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Processo n.º 102/02
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório A Magistrada do Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Aviz veio, em 10 de Outubro de 2001, interpor o presente recurso obrigatório, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do M.mº Juiz de Direito desse Tribunal de 24 de Setembro do mesmo ano, proferido em acção declarativa de simples apreciação sob a forma de processo sumário, pelo qual as normas dos artigos 238º, n.ºs 1 e 3 e 238º-A, n.º 4, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto e pela Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro, foram julgadas materialmente inconstitucionais por violação do disposto no artigo 20º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República, recusando-se a sua aplicação, e, em consequência, conforme requerido pelo Autor, ordenando-se a repetição da citação da Ré M...,
'aplicando o disposto na anterior redacção do artigo 239º, n.º 1, do Código de Processo Civil.' O recurso foi admitido em 16 de Outubro de 2001, para 'subir com o primeiro que depois dele haja de subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo.' Conforme certidão de fls. 44 dos autos, a demandada foi citada pessoalmente, em cumprimento de carta precatória, em Coruche, no dia 6 de Novembro de 2001, não tendo contestado a acção. Proferida sentença, que, considerando confessados os factos articulados pelo demandante, julgou procedente a acção, em 21 de Dezembro do mesmo ano, sem que dela tenha sido interposto recurso, o Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Aviz veio declarar 'que continua a pretender que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional suba para posterior apreciação (...)'. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho nos seguintes termos:
'Atenta a função instrumental do recurso de constitucionalidade, e considerando a certidão de citação constante de fls. 44, a utilidade do presente recurso oferece dúvidas. Deixando-se registada a dúvida, no presente momento, quanto a esta questão prévia – da qual recorrente e recorrido ficam notificados para, querendo, sobre ela se pronunciarem –, prossiga o processo, para alegações.' Apenas o Ministério Público produziu alegações, que concluiu do seguinte modo:
'1 – Não há interesse processual na apreciação de um recurso de constitucionalidade retido, quando o prosseguimento dos autos conduziu ao suprimento da inconstitucionalidade das normas atinentes à citação simplificada do réu, mediante carta simples, tendo este – face à sua citação pessoal – permanecido numa situação de revelia, geradora de um irremediável efeito cominatório semi-pleno.
2 – É inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais e da regra do processo equitativo, o regime constante dos artigos 238º, n.ºs 1 e 3 e
238º-A, n.º 4, do Código de Processo Civil, que permite – numa acção em que controverte a propriedade de bens imóveis – considerar consumada a citação do réu, mediante simples remessa de ‘carta simples’ para os vários domicílios que aleatoriamente foi possível localizar através da consulta das bases de dados referenciadas em tais preceitos legais.
3 – Onerando-o com a prova de facto negativo, consequente à presunção de efectivo recebimento e cognoscibilidade de teor da dita citação – e sujeitando-o ao gravoso efeito cominatório semi-pleno, inerente a uma situação de revelia.
4 – Termos em que – a entender-se que subsiste interesse processual no conhecimento do recurso – deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.' Cumpre decidir. II. Fundamentos O objecto do presente recurso é a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 238º, n.ºs 1 e 3 e 238º-A, n.º 4, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto e pela Lei n.º
30-D/2000, de 20 de Dezembro. É a seguinte a redacção de tais normas:
'Artigo 238.º
(Frustração da citação por via postal)
1 – No caso de se frustrar a citação por via postal, a secretaria obterá, oficiosamente, informação sobre a residência, local de trabalho ou, tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade, sobre a sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de Viação.
(...)
3 – Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando, para o qual se endereçou a citação, não coincidir com o local obtido nas bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 1, ou se nestas constarem várias residências, locais de trabalho ou sedes, procede-se à citação por via postal simples para cada um desses locais. Artigo 236.º-A Citação por via postal simples
(...)
4 – Recebida a comunicação prevista no número anterior, observar-se-á o seguinte: a) Se a citação ainda não tiver sido efectuada, será realizada mediante o envio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para o domicílio ou sede entretanto indicado pelo autor; b) Se a citação tiver sido realizada em data posterior à alteração do domicílio ou da sede do citando, devidamente comunicada ao abrigo do n.º 2, e o citando não tiver intervindo no processo, o juiz ordenará a repetição da citação nos termos previstos na alínea precedente.' Estas normas prevêem, pois, a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, se proceder à citação mediante o envio de carta simples, tendo sido a sua recusa de aplicação, por inconstitucionalidade material, que levou a que na decisão recorrida se ordenasse a solicitação, por carta precatória, da citação pessoal da Ré. Tal recusa de aplicação foi, pois, ratio decidendi para o tribunal a quo. Acontece, porém, que, como se deixou registado no despacho de alegações, e refere o Ministério Público neste Tribunal, há que duvidar da utilidade do presente recurso, que ficou retido no tribunal a quo até ao momento em que foi proferida a decisão a julgar procedente a acção. Na verdade, os autos prosseguiram, foi determinada a citação pessoal, tal citação foi efectuada, e a Ré, mesmo depois de citada pessoalmente, não contestou a acção, tendo o tribunal retirado de tal falta de contestação o efeito cominatório consistente em considerarem-se confessados os factos articulados pelo Autor. Como bem refere o Ministério Público nas suas alegações,
'(...) a confirmação do juízo de inconstitucionalidade das normas que haviam permitido a verdadeira citação ‘ficta’, constante de fls. 22/24, deixaria perfeitamente incólume a decisão recorrida, já que apenas determinaria a feitura de uma regular citação, já efectuada nos autos. E se, porventura, o Tribunal Constitucional revogasse o juízo de inconstitucionalidade constante de tal despacho, tal apenas implicaria a subsistência do efeito cominatório semi-pleno, que acabou por ocorrer na sequência da revelia, face à ‘segunda – e inquestionavelmente válida – citação’ da ré' Ou seja: por o presente recurso apenas ter subido depois de proferida a decisão a julgar procedente a acção, e entretanto se ter procedido a uma citação pessoal da Ré, que não veio contestar a acção, qualquer decisão que agora o Tribunal Constitucional proferisse sobre a constitucionalidade das normas relativas à citação postal anterior, cuja aplicação foi recusada, não teria a virtualidade de se projectar utilmente no processo, pois sempre subsistiria o efeito cominatório resultante da falta de contestação da acção pela Ré, após citação pessoal, e, consequentemente, a decisão final que veio a julgar procedente a acção (e da qual, aliás, não foi interposto recurso). Atendendo à função instrumental do recurso de constitucionalidade não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso.
Lisboa, 24 de Abril de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa