Imprimir acórdão
Processo n.º 357/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo n.º 1718/02.9JDLSB, da 8.ª Vara Criminal de Lisboa, foram condenados por acórdão proferido em 3 de setembro de 2010 os arguidos:
A., pela prática
- de um crime p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na redação da Lei 65/98, de 2 de setembro, na pessoa de B., na pena de três anos de prisão;
- de dois crimes p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, na pessoa de C., nas penas de quatro anos e seis meses de prisão, para cada um dos crimes.
- em cúmulo, na pena única de sete anos de prisão.
- a pagar a cada um dos demandantes B. e C., o montante de 25.000 Euros, a título de indemnização por danos morais.
D., pela prática
- de um crime p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, na pessoa de B., na pena de quatro anos e seis meses de prisão;
- de um crime p.p. pelo artigo 166.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/85, de 15 de março, na pessoa de E., na pena de três anos de prisão.
- em cúmulo, na pena única de cinco anos e nove meses de prisão.
- a pagar a cada um dos demandantes B. e E., o montante de 25.000 Euros, a título de indemnização por danos morais.
F., pela prática:
- de dois crimes p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, na pessoa de G., nas penas de quatro anos e seis meses de prisão, para cada um dos crimes;
- de um crime p.p. pelo artigo 175.º, n.º 1, do Código Penal, na redação da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, na pessoa de G., na pena de 2 dois anos de prisão.
- em cúmulo, na pena única de seis anos e oito meses de prisão.
- a pagar ao demandante G. o montante de 25.000 Euros, a título de indemnização por danos morais.
H., pela prática
- de um crime p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na redação da Lei 65/98, de 2 de setembro, na pessoa de B., na pena de quatro anos e seis meses de prisão;
- de dois crimes p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na redação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na pessoa de I., nas penas de três anos de prisão, para cada um dos crimes;
- de um crime p.p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, na pessoa de C., na pena de quatro anos e seis meses de prisão.
- em cúmulo, na pena única de sete anos de prisão.
- a pagar a cada um dos demandantes I., B. e C., o montante de 25.000 Euros, a título de indemnização por danos morais.
Inconformados com esta decisão, dela recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, além de outros, os arguidos acima referidos.
Antes, porém, foram interpostos vários recursos interlocutórios, os quais subiram diferidamente com o recurso da decisão que viesse a pôr termo à causa.
Com a resposta aos recursos interpostos pelo Ministério Público, pela Casa Pia de Lisboa e pelos assistentes J., K. e B., o arguido A. veio juntar aos autos três documentos (2 DVD’s com entrevistas dos assistentes L. e E. e 1 livro da autoria de L.).
O Ministério Público, no parecer a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que tais documentos não deviam ser admitidos nesta fase processual.
Notificado nos termos e para os efeitos do n.º 2, do artigo 417.º, do Código de Processo Penal, veio o arguido A., reiterar que os três documentos por si juntos sejam admitidos, requerendo, ainda, a junção de mais cinco documentos (2 DVD’s com entrevistas do arguido M. e do assistente K. e publicações das entrevistas concedidas por estes a três órgãos de comunicação social). Mais requereu que fosse admitida “a renovação da prova relativamente às declarações prestadas em audiência de julgamento pelo arguido M. e pelo assistente K., que devem ser ouvidos, em audiência, no Tribunal da Relação”.
Através de novo requerimento o arguido A. veio requerer a junção de mais cinco documentos, um dos quais um DVD.
O Tribunal da Relação de Lisboa, em 7 de dezembro de 2011, proferiu acórdão, indeferindo os referidos requerimentos apresentados pelo arguido A. nesse Tribunal.
O Tribunal da Relação de Lisboa, em 23 de fevereiro de 2012, proferiu acórdão em que, relativamente aos recursos interpostos pelos arguidos acima referidos, decidiu:
- Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido H. do despacho de fls. 17020 a 17055 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 2..
- Declarar extinto, com base em impossibilidade superveniente, o recurso interposto pelo arguido A. do despacho de fls. 17020 a 17055 dos autos principais, quanto à questão da violação do princípio do juiz natural (Conclusões n) a q) do recurso), negando-lhe provimento, quanto à invocada exceção da nulidade da acusação deduzida pelo Ministério Público com base na sua excessiva vaguidade, nos termos supra referidos em II. A. 3..
- Declarar parcialmente extintos, ao abrigo do disposto no art. 287.º, al. e), do CPC, ex vi do art. 4.º do CPP, os recursos interpostos pelos arguidos D. e A. do despacho de fls. 17042 a 17046 dos autos principais, com base na sua inutilidade superveniente, no que se refere à apreciação da legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal quanto a outros menores, que não os ofendidos B. e C., negando-se-lhes provimento quanto ao demais, nos termos supra referidos em II. A. 4..
- Negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos A., D. e H., do despacho de fls. 25475 a 25488 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 6..
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido H. do despacho de fls. 28916 (ponto 2.) a 28927, nos termos supra referidos em II. A. 7..
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A. dos despachos de fls. 34601 a 34603 e 34604 a 34605 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 9..
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido H. do despacho de fls. 51445 a 51450 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 12..
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido F. do despacho proferido a fls. 55504 a 55506 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 13..
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido H. do despacho constante do ponto II de fls. 33696 a 33703 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 14..
- Negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos A. e H., do despacho constante do ponto II de fls. 60474 a 60490 dos autos principais, que, em consequência, se confirma, com a correção dos lapsos de escrita acima consignados em II. A. 14., ao abrigo do disposto no art. 380.º, n.ºs 1 al. b), 2 e 3 do CPP, nos termos seguintes:
- onde na penúltima linha de fls. 60474 dos autos principais se lê 'N. e as testemunhas O. e P.' deve passar a ler-se 'N., Q. e as testemunhas O. e P.';
- onde na oitava linha de fls. 60475 dos autos principais se lê 'N. e as testemunhas O. e P.' deve passar a ler-se 'N., Q. e as testemunhas O. e P.';
- onde na sexta linha de fls. 60477 dos autos principais se lê 'N. e as testemunhas O. e P.' deve passar a ler-se 'N., Q. e as testemunhas O. e P.';
- onde na quarta linha de fls. 60484 dos autos principais se lê 'N. e as testemunhas O. e P.' deve passar a ler-se 'N., Q. e as testemunhas O. e P.'
e no final dessa mesma página (fls. 60484) deve, ainda, passar a ler-se: 'O Assistente Q. foi ouvido na audiência de julgamento de 21/11/2005.'.
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A., do despacho constante do ponto II de fls. 60575 a 60590 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 14..
- Negar provimento aos recursos interlocutórios (na parte em que foram conhecidos) interpostos pelos arguidos F., D., H. e A. dos despachos proferidos a fls. 63918 a 63959, 64055 a 64112 e 65137 a 65225 dos autos principais, nos termos supra referidos em II. A. 15..
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido D. da decisão final, no que respeita à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, alterando-se o ponto 104.4. dos factos dados como provados nos termos seguintes:
'104.4. O assistente B. foi para um quarto, na companhia do arguido D., o qual, após ter tirado o pénis para fora das calças, introduziu-o na boca do menor, aí o tendo friccionado.'
Passando a constar dos factos não provados o ponto 22.3. com a redação seguinte:
“22.3. Nas circunstâncias descritas no ponto 104.4. dos factos provados o assistente B. permaneceu na sala na companhia do arguido D..”
O ponto 22.3. dos factos não provados do acórdão recorrido passa a ser o ponto 22.4. e a factualidade vertida atualmente neste ponto passa a ser o ponto 22.5.;
negando-se-lhe provimento quanto ao demais.
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido F. da decisão final, no que respeita à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, alterando-se o ponto 105.13. dos factos dados como provados nos termos seguintes:
“105.13. No interior desta o arguido F. dirigiu-se ao G. e disse-lhe para o acompanhar a um quarto.”
negando-se-lhe provimento quanto ao demais.
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido H. da decisão final, no que respeita à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, alterando-se os pontos 107.4., 107.6. e 108.6. dos factos dados como provados nos termos seguintes:
“107.4. Entretanto, o arguido H., que aguardava a chegada do menor, dirigiu-se ao mesmo e manipulou-lhe o pénis, até este ejacular, tendo o menor também manipulado o pénis do arguido.
De seguida, o arguido H. introduziu o seu pénis na boca do menor, que o chupou, a mando daquele.”
“107.6. O arguido H. admitiu como possível que o menor que sujeitou à prática dos atos sexuais descritos tinha idade inferior a 14 anos.”
“108.6. O arguido H. admitiu como possível que o menor que sujeitou à prática dos atos sexuais descritos tinha idade inferior a 14 anos.”
Passando a constar dos factos não provados o ponto 25.2. com a redação seguinte:
“25.2. Nas circunstâncias descritas no ponto 107.4. dos factos provados o arguido H. conduziu C. a um quarto da residência.”
O ponto 25.2. dos factos não provados do acórdão recorrido passa a ser o ponto 25.3. e a factualidade vertida atualmente neste ponto passa a ser o ponto 25.4..
Corrige-se, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1, al. b), e 2 do art. 380.º do CPP, o lapso existente no ponto 110.4. dos factos dados como provados, o qual passa a ter a redação seguinte:
“110.4. Durante, pelo menos, duas das consultas referidas nos pontos “110.3.” dos factos provados, o arguido H. disse a I. para despir as calças e as cuecas, que se deitasse na marquesa e manipulou-lhe o pénis, enquanto, simultaneamente, o I. mexia no pénis do arguido, a seu pedido, também até à ejaculação.”
E, ainda:
- onde se lê no primeiro parágrafo da pág. 1667 do acórdão recorrido “verão de 1999” deverá ler-se “verão de 1996” e onde se lê na pág. 748 do acórdão recorrido, no ponto (2.5), o número 24 551 526, deverá ler-se 962451526;
- passando a ler-se no ponto 5.3.5. da pág. 1687 do acórdão recorrido, em conformidade com o que consta no dispositivo desse acórdão, o seguinte:
“5.3.5. Com referência aos crimes pelos quais cumpre condenar o arguido H.:
1. (Com referência ao capítulo 4.4.2, do Despacho de Pronúncia) na pessoa de B.:
a) 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime p.p. 172º, nº 1 e 2, do C.Penal, na versão em vigor à data da sua prática (Lei 65/98, de 2/09, em vigor desde 7/09/98).“
Em tudo o mais, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido H..
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido A. da decisão final, quanto à invocada nulidade parcial do acórdão recorrido, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, por não ter sido feita a comunicação prevista no art. 358.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, no que respeita à alteração não substancial dos factos constantes do ponto 6.7.2. do despacho de pronúncia, com os efeitos já determinados supra em U).
Em tudo o mais, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido A..
Mantêm-se as duas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão impostas pela 1.ª instância ao arguido A., pela prática de dois crimes p.p. pelo art. 172.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pessoa do assistente C. (factos dados como provados sob os pontos 106. a 106.25., com referência ao capítulo 4.3.1 do despacho de pronúncia). Em cúmulo jurídico destas duas penas parcelares, nos termos do disposto no art. 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, condena-se o arguido A. na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
- Ordenar, ao abrigo do disposto na al. b), do n.º 1, do art. 30.º do CPP, a separação de processos relativamente ao arguido A., no que aos crimes ocorridos em Elvas respeita, por forma a que possam ser supridas pela 1.ª instância as nulidades supra apontadas ao acórdão recorrido.
O arguido A. interpôs recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 7 de dezembro de 2011, para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“I-1º VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE
1º O arguido requereu a junção aos autos de documentos produzidos após a prolação da sentença de 1ª instância – com a resposta ao recurso do M.P. e com os requerimentos de fls. 72.689 e ss. e 72.866 e ss. –, os quais julgou relevantes para o recurso sobre a matéria de facto que interpusera.
2º O acórdão ora recorrido não os admitiu, com fundamento na sua extemporaneidade, uma vez que sustenta que, de acordo com o entendimento normativo adotado quanto ao art. 165º nº 1 do C.P.C., a junção de documentos só pode – sem exceções – realizar-se até ao encerramento da audiência de julgamento em 1ª instância.
3º Tal entendimento normativo daquele art. 165º nº 1 do C.P.C. – no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos relevantes para a defesa do arguido, em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após a prolação daquela sentença de 1ª instância, só então sendo do conhecimento do arguido – é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso consagrados no art. 32º nº 1 da CRP, bem como do princípio do processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP, os quais também têm acolhimento na CEDH.
4º Esse vício de inconstitucionalidade já foi arguido pelo ora Recorrente, designadamente nos arts. 41º e 42º do requerimento de fls. 72.866 e ss..
II - 2º VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE
5º O ora Recorrente requereu a renovação da prova relativamente às declarações prestadas em audiência de julgamento por M., K., O. e R., requerendo que os mesmos fossem ouvidos, em audiência, no Tribunal da Relação.
6º O acórdão recorrido entende que lhe está vedado admitir tal renovação da prova, a qual só seria admissível se ocorresse algum dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do C.P.C., de modo a evitar o reenvio do processo, fundando tal entendimento normativo na interpretação que faz do art. 430º nº 1 do C.P.C..
7º Para o ora Recorrente, tal interpretação normativa – no sentido em que só é admissível a renovação da prova perante os vícios previstos no art. 410º nº 2 do CP.C., não sendo assim admissível se o pedido se fundar em documentos de prova supervenientes, maxime perante declarações de sujeitos processuais em que se baseou a sentença recorrida e que, na pendência do recurso, se retratam, assumindo por escrito, perante o tribunal de recurso, que mentiram, pedindo para serem de novo ouvidas – é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso consagrados no art. 32º nº 1 d a CRP, bem como do princípio do processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP, os quais também têm acolhimento na CEDH.
8º Esse vício de inconstitucionalidade – muito embora reportado ao art. 412º nº 3-c) do C.P.P., o que, porém, é para o efeito despiciendo, porque o que está em causa é o entendimento normativo adotado – já fora arguido pelo Recorrente nos arts. 58º e 59º do requerimento de fls. 72.866 e ss..
9º O presente recurso é interposto ao abrigo do art. 70º nº 1 -b) da LTC.
III - NOTA FINAL
10º As teses ora impugnadas do acórdão recorrido têm suporte numa leitura possível dos textos legais, estão conforme à jurisprudência dominante e estão defendidas com uma fundamentação cuidadosa.
11º Porém, ressalvado o devido respeito, afrontam princípios constitucionais que são pilares de um processo penal equitativo.
12º Infelizmente, entre nós, abundam leituras puramente formais da lei, que, a um tempo, favorecem os mais graves infratores e, a outro, vitimam os que se batem pela demonstração da sua inocência.
13º In casu, sacrificam um inocente que, há oito anos, luta por demonstrar que não praticou os factos de que está acusado e que não conhecia as alegadas vítimas de abuso sexual, nem os restantes arguidos, nem os locais dos supostos abusos, nada tendo a ver com a factualidade dos autos, a que é completamente alheio.
14º Hoje, pergunta-se, angustiado e descrente, se viverá para ver reconhecida a justiça a que tem direito.”
O arguido A. interpôs também recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de fevereiro de 2012, para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“I - PRIMEIRO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE: A QUESTÃO DO ART. 356º DO C.P.P.
1. Todos sabemos como é difícil a prova num caso de abuso sexual em que apenas podemos confrontar a versão da vítima com a do abusador, ainda para mais, quando, muitas vezes, entre ambos, há um relacionamento familiar e um convívio no mesmo espaço a que mais ninguém tem acesso.
Porém, nada disso é o que acontece no processo da Casa Pia.
Aqui, estamos perante uma acusação fundada numa rede informal de abusadores, que atuariam: i) em conjunto e em colaboração de esforços; ii) participando frequentemente em festas sexuais com uma pluralidade de vítimas; iii) utilizando sempre um angariador identificado, M.; iv) recorrendo a casas habitadas, em malhas urbanas igualmente habitadas, devidamente localizadas.
Tal contexto haveria de permitir uma prova sólida, rodeada de corroborações periféricas de caráter objetivo, que permitisse estabelecer traços de relacionamento e de concertação.
Todavia, no processo da Casa Pia, mesmo considerando uma prática que teria ocorrido durante vários anos, abrangendo um número vasto de abusadores e abusados e localizada numa pluralidade de locais devidamente identificados, um dado é assente: não foi encontrada uma única prova – sublinha-se, uma única prova – que corroborasse as declarações das alegadas vítimas.
2. Daí a enorme e crucial importância das declarações das vítimas.
Todos sabemos que as contradições do discurso, as faltas de memória, o esquecimento de circunstâncias acessórias, os equívocos temporais e espaciais existem nas declarações verdadeiras e, num certo sentido, até as credibilizam. Porém, todos também sabemos que a natureza das declarações pode evidenciar a sua falta de credibilidade. Seja porque revelam um discurso ilógico sem explicação plausível, seja porque falta a prova circunstancial que seria razoável esperar que existisse, seja porque encerram ambiguidades, oscilações e contradições que, pela sua índole, gravidade, número e encadeamento, revelam que o depoimento tem uma nula ou baixíssima probabilidade de relatar a verdade.
Tais critérios são universais e impõem-se à consciência de quem respeita a presunção de inocência e os outros valores do Estado de Direito. Dir-se-ia mesmo que se impõem à consciência de qualquer homem justo.
3. Na ótica da defesa de A., as vítimas do processo Casa Pia criaram uma fantasia – consciente ou inconsciente –, que foi construída ao longo do inquérito, em que foram sincronizando discursos de modo a encontrar uma história coletiva para contar.
Em função desse pressuposto, foi organizada toda a defesa, que, logo na contestação, fez questão de sublinhar que uma das suas linhas de orientação tinha exatamente a ver com a demonstração da inquinação da capacidade das alegadas vítimas para efetuarem depoimentos livres e credíveis, o que se sublinhou nos nºs 234 a 239 da contestação, que a seguir se transcrevem:
234. Aqui chegados, facilmente se conclui que a história deste autos se resume ao depoimento de meia dúzia de alegadas vítimas e à como elas manipularam ou foram manipulados de forma a acusar o arguido, que não os conhece, nem manteve com qualquer delas nenhum tipo de relação.
235. O arguido não tem uma resposta que explique as motivações subjacentes a tão sinistro comportamento, resulte ele de sugestão, de inquinação, de efabulação, de pura perversidade, ou de qualquer outra causa. Mas também não lhe cabe fazer essa indagação para o que não tem meios.
236. Mas há um dado cuja prova não se dispensa de fazer em julgamento: a metodologia utilizada pela investigação na abordagem destas alegadas vítimas violou objetivamente as regras técnicas que devem presidir à inquirição e ao exame de menores abusados sexualmente.
E isso inquinou irremediavelmente a sua capacidade para depor.
237. E o que resulta do seguinte:
a) Realização de inquirições policiais desacompanhadas de pessoal técnico especializado e sem gravação de qualquer espécie, o que facilitou a existência de influências sugestivos ou persuasivas, mesmo inadvertidas;
b) Falta de acompanhamento das motivações dos jovens, que não foram indagadas;
c) Inexistência de valoração das influências mediáticas, que não foram consideradas;
d) Aceitação de “memórias recuperados” como se fossem genuínos;
e) Sincronização dos discursos de modo a encontrar uma história coletiva para contar;
f) Manifesta falta de avaliação dos meios familiares e sociais onde os jovens estavam inseridos.
238. No que diz respeito às perícias de personalidade médico-legais, é especialmente grave que tenha ocorrido o seguinte:
a) Atribuição da sua realização a uma pessoa sem currículo nem experiência para a função, como decorre da circunstância de se tratar de uma recém licenciada e do facto de nunca até então ter realizado uma perícia a uma vítima de abuso sexual para fins de um processo de natureza criminal (como é reconhecido pela própria);
b) Prática dos erros assinalados nas alíneas b) a f) do número anterior;
c) Completo desconhecimento das inquirições anteriormente efetuados no âmbito policial, de forma a poder avaliar a sua influência no discurso dos jovens;
d) Ausência de meios de controlo de validade das declarações prestadas, através dos quais o respetivo conteúdo seja reobservado tendo em atenção o grau de sugestibilidade da criança e adolescente, a sua história sexual e a consistência do relato clínico;
e) Inclusão de valorações psicológicas sem referência aos motivos que as expliquem;
f) Omissão de verificação da capacidade de julgamento moral dos examinados, bem como ausência de análise da coerência interna e externa dos seus relatos;
g) Confusão entre credibilidade e veracidade;
h) Não esclarecimento acerca dos critérios adequados para a formulação de um diagnóstico de personalidade antissocial, bem como acerca da sua verificação ou não relativamente aos examinados;
i) Não realização de contraprovas aos testes efetuados;
j) Incapacidade de análise da estrutura de funcionamento dos jovens, que foi omitida;
k) Uniformização dos sujeitos objeto das perícias, que são, nas suas conclusões, basicamente idênticas.
239. Perante tantos e tão extraordinários erros e omissões – para o que não se encontra uma explicação razoável - está irremediavelmente inquinada ou comprometida a capacidade das alegadas vítimas para efetuarem depoimentos livres e credíveis, os quais terão de ser valorados à luz desta factualidade.
4. Durante o julgamento, a prova produzida confirmou o pressuposto e alicerçou a convicção de que não seria possível reconstituir a verdade material sem confrontar as alegadas vítimas com as versões narradas no inquérito, as quais, em pontos essenciais, conflituavam com as suas declarações prestadas em julgamento.
Isto é, as declarações das vítimas em que se fundava a acusação divergiam – em aspetos essenciais – das declarações prestadas em julgamento, com base nas quais se pretendia a condenação!
Foi nesse contexto que o arguido, através do requerimento de fls. 55.220 a 55.223, requereu a leitura de declarações prestadas no inquérito por oito assistentes e duas testemunhas (as quais só não eram assistentes porque, quanto a elas, teria caducado o direito de queixa), a que se seguiria o confronto dessas pessoas com tais declarações.
O Tribunal – através de despacho lavrado na ata da audiência de 22 de outubro de 2008, disponível a 24 de outubro (a fls. 60.474 e ss.) – indeferiu o pedido por entender que – em face da oposição dos assistentes – o art. 356º do C.P.C. não o permitiria, dado que, perante tal posição processual, em nenhuma situação se poderia proceder à leitura dessas declarações e, por maioria de razão, ao confronto subsequente daquelas pessoas com o teor de tais declarações.
5. Desse despacho foi interposto o competente recurso pelo arguido A. (remetido, por fax, a 13 de novembro de 2008), cujas conclusões eram do seguinte teor:
A) As declarações dos jovens ora em causa, prestadas no inquérito, conflituam, em aspetos cruciais, com aquilo que declararam no julgamento, quer quanto aos locais, quer quanto ao envolvimento de terceiros, quer quanto à cronologia dos factos, quer quanto ao circunstancialismo envolvente.
B) Não há que escamotear o evidente: neste processo no se pode fazer verdadeira justiça se o tribunal não tiver conhecimento das declarações prestadas pelos jovens em apreço durante o inquérito, de forma a avaliar cabalmente a sua credibilidade, tendo em conta a evolução do seu discurso e a natureza das contradições desse discurso, sendo certo que é consensual, na doutrina cientifica, que a avaliação dessas contradições é elemento imprescindível para a formulação de um juízo adequado quanto àquela credibilidade.
C) O exercício da defesa não pode prescindir da leitura dessas declarações e, quando for o caso, do confronto dos jovens em causa com o teor das mesmas.
D) O regime do art. 356º do C.P.P. não pode impedir tal leitura, quando se trate de declarações dos assistentes ou de testemunhas que igualmente incriminam os arguidos, em processo em que a prova da acusação assenta basicamente nos depoimentos dessas pessoas e quando tais pessoas foram ouvidas na fase de inquérito sob a égide do Ministério Público ou sob sua delegação, sempre que isso se revelar fundamental para o exercício da defesa.
E) Tais declarações não podem servir para a prova de factos positivos – e nisso se mantém útil o regime do art. 356º do C.P.P. -, mas podem ser utilizadas para avaliar da credibilidade de quem imputa factos criminosos a arguidos de um processo, cuja prova fundamental assenta precisamente nos depoimentos dessas pessoas, sob pena de se ofender o núcleo essencial das garantias de defesa e o princípio de um processo equitativo, tal como a CRP e CEDH salvaguardam.
F) Foi nesse contexto que o arguido requereu, ao abrigo do art. 340º do C.P.P., interpretado em consonância com o art. 32º nº 1 da CRP e com o art. 6º nº 1 da CEDH, o seguinte:
a) A leitura das declarações prestadas no inquérito pelos assistentes L., E., C., K., S., B., J., N. e pelas testemunhas O. e P., tendo em conta que, durante o julgamento, descreveram factos que, direta ou indiretamente, incriminam o arguido A. em termos que devem ser avaliados considerando aquilo que de substancialmente diferente disseram no inquérito, deforma a que possa ser cabalmente avaliada a credibilidade da sua prestação;
b) Efetuada tal leitura, devem os jovens acima referidos ser confrontados com as declarações prestadas em inquérito que, em matéria substancialmente relevante, conflitua com o que disseram em julgamento, de forma a avaliar a credibilidade das declarações prestadas em julgamento;
c) Caso o Tribunal entenda que o deferimento do pedido depende da identificação concreta de todas essas contradições, requer-se que seja concedido prazo de 10 dias para o efeito.
G) Nenhum dos arguidos se opôs à leitura das declarações ora em causa.
Mas os assistentes opuseram-se expressamente a essa leitura e o Ministério Público pugnou pelo indeferimento do requerido.
H) Tal requerimento foi indeferido pelo despacho ora recorrido.
Aí se reconhece que o regime do art. 356º do C.P.P. constitui uma garantia de defesa do arguido, mas, ainda assim, lendo os assistentes expressamente recusado o consentimento para as leituras em causa, entende-se que tal leitura não pode ter lugar por força no disposto no art. 356º nºs 2 e 5, devidamente conjugado com o art. 355º nº 1, todos do C. P. P..
I) Estamos perante a questão processual mais grave destes quatro anos de julgamento.
J) O acesso a essas declarações é imprescindível para se fazer a prova da inquinação das suas memórias e do processo deformação da sua vontade.
K) O arguido desde a sua contestação – cfr. nºs 234 a 237 dessa peça processual – sempre afirmou que era indispensável demonstrar que a metodologia utilizada pela investigação na abordagem das alegadas vítimas tinha inquinado a sua credibilidade.
L) E por isso intolerável que, com base na oposição dos assistentes, não se possa proceder à leitura do que eles próprios declararam em inquérito, sendo certo que foram essas as declarações em que se fundou a acusação pela qual os arguidos respondem...
M) Ressalvado o devido respeito, a leitura restritiva do art. 356º do C.P.P. adotada pelo Tribunal – a de que, havendo oposição ou não consentimento dos assistentes, não pode, em nenhuma situação, ser efetuada a leitura de declarações prestadas em inquérito – é errónea e constitui um gravíssimo entorse a um processo equitativo e uma inaceitável restrição das garantias de defesa.
N) O entendimento normativo do art. 356º nº 2-b) e nº 5 do C.P.P., devidamente conjugado com o art. nº 355º nº 1 do C.P.P. no sentido de que, não tendo expressamente os assistentes dado o seu consentimento à leitura de declarações de assistentes e testemunhas que incriminam os arguidos – por estes requerida para avaliar cabalmente a credibilidade da sua prestação em audiência de julgamento, uma vez que são substancialmente diferentes das prestadas em inquérito –, como consta do despacho recorrido, a fls. 60.482, é inconstitucional, por violação do reduto nuclear das garantias de defesa consagradas pelo art. 32º nº 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art. 20º nº 4 da C.R.P. e pelo art. 6ºda C.E.D.FL.
6. Tal recurso interlocutório foi apreciado pelo acórdão recorrido (a págs. 433 e ss.), tendo-o feito em conjunto com a apreciação de outros recursos sobre matéria análoga, igualmente interpostos pelo arguido A. e pelo arguido H..
O recurso foi julgado improcedente, tendo o acórdão adotado o mesmo entendimento normativo da 1ª instância, ou seja, o de que o art. 356º do C.P.P. não admitiria – em caso algum – a leitura de declarações prestadas no inquérito, se os assistentes nisso não consentissem.
Vejamos, mais de espaço, o segmento nuclear da fundamentação do acórdão recorrido:
Resulta assim, de todo o exposto, que face ao preceituado nos citados arts. 355.º, n.º 1 e 356.º, n.º 2, al. b), e 5, do CPP, a leitura e conhecimento do conteúdo dos autos a que se referem os requerimentos dos arguidos ora em apreço só seria possível com o consentimento de todos os sujeitos processuais, incluindo os assistentes, e esta anuência não existiu in casu. Releva assim tão-só o que disseram em audiência, declarações que foram devidamente sujeitas a um procedimento adversarial.
Finalmente, a par do invocado desrespeito pelo preceituado nos arts. 5.º e 6.º da CEDH e 32.º, n.º 1, 2 e 5 da CRP, a que já sobejamente aludimos, considera o arguido H. terem sido também violados os princípios contidos nos arts. 18.º, 20.º, n.º 4, e 204.º da CRP.
Contudo, sem razão. Com efeito, dizem estas normas fundamentais respeito, respetivamente, à força jurídica dos preceitos constitucionais, ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, por via de um processo justo e equitativo, e ao princípio de que nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. Da conduta do Tribunal a quo, vistos os autos e tudo o que deixámos exposto, nada se retira de onde se possam inferir as alegadas violações.
A propósito da exigência de um processo equitativo, aplicável ao processo penal, remetemos aqui ao que a este respeito dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, Gomes Canotilho e Vital Moreira e Ireneu Cabral Barreto citados na apreciação do recurso interlocutório também interposto pelo arguido H., de fls. 51892 a 51905. do despacho proferido na sessão da audiência de julgamento de 11 de março de 2008 (cf fls. 51445 a 51450) e ao que aí lavrámos a propósito do n.º 4 do art. 20.º Lei Fundamental.
Igualmente não se vislumbra que o Tribunal a quo, ao impedir a leitura das declarações prestadas em inquérito pelos assistentes e/ou testemunhas, perante a Polícia Judiciária ou perante o Ministério Público, e sua confrontação com tais autos em audiência de julgamento, tenha desequilibrado o processo a favor da acusação, que tenha assegurado um tratamento de favor ou privilégio para o Ministério Público e para os assistentes (e, consequentemente, discriminatório para a defesa), que não tenha garantido o cumprimento do princípio do contraditório, já que estes foram devida e pessoalmente ouvidos e instados em julgamento, no respeito pelo princípio da concentração da prova na audiência de julgamento e com as vantagens inerentes à imediação e oralidade, que tenha impedido os arguidos de se defenderem dos factos que lhe são imputados, promovendo a sua condenação a final. Nem tão pouco o recorrente o explica, de modo mais detalhado, indicando que concreta valência do princípio do processo equitativo considera ter sido ofendida pela decisão recorrida.
Ao impedir aquela leitura - de anteriores declarações, que, sublinhe-se, não são objeto de prova - perante oposição de quem tinha legal poder para o permitir ou impedir, não se vê que as decisões recorridas de 22 e 29 de outubro de 2008 tenham efetuado uma interpretação atentatória do disposto no n.º 4 do art. 20.º da CRP. E certo que indeferiu as pretensões dos arguidos, mas tal não significa, repete-se, que tenha desequilibrado o processo a favor da acusação, ou que, por isso, tenha sido ofendido o princípio da igualdade de armas. Como é nosso entendimento, o processo penal não passa a ser iníquo pelo simples facto do tribunal ter indeferido uma, algumas ou até mesmo todas as pretensões apresentadas por um sujeito processual.
Nada nos permite concluir que o Tribunal recorrido tenha usado de “dois pesos e de duas medidas” ou que, em violação do princípio da imparcialidade, tenha tomado partido pela acusação em detrimento da defesa, em desrespeito do princípio constitucional do processo equitativo. Não se vê que o desfecho deste processo em primeira instância tenha ficado marcado pela circunstância do Tribunal a quo não ter autorizado a leitura dessas declarações e que os despachos ora recorridos tenham impossibilitado, dificultado ou prejudicado a defesa do recorrente H., beneficiando a acusação e comprometendo o equilíbrio imanente a um processo equitativo.
Assim, não se perfilha o entendimento de que o Tribunal a quo sufragou uma interpretação ofensiva das efetivas garantias de defesa do arguido.
Em suma: Destarte e atento o disposto no art. 32. º, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP e nos arts. 127.º, 355.º, 356.º, n.ºs 1, 2, al. b) e 5 e 323.º, al. f), estes do CPP, bem andou o Tribunal a quo ao não ter procedido à leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas por testemunhas/assistentes em inquérito, perante a Polícia Judiciária ou perante o Ministério Público, porquanto, não tendo havido acordo para tal entre os sujeitos processuais, estava-lhe vedado (ao Coletivo de primeira instância), por ser legalmente inadmissível, bem como a não permitir a leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas por testemunha/assistente em instrução perante Juiz na interpretação, errónea que este estava aí a dar por reproduzidas as prestadas anteriormente em inquérito, perante a Polícia Judiciária ou perante o Ministério Público, porque, de facto, não era manifestamente isso que estava a acontecer.
Assim sendo, impõe-se concluir não merecerem reparo os despachos recorridos de 22 e 29 de outubro de 2008 (pontos II), que importa serem confirmados, julgando-se improcedentes os recursos dos arguidos A. e H. que sobre os mesmos incidiram.
7. Assim sendo, o acórdão recorrido adota o entendimento normativo do art. 356º nº 2-b) e nº 5 do C.P.P., devidamente conjugado com o art. nº 355º nº 1 do C.P.P., no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, não pode – em nenhuma situação – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações [mesmo que se trate das declarações em que se funda a acusação dirigida aos arguidos e se esteja perante um pedido formulado a fim de avaliar cabalmente a credibilidade da prestação de tais assistentes e testemunhas em audiência de julgamento].
Tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação do reduto nuclear das garantias de defesa consagradas pelo art. 32º nº 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art. 20º nº 4 da C.R.P. e pelo art. 6º da C.E.D.H..
8. O entendimento normativo adotado – que radicalmente transforma o princípio da imediação num valor prevalecente, acima de tudo e de todos – é intolerável, impróprio de um Estado de Direito e desconhecido em qualquer outra ordem jurídica.
9. A inconstitucionalidade em apreço foi arguida nas conclusões M) e N) do recurso interlocutório, ora julgado improcedente pelo acórdão recorrido.
II - SEGUNDO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE: A QUESTÃO DO ART. 358º DO C.P.P.
10. A. foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual cometido numa vivenda de Elvas e de dois outros crimes da mesma natureza cometidos num prédio da Av. das Forças Armadas, em Lisboa.
Em ambas as situações, a condenação assentou em factualidade diferente daquela que constava da acusação e da pronúncia, o que levou o arguido – no recurso interposto do acórdão de 3 de setembro de 2010 – a arguir a sua nulidade, nos termos que constam das alíneas F) a O) das respetivas conclusões, que a seguir se transcrevem:
F) A. foi acusado e pronunciado pela prática de um abuso sexual na pessoa do menor B., de 13 anos de idade, supostamente ocorrido num sábado do último trimestre do ano de 1999, antes do Natal, na vivenda de Elvas (cfr. ponto 6.7.2.1 da pronúncia).
G) Foi assim com estupefação que leu, no acórdão recorrido, que o tribunal deu como provado que o crime em apreço teria sido cometido “num dia indeterminado do último trimestre do ano de 1999” (cfr. factos provados sob o n.º 125, 125.1 a 125.8); e, analisando a análise crítica da prova, isso terá decorrido do facto do tribunal ter dado crédito à versão do jovem de que esses abusos teriam ocorrido, nesse período, mas a um dia da semana.
H) Isto é, A. foi acusado de ter cometido um crime num sábado indeterminado do último trimestre de 1999; defendeu-se disso mesmo, desde logo com a apresentação de álibis com a contestação, que continuou a sustentar durante o julgamento todavia acabou condenado por ter praticado tal crime nesse período, mas a um dia da semana.
1) O acórdão, no segmento em análise, é nulo, irremediavelmente nulo, por força do disposto nos arts. 358º, 359º e 379º nº 1-b) do C.P.P.
J) Mas também sofre de idêntico vício a parte do acórdão que se reporta aos crimes atribuídos a A. no prédio da Av. das Forças Armadas.
K) Nas situações de abuso supostamente ocorridas na Av. das Forças Armadas, em Lisboa, em qualquer uma das duas situações aí abrangidas, a pronúncia descreve as circunstâncias da ocorrência dos crimes através do enunciado de que “o arguido A. contactou o arguido M. e pediu-lhe que levasse a uma residência sita na Av. das Forças Armadas (...) dois menores da CPL, afim de os sujeitar à prática de atos sexuais consigo” (1º situação) e de que “decorridos cerca de um ou dois meses, o arguido A. voltou a contactar com o arguido M., e pediu-lhe novamente que levasse à morada mencionada um menor da CPL, a fim de sujeitar o mesmo à prática de atos sexuais” (cfr. ponto 4.3.1 da pronúncia).
L) Em face desses factos, uma das linhos da defesa de A. foi a de demonstrar que não conhecia M., nem nunca, direta ou indiretamente, o teria contactado para o que quer que fosse, o que foi logo dito na contestação e decorre daquilo que se passou na audiência de julgamento; veja-se, por exemplo, a comparação efetuada aos registos de tráfico telefónico de um e de outro, bem como a sistemática impugnação de qualquer ponto por onde se pudesse pretender estabelecer uma ligação que realmente nunca existiu; quando M. – num segmento das suas declarações que mais parecia um momento de uma ópera bufa – pretendeu que a ligação se fazia através do porteiro T., fá falecido e reformado desde os anos 80, a defesa de A. fez juntar aos autos a documentação que comprovava o cariz delirante daquela mentira.
M) Em relação a ambas as situações, o que o tribunal deu como provado foi que M. levou os menores àquelas moradas para o efeito de serem abusados por A. “por contacto não concretamente apurado” (cfr. factos provados sob os nºs 106 e 106.12).
N) Em suma, tendo A. sido condenado com base numa circunstância de modo diferente da que constava da pronúncia – passando a ser considerado que a ligação entre M. e A. se deu “por contacto não concretamente apurado”, sendo esse elemento relevante para a defesa, como era –, sem que se tenha procedido à prévia comunicação prevista no art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal, o acórdão – nos segmentos em pauta – é igualmente nulo.
O) É inconstitucional, por violação do princípio constitucional do acusatório e das garantias de defesa, a eventual interpretação normativa dada ao art. 358º nº 1 do C.P.P, no sentido de que não tem que ser comunicada ao arguido a alteração do dia em que supostamente teria sido cometido o crime por que vem acusado, caso a defesa tenha sido estruturada tendo em conta esse dado, designadamente através de apresentação de álibi; idem, para o caso da alteração do contacto estabelecido com um comparticipante de facto na ação criminosa por via do qual teria supostamente sido atraído a vítima, caso a defesa tenha sido estruturada tendo em conta esse dado, designadamente através da sustentação de que não conhece esse intermediário.
11. O acórdão recorrido deferiu a nulidade arguida quanto ao presumível crime de Elvas, mas indeferiu a nulidade arguida quanto aos supostos crimes cometidos na Av. das Forças Armadas, o que – de pág. 3.208 a pág. 3.210 – fez nos seguintes termos:
No ponto 4.3.1 da pronúncia constava que “Em dezembro de 1999 ou janeiro de 2000, em dia em concreto não determinado, o arguido A. contactou com o arguido M. e pediu-lhe que levasse a uma residência sita na Avenida das Forças Armadas, numa fração do prédio correspondente ao Lote 3, nº. 111, em Lisboa, dois menores da CPL, afim de os sujeitar à prática de atos sexuais consigo.”
E um pouco mais à frente que “Decorridos cerca de um ou dois meses, o arguido A. voltou a contactar com o arguido M., e pediu-lhe novamente que levasse à morada mencionada um menor da CPL, afim de sujeitar o mesmo à prática de atos sexuais.”
Porém, na decisão recorrida deu-se como provado, por referência a esse ponto da pronúncia sob o ponto 106 o seguinte
“Em dezembro de 1999 ou janeiro de 2000, em dia em concreto não determinado, o arguido M., por contacto não concretamente apurado, levou a uma residência sita na Avenida das Forças Armadas, numa fração do prédio correspondente ao Lote 3, nº 111, em Lisboa, dois menores da CPL, onde se encontrava o arguido A., afim de este os sujeitar à prática de atos sexuais consigo.”
E, ainda, por referência ao mesmo ponto da pronúncia, sob o ponto 106.12. dos factos provados o seguinte:
“Decorridos cerca de um ou dois meses, o arguido M., por contacto não concretamente apurado, voltou a levar novamente ao arguido A. e à morada mencionada, um menor da CPL, afim de o arguido A. o sujeitar à prática de atos sexuais.”
Dando-se como não provado sob os pontos 24. e 24.2. que tenha sido o arguido A. que, nessas circunstâncias, contactou com o arguido M..
Ora, tal alteração traduziu-se numa redução, por falta de demonstração, dos factos de que o arguido A. estava pronunciado, isto é, o Tribunal a quo não conseguiu apurar entre quem foi estabelecido o contacto para o arguido M. levar até ao arguido A. os menores da Casa Pia, mas apenas que esse contacto foi estabelecido.
Convocamos aqui as considerações teóricas tecidas no recurso interlocutório supra decidido em II A. 15. sobre alterações substanciais e não substanciais de factos da acusação ou pronúncia.
Quando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos, não existe uma alteração dos factos integradora do art. 358.º CPP.
No caso, o não apuramento entre quem foi estabelecido o contacto é um minus relativamente aos factos que constavam da pronúncia, pelo que não haveria, como não há, necessidade de proceder a qualquer comunicação de alteração de factos.
Alega o recorrente que é inconstitucional, por violação do princípio do acusatório e das garantias de defesa, a eventual interpretação normativa dada ao art. 358.º n.º 1 do CPP no sentido de que não tem de ser comunicada ao arguido a “alteração do contacto estabelecido com um comparticipante de facto na ação criminosa por via do qual teria supostamente sido atraído a vítima, caso a defesa tenha sido estruturada tendo em conta esse dado, designadamente através da sustentação de que não conhece esse intermediário.”
Não explícita o recorrente de que forma são violados os princípios constitucionais a que alude, sendo certo que nem sequer indica as normas que, em concreto, do diploma fundamental são violadas.
Presume-se que o recorrente se esteja a referir ao art. 32.º da CRP, o qual estabelece que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso” – n.º 1, e ainda que o “processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório” – n.º 5.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou por diversas vezes no sentido de que não é inconstitucional a dimensão normativa do art. 358.º do CPP que considere não constituir alteração não substancial dos factos relevante as situações em que os factos em que assenta a condenação integrem o mesmo (ou até outro) tipo legal de crime e representem “um minus” em relação ao que constava da pronúncia .
Vejam-se, entre outros, os Ac. do Tribunal Constitucional n.º 72/05 e 674/99.
Neste último, refere-se “...liminarmente se exclui a eventual inconstitucionalidade das normas em causa enquanto interpretadas no sentido de se não considerar como alteração dos factos a consideração no acórdão condenatório de factos que se afastam da pronúncia tão só em decorrência de nem toda a factualidade nesta descrita ter vindo a ser dada como provada na audiência de julgamento, ou então porque os factos provados constituem uma redução relativamente aos factos constantes da pronúncia.”
Pelo exposto, quanto à invocada nulidade do acórdão, nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. b), do CPP, por violação do disposto no art. 358.º do mesmo diploma legal, procede apenas parcialmente o recurso interposto pelo arguido A., nos termos supra referidos, determinando-se a baixa dos autos à 1.ª instância para que, em audiência de julgamento, seja dado cumprimento ao disposto no art. 358.º n.º 1 do CPP no que respeita à alteração não substancial dos factos relativos ao ponto 6.7.2. do despacho de pronúncia e demais termos subsequentes.
12. Isto é, para o acórdão recorrido o que conta relativamente à alteração não substancial de factos não é a relevância dessa modificação para o exercício da defesa – em concreto apreciada –, como sustenta e justifica a defesa de A., mas sim a circunstância meramente formal de a alteração representar ou não um “minus” em relação ao que constava da pronúncia.
13. Pelo exposto, o acórdão recorrido adota o entendimento normativo do art. 358º nº 1 do C.P.P., no sentido de que não tem que ser previamente comunicada ao arguido – para o efeito desse preceito legal – a alteração de uma circunstância de modo descrita na pronúncia relativa à prática do crime que o incrimina – in casu, a alteração do contacto estabelecido com um comparticipante na ação criminosa, por via do qual teria sido supostamente atraída a vítima – desde que isso represente um “minus” e sem que tenha que ser apreciada – em concreto – a relevância da alteração dessa circunstância de modo para a defesa do arguido.
14. Esse entendimento normativo é inconstitucional, por violação do princípio constitucional do acusatório e do núcleo essencial das garantias de defesa, que estão consagrados no art. 32º da CRP, respetivamente nos seus nºs 5 e 1.
15. Tal inconstitucionalidade já fora arguida, na conclusão O) do recurso interposto pelo arguido A. do acórdão de 3 de setembro de 2010.
III - TERCEIRO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE: A DENEGAÇÃO DO DIREITO AO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
16. O núcleo fundamental do recurso interposto pelo arguido A. do acórdão de 3 de setembro de 2010 tem a ver com a impugnação da matéria de facto relativamente a uma factualidade precisa, identificada em tal recurso, a que se reportam as conclusões P) a Y) do recurso interposto:
P) Vai impugnada a matéria de facto que o tribunal julgou como provada, com referência ao seu suposto relacionamento com M., U. e V., aos supostos atos sexuais praticados com os menores C., B. e E., ao seu suposto conhecimento desses menores, às suas supostas deslocações à Av. das Forças Armadas, à vivenda de Elvas ou a qualquer outro local onde supostamente tivesse por si sido praticado qualquer ato de abuso sexual, uma vez que NÂO É VERDADE QUE TAIS FACTOS TENHAM OCORRIDO.
Q) Tal factualidade é a que consta dos factos provados e assentes no acórdão recorrido sob os nºs 106 a 106.22, 113 a 116, 120 a 124, 125 a 127 e 131 a 135.2, o que se concretiza para os efeitos do art. 412º nº 3-a) do Código de Processo Penal, que impõe a especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, quando o recorrente pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, como é o caso.
R) Determinando igualmente a lei, na alínea b) do nº 3 do mesmo art. 412º, que, nesse caso, o recorrente tem de indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, desde já se adianta que essa especificação foi feita ao longo da motivação do recurso, através da referência ao consignado na ata, quando se trate de provas que tenham sido gravadas, ou por remissão para o processo principal ou apensos, quando se trate de prova documental ou pericial.
S) Contudo, relativamente à prova gravada que se prende com a factual idade imputada a A. nas casas que são objeto da SEGUNDA PARTE do recurso, segue, em anexo a estas conclusões, delas fazendo parte integrante, uma listagem com a identificação dos concretos suportes magnéticos donde constam, tal como referido na sessão respetiva.
T) O acórdão funda-se exclusivamente naquilo que denomina de ressonância de veracidade das declarações de C., E. e B., as quais seriam igualmente confirmadas parcialmente pelo arguido M., o conjeturado angariador.
U) Porém, o acórdão faz uma errónea apreciação da prova, o que constitui o objeto central deste recurso.
V) Verifica-se a completa inconsistência do que estas quatro personagens disseram, o que decorre do caráter das contradições, lacunas e incongruências dos seus depoimentos, que – pela natureza, gravidade, número e encadeamento – não podem nem devem permitir uma avaliação positiva acerca da plausibilidade e verosimilhança dos seus depoimentos, de forma a concluir por um razoável grau de probabilidade da ocorrência daquilo que narraram.
W) Pelo contrário, só é possível uma apreciação intelectual que, baseada na objetividade do processo, conclua no sentido de que os seus relatos não são plausíveis nem verosímeis, havendo uma baixíssima probabilidade de terem relatado a verdade, o que resulta de uma análise centrada no seguinte critério: i) a memória do local aonde se foi; ii) a memória de com quem se foi, iii) a memória de quando, como e porque se foi; iv) a memória do que lá se passou.
X) O tribunal omitiu uma avaliação da congruência global dos depoimentos, refugiando-se numa ideia puramente psicológica de ressonância da veracidade, observada através de tiques verbais ou fisionómicos, sem corroboração periférica ou externa de qualquer elemento, desconsiderando toda a restante prova.
Y) Essa interpretação do princípio da livre convicção do juiz é geradora de uma decisão arbitrária, que fica submetida ao preconceito de quem julga, o que implica que o acórdão recorrido consubstancia uma intolerável violação do princípio da presunção da inocência, tal como consagrado no art. 6º da CEDH.
17. No que ora releva, a factualidade que interessa é a que diz respeito aos factos dados como provados em relação aos crimes supostamente cometidos na Av. das Forças Armadas, que o acórdão de 3 de setembro de 2010 reporta sob os nºs 106 a 106.22, o que foi devidamente identificado no recurso interposto, designadamente na conclusão Q), tal como exige o art. 412º nº 3-a) do C.P.P..
Vão de seguida transcritos os diferentes pontos de facto dados como provados que dizem respeito ao núcleo factual referente à casa da Av. das Forças Armadas:
106. Em dezembro de 1999 ou janeiro de 2000, em dia em concreto não determinado, o arguido M., por contacto não concretamente apurado, levou a uma residência sita na Avenida das Forças Armadas, numa fração do prédio correspondente ao Lote 3, nº. 111, em Lisboa, dois menores da CPL, onde se encontrava o arguido A., afim de este os sujeitar à prática de atos sexuais consigo.
106.1. O arguido M., no dia em causa, falou com o E. e levou-o, bem como o assistente C..
106.2. C., à data com 13 anos de idade, foi então levado nesse dia à noite, juntamente com o menor E., pelo arguido M., à residência referida; utilizando um veículo.
106.3. Acompanhava também o grupo o menor L..
106.4. Ao chegarem àquela casa, o arguido M., o C. e E. foram recebidos pelo arguido A., tendo também subido L..
106.5. Depois de o arguido M. e o L. desceram e o arguido A. conduziu os menores E. e C. a um dos quartos.
106.6. O arguido A. disse ao menor C. para esperar na sala, tendo ficado no quarto com o menor E., que sujeitou à prática de atos sexuais. Após E. saiu do quarto.
106.7. O arguido A. chamou, então, ao quarto, o menor C., onde começou por manipular o pénis do menor, masturbando-o.
106.8. De seguida; o arguido introduziu também o pénis do menor na sua boca, chupando-o, enquanto, simultaneamente, manipulava o seu próprio pénis. Por seu turno, o menor C., mexeu no pénis do arguido A., manipulando-o.
106.9. Depois, o arguido introduziu o seu pénis na boca do menor, tendo-o este chupado.
De seguida, o arguido A. introduziu o seu pénis ereto no ânus do menor, aí o tendo friccionado até à ejaculação.
106.10. Após a prática de tais atos, ambos os menores saíram, estando à espera dos mesmos o arguido M., que lhes deu dinheiro, em quantia não determinada.
106.11. Como contrapartida por o arguido M. ter conduzido à mencionada casa os menores, para que com eles praticasse os atos supra descritos, o arguido A. entregou àquele uma quantia em dinheiro, em montante não apurado.
106.12. Decorridos cerca de um ou dois meses, o arguido M., por contacto não concretamente apurado, voltou a levar novamente ao arguido A. e à morada mencionada, um menor da CPL, a fim de o arguido A. o sujeitar à prática de atos sexuais.
106.13. Na sequência desse pedido, o arguido M. contactou outra vez o menor C., ainda com 13 anos de idade, que novamente levou à mesma casa
106.14. Também nesta ocasião o arguido A. manipulou o pénis do menor, masturbando-o.
106.15. O arguido A. introduziu ainda o pénis do menor na sua boca, tendo-o chupado, enquanto, simultaneamente, manipulava o seu próprio pénis.
106.16. O menor C. manipulou também o pénis do arguido A., masturbando-o.
Depois o arguido introduziu o seu pénis na boca do menor, tendo-o este chupado.
Também desta vez o arguido A. introduziu o seu pénis ereto no ânus do menor, aí o tendo friccionado até à ejaculação.
106.17. Após a prática dos atos supra descritos, o menor abandonou a casa onde se encontrava, regressando à CPL.
106.18. Como contrapartida por o arguido M. ter conduzido à mencionada casa o menor, para que com ele praticasse os atos supra descritos, o arguido A. entregou àquele uma quantia em dinheiro, em montante não apurado.
106.19. O arguido A. admitiu que o menor que sujeitou à prática dos atos sexuais descritas tinha idade inferior a 14 anos.
106.20. Sabia, igualmente, que a idade desse menor o impedia de se decidir livremente e em consciência pela prática dos atos descritas de que foi vítima.
106.21. O arguido A. tinha perfeito conhecimento de que os atos de natureza sexual a que submeteu o menor C. prejudicavam o seu normal desenvolvimento físico e psicológico e que influíam negativamente na formação da respetiva personalidade.
106.22. Agiu de modo voluntário, livre e consciente, querendo satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que as condutas atrás descritas eram proibidas pela lei penal.
18. Quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – cuja especificação é obrigatória por força do disposto no art. 412º nº 3-b) do C.P.P. –, a defesa de A. referiu – nas conclusões R) e S) do recurso interposto – que a especificação de tais peças processuais foi feita ao longo da motivação do recurso, designadamente nos capítulos que são objeto da “Segunda Parte” de tal motivação, organizados pelas diferentes “casas” por que se distribuíam os supostos crimes praticados.
Ademais, nas conclusões P) a Y), identificou a metodologia utilizada para justificar a sua tese de que o acórdão recorrido efetuara uma errónea apreciação da prova, particularmente das declarações prestadas por C., E., B., bem como pelo coarguido M..
19. Reportando-nos ao que ora interessa – a impugnação da matéria de facto relativamente aos factos supostamente praticados na Av. das Forças Armadas –, a tese da defesa de A. consta do capítulo IV da motivação do seu recurso, que, sob o título “A casa da Av. das Forças Armadas”, vai de págs. 107 a 260 dessa mesma motivação.
Como decorre da leitura dessas páginas, a defesa de A. fez uma apreciação conjunta das provas referentes aos factos relativos à casa da Av. das Forças Armadas, que explicou desde a pág. 107 à pág. 137, a que se seguiu, em anexo, da pág. 138 à pág. 260, a transcrição ipsis verbis dos trechos dessa prova em que se fundava. Mais enunciou, a partir de pág. 591 do seu recurso, à identificação dos concretos meios de suporte informático utilizados.
20. Pois bem, apesar da clareza da identificação dos pontos de facto impugnados e dos concretos meios de prova em que se funda a impugnação de tal matéria de facto, o acórdão recorrido – numa sublime demonstração do patamar a que pode chegar a arrogância de uma decisão – “arrumou” tão exaustiva e séria (passe a imodéstia) impugnação da matéria de facto em duas singelas páginas, em que a rejeitou sem sequer apreciar aquilo em que o acórdão recorrido denominou de “pretensa impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Vejamos – na pág. 3211 e 3212 do acórdão – a justificação:
Alega o recorrente que pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto quanto aos pontos 106. a 106.22., 113. a 116., 120. a 124, 125. a 127. e 131 a 135.2..
Verifica-se, porém, que o recorrente não deu cumprimento ao disposto no art. 412.º, nºs 3 e 4, do CPP, nem nas conclusões, nem na motivação do recurso. De acordo com o n.º 3 deste preceito o recorrente ao impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas.
E o n.º 4 do mesmo artigo estabelece que, quando as provas tenham sido gravadas, as menções das als. a) e b) devem ser feitas por referência ao consignado na ata de julgamento, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Como se refere no Ac. do STJ de 28/10/2009, proferido no âmbito do Proc. 121/07.9PBPTM.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt a impugnação deve ser feita ponto por ponto, não relevando uma impugnação genérica ou imprecisa dos factos.
Ora, o recorrente, pese embora tenha começado por indicar os pontos de facto que pretendia impugnar, ao longo de 583 páginas tece as mais variadas considerações sobre o acórdão recorrido refere-se a provas produzidas indiscriminadamente durante o inquérito, instrução e julgamento, sem que, contudo, faca qualquer referência aos concretos pontos de facto que está a impugnar.
Ou seja, o recorrente impugna de forma genérica a matéria de facto, não especificando em relação a cada ponto de facto as razões da sua discordância. Nestes casos em que o recorrente não dá cumprimento ao ónus de impugnação especificada, nem nas conclusões, nem na motivação de recurso, não há que endereçar-lhe convite para aperfeiçoamento, pois tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
Neste sentido se pronunciaram os Ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002 de 18/6/2002 e 140/2004 de 10/3/2004, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos jurisprudência que se mantém atual face às alterações introduzidas pela Lei nº48/2007 de 29/8 ao CPP.
Na verdade, o preceituado atualmente no n.º 3 do art. 417.º CPP mais não é do que a consagração dessa mesma jurisprudência do Tribunal Constitucional, que não constava do preceito na redação anterior.
O convite só pode ser dirigido ao aperfeiçoamento das conclusões e nunca à própria motivação, conforme resulta do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 417.º do CPP, que, de seguida, se transcreve:
“3 – Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artº 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada.
4 – O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.” (...).
Termos em que, improcede a “pretensa” impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
21. Do exposto decorre que o acórdão recorrido adotou um entendimento normativo do art. 412º nº 3 e 4 do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 417º nºs 3 e 4 do mesmo C.P.P., no sentido do qual deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto – sem que haja sequer lugar a qualquer convite a aperfeiçoamento – do recurso que – apesar de especificar os concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar e as concretas provas em que se funda – não faça corresponder a cada ponto da matéria de facto cada uma das concretas provas em que se funda [e respetivas concretas razões de discordância], antes optando por reportar a cada conjunto de factos agregados um conjunto de concretas provas que a ele se reporta [numa apresentação global das concretas razões da discordância em relação a cada núcleo factual].
Tal entendimento normativo é inconstitucional, por flagrante, desproporcionada, intolerável e iníqua denegação do direito ao recurso, tal como está consagrado no art. 32º nº 1 da CRP e no art. 2º do protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
22. Este vício de inconstitucionalidade não tinha sido suscitado até ao momento porque o arguido desconhecia, em absoluto, que tão inusitado entendimento normativo – que ele não conhecia, apesar de toda a experiência profissional dos seus mandatários – pudesse vir a ser adotado, razão pela qual não tinha a obrigação de o ter previamente colocado.
23. Acresce que o arguido requereu, ao abrigo do art. 411º nº 5 do C.P.P., aquando da interposição do recurso, que tivesse lugar a audiência de julgamento no Tribunal da Relação “para debate da matéria do recurso relativa à impugnação da matéria de facto”.
Tal audiência teve lugar no passado dia 9 de fevereiro, a qual se circunscreveria a tal matéria, uma vez que o outro requerente da diligência – o arguido U. – acabou por abdicar da discussão do seu recurso, não tendo a sua mandatária sequer estado presente (cfr. ata de fls. 73.245 e 73.246).
Como igualmente decorre da ata respetiva, a Senhora Juíza Desembargadora Relatora introduziu os debates – que, como se disse, se circunscreveriam à impugnação da matéria de facto suscitada no recurso do arguido A. – sem assinalar qualquer questão prévia que limitasse o conhecimento desse segmento do recurso, o que confirmou a certeza de que o recurso, nessa parte, podia ser efetivamente apreciado.
A defesa de A. leu um texto (que trazia escrito) de 50 páginas – que, mais tarde, através de requerimento de 22 de fevereiro, fez juntar aos autos –, no qual se debruçou demoradamente (e, julga-se, com seriedade) sobre as razões da discordância relativamente aos vários núcleos factuais a que se reportava a impugnação da matéria de facto.
Houve resposta dos outros sujeitos processuais e seguiu-se uma réplica final da defesa do arguido.
Foram várias horas de intenso trabalho, fundamentalmente em tomo da impugnação da matéria de facto constante do recurso interposto por A., durante as quais ninguém suscitou qualquer dúvida acerca da admissibilidade da impugnação da matéria de facto tal como estava feita.
Afinal, tudo não passara de um equívoco.
A audiência de 9 de fevereiro foi, tão somente, uma patética encenação destinada a discutir aquilo que o Tribunal já tinha decidido que não podia ser sequer discutido.
IV - QUARTO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE: A QUESTÃO DO ART. 115º Nº 1 DO C.P. [A CONTRA-GOSTO]
24. A contragosto, o arguido A. vem ainda suscitar uma última questão de inconstitucionalidade relativamente ao entendimento normativo adotado quanto ao art. 115º nº 1 do Código Penal, que a Relação, seguindo a posição do Juiz de Instrução Criminal, adotou (de pág. 120 a pág. 163).
25. Não gostaria A. de ter de sustentar tal vício de inconstitucionalidade, porque o seu objetivo sempre foi o de demonstrar a sua inocência, mas os seus advogados, por dever de patrocínio, não podem deixar de colocar a questão.
26. No requerimento de abertura de instrução (cfr. fls. 16.792 a 16.866), o arguido A. – tal como outros arguidos – suscitou a questão de nenhuma das supostas vítimas – ou os seus representantes legais – terem apresentado queixa no prazo de seis meses previsto no art. 115º nº 1 do C.P., razão pela qual caducara o seu direito de queixa.
27. Porém, o Senhor Juiz de Instrução Criminal não atendeu a tal arguição, uma vez que adotou o entendimento de que o prazo previsto no art. 115º nº 1 do Código Penal só se conta – em relação às vítimas – a partir do momento em que tais vítimas perfazem a idade de 16 anos, regra que, apesar de não estar expressamente previsto, se deveria aplicar a tal situação.
28. Desse despacho o arguido interpôs recurso, a 29 de março de 2004, ainda em fase de instrução, o qual foi agora apreciado pelo acórdão recorrido, que manteve o ponto de vista da 1ª instância, nos termos que, resumidamente, a seguir se enunciam:
O arguido A., basicamente, invoca que o Tribunal faz uma aplicação analógica da norma constante do art. 115.º do CP, no que respeita ao prazo ali previsto para o exercício do direito de queixa, com o sentido normativo segundo o qual o terminus a quo da contagem daquele prazo será o da data em que as vítimas adquirem capacidade de exercício do direito de queixa, ou seja, na data em que completem 16 anos, independentemente do momento em que tenham tomado conhecimento do facto e da identidade dos seus autores.
Com o devido respeito, trata-se de uma conclusão que o arguido retira, desconsiderando por completo o complexo das normas penais e processuais penais que aqui têm que ser chamadas à colação, como bem se constata nas decisões recorridas e na resposta do Ministério Público.
O que o Tribunal recorrido fez não foi qualquer interpretação analógica do citado normativo do art. 115.º, n.º 1, do CP, mas antes a interpretação conjugada das normas aplicáveis e que aponta para a resposta que foi encontrada, como aliás, a nossa jurisprudência tem entendido (vejam-se, a esse propósito, os acórdãos citados quer pelo Ministério Público na sua resposta, quer os que são invocados pelo Tribunal recorrido no despacho proferido no acórdão final). Como facilmente se constata, os arguidos não indicam uma única decisão de um Tribunal Superior que suporte as conclusões por si defendidas.
Voltando ao arguido A., reitera-se que não se verifica qualquer interpretação analógica de uma norma penal, mas sim a interpretação conjugada das várias normas jurídicas aplicáveis, encontrando-se o único sentido útil e justo para situações como as que aqui se colocam, como é dever do Tribunal – interpretar as normas legais reconstituindo a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada, sendo que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art. 9.º do CC).
(…)
No mais, ambos os arguidos vêm invocar a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo Tribunal recorrido quanto à contagem do prazo para o exercício do direito de queixa por parte dos ofendidos e consequente legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal, por violação do princípio da legalidade, previsto no art. 1.º, n.º 3, do CP, e no art. 29.º, n.º 1, da CRP.
É óbvio que ocorrendo aplicação analógica de uma norma processual penal, que conduziria ao alargamento, não contemplado na lei, do prazo do exercício do direito de queixa, se estaria a violar o princípio da legalidade.
No entanto, mais uma vez teremos que o afirmar, não foi essa a atuação do Tribunal a quo. O Tribunal não aplicou analogicamente qualquer norma, antes tendo aplicado, em conjugação, as normas jurídicas que no caso vertente se aplicam, interpretando-as de acordo com o espírito da lei.
Não se consegue, pois, descortinar qualquer inconstitucionalidade da interpretação normativa feita no despacho recorrido, por alegada violação do art. 29.º, n.º 1, da CRP.
29. Assim sendo, o acórdão recorrido adota um entendimento normativo relativamente ao art. 115º nº 1 do Código Penal – na redação vigente à data dos factos – no sentido de que o direito de queixa só se extingue no prazo de seis meses a partir do momento em que os ofendidos completem a idade de 16 anos, o que, não estando aí previsto, corresponde, na ótica da defesa, ao exercício de uma aplicação analógica, a qual está vedada por força do princípio da legalidade consagrado no art. 29º nº 1 da CRP, que assim foi violado, o que gera a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa.”
Apresentou alegações conjuntas, relativas aos dois recursos acima referidos, que concluiu do seguinte modo:
“A) No recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012, foram suscitadas quatro questões de inconstitucionalidade.
No recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa de 7 de dezembro de 2011, foram suscitadas duas questões de inconstitucionalidade.
B) Por despacho de 4 de junho de 2012, o Senhor Conselheiro Relator advertiu de que poderiam não ser conhecidas as questões suscitadas no ponto II de ambos os requerimentos de interposição de recurso, com o fundamento que não teriam sido suscitadas adequadamente perante o tribunal recorrido.
Admite-se que as questões em pauta poderão padecer desse vício, que decorre da particular estrutura do processo português de fiscalização de constitucionalidade.
Por isso, o arguido renuncia a suscitar essas duas questões, desistindo dos recursos nesses segmentos.
C) O recurso é assim circunscrito às restantes quatro questões que irão ser abordadas pela seguinte ordem:
Primeira:
O acórdão da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 adota um entendimento normativo do art. 356º nº 2-b) e nº 5 do C.P.P. [reportado às declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal], devidamente conjugado com o art. nº 355º nº 1 do C.P.P., no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, não pode – em nenhuma situação – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações [mesmo que se trate das declarações em que se funda a acusação dirigida aos arguidos e se esteja perante um pedido formulado a fim de avaliar cabalmente a credibilidade da prestação de tais assistentes e testemunhas em audiência de julgamento].
Tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação do reduto nuclear das garantias de defesa consagradas pelo art. 32º nº 1 da C.R.P. e do princípio de um processo equitativo salvaguardado pelo art. 20º nº4 da C.R.P. e pelo art. 6º da C.E.D.H..
Segunda:
O acórdão da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 adota um entendimento normativo do art. 412º nº 3 e 4 do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 417º nºs 3 e 4 do mesmo C.P.P., no sentido de que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto – sem que haja sequer lugar a qualquer convite a aperfeiçoamento – do recurso que – apesar de especificar os concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar e as concretas provas em que se funda – não faça corresponder a cada ponto da matéria de facto cada uma das concretas provas em que se funda [e respetivas concretas razões de discordância], antes optando por reportar a cada conjunto de factos agregados um conjunto de concretas provas que a ele se reporta [numa apresentação global das concretas razões da discordância em relação a cada núcleo factual].
Tal entendimento normativo é inconstitucional, por flagrante, desproporcionada, intolerável e iníqua denegação do direito ao recurso, tal como está consagrado no art. 32º nº 1 da CRP e no art. 2º do protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Terceira:
O acórdão da Relação de Lisboa de 7 de dezembro de 2011 adota um entendimento normativo do art. 165º nº 1 do C.P.P. no sentido de que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos relevantes para a defesa do arguido, em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após a prolação daquela sentença de 1a instância, só então sendo do conhecimento do arguido.
Tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso consagrados no art. 32º nº 1 da CRP, bem como do princípio de um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP, os quais também têm acolhimento na CEDH, nos termos já referidos.
Quarta:
O acórdão da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 adota um entendimento normativo relativamente ao art. 115º nº 1 do Código Penal – na redação vigente à data dos factos – no sentido de que o direito de queixa só se extingue no prazo de seis meses a partir do momento em que os ofendidos completem a idade de 16 anos, o que, não estando aí previsto, corresponde, na ótica da defesa, ao exercício de uma aplicação analógica.
Tal entendimento normativo é inconstitucional, por força do princípio da legalidade consagrado no art. 29º nº 1 da CRP, que assim foi violado.
[Esta última questão é suscitada pelo arguido a contragosto, porque o arguido sempre teve a preocupação vital de demonstrar a sua inocência, o que, tendo procedência essa questão (que, sendo controversa, está suscitada com rigor intelectual), ficaria inviabilizado; porém, os seus advogados, por dever de patrocínio, não podem deixar de colocar, em seu nome, tal questão].
D) A primeira, segunda e quarta questões em apreço haviam sido previamente arguidas, nos termos referidos nos nºs 9, 15 e 28 do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, apresentado a 8 de março de 2012; por outro lado, a terceira questão em referência só foi suscitada nesse mesmo requerimento pela razão enunciada no seu nº 22.
1ª: A questão do art. 356º do C.P.P.
E) No processo da Casa Pia, mesmo considerando uma prática que teria ocorrido durante vários anos, abrangendo um número vasto de abusadores e abusados e localizada numa pluralidade de locais devidamente identificados, um dado é assente: não foi encontrada uma única prova relevante – sublinha-se, uma única prova relevante – que corroborasse as declarações das alegadas vítimas.
F) Este pressuposto fundamental – a acusação, a pronúncia e, sobretudo, a condenação de A. assenta exclusivamente22 nas declarações dos jovens supostamente abusados por uma rede informal de pedófilos que usava alunos da Casa Pia (quase todos assistentes, um ou outro testemunha, por ter caducado o direito de queixa), particularmente, no que a ele diz respeito, as declarações de C., B. e E. – decorre inequivocamente do acórdão da 8.ª Vara Criminal de Lisboa, que a Relação de Lisboa confirmou. Aí se pode ler que foi a “ressonância de veracidade” – seja lá o que isso for – que o Tribunal recolheu de tais declarações que levou à condenação do arguido A., ora Recorrente.
O) Donde a crucial importância das declarações de tais vítimas.
E é nesse contexto que assume especialíssima relevância a apreciação do seu discurso durante o inquérito, o que pode decididamente contribuir para uma avaliação fidedigna da credibilidade, congruência e verosimilhança do que disseram em audiência de julgamento.
H) Na ótica da defesa de A., as vítimas do processo Casa Pia criaram uma fantasia – consciente ou inconsciente –, que foi construída ao longo do inquérito, em que foram sincronizando discursos de modo a encontrar uma história coletiva para contar.
Em função disso, foi organizada toda a defesa, que, logo na contestação, fez questão de sublinhar que uma das suas linhas de orientação tinha exatamente a ver com a demonstração da inquinação da capacidade das alegadas vítimas para efetuarem depoimentos livres e credíveis, o que se sublinhou nos nºs 234 a 239 da contestação.
I) Durante o julgamento, a prova produzida confirmou o pressuposto e alicerçou a convicção de que não seria possível reconstituir a verdade material sem confrontar as alegadas vítimas com as versões narradas no inquérito, as quais, em pontos essenciais, conflituavam com as suas declarações prestadas em julgamento.
Foi nesse contexto que o arguido, através de requerimento exarado na ata da sessão de julgamento de 7 de agosto de 2008, requereu a leitura de declarações prestadas no inquérito por oito assistentes e duas testemunhas (as quais só não eram assistentes porque, quanto a elas, teria caducado o direito de queixa), a que se seguiria o confronto dessas pessoas com tais declarações, a fim de avaliar a credibilidade da sua prestação em julgamento.
J) O Tribunal – através de despacho lavrado na ata da audiência de 22 de outubro de 2008 – indeferiu o pedido por entender que em face da oposição dos assistentes – o art. 356º do C.P.C. não o permitiria, dado que, perante tal posição processual, em nenhuma situação se poderia proceder à leitura dessas declarações e, por maioria de razão, ao confronto subsequente daquelas pessoas com o teor de tais declarações, do que foi interposto o competente recurso, onde logo foi arguida a inconstitucionalidade ora em pauta.
K) Tal recurso interlocutório foi apreciado pelo acórdão recorrido (a págs. 433 e ss.), tendo-o feito em conjunto com a apreciação de outros recursos sobre matéria análoga, igualmente interpostos pelo arguido A. e pelo arguido H.. O recurso foi julgado improcedente, tendo o acórdão ora recorrido adotado o mesmo entendimento normativo da 1ª instância, ou seja, o de que o art. 356º do C.P.P. não admitiria – em caso algum – a leitura de declarações prestadas no inquérito, se os assistentes nisso não consentissem, o que foi julgado compatível com os princípios constitucionais.
L) Isto é, o acórdão recorrido adota o entendimento normativo do art. 356º nº 2-b) e nº 5 do C.P.P. [reportado às declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal], devidamente conjugado com o art. nº 355º nº 1 do C.P.P., no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, não pode – em nenhuma situação – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações [mesmo que se trate das declarações em que se funda a acusação dirigida aos arguidos e se esteja perante um pedido formulado a fim de avaliar cabalmente a credibilidade da prestação de tais assistentes e testemunhas em audiência de julgamento].
M) Tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação do reduto nuclear (3 das garantias de defesa consagradas pelo art. 32º nº 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art. 20º nº 4 da C.R.P. e pelo art. 6º da C.E.D.H. Tal entendimento normativo – que radicalmente transforma o princípio da imediação num valor prevalecente, acima de tudo e de todos – é intolerável, impróprio de um Estado de Direito e desconhecido em qualquer outra ordem jurídica.
N) Não é aceitável que a testemunha (ou o assistente, ou o perito, ou qualquer outro declarante) não possa ser confrontada com aquilo que disse antes do julgamento – particularmente se o disse em auto, em declarações cuja falsidade está sujeita a sanção penal (em Portugal, os crimes de falsidade de depoimento, declaração ou testemunho, p. e p. pelos arts. 359º e 360º do Código Penal) –, pelo menos, para que se possa avaliar a credibilidade da sua prestação em audiência de julgamento. Nessa situação, requerido tal confronto pelo arguido em termos relevantes para a sua defesa, o princípio da imediação cede perante os princípios da presunção de inocência, da verdade material e de um processo equitativo, no quadro da salvaguarda do núcleo essencial das garantias de defesa.
O) Não se conhece qualquer outra ordem jurídica – organizada de acordo com os princípios de um Estado de Direito – em que vigore o entendimento normativo de que – a não ser com o consentimento de todos os outros sujeitos processuais – ao arguido está vedado confrontar testemunhas ou ofendidos (assistentes ou com qualquer outra “veste” processual) com aquilo que disseram em declarações prestadas durante o inquérito – perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal –, quando isso seja necessário para avaliar a credibilidade de depoimento relevante para a incriminação.
P) Então, se A, em inquérito, diz que foi abusado no sótão da casa, para depois, em julgamento, dizer que foi na cave, não é razoável admitir que pode e deve ser-lhe perguntada a razão da discrepância?
E se B diz, primeiro, que foi numa manhã radiosa e, depois, que foi numa noite de temporal?...
E se C diz, primeiro, que estava acompanhado por D e E e, depois, que, afinal, estava com F e G?...
E se H diz, primeiro, que foi num domingo, a seguir à missa, e, depois, que foi num dia de semana, quando ia para a escola?...
E se I diz, primeiro, que o abusador era careca e trajava de vermelho e, depois, tinha uma cabeleira farta e vestia de verde?...
E se J diz, primeiro, que não conhecia o abusador e, depois, que estava farto de o ver na televisão?...
Etc., etc., etc..
Entramos facilmente no reino do absurdo.
E foi isso que aconteceu no processo Casa Pia.
Q) As contradições, incongruências e inverosimilhanças já decorrem das declarações prestadas em audiência de julgamento. Mas aí – através de um tique, de um tom de voz ou de qualquer outra coisa – o tribunal foi encontrando uma “ressonância de veracidade”, que serviu para condenar A. a sete anos de prisão.
Então, a que título é que é possível sustentar que ao arguido A. não é conferido o direito de confrontar tais assistentes e testemunhas – as alegadas vitimas – com a inconsistência que decorre daquilo que disseram antes do julgamento, de forma a avaliar a credibilidade e a subsistência dessa tal “ressonância de veracidade”? Isto, num processo em que a condenação assenta na “ressonância de veracidade” dessas declarações prestadas em audiência de julgamento.
R) O entendimento normativo adotado permite que a prova possa ser manipulada pelas alegadas vítimas em desfavor do arguido, ele sim, verdadeira vítima daqueles que o incriminam.
Não procede, pois, a argumentação do acórdão recorrido de que o entendimento adotado não desfavorece a defesa em relação à acusação.
É que, se assim fosse, admitir-se-ia que a acusação fosse sincronizando a sua mentira, mas impedir-se-ia a defesa de desmascarar a teia que foi construída pela “estratégia da aranha”.
S) Deste modo, a tese que se impugna – a de que em nenhuma situação, salvo com o acordo do beneficiário da mentira, é possível confrontar a testemunha mentirosa (ou, nalguns casos, talvez mitómana) com as suas declarações anteriores que a permitem desmascarar – ultraja o Estado de Direito. Ainda para mais, quando se trata de declarações dos assistentes (que desde a primeira hora beneficiaram de um extraordinário regime de proteção adequado ao seu estatuto de vítima) e quando a prova da acusação se resume a tais declarações. E ainda para mais, quando – em função da versão da acusação, que estabelece uma rede que atua em vários locais e durante vários anos – seria de esperar um conjunto sólido de corroborações periféricas das relações estabelecidas entre os arguidos, entre os arguidos e as alegadas vítimas, entre os arguidos e os locais dos supostos abusos, o que não se verificou.
2ª: A denegação do direito ao recurso da matéria de facto
T) O núcleo fundamental do recurso interposto pelo arguido A. do acórdão de 3 de setembro de 2010 teve a ver com a impugnação da matéria de facto relativamente a uma factualidade precisa, identificada em tal recurso, a que se reportam as conclusões P) a Y) do recurso interposto.
No que ora releva, a factualidade que interessa é a que diz respeito aos factos dados como provados em relação aos crimes supostamente cometidos na Av. das Forças Armadas, que o acórdão de 3 de setembro de 2010 reporta sob os nºs 106 a 106.22, o que foi devidamente identificado no recurso interposto, designadamente na conclusão Q), tal como exige o art. 412º nº 3-a) do C.P.P..
U) Quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – cuja especificação é obrigatória por força do disposto no art. 412º nº 3-b) do C.P.P. –, a defesa de A. referiu – nas conclusões R) e S) do recurso interposto – que a especificação de tais peças processuais foi feita ao longo da motivação do recurso, designadamente nos capítulos que são objeto da “Segunda Parte” de tal motivação, organizados pelas diferentes “casas” por que se distribuíam os supostos crimes praticados. Ademais, nas conclusões P) a Y), identificou a metodologia utilizada para justificar a sua tese de que o acórdão recorrido efetuara uma errónea apreciação da prova, particularmente das declarações prestadas por C., E., B., bem como pelo coarguido M..
V) Reportando-nos ao que ora interessa – a impugnação da matéria de facto relativamente aos factos supostamente praticados na Av. das Forças Armadas –, a tese da defesa de A. consta do capítulo IV da motivação do seu recurso, que, sob o título “A casa da Av. das Forças Armadas”, vai de págs. 107 a 260 dessa mesma motivação. Como decorre da leitura dessas páginas, a defesa de A. fez uma apreciação conjunta das provas referentes aos factos relativos à casa da Av. das Forças Armadas, que explicou desde a pág. 107 à pág. 137, a que se seguiu, em anexo, da pág. 138 à pág. 260, a transcrição ipsis verbis dos trechos dessa prova em que se fundava. Mais enunciou, a partir de pág. 591 do seu recurso, à identificação dos concretos meios de suporte informático utilizados.
W) Acontece que o acórdão recorrido adotou um entendimento normativo do art. 412º nº 3 e 4 do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 417º nºs 3 e 4 do mesmo C.P.P., no sentido do qual deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto – sem que haja sequer lugar a qualquer convite a aperfeiçoamento – do recurso que – apesar de especificar os concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar e as concretas provas em que se funda – não faça corresponder a cada ponto da matéria de facto cada uma das concretas provas em que se funda [e respetivas concretas razões de discordância], antes optando por reportar a cada conjunto de factos agregados um conjunto de concretas provas que a ele se reporta [numa apresentação global das concretas razões da discordância em relação a cada núcleo factual].
X) Tal entendimento normativo é inconstitucional, por flagrante, desproporcionada, intolerável e iníqua denegação do direito ao recurso, tal como está consagrado no art.32º nº 1 da CRP e no art. 2º do protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Y) Admita-se, sem conceder, que a especificação efetuada devia ser aperfeiçoada. Parece que, no contexto de um processo equitativo, que salvaguarde o direito ao recurso, o tribunal devia ter estipulado um prazo para esse fim, adotando um entendimento normativo compatível com esse efeito. Porém, o que o tribunal fez foi – sem motivo razoável ou proporcional – adotar um entendimento normativo que permitiu impedir a impugnação da matéria de facto, sem sequer dar a possibilidade ao Recorrente de corrigir qualquer eventual má conformação da sua peça processual. E, ao fazê-lo, violou o direito ao recurso em matéria de facto, que, in casu, era manifestamente o mais relevante do que estava em jogo.
3ª: A junção de documentos supervenientes
Z) Já após a prolação do acórdão da 8ª Vara Criminal de Lisboa, o arguido A. foi confrontado com a existência de documentação relevante para a impugnação da matéria de facto constante dos recursos interpostos, designadamente a publicação de um livro do assistente L. e declarações à comunicação social do arguido M., dos assistentes E., K., e das testemunhas O. e R..
AA) Tais documentos supervenientes foram sendo juntos aos autos, primeiro com a resposta do arguido A. aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelos assistentes, depois através dos requerimentos apresentados a 1 de abril de 2011 e a 14 de novembro de 2011.
BB) Porém, a Relação de Lisboa não admitiu a junção aos autos de tais documentos, com base numa interpretação restritiva que adotou quanto ao art. 165º nº 1 do C.P.P., no sentido de que tal norma legal veda, em absoluto, a junção de documentos – sem quaisquer exceções – após o encerramento da audiência de julgamento em 1ª instância.
CC) Todavia, que sentido faria – quando a matéria de facto vai ser apreciada pelo Tribunal da Relação – que o Tribunal de Recurso não se pudesse pronunciar sobre meios de prova novos, entretanto produzidos e relevantes para a defesa do arguido? A alternativa, bem absurda, seria a de ter de aguardar o trânsito em julgado da sentença, para que tais novos meios de prova fossem apreciados em sede de um recurso de revisão?
DD) Argui-se a inconstitucionalidade do entendimento normativo dado ao art. 165º nº 1 do C.P.P., devidamente conjugado com os arts. 428º e 431º do C.P.P., no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1.ª instância, a junção de documentos relevantes para a defesa do arguido – em sede de recurso que abrange a matéria de facto –, quando esses documentos foram produzidos após a prolação daquela sentença da 1ª instância, só então sendo do conhecimento do arguido.
EE) Tal entendimento normativo – mormente quando adotado no sentido de que não admite exceções, o que não é razoável nem proporcional – viola as garantias de defesa e o direito ao recurso consagrados no art. 32º nº 1 da CRP, bem como o princípio de um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP, tal como no art. 6º da CEDH.
4ª: A questão do art. 115º nº 1 do C.P.
FF) No requerimento de abertura de instrução (cfr. fls. 16.792 a 16.866 do processo principal), o arguido A. – tal como outros arguidos – suscitou a questão de nenhuma das supostas vítimas – ou os seus representantes legais – terem apresentado queixa no prazo de seis meses previsto no art. 115º nº 1 do C.P., razão pela qual caducara o seu direito de queixa, o que não foi atendido pelo juiz de instrução criminal e foi objeto do competente recurso.
GG) O acórdão recorrido adota igualmente um entendimento normativo relativamente ao art. 115º nº 1 do Código Penal – na redação vigente à data dos factos – no sentido de que o direito de queixa só se extingue no prazo de seis meses a partir do momento em que os ofendidos completem a idade de 16 anos, o que, não estando então aí previsto, corresponde, na ótica da defesa, ao exercício de uma aplicação analógica, a qual está vedada por força do princípio da legalidade consagrado no art. 29º nº 1 da CRP, que assim foi violado, o que gera a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa.
Termos em que o recurso merece provimento, com as legais consequências, designadamente a declaração de inconstitucionalidade dos entendimentos normativos em pauta.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
A – Recurso do Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de dezembro de 2011
1. - A decisão recorrida não admitiu a junção dos documentos com base numa dupla fundamentação: extemporaneidade e irrelevância como prova.
2. - Como a questão de inconstitucionalidade suscitada apenas abrange o primeiro dos fundamentos, a decisão recorrida sempre se manteria com base no segundo.
3. - Assim, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, por inutilidade, não deve conhecer-se do seu objeto.
4. - Se se entender que a decisão é um todo insindível, então temos de concluir que a dimensão normativa aplicada não coincide com a suscitada, uma vez que nesta se assume, expressamente, a relevância dos documentos.
5. – Deste modo, também por esta via, sempre se revelaria inútil conhecer do mérito.
6. - A norma do artigo 165.º, n.º 1, do CPP, na interpretação de que não é admissível a junção de documentos supervenientes, após o encerramento da audiência e ser proferida sentença, não viola o direito ao recurso, nem o direito a um processo equitativo (artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição, respetivamente), não sendo, por isso, inconstitucional.
7. - Termos em que, a conhecer-se do mérito, deve ser negado provimento ao recurso.
B – Recurso interposto do Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 23 de fevereiro de 2012
1. – Primeira questão, respeitante à inconstitucionalidade do artigo 356.º do CPP.
1.1. Em obediência ao princípio do contraditório e da imediação, a regra geral é a de que, em julgamento, só valem as provas que tenham sido produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355.º, n.º 1, do CPP).
1.2. A possibilidade de leitura de declarações prestadas em anteriores fases do processo tem sempre caráter excecional e um regime diferenciado, seja em função da natureza dos atos processuais, seja em função da autoridade judiciária ou policial perante quem são prestadas.
1.3. O princípio de intransmissibilidade visa, em primeira linha, proteger os direitos do arguido.
1.4. Em nome da verdade material e para que o princípio do contraditório e do direito a um processo equitativo seja respeitado, o regime legal em que taxativamente se elencam as exceções àquele principio aplicam-se a todos os sujeitos processuais.
1.5. A norma do artigo 355.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5, do CPP, enquanto condiciona a leitura de declarações anteriormente prestadas em inquérito, perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal, de assistentes e testemunhas ao acordo do Ministério Público, do arguido e dos assistentes, não viola os artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 4, da Constituição, nem do artigo 6.º da CEDH, não sendo, por isso inconstitucional.
2. – Segunda questão referente à inconstitucionalidade do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, devidamente conjugado com o artigo 417.º, n.º 3 e 4 , do mesmo CPP.
2.1. O recorrente durante o processo não suscitou a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada.
2.2. Não sendo a interpretação acolhida pela Relação anómala ou imprevisível, antes se mostrando perfeitamente previsível, não estava o recorrente dispensado do ónus da suscitação prévia.
