos de incapacidade de trabalho fixada em maior percentagem, com natural repercussão no montante da pensão, se estabeleça uma limitação ao poder de o trabalhador pedir ou não a remição, reflectida na obrigatoriedade de a esta se proceder.
4. - O Tribunal Constitucional pronunciou-se já quanto à adequação constitucional das disposições que vedam a remição de certas pensões
'a requerimento dos pensionistas ou das entidades responsáveis', julgando-as inconstitucionais por violação das disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1,
59º, nº 1, alínea f), e 63º, nº 3, todos da lei fundamental: casos dos acórdãos nºs. 302/99 e 482/99, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de
16 de Julho de 1999 e o segundo inédito.
Considerou-se, então, que a limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, atento o diminuto quantitativo da pensão, se não revelaria mais compensador a efectivação da remição, 'redunda, verdadeiramente, na consagração de uma discriminação materialmente infundada, actuando como um obstáculo a que o sistema de segurança social proteja adequadamente [...] o direito dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidentes de trabalho ou de doença profissional [artigo 59º, nº 1, alínea f), do diploma básico]'.
Nos arestos mencionados pesou, decisivamente, a constatada limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, tendo em conta o diminuto montante da pensão, não se revelaria mais compensador efectuar a remição. Surpreendeu-se nessa limitação, enquanto materializadora de um obstáculo ao direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional, uma diferenciação irrazoável e materialmente infundada, repreensível, como tal, no plano jurídico-constitucional.
5. - A inconstitucionalidade oficiosamente suscitada não decorre de uma situação normativa semelhante à contemplada na jurisprudência constitucional citada, de modo a subsumir-se-lhe.
No caso sub judice o beneficiário da pensão não é o próprio sinistrado, uma vez que este morreu, mas poder-se-á defender que, também aqui, haverá que proceder a idêntica ponderação: se, face a um quadro em que as pensões tendem inevitavelmente a degradar-se, se consideraram inconstitucionais as normas que estabelecem 'uma limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição', justificar-se-ia também um juízo de inconstitucionalidade para uma interpretação normativa que, por morte do trabalhador, impõe a remição obrigatória das pensões, sujeitas a actualizações anuais e ajustes por idade dos beneficiários, para assim se salvaguardar a liberdade de o beneficiário correr os riscos do capital de remição, como nas decisões referidas.
6. - A jurisprudência mencionada pronunciou-se sobre a proibição de remir, nas circunstâncias legalmente estatuídas que foram julgadas inconstitucionais. Como tal se representou a limitação do poder de o trabalhador ponderar se não lhe seria mais vantajoso optar pela efectivação da remição, considerando o valor diminuto da pensão em causa, o que, de outro modo, consagraria como discriminação materialmente infundada com eventual reflexo no direito à justa reparação.
No entanto, o que está ora em causa respeita à imposição legal da remição das pensões devidas por morte do trabalhador. Ou seja, naqueles casos tiveram-se por inconstitucionais normas consideradas como estatuindo uma limitação do poder do trabalhador pedir ou não a remição; agora discute-se uma interpretação normativa que impõe, obrigatoriamente, a remição de pensões devidas por morte dos trabalhadores acidentados, independentemente das bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição e das tabelas práticas desses capitais de remição.
A norma em sindicância, com efeito, assenta na actualização do valor presumivelmente recebido, de harmonia com as bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição e, bem assim, com as respectivas tabelas práticas, fixadas por portaria do Ministério das Finanças, de acordo com o artigo 57º do diploma. E a lógica que lhe subjaz conforta a conversão em capital de pensões de valor anual reduzido de modo a permitir aos beneficiários, sem prejuízo da álea inerente, que assim se obtenha uma aplicação mais rentável e útil do valor percebido.
Não se vislumbra, nesta perspectiva, que se encontre violado o princípio da igualdade. Como observa o Ministério Público, nas suas alegações, o regime jurídico em causa 'não traduz seguramente qualquer
‘discriminação’ dos beneficiários da pensão, no caso de morte, e do próprio sinistrado: é que a privação de futuras e eventuais actualizações da pensão, como consequência da respectiva remição, é inelutável, funcionando quanto a todos os sinistrados ou beneficiários que dela são titulares, e tendo como contrapartida a possibilidade de o interessado (privado de tal actualização potencial) dispor de imediato de um capital (de valor bem mais significativo que o correspondente às ‘atomísticas’ prestações parcelares que fossem sendo vencidas ao longo dos anos)'. Na verdade, se a presunção da maior utilidade para o beneficiário não valerá, eventualmente, para o sinistrado, em função da sua própria incapacidade, já não pode valer para um beneficiário que, por definição, não é o sinistrado.
7. - Conclui-se, em face do exposto, no sentido de não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 56º do Decreto-Lei nº
143/99, de 30 de Abril, na precisa dimensão que deu lugar à sua não aplicação ao concreto caso.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Lisboa, 26 de Fevereiro de 2002- Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeisa