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Processo n.º 335/12
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Provedor de Justiça veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, na parte em que, com a salvaguarda devida à situação dos nacionais de outros Estados membros da União Europeia, bem como do disposto em convenções ou outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional, reserva a cidadãos portugueses o pedido de inscrição marítima, imprescindível para o exercício de atividade profissional descrita no artigo 2.°, n.º 1, do mesmo diploma, por violação das normas constantes dos artigos 15.°, n.os 1 e 2, 18.°, n.º 2, e 165.°, n.º 1, al. b), todos da Constituição, com os seguintes fundamentos:
« 1. Invocando a sua competência legislativa em matérias não reservadas à Assembleia da República, prevista no artigo 198.°, n.º 1, alínea a), da Lei Fundamental, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro (diploma alterado, por último, pelo Decreto-Lei n.º 226/2007, de 31 de maio).
2.O referido Decreto-Lei «estabelece as normas reguladoras da atividade profissional dos marítimos, incluindo as relativas: à sua inscrição marítima e à emissão de cédulas marítimas; à sua aptidão física; classificação, categorias e requisitos de acesso e funções a desempenhar; à sua formação e certificação, reconhecimento de certificados, recrutamento e regimes de embarque e de desembarque e à lotação de segurança das embarcações» (artigo 1.°, n.º 1, do diploma em apreço).
3. Nos termos do n.º 2 do normativo acabado de citar, a atividade profissional dos marítimos, objeto de regulação pelo Decreto-Lei n.º 280/2001, «é exercida a bordo das embarcações de comércio, de pesca, rebocadores, de investigação, auxiliares e outras do Estado».
4. O corpo legislativo assim edificado em tomo da profissão marítima assume-se, conforme vem expresso no preâmbulo do diploma em causa, alinhado com os compromissos decorrentes da regulação internacional na matéria, adotada sob a égide da Organização Marítima Internacional e da União Europeia, nomeadamente quanto às exigências de formação mínima, tempo de embarque, compartimentação e funções das categorias do pessoal marítimo.
5. Com referência à sistemática do Decreto-Lei n.º 280/2001, a norma impugnada insere-se na Secção 1 do Capítulo II, este sob a epígrafe “Inscrição marítima e cédula de inscrição marítima”, aquela Secção especificamente versando sobre a matéria da inscrição marítima.
6. Nestes termos, a inscrição marítima «é o ato exigível aos indivíduos de ambos os sexos que pretendam exercer, como tripulantes, as funções correspondentes às categorias dos marítimos ou outras funções legalmente previstas», segundo o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do diploma governamental em apreço.
7. Devendo a inscrição marítima ser requerida junto dos «órgãos locais do Sistema de Autoridade Marítima (SAM) competentes», os indivíduos que a efetuem «tomam a designação de “inscritos marítimos” ou, abreviadamente, de “marítimos”» (artigos 4.°, n.º 1, e 3.°, n.º 1, respetivamente. do Decreto-Lei n.º 280/2001).
8. Por seu turno, o exercício da atividade profissional dos marítimos apenas se encontra franqueada aos «inscritos marítimos habilitados com as respetivas qualificações profissionais e detentores dos respetivos certificados», conforme estatui o n.º 2 do artigo 3.° do mesmo diploma.
9. Neste enquadramento, dispõe o artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001 [sob a epígrafe “Pedido de inscrição marítima”] o seguinte:
“Podem requerer a inscrição marítima os indivíduos maiores de 16 anos de nacionalidade portuguesa ou de um país membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional”.
I. Da violação do princípio da equiparação
10. Em face do exposto e no que sobressai para o presente pedido, resulta da parte relevante do preceito acabado de citar que, salvaguardado o círculo dos nacionais dos Estados membros da União Europeia, bem como excecionados os casos que possam estar abrangidos pelas situações previstas no segmento final da mesma norma, o pedido de inscrição marítima encontra-se reservado a cidadãos portugueses.
11. A valoração, nestes termos, do critério da nacionalidade no quadro do direito de ingresso numa atividade profissional, como a atividade dos marítimos, remete para a temática do estatuto constitucional dos estrangeiros e apátridas e para a consideração, nesta sede, do princípio da equiparação, por força do qual, na ordem jurídica nacional e salvaguardadas admitidas exceções, o gozo de direitos e a sujeição a deveres não dependem da cidadania portuguesa.
12. Com efeito, a questão do reconhecimento de direitos a estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal vem tratada no artigo 15.° da Constituição, preceito que acolhe, como é unanimemente aceite, a dimensão universalista e de amizade para com os direitos humanos que nutre o texto constitucional e, desde logo, também refletida nos princípios da universalidade e da igualdade que enformam o regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais (artigos 12.° e 13.° da Constituição).
13. Na doutrina constitucional, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que «[o] preceito do n.º 1 [do mencionado artigo 15.°] inscreve-se na orientação mais avançada quanto ao reconhecimento de direitos fundamentais a estrangeiros e apátridas que se encontrem ou sejam residentes em Portugal» (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. 1, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 356).
14. No comentário dos mesmos Autores, «[a] Constituição, salvo as exceções do n.º 2, não faz depender da cidadania portuguesa o gozo dos direitos fundamentais bem como a sujeição aos deveres fundamentais. O princípio é a equiparação dos estrangeiros e apátridas com os cidadãos portugueses. (...) É o que se chama tratamento nacional, isto é, um tratamento pelo menos tão favorável como o concedido ao cidadão do país, designadamente no que respeita a um certo número de direitos fundamentais» (ibid., pp. 356-357).
15. Não revestindo o princípio da equiparação natureza absoluta, é a própria Constituição que estabelece, no n.º 2 do artigo 15.°, exceções ao princípio em causa, as quais podem agrupar-se nos seguintes moldes: (a) direitos políticos; (b) exercício das funções públicas que não tenham caráter predominantemente técnico; (c) outros direitos e deveres reservados pela Constituição exclusivamente a cidadãos portugueses; (d) direitos e deveres reservados pela lei exclusivamente a cidadãos portugueses.
16. Com relevo para a situação de tratamento inigualitário aqui em causa, importa atender a esta última exceção, i. e., à possibilidade que o legislador tem de reservar determinados direitos a cidadãos nacionais ou, de outro modo dito, à reserva de lei restritiva expressamente consagrada pelo legislador constituinte na matéria em apreço.
17. A este propósito, recordo que J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ainda nas suas anotações ao artigo 15.º da Constituição (ibid., p. 358), balizam o exercício de um tal poder de determinação legislativa de exceções ao princípio da equiparação, mediante o recurso à fórmula seguinte:
A lei não é livre no estabelecimento de outras exclusões de direitos aos estrangeiros. Sendo a equiparação a regra, todas as exceções têm de ser justificadas e limitadas devendo observar os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade quanto à restrição de direitos constitucionais, positivados na Constituição, ou legais, consagrados em lei ordinária (cf. Ac. TC n.º 345/02). Aliás, as exceções só podem ser determinadas através da lei formal da AR [art. 165.º, n.º1, al.b)], ela mesmo heteronomamente vinculada aos princípios consagrados neste artigo (sublinhados aditados).
18. Em similar linha discursiva se situa Jorge Miranda (in MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 133), para quem o princípio da equiparação de direitos se aplica «aí onde não sejam decretadas expressamente exclusões ou restrições de direitos dos estrangeiros e estas não podem ser tais (ou tantas) que invertam o princípio», acrescentando:
(...) Só quando haja um fundamento racional pode um direito atribuído a portugueses ser negado a estrangeiros (...). Por outra banda, as exclusões (ou as reservas de direitos aos portugueses) só podem dar-se por via da Constituição ou da lei. Quando não seja a Constituição a estipulá-las, tem de ser a lei, e lei formal; (...) donde, uma verdadeira reserva de lei, que é também uma reserva de competência da Assembleia da República quando se trate de direitos, liberdades e garantias [artigo 165.°, n.º 1, alínea b)].
19. Também em sintonia com a doutrina vertida, a jurisprudência constitucional vislumbra no artigo 15.° da Constituição «o módulo constitucional específico da igualdade de direitos entre os cidadãos portugueses e os demais» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 345/2002).
20. Assim, com suporte no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/2002, é possível retirar dessa jurisprudência, conforme ficou expresso no citado Acórdão, «as seguintes ideias centrais, que não se vê razão para abandonar:
- O artigo 15º, n.º 1 da Constituição, garantindo aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal os direitos e deveres do cidadão português, consagra o princípio do tratamento nacional;
- Embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portuguesas (artigo 15.º, n.º 2, in fine) não pode fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação;
- Os direitos referidos no artigo 15.°, n.º 1, da Constituição não são apenas os direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias ou os direitos constitucionalmente garantidos, mas também os consignados aos cidadãos portugueses na lei ordinária».
21. Em face da contextualização doutrinária e jurisprudencial que antecede e sem embargo de a Lei Fundamental autorizar, conforme referido, as exceções ao princípio da equiparação previstas no n.º 2 do artigo 15.°, é inequívoco que a solução normativa vertida no n.º 2 do artigo 4.° do Decreto-Lei n.º 280/2001 viola o princípio da equiparação, no segmento em que afasta do pedido de inscrição marítima os nacionais de países terceiros que não possam, para esse efeito, beneficiar de ato de direito internacional ou da União Europeia aplicável.
22. Assim é, efetivamente, porquanto não se vislumbra fundamento material bastante para a excessiva conceção protecionista que a norma impugnada encerra, erigindo-se uma solução discriminatória dos nacionais de países terceiros, no que ao acesso à atividade profissional em causa concerne.
23. Repare-se que, quanto ao círculo de não nacionais excluídos, ficam, desde logo, afastados todos aqueles cidadãos de países terceiros que residam em Portugal e possam legitimamente ter a pretensão de adquirir no nosso país a habilitação e formação necessárias para o exercício da atividade profissional de marítimo, sendo certo que, em virtude do condicionamento legislativo vigente, embatem no pré-requisito da nacionalidade, inviabilizador de um pedido de inscrição marítima junto das autoridades portuguesas, esta última, por seu turno e tal como legislativamente conformada no art.º 2.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 280/2001, condição sine qua non do ingresso no exercício das funções correspondentes.
24. Atente-se, outrossim, que, por hipótese, não tendo estes estrangeiros residentes, nacionais de países terceiros, obtido já noutro país as competências legalmente exigidas para o exercício da atividade profissional em causa, as situações em causa permanecem igualmente fora do sistema de reconhecimento de certificados, tal como regulado no Capítulo VI do Decreto-Lei n.º 280/2001, em domínio normativo que, de resto, não deixa de consubstanciar também a transposição de diretivas comunitárias.
25. Assim sendo, a solução que flui do artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001 — e independentemente das condições que, a jusante, regulem o recrutamento dos marítimos para prestação de serviço a bordo -, representa por si só um obstáculo dificilmente ultrapassável para aqueles cidadãos não nacionais e choca muito particularmente, numa perspetiva de integração dos imigrantes, no tratamento que confere a estrangeiros — alguns de terceira geração — que escolheram Portugal como país de acolhimento, aqui residindo inclusive há tempo suficiente para evidenciar, se necessário for, uma medida razoável de conexão com o nosso país.
26. Isto, porquanto, não obstante o artigo 15.°, n.º 1, da Constituição respeitar aos estrangeiros e apátridas «que se encontrem ou residam em Portugal», é admissível, em abstrato e no plano substantivo, que o princípio da equiparação não opere sempre de pleno ou em termos maximalistas relativamente aos que apenas se encontrem em território nacional, como já admitiu o próprio Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 423/2001.
27. Sem que, em face daquele binómio, esteja em causa discutir no presente pedido a maior ou menor bondade de um regime diferenciado para estrangeiros residentes e para os que apenas se encontrem em Portugal — pois não é disso que se ocupa a norma contestada —, sempre se adiantará que qualquer que seja a opção do legislador nesta matéria, a consagração de um regime diferenciado deverá igualmente estar sempre justificado à luz dos requisitos constitucionais das restrições de direitos, liberdades e garantias (neste sentido, precisamente, Jorge Pereira da Silva, in MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada. Tomo 1, 2. ed., Coimbra: Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, pp. 280-281).
28. Faço ainda notar que não curamos, para efeitos do presente pedido, da atividade exercida a bordo de embarcações integradas em serviços do Estado utilizadas em atividades de policiamento ou fiscalização, na medida em que estejam em causa funções públicas em que predomine o exercício de prerrogativas de autoridade pública — dimensão que cairia sob a alçada da previsão, na parte excecionatória pertinente, do aludido n.º 2 do artigo 15.° da Constituição; muito menos está em causa a atividade a bordo de embarcações pertencentes à Marinha, atenta, desde logo, a cláusula de exclusão dos não nacionais do serviço nas Forças Armadas (artigos 15.°, n.ºs 2 e 3, e 275.°, n.º 2, da Constituição).
29. Assim sendo e com a clarificação que antecede, o que sobressai na norma do artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, é a circunstância de o critério da nacionalidade, aí valorado de per se, vir erigido em autêntica condição de acesso à atividade profissional dos marítimos, pelo que a intervenção do legislador governamental, em violação do princípio da equiparação, revela outrossim uma limitação à liberdade de escolha de profissão, também ela recebendo dignidade jusfundamental no artigo 47.°, n.º 1, da Constituição e beneficiando do regime jurídico-constitucional próprio dos direitos, liberdades e garantias, por força do disposto no artigo 17.° da Lei Fundamental.
30. Sendo certo que do âmbito de proteção da liberdade de escolha de profissão relevam, justamente, em termos jurídico-constitucionalmente conformados, o direito de escolha e o direito de acesso ou ingresso.
31. E sem que o texto constitucional tenha reservado a liberdade fundamental em causa exclusivamente a cidadãos portugueses, a mesma vê aqui estreitado o seu âmbito subjetivo, por força da exclusão dos nacionais de países terceiros nos termos que a norma questionada encerra, o que consubstancia uma autêntica restrição de direitos operada pelo legislador, no caso governamental.
32. Seja como for e de harmonia com o entendimento do Tribunal Constitucional, é aceite que o direito reconhecido no n.º 1 do artigo 47.° da Constituição não tem de ser “diretamente tido em conta” (como se expressou o mesmo Tribunal no Acórdão n.º 345/2002), para efeitos do controlo de constitucionalidade a que o presente pedido vem dirigido.
33. Na verdade, no citado Acórdão, debruçando-se sobre norma que excluía da admissão a concurso de provimento para pessoal docente, da carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário, todos aqueles cidadãos não nacionais que não se enquadrassem na respetiva previsão normativa, o Tribunal Constitucional considerou o seguinte (podendo ainda, em linha cônsona, consultar-se os Acórdãos n.º 423/2001 e 72/2002):
nem o princípio geral da igualdade, consagrado n[o] artigo 13.º, nem a garantia genérica de uma igual possibilidade de acesso ao exercício da função pública, que o n.º 2 d[o] artigo 47.° reconhece a “todos os cidadãos”, têm, aqui, que ser diretamente tidos em conta: tais preceitos e princípios subjacentes são, no caso, “consumidos” pelos princípios acolhidos no artigo 15.º do texto constitucional, mormente nos seus n.º 1 e 2 (...) (sublinhado aditado).
34. Neste enquadramento, confirmado que o princípio da equiparação constitui o parâmetro com referência ao qual a presente questão de constitucionalidade deve ser aferida, há que atender ao disposto no segmento final do n.º 2 do artigo 15.º, o qual franqueia, como já referido, uma intervenção do legislador de sentido restritivo do tratamento nacional consagrado no n.º 1 do mesmo preceito.
35. Ora, a este propósito, apresenta-se igualmente clarividente o que ficou já expresso no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 340/95, ao debruçar-se sobre as exceções ao princípio geral da equiparação franqueadas pela Constituição, expressou o entendimento seguinte:
Relativamente às exceções a estabelecer pelo legislador ordinário é seguro que este se acha limitado por diversos parâmetros condicionadores. Para além de a sua determinação dever constar de lei formal da Assembleia da República, devem as leis que reservem “direitos, liberdades e garantias” para os cidadãos portugueses, com exclusão dos “estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal” considerar-se como verdadeiras leis restritivas para efeitos do artigo 18.º da Constituição.
36. Significa isto que quaisquer exceções legislativamente estabelecidas ao princípio da equiparação têm de ser justificadas e limitadas, com observância dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade quanto à restrição de direitos, conforme exigências postas no n.º 2 do artigo 18.º da Lei Fundamental.
37. A esta luz, se dúvidas não podem colocar-se a respeito da inclusão da liberdade de escolha de profissão na esfera de proteção do princípio da equiparação, atento o «âmbito alargado quanto [a este] princípio (...), para o qual a doutrina e a jurisprudência apontam, e que é justificado pela ideia essencial de um universalismo de direitos característico da igualdade no Estado de direito» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 423/2001), não se vislumbra a subsistência de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, ou, em qualquer caso, de interesse público relevante, que justifiquem a medida da contração daquele princípio operada no artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001 relativamente à atividade profissional dos marítimos.
38. Assim, em face do princípio do respeito do direito internacional, por um lado, bem como do enquadramento constitucional da participação de Portugal na União Europeia, por outro, desconhece-se, em primeiro lugar, qualquer exigência internacional ou, especificamente, da União Europeia no sentido da imposição do referido critério de nacionalidade para efeitos de inscrição marítima — quanto à União Europeia, outra que não seja a salvaguarda devida à liberdade que qualquer nacional de um Estado membro da União tem «de procurar emprego, de trabalhar, de se estabelecer ou de prestar serviços em qualquer Estado-Membro», de acordo com artigo 15.°, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e que o disposto no artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001 já acautela.
39. Em segundo lugar, não é adequada a justificar a restrição decorrente do artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001 a circunstância de a chamada cédula de inscrição marítima, emitida com base na inscrição homónima, poder configurar documento de identificação do marítimo para efeitos da Convenção n.º 108 da Organização Internacional do Trabalho (OIT’) relativa aos documentos de identificação dos marítimos, de 1958, que Portugal ratificou (artigo 9.° do Regulamento relativo à inscrição marítima e emissão da cédula de inscrição marítima, constante do Anexo 1 ao Decreto-Lei n.º 280/2001 e deste fazendo parte integrante).
40. Isto porquanto, à luz do disposto no n.º 2 do artigo 2.° da citada Convenção da OIT a passagem do referido documento de identificação a um marítimo não nacional «empregado a bordo de navio registado no (...) território [do Estado membro emissor] ou inscrito em agência de colocação do seu território», para além de depender de requerimento do interessado, vem consagrada como uma faculdade — e não como uma obrigação — do Estado vinculado pela Convenção em causa, como bem evidencia o recurso do legislador internacional, para esses casos, à fórmula linguística «o Estado Membro (...) poder passar (...) um documento de identificação de marítimo (...)».
41. Acresce, ainda, na lógica da Convenção n.º 108 da OIT, a circunstância de o Estado membro emissor do documento de identificação respeitante a um marítimo estrangeiro «não fica[r] obrigado a declarar nesse documento a nacionalidade do seu possuidor», não sendo, «[a]liás, tal declaração (...) prova concludente da sua nacionalidade» (n.º 4 do artigo 4.° da Convenção).
42. Estas determinações normativas — que são as que atualmente vinculam o Estado português — franqueiam a salvaguarda dos interesses do Estado no quadro da existência de vínculos de cidadania e, especificamente, da problemática em torno do estatuto pessoal dos indivíduos não nacionais, na medida em que, ainda que os admita a inscrição marítima, não fica, nesses casos, obrigado a emitir a cédula como documento de identificação do marítimo (dito de outro modo, pode sempre reservar esse documento de identificação aos cidadãos portugueses), nem decorrem da sua eventual emissão quaisquer efeitos jurídicos em termos da determinação da lei pessoal do requerente ou sequer de prova, com a força de fé pública, da veracidade das declarações e documentos colhidos junto do interessado a respeito da respetiva nacionalidade.
43. Sem embargo de o Estado português não se encontrar, à data da elaboração do presente pedido, vinculado à Convenção n.º 185 da OIT relativa aos documentos de identificação dos marítimos (revista), de 2003 — instrumento internacional que, como decorre da sua própria denominação, procede à revisão da Convenção de 1958 — não chegaríamos a distinta conclusão no plano em análise, se, por hipótese, Portugal viesse a ratificar a referida Convenção internacional. Assinale-se, a este propósito e ao nível comunitário, que a Decisão 2005/367/CE do Conselho, de 14 de abril de 2005, autoriza os Estados membros a ratificar, no interesse da Comunidade Europeia, a Convenção n.º 185 da OIT, na base da consideração, designadamente, de que certos artigos da mesma «integram a competência comunitária em matéria de vistos», e de que esta «convenção constitui uma contribuição valiosa para o reforço da segurança no setor marítimo a nível internacional e para a promoção de condições de vida e de trabalho dignas para os marítimos, sendo por conseguinte desejável que as suas disposições sejam aplicadas o mais rapidamente possível», no enunciado preambular da citada Decisão.
44. Na verdade, assente, entre outros, sobre um conjunto de propostas referentes a um sistema mais seguro de identificação dos marítimos, a Convenção n.º 185 da OIT cinge o poder de emissão de um documento de identificação do marítimo, no que concerne aos marítimos não nacionais do Estado membro requerido, àqueles a que tenha sido concedido o estatuto de residente permanente no respetivo território.
45. Outrossim, não se perdendo de vista, na mesma Convenção, o imperativo de acautelar a segurança necessária no procedimento de emissão dos documentos de identificação em causa, salienta-se a incorporação, naquele instrumento internacional, de preceitos dirigidos a que, na base da emissão do documento em causa, esteja a prova da nacionalidade ou da residência permanente do requerente, bem como, especialmente nos casos de nacionalidade plúrima, ou de estatuto de residente permanente, a garantir que não seja emitido mais do que um documento de identificação de marítimo.
46. Em face do exposto e caso o Estado português pondere ratificar a Convenção n.º 185 da OIT, nada nesta Convenção permite justificar a exclusão de cidadãos não nacionais do pedido de inscrição marítima, tal como determinada pelo legislador na norma impugnada, já que, para esses cidadãos, a emissão de um documento de identificação do marítimo continua a configurar-se como um poder dos Estados, e não como uma obrigação, estando, de resto, por força da mesma Convenção confinada aos marítimos com estatuto de residente permanente e rodeada das maiores cautelas, impulsionadas estas pelas novas tecnologias, no tratamento dos requerimentos e emissão dos documentos de identificação em causa.
47. Passando para outro plano de análise, não releva igualmente para justificar a limitação decorrente do artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, o interesse legítimo quanto a um elevado grau de formação e qualificação dos marítimos, associado que está também às exigências da segurança marítima, da salvaguarda da vida humana no mar e da preservação do meio marinho.
48. Na verdade, os requisitos de formação e qualificação profissional no domínio marítimo, integram, desde logo, a montante, o conjunto dos requisitos necessários, a preencher pelos indivíduos que pretendam fazer a sua inscrição marítima, conforme vem disposto no Regulamento relativo à formação e à certificação dos marítimos, constante do Anexo IV ao Decreto-Lei n.º 280/2001 e do qual é igualmente parte integrante.
49. Aliás, sob a ótica das competências exigíveis para o exercício da atividade profissional dos marítimos, trata-se de domínio objeto de forte regulação internacional — dirigida, afinal, a uma tendencial uniformização na matéria — para além de ser à Administração que compete a sua verificação face aos critérios legalmente definidos, seja no domínio do reconhecimento de certificados obtidos fora de Portugal, seja no plano da própria formação ministrada no nosso país.
50. Assim sendo, na medida em que a comprovação da habilitação exigida para a categoria de marítimo pretendida é ela própria pré-requisito do pedido de inscrição marítima, não se vislumbra por que razão, uma vez adquirida essa formação no nosso país e comprovando a respetiva titularidade a aptidão profissional para o exercício da atividade em causa, não se franqueie a um não nacional, que não se enquadre em quaisquer das situações previstas na norma a sindicar, a obtenção da inscrição marítima.
51. Ainda em sede de competências e no que especificamente concerne aos aspetos relacionados com a língua e eventuais dificuldades de comunicação a bordo, numa matéria que é crucial sob a perspetiva da segurança marítima, a questão não suscita igualmente grandes obstáculos, uma vez que, a par do que sejam as orientações internacionais quanto ao uso de uma língua de trabalho a bordo, entre nós e no tocante ao embarque de marítimos de países terceiros em embarcações nacionais, nos casos em que o mesmo está autorizado, a lei estabelece já o seu condicionamento «à posse de conhecimentos da língua portuguesa sempre que esta seja adotada como língua de trabalho a bordo» (artigo 3.°, n.º 6, do Regulamento relativo ao recrutamento e ao embarque e desembarque dos marítimos, constante do Anexo V ao Decreto-Lei n.º 28012001, do qual faz parte integrante).
52. Em suma, neste plano, não se vê que, uma vez preenchidos os requisitos exigidos, nomeadamente respeitantes à formação necessária e às competências linguísticas adequadas, os nacionais de países terceiros não possam ingressar na atividade profissional marítima em condições idênticas aos cidadãos portugueses.
53. Por último, por muito ponderoso que possa afigurar-se o interesse da prevenção da imigração ilegal num domínio com as características próprias da atividade marítima, há que, todavia, questionar se uma medida restritiva da liberdade de escolha da profissão, a qual frustra o tratamento igualitário preconizado, como regime regra, pelo princípio da equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, se afigura apropriada, de per se, à prossecução de um tal fim, quando é certo que engloba desde logo, no seu efeito jurídico excludente, nacionais de países terceiros, cuja situação em face do regime jurídico de entrada e permanência em território nacional não suscite quaisquer dúvidas.
54. Duvidando, deste modo, de tal conformidade, sempre se adiantará que ainda que se admitisse, por hipótese, a adequação da medida, a mesma claudica sob o ponto de vista da sua exigibilidade material e pessoal, porquanto pode a prevenção da imigração ilegal ser, neste caso, alcançada mediante meios menos gravosos para os estrangeiros afetados, por forma a permitir, mais generosamente, estender o tratamento igualitário reclamado a outros cidadãos não nacionais, pelo menos no respeitante ao círculo dos estrangeiros residentes e, por conseguinte, sem a ablação, pelo menos para esse universo de pessoas, da liberdade fundamental em causa.
55. A este propósito, confirmando o ponto de vista expresso quanto à reprovação da norma ora criticada no teste da proporcionalidade, pode invocar-se, uma vez mais, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, conforme expressa no já citado Acórdão n.º 345/2002:
Obviamente, o estatuto constitucional do estrangeiro admite exceções ao princípio da equiparação (...).
Não obstante, esses desvios constituem restrições a tal princípio e, nessa medida — o que é um aspeto fundamental do regime dos direitos, liberdades e garantias — encontram-se as mesmas submetidas ao regime do n° 2 do artigo 18° da Constituição, sendo, como tal, limitadas ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Na verdade, o princípio da proporcionalidade que aqui se surpreende exige — como se retira do longo acervo da jurisprudência constitucional nesta matéria — que as medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, ou seja, para a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessários para alcançar esses fins, que não poderiam ser atingidos com meios menos gravosos, mais se exigindo que os meios restritivos e os fins obtidas se situem numa “justa medida”.
56. A esta luz, a conceção protecionista que flui do artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei 280/2010 consubstancia uma contração ao princípio da equiparação, numa medida restritiva que vai para aIém do justo e do necessário, afigurando-se excessiva.
57. E não se contra-argumente, em face do condicionamento criticado, disporem os estrangeiros, aos quais não seja permitido efetuar pedido de inscrição marítima junto das autoridades nacionais, de alternativa, a qual seja de desencadear, noutro país — como, por exemplo, no seu país de origem — um processo de reconhecimento da formação legalmente exigida para o exercício da atividade profissional dos marítimos, obtida em Portugal.
58. Não procede semelhante argumento, porquanto, para além da onerosidade que representa, para os interessados, uma tal alternativa, a mesma consubstancia hipótese cuja resposta fica, em última instância, na dependência da legislação e das autoridades do próprio país em que se pretenda obter o referido reconhecimento.
59. Novamente, não se vê como nacionais de países terceiros, ainda que possam fazer aqui a sua formação marítima, não tenham, no país que os acolhe, a possibilidade de fazer a sua inscrição marítima, ficando dependentes de um eventual processo de reconhecimento da sua formação noutro país e sem garantias, à partida, de lograr obter o respetivo deferimento.
60. Por outro lado, não se contra-argumente ainda que sempre sobeja, relativamente àqueles estrangeiros que reúnam os respetivos requisitos legais, a possibilidade de concretização da opção pela cidadania portuguesa.