2.3. Por outro lado, a dimensão normativa efetivamente aplicada, como ratio decidendi, não corresponde àquela que o recorrente enuncia no requerimento de interposição do recurso.
2.4. Assim, face à inverificação daqueles requisitos de admissibilidade do recurso, - interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC – não deverá conhecer-se do seu mérito.
2.5. O direito ao recurso, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa, envolve a possibilidade de o arguido provocar a reapreciação das decisões condenatórias, incluindo a decisão proferida acerca da matéria de facto.
2.6. Cabe à lei de processo definir os requisitos ou condições processuais ou adjetivas do exercício do direito ao recurso, podendo condicioná-lo ao cumprimento de certos ónus ou formalidades, apenas estando vedado ao legislador infraconstitucional a prescrição de exigências funcionalmente inadequadas aos fins do processo ou o estabelecimento de cominações ou preclusões claramente desproporcionadas.
2.7. Constitui exigência desproporcionada a que se traduz em cominar, para certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, a rejeição liminar do recurso, sem lhe possibilitar o aperfeiçoamento dos vícios formais detetados, ligados exclusivamente à apresentação, exposição ou condensação de uma impugnação, deduzida em termos concludentes e inteligíveis no âmbito da motivação do recurso.
2.8. Porém, os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso não implicam que ao recorrente deva ser facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a própria motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando seja manifesta, pelo teor da motivação apresentada, que nela se uma faz impugnação genérica e imprecisa dos factos, uma formulação que não se mostra suficientemente inteligível, concludente e fundamentada.
2.9. A norma do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, ao condicionar o conhecimento do recurso em matéria de facto, ao cumprimento, por parte do recorrente, dos ónus ali previstos, não é inconstitucional, uma vez que não viola o artigo 32º, nº 1, da Constituição.
2.10. Consequentemente deve negar-se provimento ao recurso, caso se conheça do seu mérito.
3. – Terceira questão referente à inconstitucionalidade do”artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal – na redação vigente à data dos factos”
3.1. A interpretação conjugada dos artigos 113.º, n.ºs 1 e 4 (versão atual) ou 3 (versão anterior), 115.º, n.º 1 e 175.º do Código Penal (versão anterior à Lei nº 59/2007), no sentido de que nos crimes de abuso sexual de criança, o direito de queixa do ofendido, menor, só se extingue seis meses depois do conhecimento dos factos pelos legais representantes, ou seis meses depois do menor perfazer 16 anos, data em que adquire ele próprio o direito de queixa, não viola o princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
3.2. Deverá pois, nesta parte, negar-se provimento ao recurso.”
A Casa Pia de Lisboa, I.P., apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
“Artigo 356º do Código de Processo Penal.
1ª - A estrutura acusatória do processo penal concentra a prova no julgamento, por força de outros princípios, também eles estruturantes e securitários da posição do Recorrente;
2ª - A imediação e a oralidade garantem a aquisição da prova em julgamento garantindo a espontaneidade do relato e minimizando ou mesmo eliminando os riscos de contaminação da prova.
3ª - A concentração da prova em julgamento garante, por outro lado, a possibilidade do exercício do contraditório, assim garantindo a todos os sujeitos processuais uma igualdade de armas que, só nesta fase é possível garantir.
4ª - As declarações prestadas anteriormente à audiência final em 1ª instância, por qualquer sujeito processual ou testemunha não são verdadeira prova mas, tão-somente, um fummus indiciário da existência de determinados factos e, não permitem, a nenhum deles o exercício do contraditório;
5ª - E tal é feito não para limitar a ninguém o exercício de Direitos, antes sim para os garantir, de forma equilibrada e tendo em vista o fim último do processo: a verdade material!
6ª - As normas do artigo 356º do CPP assumem um caráter marcadamente excecional, só e apenas dentro dos seus limites permitindo a derrogação da regra e dos princípios em que a mesma se estriba, sendo uma delas a que leitura de declarações em resultado da aceitação de um princípio de consenso entre os sujeitos processuais (art. 356º, nº 2, al. b) e nº 5 do CPP).
7ª - Este Venerando Tribunal (Ac. nº 1052/96 de 10/10/96) já se pronunciou sobre os artigos 356º nºs 2, al. b) e 5 considerando que não existe qualquer inconstitucionalidade na necessidade deste acordo (entre MP, Recorrente e assistente), por não implicar uma restrição inadmissível das garantias de defesa do Recorrente, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do Princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355º, nº 1 do CPP, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do Recorrente.
8ª - Como refere o Ac. posto em crise: “O legislador, ao separar a fase da audiência de julgamento da fase do inquérito e da instrução, nos termos em que o fez no artº 355º, do C.P. Penal, quis marcar uma clara divisão entre o processo intelectual que levou à formação da convicção que sustentou uma acusação ou uma pronúncia, do processo de formação da convicção na fase da audiência de julgamento que pode levar a uma condenação ou a uma absolvição. E quis fazê-lo para garantia da defesa do Recorrente.
9ª - Mas, repete-se, nas situações que, a título taxativo, são previstas no artigo 356º do CPP houve o evidente propósito de acautelar as garantias de defesa do Recorrente, nomeadamente o princípio do contraditório estabelecendo-se um regime diferenciado em função, não só da natureza dos atos processuais, como também da autoridade judiciária ou de polícia criminal perante quem foram praticados.
10ª - Tudo, em clara conformidade com o artigo 32º da Constituição, assegurando assim todas as garantias de defesa ao Recorrente. Como bem referem (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, pp. 202 e ss e José António Barreiros, Processo Penal, vol. I, pp. 401 e ss).
11ª - Tudo porque, ao contrário do pretendido pelo Recorrente A., o Recorrente não é senhor do princípio da imediação, pois este é um princípio de garantia da sentença e, nessa medida, protege também o assistente. Sendo que, a disciplina da audiência, mormente no que concerne à admissibilidade ou não da leitura de declarações prestadas antes do julgamento constitui poder de disciplina confiado ao Tribunal (artigo 14º CPP);
12ª - Invoca o Recorrente alguns sistemas jurídicos Europeus para, em sede de Direito comparado, pretender demonstrar a diferenciação face ao sistema jurídico-legal português.
13ª - Estamos em crer que o aqui Recorrente terá bebido a sua inspiração no trabalho de Bernardo Marques Vidal, A leitura em audiência de declarações de testemunhas proferidas durante o inquérito, elaborado em sede de estudo académico junto da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, disponível em http://run.unl.pt/bitstream/10362/6901/1/Vidal 2011.PDF.
14ª - Quanto ao regime consignado no Código de Processo Penal de Timor, o Recorrente leva a este Tribunal a exceção (como resulta existente também no sistema Português) mas esquece-se de citar a regra, isto é, a de que a convicção do Tribunal só pode fundamentar-se em provas que tenham sido produzidas ou examinadas em audiência.
15ª - A clara consagração do mesmo regime de concentração da prova em audiência, como em Portugal e a manifestação da importância dada ao princípio da imediação (como em Portugal), garantia de um exercício efetivo do contraditório (como em Portugal).
16ª - Porém, ao longo do seu estudo, o autor citado (13ª) conclui que, a final, estes diferentes não contêm todas as diferenciações pretendidas pelo Recorrente mas que, de uma forma mais ou menos balizada, contêm válvulas de escape ao princípio da concentração da prova em audiência e limites à sua consequente imediação,
17ª - E, em momento algum o autor por nós citado vislumbra qualquer desconformidade constitucional no regime vigente em Portugal para concluir pela compressão de Direitos fundamentais como o aqui Recorrente faz.
18ª - Assim, pese embora a eventualidade de ser discutível a opção legislativa portuguesa (como serão certamente as de outros países), não se vislumbra existir qualquer inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa consignadas no artigo 32º e 20º da CRP, devendo este Tribunal assim o sentenciar, confirmando a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa posto em crise.
Artigos 412º, nº 3 e 4 e 417º, nºs 3 e 4 do CPP
19ª - Como bem decide o Tribunal da Relação de Lisboa no Ac. Posto em crise, a impugnação do Recorrente devia ser feita ponto por ponto, não relevando uma impugnação genérica ou imprecisa dos factos, citando o Ac. do STJ de 28/10/2009, proferido no âmbito do Proc. 121/07.9PBPTM.E1.S1, disponível in www.dsi.pt.
20ª - O lapso do Recorrente não pode ser aproveitado a seu favor em detrimento das regras do processo.
21ª - A especificação dos factos concretos, como é obvio, só se satisfaz com a indicação do facto “individualizado”; a especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico, como é pacífico na jurisprudência dos Tribunais, neles se incluindo a do Tribunal Constitucional.
22ª - E, tal individualização e indicação de conteúdo devem ser plasmadas quer nas motivações quer nas conclusões de recurso, existindo, naturalmente, diferenças de tratamento quando se trate de umas ou de outras: quando a falta se contiver nas conclusões, porque o âmbito do recurso permanece intocável e, estando bem, deve o Recorrente ser convidado para o reformular, adequando-os às exigências do nº 3 do artigo 417º do CPP;
23ª - Ao invés, se a falta, como é o caso, se contiver nas próprias motivações do recurso não poderá dar-se nova oportunidade ao Recorrente de apresentar novas motivações. A ser assim estaríamos perante uma clara desigualdade de armas pois, ao Recorrente faltoso, convidando-o a reformular as suas motivações de recurso, estar-se-ia a conceder-lhe um novo prazo para motivar o seu recurso.
24ª - O Recorrente teve direito ao recurso. Tanto teve que o interpôs. Não o fez foi bem e com isso não pode ver ser-lhe concedido novo direito ao recurso.
25ª - Termos em que, por não se verificar qualquer violação da CRP, deve ser dado o Acórdão posto em crise por conforme ao artigo 32º, nº 1 da CRP e, em consequência negado provimento ao recurso.
artigo 165º, nº 1 do CPP
26ª – “É comum a regra da inadmissibilidade da junção de documentos pelas partes após o encerramento da audiência no tribunal de primeira instância como resultado da natureza do recurso penal ordinário no direito Português (Acórdão do STJ, de 30.11.1994, in CJ, Acs, do STJ, 2, 3, 262 e acórdão do TRC, de 10.11.1999, in CJ XXIV, 5, 47, e, na doutrina, MAIA GONÇALVES, 2005: 376, anotação 2 ao artigo 165), mas esta regra deve ser restringida em conformidade com o direito constitucional ao recurso”. – Paulo Pinto de Albuquerque, 449, anotação 10 ao art. 165 do CPP.
27ª - E, assim sendo, podendo o Recorrente lançar mão de outro grau de jurisdição, ainda que extraordinário como é o de revisão, não se vislumbra como pode ver-se cerceado o seu Direito a recorrer! E, assim violado o nº do artigo 32º da CRP! Não.
28ª - O aqui Recorrente não pretendeu juntar os documentos supervenientes em sede de renovação de prova. Fê-lo de uma forma completamente autónoma e sem qualquer obediência aos princípios que regem o recurso para a relação.
29ª - Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o Recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa certa interpretação) que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma (ou tal norma, nessa interpretação) seja aplicada no julgamento da causa, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi dirigida.
30ª - Não podem dar-se como verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o qual deve ser rejeitado.
31ª - Ou, se assim não se entender, não se verificando qualquer desconformidade constitucional na decisão do Tribunal da Relação no entendimento que deu ao artigo 165º do CPP e o artigo 32º, nº 1 da CRP, deve ser julgada improcedente a arguição pretendida.
artigo 115º, nº 1 do Código Penal
32ª - Todo o raciocínio expendido pelo Recorrente assenta num equívoco: que o MP exerceu a ação penal em defesa do interesse do menor e ao abrigo do normativo citado, quando é certo que no caso vertente a acusação deduzida contra o Recorrente ter por base a queixa dos ofendidos e assistentes.
33ª – É de salientar que, ainda que o próprio tribunal tenha ido mais longe, o entendimento perfilhado pelo MP no que respeita a esta questão, foi precisamente a interpretação restritiva da disciplina do art. 178.º, (n.º 2 ou 4) no sentido que a sua intervenção fundada no interesse da vítima independentemente da existência de queixa só é possível antes do menor ter capacidade para, por si, exercer esse direito de queixa. O que não aconteceu como é por demais sabido.
34ª - E, quando tal não aconteceu, o Ministério Público elaborou diversos “ARQUIVAMENTOS POR FALTA DE CONDIÇÕES DE PROCEDIBILIDADE” correspondentes a dezenas de situações, entre as quais algumas relativas ao Recorrente, precisamente porque o (s) queixoso (s) não exerceu (eram) atempadamente o seu direito e tendo já mais de 16 anos não poder o MP agir independentemente de queixa em nome do interesse da vítima.
35ª - Face ao exposto não é possível sustentar, como o faz o Recorrente, que o MP tenha recorrido à faculdade prevista no art. 178.º para exercer a ação penal. Ao invés a posição defendida pelo MP investigador e acusador está em linha com o que o Recorrente defende.
36ª - Porém a realidade é que o assistente deduziu atempadamente queixa pelo que o MP tinha plena legitimidade para exercer a ação penal contra o Recorrente.
37ª - Não se vislumbra assim, nem o Recorrente o explícita, como é que pode, da postura do MP e da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa existir qualquer preterição que possa assumir-se como uma violação do artigo 29º, nº 1 da CRP!
38ª - O artigo 29º, nº 1 da CRP postula o princípio da legalidade penal. A fundamentalidade político-juridica e jurídico-penal deste princípio radica na necessidade, demonstrada pela experiência histórica, de preservar a dignidade da pessoa humana, pedra angular do Estado de Direito, frente ao exercício ilegítimo e arbitrário do poder punitivo estadual, (Jorge Miranda e Rui Medeiros, obra citada, pg 325);
39ª - Como se demonstrou supra e o Acórdão da Relação cristalinamente declara, a decisão do MP de considerar reunidos os pressupostos que, com legitimidade, conduziram, nalguns casos à acusação resulta diretamente da aplicação do estatuído no artigo 115º, nº 1 do Código Penal e não, como pretende o Recorrente, da sua aplicação analógica, proibida como se sabe. Trata-se de uma aplicação direta do princípio da tipicidade.
40ª - A atuação do MP foi conduzida pela Lei e sua aplicação direta, não existindo qualquer analogia como pretende o Recorrente.
Assim sendo, deve o presente recurso ser indeferido, declarando este Venerando Tribunal a conformidade da decisão posta em crise quer com a Lei quer com a Constituição.”