61. É que, justamente, para além de ferir uma instrumentalização imposta dos mecanismos de concessão na nacionalidade para efeitos do gozo de direitos fundamentais, diametralmente oposta à conceção humanista e universalista que alimenta o princípio da equiparação, o que está em causa é, afinal, um direito pessoal, cujo exercício depende da vontade do próprio.
62. Em sequência, sobressai de todo o exposto que o Governo, mediante o diploma a que o pedido se reporta, erigiu uma medida que veda a determinados cidadãos e em razão da sua nacionalidade a escolha da atividade profissional dos marítimos.
63. Deste modo, o regime vertido no n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 280/2001 gera uma diferenciação de tratamento com base na cidadania, sem que se anteveja fundamento material bastante para a exclusão, como regime regra, dos nacionais de países terceiros do acesso à inscrição marítima junto das autoridades portuguesas, pelo que aquela diferenciação, sendo discriminatória, excessiva e desproporcionada, revela-se iníqua e redunda, no domínio vertente, numa “inutilização do próprio princípio da equiparação” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 54/87), em violação do disposto no n.º 1 do artigo 15.º da Constituição.
II. Da violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República
64. Se assim é numa perspetiva substantiva, verifica-se, além disso, que coexiste, com a inconstitucionalidade material apontada ao condicionamento estabelecido no citado preceito do Decreto-Lei n.º 280/2001, um vício orgânico de inconstitucionalidade, em virtude de a determinação normativa em causa ter sido aprovada em violação da reserva de lei imposta pelo artigo 165.°, n.º 1, alínea b), da Constituição.
65. Com efeito, como ficou anteriormente explicitado, na invocação feita da doutrina e jurisprudência constitucionais em matéria de tratamento constitucional de estrangeiros e apátridas, existe em relação à determinação de exceções ao princípio da equiparação, para além das que sejam já estipuladas pela própria Lei Fundamental, uma verdadeira reserva de lei, a qual configura também uma reserva de competência da Assembleia da República, sempre que estejam em causa direitos, liberdades e garantias, por força do disposto no artigo 165.°, n.º 1, alínea b), da Constituição.
66. A circunstância de nacionais de países terceiros estarem impedidos de fazer a sua inscrição marítima junto das autoridades portuguesas configura uma exceção ao princípio da equiparação consagrado no artigo 15.°, n.º 1, da Constituição, materializando, neste caso, uma verdadeira restrição à liberdade de escolha de profissão, na medida em que aquela inscrição, verificados que estejam os demais requisitos legais, é condição de ingresso na atividade profissional dos marítimos.
67. A liberdade de escolha de profissão integra o elenco dos direitos, liberdades e garantias, cuja restrição só pode ser definida por lei, sinonimizando lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado do Governo (artigo 18.°, n.º 2 e 3, conjugado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 165.° da Constituição).
68. De resto, conforme bem sedimentada jurisprudência do Tribunal Constitucional, «a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias abrange “tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições do direito em causa”», na evocação que o Acórdão n.º 255/2002 faz do Acórdão n.º 128/2000.
69. Nesse mesmo Acórdão n.º 255/2002, o Tribunal Constitucional pôs em relevo a «consideração de que a fixação de condições específicas para o exercício de determinada profissão ou atividade profissional se enquadra no contexto da liberdade de escolha de profissão regulada no artigo 47.° da lei fundamental e, portanto, constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, por tratar de matéria de direitos, liberdades e garantias».
70. Da fundamentação, sobre a qual o Tribunal Constitucional gizou a sua decisão, sobressai ainda o seguinte:
(...) como a competência para legislar sobre restrições aos direitos, liberdades e garantias pertence exclusivamente ao Parlamento (salvo autorização do Governo), daí decorre a inevitável inconstitucionalidade orgânica das normas em apreço.
Para J.J. Gomes Canotilho, no domínio dos direitos fundamentais (mesmo no âmbito dos direitos, liberdades e garantias), «a reserva de lei não possui apenas uma dimensão garantística em face das restrições de direito; ela assume também uma dimensão conformadora-concretizadora desses mesmos direitos» (Direito Constitucional, 5.ª ed., Almedina 1992, p. 801). Aliás, ainda que se entenda que em algumas das alíneas [citam-se as normas sub judicio] se não preveem verdadeiras e próprias restrições, mas antes se revelam tão-só limites imanentes da liberdade de profissão, a conclusão será sempre idêntica. É que (...) a reserva parlamentar abrange «tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições» (...).
71. À luz deste entendimento do Tribunal Constitucional, não se duvida que o Governo, ao preceituar sobre as condições de acesso e exercício da atividade profissional dos marítimos, estabelecendo condicionamento associado à cidadania, o qual interfere, a montante, com o direito de escolher livremente a profissão em causa, legislou sobre matéria de direitos, liberdades e garantias.
72. E fê-lo sem que se tenha munido da devida lei de autorização, ao invés reclamando legislar sobre matéria não reservada à Assembleia da República.
73. Em face do que antecede, tendo o Governo aprovado norma que restringe a liberdade de escolha de profissão, com base no critério da nacionalidade, fazendo uso, em desconformidade com a Constituição, da credencial constante da parte final do n.º 2 do artigo 15.° da Lei Fundamental e legislando a descoberto de autorização legislativa é inequívoco, outrossim, que, ao assim proceder, desrespeitou a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
74. Pelo que a norma em causa é também organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.°, n.º 1, alínea b), da Constituição.»
2. Notificado para se pronunciar sobre o pedido, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos, fazendo acompanhar a sua resposta, todavia, de um parecer elaborado pelo Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros.
3. Foi discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, cumprindo agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II - Fundamentação
A) Inserção sistemática e antecedentes da norma objeto de fiscalização
4. O Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, tem por objeto o estabelecimento das normas reguladoras da atividade profissional dos marítimos, incluindo as relativas, à sua inscrição marítima e à emissão de cédulas marítimas, à sua aptidão física, classificação, categorias e requisitos de acesso e funções a desempenhar, à sua formação e certificação, reconhecimento de certificados, recrutamento e regimes de embarque e de desembarque e à lotação de segurança das embarcações (cfr. o respetivo artigo 1.º, n.º 1). Tal atividade é exercida a bordo das embarcações de comércio, de pesca, rebocadores, de investigação, auxiliares e outras do Estado (v. o número 2 do mesmo artigo).
Segundo o seu preâmbulo, tal diploma propôs-se acompanhar e traduzir as alterações introduzidas pelas Emendas à Convenção Internacional sobre Normas de Formação, de Certificação e de Serviço de Quartos para os Marítimos de 1978 (STCW), adotadas em 1995 pela Organização Marítima Internacional, e entretanto secundadas e reforçadas pela União Europeia, através da aprovação de diversas diretivas sobre a matéria. As citadas Emendas, inseridas na área multidisciplinar da profissão marítima, determinaram, em nome da segurança das pessoas ligadas ou em contacto com o mar e da preservação do meio marinho, nomeadamente e entre outras: i) uma reestruturação profunda do ensino e da formação náutica; ii) a adoção de processos de avaliação de conhecimentos dos marítimos, prévios e condicionantes da emissão de certificados de qualificação ou de aptidão profissional ou da sua autenticação, nomeadamente, em caso de reconhecimento; iii) a existência obrigatória de um registo de certificados, enquanto instrumento de prova de autenticidade e de prova da circulação dos marítimos; iv) a compartimentação das funções dos marítimos, atentos os novos parâmetros das embarcações, e a certificação correspondente; v) uma acrescida exigência de qualificações e correspondentes certificados; vi) a valoração da aptidão física a ter em conta na emissão dos certificados; e vii) a adoção de regras de qualidade, quanto à inspeção e à disciplina global da matéria, com responsabilização contraordenacional dos intervenientes — companhias e marítimos.
Em consequência imediata da obrigação de introdução efetiva no direito interno das Emendas de 1995 à Convenção STCW e de transposição de diretivas da União Europeia relacionadas com a matéria, especialmente a Diretiva n.º 98/35/CE, do Conselho, de 25 de maio de 1998, relativa ao nível mínimo da formação dos marítimos, o Decreto-Lei n.º 280/2001 procedeu ainda à revisão do anterior «Regulamento da Inscrição Marítima», aprovando, juntamente com outros diplomas regulamentares (cfr. o artigo 85.º do diploma em análise), o novo «Regulamento relativo à inscrição marítima e emissão da cédula de inscrição marítima» (que consta do anexo I àquele Decreto-Lei).
5. A norma ora objeto de fiscalização – consagrada no n.º 2 do artigo 4.º (com a epígrafe “Pedido de inscrição marítima”) do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro – insere-se no âmbito da disciplina da inscrição marítima (secção I do capítulo II).
A inscrição marítima “é o ato exigível aos indivíduos de ambos os sexos que pretendam exercer, como tripulantes, as funções correspondentes às categorias dos marítimos ou outras funções legalmente previstas” e “os indivíduos que efetuem a inscrição marítima tomam a designação de «inscritos marítimos» ou, abreviadamente, de «marítimos»” (v., assim, respetivamente, os artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro). As «funções» em causa correspondem ao “conjunto autónomo de tarefas, competências, deveres e responsabilidades profissionais dos marítimos, que podem corresponder à respetiva categoria ou a categoria diferente ou constar de dispositivos legais em vigor” (assim, o artigo 2.º, n.º 2, do mesmo diploma). E “a inscrição marítima é requerida aos órgãos locais do Sistema de Autoridade Marítima (SAM) competentes, devendo o requerente indicar os elementos a integrar no registo, devidamente comprovados por documento” (v. artigo 4.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 280/2001).
Ser «inscrito marítimo» é uma condição necessária do exercício da atividade profissional de marítimo, porquanto, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, “só podem exercer a atividade profissional dos marítimos os inscritos marítimos habilitados com as respetivas qualificações profissionais e detentores dos respetivos certificados”.
A norma impugnada, constante do n.º 2 do artigo 4.º do referido diploma, procede, por sua vez, à delimitação do universo dos sujeitos a quem é reconhecida a faculdade de requerer a inscrição marítima ao dispor que “podem requerer a inscrição marítima os indivíduos maiores de 16 anos de nacionalidade portuguesa ou de um país membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional”. Deste preceito resulta, assim, que, ressalvado o círculo dos nacionais dos Estados membros da União Europeia, bem como os casos eventualmente abrangidos por convenções ou outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico português, a faculdade de solicitar a inscrição marítima - e, consequentemente, de reunir os requisitos necessários para aceder ao exercício da atividade profissional dos marítimos – se encontra reservada a cidadãos portugueses.
6. Tal norma não constitui uma disposição original no ordenamento jurídico português.
Com efeito, um regime semelhante constava já do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 104/89, de 6 de abril - diploma entretanto revogado expressamente pelo artigo 86.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro. Aquele diploma veio proceder, de acordo com o respetivo preâmbulo, à “regulamentação da inscrição marítima”, contemplando “a reestruturação das profissões relativas à tripulação e operação dos navios de comércio e pesca” através da valorização da “capacidade profissional”, surgindo esta como “condição básica de acesso entre categorias profissionais”. O citado preceito estatuía que a inscrição marítima apenas poderia ser requerida por “indivíduos maiores de 16 anos, de nacionalidade portuguesa, com salvaguarda das obrigações resultantes da adesão de Portugal às Comunidades Europeias e de convenções internacionais celebradas entre Portugal e outros Estados”.
E já esta disciplina do diploma de 1989 também não era integralmente nova.
Na verdade, anteriormente as normas reguladoras da atividade profissional dos marítimos constavam do «Regulamento da Inscrição Marítima, Matrícula e Lotações dos Navios da Marinha Marcante e da Pesca», aprovado pelo Decreto n.º 45 969, de 15 de outubro de 1964, em execução do disposto no artigo 49.º do Decreto-Lei n.º 45 968, também de 15 de outubro de 1964. Completando o regime geral então definido nos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 45968, o mencionado Regulamento, depois de condicionar o acesso à condição de marítimo à “inscrição marítima” (cfr. o artigo 1.º), veio regular este ato no título II, estabelecendo para o mesmo determinados requisitos, entre os quais, ainda que de forma indireta, o relativo à nacionalidade. Assim, nos termos do artigo 8.º do referido Regulamento, a realização da inscrição marítima tinha como pressuposto a apresentação, junto da autoridade marítima competente, de um conjunto de documentos que incluíam, de acordo com a respetiva alínea b), “a certidão de idade, de teor, comprovando ser cidadão português”. Uma vez que, de acordo com esta norma, o requerimento para a inscrição marítima deveria ser obrigatoriamente instruído com documento comprovativo da nacionalidade portuguesa, torna-se claro que, também sob regime jurídico resultante do Decreto-Lei n.º 45 968 e sua regulamentação, o acesso à atividade de marítimo se encontrava vedado a estrangeiros: requerendo a inscrição marítima a comprovação documental de nacionalidade portuguesa, e sendo essa inscrição uma condição do exercício da atividade profissional de marítimo, é incontroversa a conclusão de que os nacionais de outros Estados se encontravam privados do direito de aceder a essa profissão.
B) As questões de inconstitucionalidade e a ordem do seu conhecimento
7. Tal como se encontra configurado pelo Provedor de Justiça, o problema de constitucionalidade a resolver consiste em verificar se, ao excluir do universo dos titulares da faculdade de requerer a inscrição marítima os nacionais de países terceiros não incluídos na União Europeia e residualmente não abrangidos pelo regime que em contrário possa constar de convenções ou em outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional, a norma constante do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, é inconstitucional, por violação, quer do princípio da equiparação consagrado no n.º 1 do artigo 15.º, da Constituição, quer da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República definida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Lei Fundamental. Para o Provedor de Justiça, com efeito, a invocada inconstitucionalidade material da norma sob fiscalização resulta da diferenciação de tratamento com base na cidadania sem fundamento material bastante, no que se refere ao acesso à inscrição marítima junto das autoridades portuguesas e da consequente violação do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição (cfr. o n.º 63 do requerimento de fiscalização da constitucionalidade). E este vício material da norma em apreço coexiste com um outro vício da mesma norma – agora um vício de natureza orgânica – , seja porque todas as exceções legais ao princípio da equiparação têm de ser determinadas mediante lei formal da Assembleia da República (assim, o n.º 17 do requerimento inicial), seja porque está em causa “uma verdadeira restrição à liberdade de escolha de profissão” – que integra o elenco dos direitos, liberdades e garantias – e, no tocante ao tratamento constitucional de estrangeiros e apátridas, existe em relação à determinação de exceções ao princípio da equiparação uma verdadeira reserva de lei, “a qual configura também uma reserva de competência da Assembleia da República, sempre que estejam em causa direitos, liberdades e garantias, por força do disposto no artigo 165.°, n.º 1, alínea b), da Constituição” (cfr. os n.os 18 e 65 a 67 do mesmo requerimento).
A conformidade constitucional do regime constante do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 280/2001 encontra-se, assim, questionada sob um duplo ponto de vista, supondo este, no plano material, a confrontação da diferenciação de tratamento no âmbito do acesso à atividade profissional dos marítimos, por efeito da intervenção de um critério distintivo baseado na nacionalidade, com o princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas consagrado no n.º 1 do artigo 15.º da Constituição, e, no plano orgânico, a consideração daquela diferenciação na sua relação com a competência para a emanação da norma que a estabelece, de acordo com as regras de produção jurídica estabelecidas na Constituição. Tal não obsta a que o referente paramétrico comum a ambas as perspetivas se centre no princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas, consagrado no n.º 1 do artigo 15.º da Constituição, já que o mesmo princípio constitui um verdadeiro pressuposto da própria questão orgânica: esta só se coloca porque, em princípio, os estrangeiros e apátridas que se encontram ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
Justifica-se, por conseguinte, começar por analisar a alegada violação daquele princípio pela norma sindicada pelo requerente. Acresce que foi também esse o percurso seguido pelo Provedor de Justiça, ao perspetivar as questões de inconstitucionalidade como um concurso (efetivo) de vícios ou como a violação de diferentes normas constitucionais – um princípio material e uma regra de competência - por uma única norma de direito ordinário. Com efeito, o requerente estrutura o seu pedido de fiscalização, começando por arguir a inconstitucionalidade material do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro - a violação do princípio da equiparação; e, só depois, argui a sua inconstitucionalidade orgânica – a violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
C) A inconstitucionalidade material da norma objeto de fiscalização
8. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal n.º 345/2002 (disponível, assim como os demais referidos no presente aresto, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ), pode dizer-se que, no tocante ao critério diferenciador baseado na nacionalidade, o princípio da igualdade é objeto de uma consideração e concretização próprias no artigo 15.º da Constituição, mormente nos seus n.os 1 e 2, pelo que tal preceito “consigna o módulo constitucional específico da igualdade de direitos entre os cidadãos portugueses e os demais”. Sob a epígrafe «Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus», dispõe-se aí o seguinte:
«1. Os estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
2. Excetuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham caráter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.»
Tais normas, cujo texto remonta à versão originária da Constituição, inscrevem-se numa linha com tradição no direito português (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 340/95). Garantindo aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal os direitos e deveres do cidadão português, o n.º 1 daquele preceito consagra o chamado princípio do tratamento nacional isto é, “um tratamento pelo menos tão favorável como o concedido ao cidadão do país, designadamente no que respeita a um certo número de direitos fundamentais” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. V ao art. 15.º, p. 357; v., em idêntico sentido, Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. I ao art. 15.º, p. 263).
Quanto à definição do âmbito objetivo da equiparação consagrada no artigo 15.º, a jurisprudência e doutrina constitucionais vêm perfilhando uma conceção ampla do princípio, de acordo com a qual os direitos referidos no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição não serão apenas os direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias ou os direitos constitucionalmente garantidos, mas também os direitos consignados aos cidadãos portugueses na lei ordinária (cfr. os Acórdãos n.os 423/2001 e 72/2002; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. III ao art. 15.º, p. 357; Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. I ao art. 15.º, p. 263; Mário Torres, Prefácio a Direitos dos Estrangeiros, de Ana Vargas e Joaquim Ruas, Lisboa, 1995, p. 17; e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., 2012, pp. 127 a 129). Tal compreensão, para além de consonante com o resultado de uma interpretação histórica, sistemática e literalmente conformada do n.º 1 do artigo 15.º, da Constituição, é justificada pelo caráter universalista da tutela dos direitos fundamentais num Estado de Direito Democrático baseado na dignidade da pessoa humana (cfr. o citado Acórdão n.º 423/2001), sendo considerada, por isso, inerente ao texto constitucional (cfr. o Acórdão n.º 345/2002).
A Constituição prescreve, contudo, exceções ao princípio da equiparação e admite que a lei possa estabelecer outras mais.
Entre as exceções prescritas, constam as relativas a direitos políticos – nos quais se incluem os direitos, liberdades e garantias de participação política elencados nos respetivos artigos 48.º a 52.º -, ao exercício de funções públicas que não tenham caráter predominantemente técnico – conceito cuja delimitação deverá ser alcançada por contraposição às funções em que predomine o exercício de prerrogativas de autoridade pública (cfr. Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. VIII ao art. 15.º, p. 270 e ss.) - e aos direitos e deveres reservados pela própria Constituição aos cidadãos portugueses.
Quanto às exceções admitidas – aquelas que o legislador ordinário pode estabelecer -, é aceite que a possibilidade de que este em geral beneficia de colocar autonomamente sob reserva da nacionalidade o gozo de determinados direitos, para além dos contemplados na Constituição, se encontra, ela própria, sujeita a diversos parâmetros condicionadores (cfr. o Acórdão n.º 345/2002; v. também, Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 128 e 129).
Entre tais parâmetros avulta – uma vez que as exceções legais em causa restringem o princípio da equiparação – a sujeição ao regime do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição das leis que, no todo ou em parte, excluam da titularidade de determinados direitos os estrangeiros e apátridas presentes ou residentes em Portugal (cfr. o Acórdão n.º 345/2002). Assim, qualquer restrição legal do princípio da equiparação só será constitucionalmente legítima, se for exigida pela salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, e se se limitar ao necessário para assegurar tal salvaguarda. Nesta perspetiva, a medida restritiva deverá subordinar-se ao princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo, com as suas três dimensões – necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido restrito (cfr. o Acórdão n.º 340/95) -, daqui resultando que, quanto aos direitos que a Constituição consente que possam ser colocados pelo legislador ordinário sob reserva da nacionalidade, tal reserva não poderá ser desnecessária, arbitrária ou desproporcionada, sob pena de esvaziamento e inutilização do próprio princípio da equiparação consagrado no n.º 1 do artigo 15.º (cfr. os Acórdãos n.os 54/87, 423/2001, 72/2002 e 345/2002).
A esta luz, cumpre analisar se a reserva do acesso à atividade profissional dos marítimos, por via da limitação da possibilidade de inscrição marítima aos cidadãos nacionais de países integrados na União Europeia ou residualmente abrangidos por convenção que expressamente a prevejam, consignada no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, exceciona, em termos materialmente legítimos, o princípio da equiparação consagrado no n.º 1 do artigo 15.º da Constituição.
9. Considerada a natureza do direito cujo gozo é diferenciado em razão da nacionalidade, pode afirmar-se que a exceção ao princípio da equiparação prevista naquele preceito não se inscreve no âmbito de qualquer uma daquelas que a Constituição diretamente prescreve – e que constituem, por isso mesmo, autorrestrições constitucionais ao princípio da equiparação (assim, v. Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. VI ao art. 15.º, p. 269): os direitos políticos, o exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição aos cidadãos portugueses.
Se quanto aos direitos políticos e aos direitos reservados pelo próprio texto constitucional aos cidadãos portugueses, a ausência de zonas de sobreposição é evidente, a mesma conclusão tornar-se-á igualmente clara em face da reserva constitucional a cidadãos nacionais do exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico, tendo em conta que, como referido, estas são definidas a partir da sua dimensão de autoridade. Apropriadamente densificado, tal conceito de «funções sem caráter predominantemente técnico» compreenderá os cargos que impliquem atribuições que concorrem para a definição autoritária de direitos – como sucede com as magistraturas -, as posições que atribuem competência para condicionar o exercício da liberdade de autoconformação individual – como se verifica quanto às forças de segurança -, como ainda os cargos superiores da Administração Pública, na medida em que lhes seja conferida competência para, na prossecução do interesse público, definir autoritariamente e através do exercício de amplos poderes discricionários, a situação dos cidadãos que com ela se relacionem (cfr. Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. VIII ao art. 15.º, passim).
A atividade profissional própria do marítimo ou marinheiro compreende, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, toda a atividade exercitável, como tripulante (cfr. o artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma), a bordo de embarcações de comércio, de pesca, rebocadores, de investigação, auxiliares e outras do Estado. Na medida em que a enunciação do tipo de embarcações a que se encontra funcionalmente indexada a definição legal da atividade profissional dos marítimos é esgotante – no sentido em que não são configuráveis embarcações de tipo diverso daqueles que a norma expressamente contempla –, o n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, ao negar o acesso à categoria de marítimos aos indivíduos que não sejam nacionais de países integrados na União Europeia ou, residualmente, abrangidos por qualquer disposição de sentido contrário, priva-os, em razão da respetiva nacionalidade, não apenas da possibilidade de desempenharem qualquer cargo a bordo de embarcações associadas ao exercício da soberania nacional ou ao desempenho de funções decorrentes do exercício de poderes de autoridade – como sejam as de fiscalização ou de policiamento –, mas, genérica e amplamente, do exercício de qualquer conjunto de tarefas, competências, deveres ou responsabilidades a bordo de qualquer tipo de embarcação, incluindo daquelas que, por serem de comércio ou de pesca, em nenhum momento se intercetam, pelo menos de forma necessária, com a componente política ou a dimensão de autoridade e soberania em que se fundam as autorrestrições constitucionais ao princípio da equiparação baseadas na natureza da função sob reserva.
A esgotante medida em que o direito ao exercício da atividade profissional dos marítimos é negado aos cidadãos oriundos de países terceiros não integrados na União Europeia, com base no critério da nacionalidade, é confirmada pela extensão dos escalões e categorias compreendidos em tal atividade, de acordo com a tipologia definida nos artigos 4.º a 7.º do «Regulamento relativo à classificação, às categorias e às funções dos marítimos e aos requisitos de acesso às mesmas», constante do anexo III ao Decreto-Lei n.º 280/2001. Dando concretização ao disposto no artigo 22.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 280/2001 – norma segundo a qual, “todos os marítimos são titulares de uma categoria a que corresponde determinado conteúdo funcional” –, o Regulamento em causa enuncia, nos respetivos artigos 4.º a 7.º, as categorias que, por escalão, se encontram compreendidas na atividade profissional dos marítimos, e determina, no seu artigo 50.º, que o exercício de funções correspondentes a qualquer delas em embarcações sujeitas à Convenção STCW, se encontra condicionado à titularidade dos respetivos certificados profissionais, em conformidade com o disposto no «Regulamento relativo à formação e à certificação dos marítimos», constante do anexo IV ao Decreto-Lei n.º 280/2001. Do enunciado daquelas categorias, em conjugação com o disposto no artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, resulta que a reserva no acesso à inscrição marítima a cidadãos nacionais e aos cidadãos de certos Estados estatuída no artigo 4.º, n.º 2, do mesmo Decreto-Lei, ora sob fiscalização, redunda na exclusão da possibilidade de todos os outros indivíduos não nacionais de exercerem as funções de marítimos, de acordo com qualquer umas das categorias legalmente previstas – oficiais, mestrança e marinhagem.
Em suma, negada a possibilidade de requerer a inscrição marítima, fica igualmente vedada a possibilidade do exercício de qualquer atividade profissional própria do marítimo. Assim configurado, acaba por ser o próprio direito à livre escolha da profissão de marítimo, em toda a sua extensão, que constitui o objeto da restrição baseada no critério da nacionalidade – e não apenas uma sua projeção autonomizável ou particularizável em função das especificidades do contexto.
Deste modo, a exceção ao princípio da equiparação constante do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 280/2001 não se pode ter como inscrita no domínio das aludidas autorrestrições. Por isso mesmo, a licitude constitucional do regime diferencial que na mesma se contém está dependente apenas da verificação dos pressupostos que condicionam o alargamento pelo legislador ordinário do catálogo dos direitos reservados a cidadãos portugueses.
10. Da vinculação constitucional da lei ampliadora dessa reserva decorrem pressupostos que conferem à permissão constante do n.º 2 do artigo 15.º um “alcance relativamente reduzido” (assim, v. Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. XII ao art. 15.º, p. 278). Conforme notado na doutrina, as “exceções a estabelecer por lei ordinária […] não são livres – o legislador não é convocado para delimitar a hipótese da norma constitucional de equiparação –, pelo menos no que respeita aos direitos liberdades e garantias, devendo as leis que eventualmente reservem direitos deste tipo para cidadãos portugueses ser consideradas leis restritivas e sujeitas às condições de legitimidade estabelecidas no artigo 18.º [… Por assim ser,] a reserva por via legislativa de certos direitos aos cidadãos portugueses só é justificável em relação a direitos que tenham fortes implicações de caráter social, desde que haja um valor constitucional que justifique o exclusivo para nacionais, e com respeito pelos princípios da universalidade e da proporcionalidade” (cfr. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 128-129).
O mesmo entendimento vem sendo seguido na jurisprudência deste Tribunal, nomeadamente no seu Acórdão n.º 345/2002:
«[O] estatuto constitucional do estrangeiro admite exceções ao princípio da equiparação, como resulta inequivocamente da leitura da norma constitucional.
Não obstante, esses desvios constituem restrições a tal princípio e, nessa medida – o que é um aspeto fundamental do regime dos direitos, liberdades e garantias – encontram-se as mesmas submetidas ao regime do nº 2 do artigo 18º da Constituição, sendo, como tal, limitadas ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Na verdade, o princípio da proporcionalidade que aqui se surpreende exige – como se retira do longo acervo da jurisprudência constitucional nesta matéria – que as medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, ou seja, para a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessários para alcançar esses fins, que não poderiam ser atingidos com meios menos gravosos, mais se exigindo que os meios restritivos e os fins obtidos se situem numa 'justa medida'. […]».
Consequentemente, e uma vez que a norma constante do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, ao excluir do universo dos sujeitos habilitados a requerer a inscrição marítima os não nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia nem abrangidos por convenções ou outros instrumentos internacionais de sentido contrário, restringe, nessa extensão, o princípio da equiparação, a subordinação da reserva às condições de validade material fixadas no artigo 18.º para as leis restritivas é inquestionável. A conformidade constitucional daquele preceito depende, por isso, da resposta à questão de saber se a reserva a determinados cidadãos do acesso à atividade profissional dos marítimos satisfaz aquelas condições. Cumpre apreciar, designadamente, se tal reserva é justificada pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou valores constitucionalmente tutelados, e adequada, necessária e proporcional para o efeito.
11. Na medida em que a matéria relativa aos documentos de identificação dos marítimos se encontra regulada pela Convenção n.º 108 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1958, que Portugal ratificou através do Decreto-Lei n.º 47 712, de 19 de maio de 1967, esse fundamento poderia relacionar-se com o enquadramento, a que por via dessa ratificação, se encontra sujeita a atividade de acreditação exercida pelo Estado Português, em particular no que diz respeito à possibilidade de aquisição por nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia, com base na inscrição efetuada junto das autoridades portuguesas, de prerrogativas, designadamente quanto à mobilidade, contrárias ou distintas daquelas que resultariam da sua inscrição através do respetivo país de origem.
Assim não sucede, todavia.
Com base na inscrição efetuada junto dos competentes órgãos do Sistema de Autoridade Marítima – ato por efeito do qual é adquirida a qualidade de marítimo – é emitida a favor do inscrito a cédula de inscrição marítima (cfr. artigo 5.º do «Regulamento relativo à inscrição marítima e emissão da cédula de inscrição marítima», constante do anexo 1 ao Decreto-Lei n.º 280/2001), que poderá constituir documento de identificação do marítimo, para efeitos da Convenção n.º 108 da OIT, caso o respetivo titular o requeira (cfr. artigo 9.º do referido Regulamento). Aplicando-se esta Convenção, de acordo com o seu artigo 1.º, a todos os marítimos matriculados, seja a que título for, a bordo de qualquer navio que não seja navio de guerra, normalmente afeto à navegação marítima e registado em território no qual a mesma Convenção se encontre em vigor, o respetivo artigo 2.º não impõe aos Estados membros a adoção do mesmo tipo de procedimento quanto à emissão do aludido documento de identificação de marítimo para os nacionais e os não nacionais (note-se que o documento em causa é necessário, por exemplo, para a obtenção de permissões de entrada dos marítimos em todo o território onde se encontre em vigor a referida Convenção, sempre que essa entrada for pedida para uma licença em terra de duração temporária durante a escala do navio - cfr. artigo 6.º, n.º 1). Assim, enquanto os Estados membros têm a obrigação de “passar a cada um dos seus naturais exercendo a profissão de marítimo, a seu pedido, um documento de identificação de marítimo” (cfr. n.º 1 do artigo 2.º); quanto a “qualquer outro marítimo empregado a bordo de navio registado em seu território ou inscrito em agência de colocação do seu território”, os mesmos Estados, podem adotar idêntico procedimento, mas não estão obrigados a fazê-lo (cfr. o n.º 2 do mesmo preceito).
Para além de facultativa nos termos expostos, a emissão do documento de identificação do marítimo encontra-se, em qualquer caso, sujeita à observância das indicações estabelecidas no artigo 4.º da mesma Convenção. No âmbito da pertinência da nacionalidade do marítimo inscrito, o n.º 4 desse preceito determina que o Estado membro que emita o documento de identificação respeitante a um marítimo estrangeiro “não fica obrigado a declarar nesse documento a nacionalidade do seu possuidor”, não sendo, “[a]liás, tal declaração [...] prova concludente da sua nacionalidade”.
Deste enquadramento da atividade de acreditação exercida pelos Estados constante da Convenção n.º 108 da OIT resulta, assim, que a atribuição da condição de marítimos a cidadãos nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia, ainda que acompanhada da emissão da correspondente cédula marítima, não implica nem determina, como seu efeito automático, a concomitante atribuição de qualquer prerrogativa inerente à cidadania portuguesa, nem tão pouco põe em causa, designadamente no plano do relacionamento com Estados terceiros, a atendibilidade do elemento nacionalidade no âmbito da conformação do estatuto dos marítimos. Na medida em que a inscrição marítima não determina de forma automática a emissão de cédula, como documento de identificação do marítimo para os efeitos previstos na Convenção – o Estado emissor mantém a faculdade de, quanto aos não nacionais, obstar à conversão da cédula de inscrição marítima no documento de identificação dos marítimos para os efeitos previstos na referida Convenção –, nem decorre da sua eventual emissão qualquer efeito de conversão da lei do Estado emissor na lei pessoal do requerente – ou sequer a prova, com a força de fé pública, da veracidade das declarações e documentos colhidos junto do interessado a respeito da respetiva nacionalidade –, não é possível descortinar, no enquadramento a que os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português sujeitam o resultado do exercício dos seus poderes de acreditação, um fundamento racional para o tratamento diferenciado que, com base no critério da nacionalidade, é introduzido a montante, no âmbito do próprio regime de acesso à profissão de marítimo, tanto mais que esta última é (também) exercitável em embarcações cuja atividade se encontra confinada ao domínio marítimo nacional, como sejam as embarcações destinadas ao tráfego local.
12. Conforme nota o requerente, tal fundamento não é igualmente descortinável, nem nas razões que justificam o padrão imposto no âmbito da formação e qualificação dos marítimos, nem, pelo menos em medida proporcional à restrição introduzida, em qualquer interesse relacionado com a prevenção da imigração ilegal.
12.1. No que se refere às primeiras, o artigo 22.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, dispõe que o acesso do marítimo a uma categoria depende da satisfação dos requisitos relativos à aptidão física e psíquica previstos nos respetivos artigos 17º a 20.º, à formação e à certificação, bem como ao tempo de embarque no mar, computado este nos termos regulamentares aplicáveis. Previstos, quanto aos seus aspetos essenciais, nos artigos 25.º a 34.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, os requisitos respeitantes à formação e à certificação dos marítimos encontram-se densificados em regulamento próprio (cfr. o anexo IV ao Decreto-Lei n.º 280/2001). Da conjugação do artigo 50.º do «Regulamento relativo à classificação, às categorias e às funções dos marítimos e aos requisitos de acesso às mesmas», com o citado regulamento relativo à formação, resulta que o exercício da atividade profissional dos marítimos em embarcações a que se aplique a «Convenção Internacional sobre Padrões de Formação, Certificação e Serviço de Quarto para Marítimos» se encontra condicionado à titularidade dos respetivos certificados profissionais, pressupondo estes, tal como a própria inscrição marítima numa determinada categoria profissional, ou o acesso a categoria superior, a reciclagem e atualização dos conhecimentos necessários ao exercício da profissão, e (ou) a realização de exames destinados à avaliação dos conhecimentos e da aptidão dos marítimos para o exercício das funções correspondentes a determinada categoria de ingresso ou de acesso ou das que resultarem do certificado exigido para o efeito. A certificação dos marítimos poderá resultar ainda de certificados de formação comprovativos de que foram atingidos os objetivos definidos nos programas e ações de formação (cfr. o artigo 31.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 280/2001).
Acresce que as autoridades portuguesas poderão reconhecer: a) os certificados de formação e os certificados profissionais emitidos pelas entidades competentes dos Estados Membros da União Europeia e pertencentes a cidadãos nacionais desses Estados; b) os certificados de competência emitidos ou reconhecidos pelas entidades competentes dos Estados Membros da União Europeia e pertencentes a cidadãos nacionais de países terceiros; c) os certificados profissionais emitidos pelas entidades competentes de países terceiros, mas pertencentes a cidadãos nacionais; d) os certificados de competência emitidos pelas entidades competentes de países terceiros, pertencentes a nacionais ou a não nacionais desses países; e e) os certificados de formação ou profissionais emitidos pelas entidades competentes de países terceiros, ao abrigo de acordos celebrados em matéria de formação e de certificação (cfr. o artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 280/2001).
O marítimo que não esteja certificado ou cujo certificado não seja o adequado não poderá exercer funções a bordo que exijam a correspondente certificação, a menos que disponha de dispensa válida ou de prova de pedido do reconhecimento ou da autenticação do necessário certificado (cfr. o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 280/2001).
Na medida em que os nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia que, encontrando-se ou residindo em Portugal, pretendessem aceder à profissão de marítimos se encontrariam em qualquer caso sujeitos às exigências relativas ao respetivo processo de formação e à necessidade de obtenção da correspondente certificação nos termos fixados no Decreto-Lei n.º 280/2001 e nos pertinentes regulamentos, a exclusão do acesso à profissão daqueles indivíduos imposta, com base apenas no critério da nacionalidade, pelo artigo 4.º, n.º 2, daquele diploma não encontra justificação na prossecução dos interesses de ordem pública relacionados com a “segurança das pessoas ligadas ou em contacto com o mar” e a “preservação do meio marinho”, a cuja tutela se dirigem as normas relativas ao “ensino e […] formação náutica”, à “adoção de processos de avaliação de conhecimentos dos marítimos, prévios e condicionantes da emissão de certificados de qualificação ou de aptidão profissional […]”, à “existência obrigatória de um registo de certificados”, à “acrescida exigência de qualificações e correspondentes certificados” e à “valoração da aptidão física a ter em conta na emissão dos certificados” (cfr. o preâmbulo Decreto-Lei n.º 280/2001).
A mesma limitação também não poderá justificar-se indiretamente na necessidade de, através dos aspetos relacionados com o domínio da língua, assegurar a possibilidade de uma efetiva comunicação a bordo. Deste ponto de vista – que só poderia, de resto, encontrar adequada tradução lógica na indexação do critério distintivo ao elemento da nacionalidade tout court e não, como se verifica, à cidadania de país incluído ou excluído da União Europeia –, a própria lei encarrega-se de situar a exigência relativa às competências linguísticas no estrito plano onde a mesma pode com cabimento colocar-se, condicionando o embarque de marítimos de países terceiros à posse de conhecimentos da língua portuguesa sempre que esta seja adotada como língua de trabalho a bordo (cfr. artigo 3.º, n.º 6, do «Regulamento relativo ao recrutamento e ao embarque e desembarque de marítimos», constante do anexo V ao Decreto-Lei n.º 280/2001).
12.2. O último dos âmbitos em que seria configurável sediar-se a razão de ser da recusa em estender aos nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia o direito de aceder à atividade profissional dos marítimos prende-se com o interesse na prevenção da imigração ilegal. Nesta perspetiva, a limitação do acesso à inscrição marítima estatuída em razão da nacionalidade no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, seria justificada por uma ideia de prevenção do risco de imigração ilegal, decorrente do acréscimo de mobilidade que aquela atividade confere a todos quantos se proponham exercê-la a bordo de embarcações destinadas a efetuar ligações, comerciais ou de outro tipo, com países terceiros.
De todo o modo, considerado o défice de concretude e imediação com que o incremento do risco de potenciação do fenómeno da imigração ilegal é associável à atribuição a estrangeiros presentes ou residentes em Portugal do direito de aceder à atividade profissional dos marítimos, tal ponto de vista seria sempre inidóneo para, tanto do ponto de vista da necessidade como da proporcionalidade em sentido estrito, justificar materialmente a relevância excludente do critério da nacionalidade expressa na sua conversão em pressuposto legal subjetivo do ato de inscrição marítima.
Para além de se aplicar indistintamente a todos os nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia presentes ou residentes em Portugal – e, consequentemente, também àqueles cuja situação em face do regime jurídico de entrada e permanência em território nacional não ofereça quaisquer reservas –, tal exclusão sempre cederia, na sua conexão com o interesse na prevenção da imigração ilegal, perante a superior eficácia de outro tipo de medidas que, sem atingir projeções nucleares do direito à livre escolha da profissão, introduzissem no âmbito dos procedimentos relativos ao recrutamento, embarque e desembarque dos elementos da tripulação determinados mecanismos de controlo destinados a evitar a entrada e a permanência irregulares de cidadãos nacionais de países não integrados na União Europeia. Este é, de resto, um dos objetivos que pode ser assinalado ao conjunto das regras relativas ao âmbito de recrutamento dos tripulantes para o exercício de funções a bordo de embarcações nacionais, bem como ao processo de embarque e de desembarque, contidas no pertinente regulamento constante do anexo V ao Decreto-Lei n.º 280/2001.
13. A redução do alcance do princípio da equiparação inerente à limitação legal da possibilidade de requerer a inscrição marítima aos cidadãos nacionais dos Estados membros da União Europeia ou residualmente abrangidos por convenções ou outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento nacional prevista no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, não se mostra teleologicamente vinculada à salvaguarda, pelo menos em termos adequados, exigíveis e proporcionais, de qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido, pelo que não cumpre os requisitos de legitimidade das exceções a estabelecer pela lei ordinária àquele princípio. Vale aqui, por inteiro, a jurisprudência do já mencionado Acórdão n.º 345/2002 e o juízo conclusivo então alcançado.
E, à semelhança do que se entendeu nesse aresto, também agora atingida tal conclusão quanto à norma contida no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, na parte em que reserva aos indivíduos de nacionalidade portuguesa ou de um país membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional, a faculdade de requerer a inscrição marítima, desnecessário se torna abordar o problema da sua inconstitucionalidade orgânica. Na verdade, ainda que emanada pelo órgão constitucionalmente competente, aquela norma não poderia, em razão do seu conteúdo, vigorar no ordenamento infraconstitucional.
III. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, na parte em que reserva aos indivíduos de nacionalidade portuguesa ou de um país membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional, a faculdade de requerer a inscrição marítima, por violação do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 15.º da Constituição.
Lisboa, 19 de fevereiro de 2013. – Pedro Machete – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano (votei o julgamento de inconstitucionalidade com fundamento diverso que explico em declaração anexa) – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
A norma constante do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, ao excluir do universo de sujeitos habilitados a requerer a inscrição marítima os nacionais de países terceiros não integrados na União Europeia que não se encontrem abrangidos por convenções ou outros instrumentos internacionais de sentido contrário, legisla em matéria compreendida no direito à livre escolha de profissão – no caso, da atividade profissional dos marítimos – consagrado no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição.
Inserido no capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, este preceito assegura que todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade.
Constituindo um direito fundamental complexo, a liberdade de escolha de profissão comporta diversos níveis de realização, quer enquanto liberdade de escolha, quer enquanto liberdade de exercício de qualquer profissão.
Nesta última aceção, a liberdade de escolha de profissão compreende o direito de obtenção dos requisitos necessários para o acesso a determinada profissão, contemplando este quer a faculdade de não se “ser impedido de escolher (e de exercer) qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos” (dimensão negativa ou de direito de defesa), quer o “direito à obtenção dos requisitos legalmente exigidos para o exercício de determinada profissão, nomeadamente as habilitações escolares e profissionais” (dimensão positiva) (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., pág. 653, da 4.ª ed, da Coimbra Editora).
Por isso, a legislação que disponha sobre esta última dimensão da liberdade de escolha de profissão, como sucede com a norma sob fiscalização neste processo, situa-se na área reservada à lei parlamentar ou a diploma governamental devidamente autorizado, conforme determina o artigo 165.º, n.º 1, b), da Constituição.
O presente diploma foi contudo aprovado pelo Governo.
E o facto do diploma em causa suceder a anterior legislação que regulou o acesso à profissão de marítimo e que se encontra referida neste Acórdão, não dispensava a intervenção parlamentar, não operando aqui a ausência de um cariz inovatório, relativamente à norma sub iudicio.
É certo que resulta da jurisprudência constante deste Tribunal o entendimento segundo o qual a ausência de autorização parlamentar prévia para a aprovação governamental de atos normativos respeitantes a matérias incluídas na reserva relativa da Assembleia da República apenas determinará a inconstitucionalidade orgânica do regime assim editado quando este estipular um efeito de direito inovatório, não sendo por isso possível imputar-lhe tal vício quando o mesmo se limite a reproduzir substancialmente o regime preexistente, emanado este de órgão constitucionalmente habilitado para o efeito.
E, ainda de acordo ainda com a jurisprudência deste Tribunal, à legitimação orgânica do regime contido em norma emitida sem observância das regras de produção jurídica estabelecidas na Constituição por via da existência de uma norma anterior de idêntico conteúdo vinculativo emitida por órgão competente para o efeito não obsta a circunstância de a norma precedente constar de diploma anterior à Constituição de 1976.
Contudo, no presente caso, o anterior Decreto-Lei n.º 104/89, de 6 de abril, diploma revogado pelo artigo 86.º, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, também foi aprovado sem a necessária autorização da Assembleia da República, e não é possível afirmar que a norma aqui sob fiscalização se limita a reproduzir o que já constava do artigo 8.º do anterior “Regulamento da Inscrição Marítima, Matrícula e Lotações dos Navios da Marinha Mercante e da Pesca”, aprovado pelo Decreto n.º 45.969, de 15 de outubro de 1964.
Na verdade, enquanto que a norma pretérita, se limitava a exigir, no contexto de uma regulamentação procedimental, um documento comprovativo de nacionalidade portuguesa, a norma impugnada fixa, como condição substantiva da inscrição marítima, a “nacionalidade portuguesa ou de um pais membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional”.
Não se verifica a reiteração, em termos substancialmente idênticos, de uma mesma regra, nem sequer quanto ao elemento que suscita a questão de constitucionalidade, pois a do artigo 4.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 208/2001, de 23 de outubro, em comparação com a norma pré-constitucional, restringe significativamente o universo dos sujeitos excluídos, quer pela ressalva final, quer, sobretudo, pela admissão de nacionais de um país membro da União Europeia. E este regime inscreve-se num diploma cujo objetivo foi o de traduzir, em 2001, as alterações introduzidas pelas Emendas à Convenção Internacional sobre Normas de Formação, de Certificação e de Serviço de Quartos para os Marítimos de 1978 (STCW), adotadas em 1995 pela Organização Marítima Internacional e entretanto secundadas e reforçadas pela União Europeia. Fica à vista que o diploma em vigor se insere num contexto superveniente e radicalmente distinto daquele em que se situava o legislador de 1964, sendo consagrado num quadro de opções valorativas de todo estranho àquele que era representável, anteriormente à adesão à União Europeia.
A verificação do cariz inovatório de uma norma face a outra anteriormente vigente é afetada pela alteração relevante do quadro normativo em que se inscreve a norma organicamente sindicada, por referência àquele em que se encontrava inserida a norma desse modo renovada. Como se disse no Acórdão n.º 371/93 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), o Governo não é livre de se movimentar na área de reserva, «se a alteração de um anterior regime provocar implicações de enquadramento global de dado setor, atualizando-o em razão de modificações de ordem extrínseca (...)».
É perfeitamente sustentável ser este o caso. Deste ponto de vista, a sobreposição normativa de um segmento ideal de ambas as normas — a exclusão da inscrição marítima de indivíduos nacionais de países não integrados na União Europeia — não tem força significante para que fundadamente se dê por verificada a não inovação exigível para afastar a observância obrigatória das regras de produção jurídica estabelecidas na Constituição. No novo “ambiente” legislativo, e mesmo não obnubilando a parcial coincidência do âmbito dos sujeitos excluídos, a norma impugnada tem um alcance normativo suficientemente diferenciado para que lhe possa ser justificadamente reconhecido caráter inovatório.
Assim sendo, a aprovação pelo Governo do disposto no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, viola o imposto no artigo 165.º, b), da Constituição, pelo que a norma dele constante é organicamente inconstitucional.
Foi com este fundamento que julguei inconstitucional a norma constante do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro.
João Cura Mariano