O arguido D., em 8 de março de 2012, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de fevereiro de 2012, nos seguintes termos:
“I. Pretende-se apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 14.º, 17.º, n.º 1 in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do CPP2, com o sentido interpretativo subjacente à aplicação que delas foi feita no despacho de fls. 25.475 a 25.488 e integralmente confirmado no Acórdão ora recorrido (cfr. fls. 73.412 a 73.507, maxime a fls. 73.486 e ss.), do qual se extrai, como ratio decidendi, o reconhecimento da competência do tribunal de julgamento para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, por este sentido interpretativo violar o princípio da estrutura acusatória do processo criminal, consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Recorrente no recurso que interpôs do citado despacho [de fls. 27.439 a 27.454 dos autos (cfr., também, a fls. 33 a 48 do Apenso N), o qual foi julgado improcedente no Acórdão ora recorrido, que veio a confirmar integralmente a decisão proferida pelo tribunal ad quem, sufragando o sentido interpretativo que presidiu à aplicação daquelas normas e cuja inconstitucionalidade o Recorrente pretende ver apreciada.
II. Pretende-se a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 1.º, al. f) e 358.º do CPP, com o sentido interpretativo subjacente à aplicação que delas foi feita no despacho de fls. 64.055 a 64.112 e integralmente confirmado no Acórdão ora recorrido (cfr. fls. 73.808 a 74.181, maxime a fls. 74.061 a 74.074), segundo o qual as alterações de factos que modificam a narração do núcleo do lugar e ou do tempo dos crimes imputados não são alterações substanciais de factos, por violação do princípio da plenitude das garantias de defesa, consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da CRP.
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Recorrente no recurso que interpôs do citado despacho [de fls. 64.783 a 64.827 dos autos (cfr., também, a fls. 27 a 71 do Apenso ZG)], o qual foi julgado improcedente pelo Acórdão ora recorrido, que veio a confirmar integralmente a decisão proferida pelo tribunal ad quem, sufragando o sentido interpretativo que presidiu à aplicação daquelas normas e cuja inconstitucionalidade o Recorrente pretende ver apreciada.
III. Pretende-se apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 1.º al. f) e 358.º, n.º 1 do CPP, com o sentido interpretativo subjacente à aplicação que delas foi feita no despacho de fls. 64.055 a 64.112 e integralmente confirmado no Acórdão ora recorrido (cfr. fls. 73.808 a 74.181, maxime a fls. 74.093 a 74.099), segundo o qual é admissível a comunicação de alteração não substancial dos factos constantes do despacho de pronúncia efetuada em prazo muito para além do razoável (de forma tal que impeça o efetivo exercício dos direitos de defesa), por violação dos princípios constitucionais da adequação, da exigibilidade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, dos direitos à decisão da causa em prazo razoável e ao processo equitativo, da plenitude das garantias de defesa e da estrutura acusatória do processo criminal e do contraditório, consagrados, respetivamente, nos arts 18.º, nrs. 2 e 3, 20.º, n.º 4 e 32.º, nrs. 1, 2 e 5, todos da CRP, bem assim como do princípio da informação ao acusado, no mais curto prazo, da acusação contra ele formulada, consagrado no art.º 6.º, nrs. 1 e 3 al. a) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Recorrente no recurso que interpôs do citado despacho [de fls. 64.783 a 64.827 dos autos (cfr., também, a fls. 27 a 71 do Apenso ZG)], o qual foi julgado improcedente pelo Acórdão ora recorrido, que veio a confirmar integralmente a decisão proferida pelo tribunal ad quem, sufragando o sentido interpretativo que presidiu à aplicação daquelas normas e cuja inconstitucionalidade o Recorrente pretende ver apreciada.
IV. Pretende-se, por último, apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes do arts. 97.º, n.º 5 e 358.º, nrs. 1, 2 e 3 do CPP, com o sentido interpretativo subjacente à aplicação que delas foi feita no despacho de fls. 64.055 a 64.112 e integralmente confirmado no Acórdão ora recorrido (cfr. fls. 73.808 a 74.181, maxime a fls. 74.106 a 74.112), segundo o qual a fundamentação da comunicação de alteração de factos constantes da pronúncia se basta com a indicação dos novos factos e a remissão para toda a prova produzida nos autos, por violação do princípio da fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art.º 205.º, n.º 1 da CRP.
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Recorrente no recurso que interpôs do citado despacho [de fls. 64.783 a 64.827 dos autos (cfr., também, a fls. 27 a 71 do Apenso ZG)], o qual foi julgado improcedente pelo Acórdão ora recorrido, que veio a confirmar integralmente a decisão proferida pelo tribunal ad quem, sufragando o sentido interpretativo que presidiu à aplicação daquelas normas e cuja inconstitucionalidade o Recorrente pretende ver apreciada.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“A) Relativamente à questão enunciada no ponto I do requerimento de interposição de recurso.
…
1. O Acórdão recorrido, para resolver a questão do tribunal competente para o cumprimento do doutamente ordenado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.2004, colocou-se, numa perspetiva de salvaguarda da tramitação célere do processo e do máximo aproveitamento dos atos processuais, fazendo uma interpretação do disposto nos arts. 14º, 17.º, 33.º, 268.º e 269.º, todos do CPP em conformidade com aqueles princípios e com o principio constitucional do julgamento no mais curto prazo, mas em desacordo com o sentido e alcance do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.2004, com as normas delimitadoras da competência dos tribunais e com o princípio da estrutura acusatória do processo penal.
2. A competência material e funcional do JIC na fase de inquérito decorre do estatuído nos arts. 17.º in fine do CPP e 79.º, n.º 1 in fine da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de 25 janeiro (com sucessivas alterações e republicada pela Lei n.º 105/2003, de 10 de 2 de dezembro), sendo que o elenco dos atos que naquela fase processual lhe estão reservados encontra-se previsto nos arts. 268º e 269.º do CPP (embora outros figurem dispersos em distintas normas, constantes daquele diploma e de legislação avulsa).
3. Os atos a cuja apreciação se haveria que proceder, na sequência do determinado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa em 17.03.2004 e em obediência ao estatuído no art.º 122.º, n.º 1 do CPP, inserem-se, todos eles, no âmbito da competência funcional do JIC. Tratam-se das decisões proferidas em inquérito pelo Senhor JIC do 1.º Juízo do TIC de Lisboa, subsequentes ao despacho, de fls. 270, declarado ferido de nulidade insanável. Só quanto a estes se verifica o necessário nexo de dependência relativamente ao ato nulo.
4. Entre tais atos contam-se os diversos despachos judiciais que determinaram a aplicação e manutenção da medida de coação de prisão preventiva ao ora Recorrente (bem como a diversos outros Arguidos nos presentes autos), além de outros, respeitantes a meios de obtenção de prova e probatórios que careciam de autorização ou validação judicial.
5. Especificamente no que refere aos efeitos da declaração de incompetência, dispõe o art.º 33.º, n.º 1 do CPP que, uma vez esta declarada, “(...) o processo é remetido para o tribunal competente, o qual anula os atos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo (...)“.
6. Ora, ao tempo da prolação do Aresto o processo encontrava-se no início da instrução, o que também no texto se deixou expressamente consignado, ao afirmar-se “(...) tudo indicando - ao que é, de novo, público - estar a iniciar-se a fase de instrução.”
7. Estando o processo na fase inicial de instrução, o que seria previsível era que o Aresto proferido fosse cumprido ainda nessa fase, tanto mais que, sendo tal decisão insuscetível de recurso, por força do disposto no art.º 400.º, n.º 1 al. c) do CPP, não seria expectável que o Acórdão baixasse à primeira instância noutra fase processual que não fosse a de instrução.
8. Assim sendo, não parecerá legítimo retirar da expressão “tribunal atualmente competente” outro sentido interpretativo que não o de que, previsivelmente, tal tribunal sempre seria o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, o qual dispunha de competência territorial, material e funcional para dar cumprimento ao determinado pela Relação.
9. Uma vez que no processo houve lugar a instrução, a qual decorreu, após distribuição válida e incontestada, pelo 3.º Juízo do TIC de Lisboa, só este poderia ser considerado o tribunal competente para dar cumprimento ao decidido no Acórdão de 17/03/2004, da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no estrito respeito pelo espírito da decisão proferida e em conformidade com o ordenamento legal, ordinário e constitucional.
10. A isso não obstaria a circunstância de o processo se encontrar já em fase de julgamento no momento da descida do Acórdão, uma vez que o cumprimento do ali determinado, cabendo no âmbito da competência funcional de tribunal distinto do de julgamento, configuraria uma questão prejudicial que deveria, ao abrigo do disposto no art.º 328.º, n.º 3 al. c) do CPP, ter levado à suspensão da audiência de julgamento.
11. A competência funcional dos tribunais sendo definida por lei é inalterável por decisão judicial, pelo que se os atos em causa se inserem no âmbito de competência do JIC, por força do disposto nos arts. 17.º, 268.º e 269.º, todos do CPP, só a este poderia caber, nos termos do art.º 33.º, n.º 1 do mesmo diploma, dar cumprimento àquela decisão, validando ou invalidando esse mesmos atos.
12. Tanto mais que a validação ou invalidação desses atos não se basta com uma mera confirmação genérica da validação, nomeadamente por decisões prévias, de todos os atos praticados em inquérito pelo Senhor JIC do 1.º TIC de Lisboa, antes exigindo, em respeito ao estatuído nos arts. 122.º, n.º 1 e 33.º, n.º 1, ambos do CPP, a ponderação substancial dos atos eventualmente feridos de nulidade subsequente, no que o juiz de julgamento estaria impedido por força da estrutura acusatória do processo penal.
13. Aliás, a questão - rectius as questões - suscitadas pelo cumprimento do Acórdão da Relação de Lisboa revestem a natureza de questão nova e, como tal, nunca foram a se consideradas em qualquer decisão anteriormente proferida nos autos. Sendo que o entendimento contrário importará o esvaziamento de qualquer sentido útil ao decidido naquele Aresto e comporta uma inequívoca violação do disposto nos arts. 33.º, nrs. 1 e 3, 17.º e 122.º, n.º 1, ambos do CPP.
14. Assim, nos termos daqueles preceitos legais, em especial no que tange ao art.º 33.º, n.º 1 do CPP, caberia sempre ao tribunal competente proceder a uma valoração material dos atos virtualmente feridos de nulidade subsequente, segundo uma perspetiva ex ante, tal como se perante o próprio “tivesse corrido o processo”.
15. Particularmente no que respeita ao despacho que determinou a prisão preventiva do ora Recorrente (de fls. 3246 e ss.), bem como relativamente aos subsequentes, proferidos aquando dos seus reexames obrigatórios (de fls. 6055 e ss; de fls. 9386 e s., e de fls. 13863 e s), o cumprimento do estatuído no art. 33.º, n.º 3 do CPP, imporia ao Tribunal uma decisão de fundo - logo de índole substancial - quanto à convalidação ou não convalidação, daquelas decisões do Senhor JIC do 1.º TIC de Lisboa.
16. A atividade determinada pela nulidade insanável do despacho de fls. 270, dada a dimensão dos autos e dos atos praticados pelo juiz declarado incompetente, bem como a sua repercussão na tramitação do processo e nos diversos sujeitos processuais, nunca poderia traduzir-se num ato pontual, meramente formal, sem repercussões ao nível do princípio da imparcialidade e da estrutura acusatória do processo penal.
17. Antes se traduzindo-se na avaliação, sindicância, de um vastíssimo leque de atos que implicaram praticamente toda a atividade jurisdicional em sede de inquérito, que, consabidamente, foi vastíssima, com intervenções permanentes ao longo de mais de um ano, que se espraiaram por mais de vinte mil páginas.
18. Não podendo pois considerar-se que se tratou da avaliação crítica “de um ato de inquérito (v.g. apreciação de uma questão de nulidade referente a essa fase processual mas posteriormente suscitada)” mas de todas as questões com implicância jurisdicional referentes ao inquérito.
19. Sendo incontornável que o Juiz de julgamento tomou decisões sobre os atos jurisdicionais praticados naquela fase pelo Sr. Juiz declarado incompetente, não se cingindo a sua atividade a “ uma intervenção pontual (prolação do despacho de 13-12-2004)”, antes percorrendo, em obediência do disposto no art.º 33.º, n.º 1, do CPP, toda a fase de inquérito, culminando na prolação do despacho de 13.12.2004, o qual traduz, necessariamente, uma avaliação crítica dos atos levados a cabo pelo Sr. Juiz declarado incompetente.
20. A interpretação das disposições acima referidas no sentido da atribuição de tal competência ao juiz de julgamento (ou ao tribunal de julgamento) objetivamente compromete a sua imparcialidade e isenção e fere, irremediavelmente, o princípio da estrutura acusatória do processo penal.
21. Pois que ainda que se admitisse que o Tribunal de julgamento nada decidiu quanto ao mérito dos atos processuais, incluindo os relativos às medidas de coação aplicadas aos arguidos, o nada decidir sobre a validade ou invalidade desse atos praticados pelo juiz declarado incompetente, é ainda assim decidir, e o não o decidir sobre as medidas de coação aplicadas com os fundamentos aduzidos no Acórdão recorrido, integra ainda uma decisão.
22. A competência funcional pertencia e pertence ao Juiz do 3.º TIC de Lisboa, não sendo pois admissível qualquer outra interpretação, nomeadamente a vertida do Acórdão recorrido, no sentido de que a competência atribuída material e funcionalmente (tal como de resto a territorial) possa ser alterada por decisão judicial e em nome dos princípios da celeridade processual, do máximo aproveitamento dos atos praticados e do julgamento no mais curto prazo e atribuída, em nome desses princípios ao tribunal de julgamento.
23. O respeito pela estrutura acusatória do processo penal português vigente, em obediência ao princípio constitucional consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da CRP impõe a interpretação das normas dos arts. 14.º, 17.º, 33.º, n.º 1, 40.º 268.º e 269.º, do CPP e do art.º 79.º, n.º 1 da LOFTJ, em sentido diverso do levado ao Acórdão recorrido.
24. A delimitação do âmbito da competência funcional dos diversos tribunais criminais traduz, precisamente, uma concretização, no plano da lei ordinária, da estrutura acusatória do processo, em obediência ao princípio plasmado no art.º 32.º, n.º 5 da CRP.
25. Estando em causa a ponderação acerca da validade ou invalidade de um vastíssimo conjunto de atos praticados pelo Senhor JIC do 1.º TIC de Lisboa em fase de inquérito, entre os quais se contam, inclusivamente, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva a vários dos arguidos ora submetidos a julgamento, não se vê como o Tribunal de julgamento, sem ofensa das regras de competência funcional - arts. 17.º, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do CPP - e do princípio consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da CRP, possa conhecer, apreciar e decidir tais questões.
26. O reconhecimento da competência do tribunal de julgamento para, na sequência da determinação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.2004, apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados na fase de inquérito, importa a violação das garantias de isenção, imparcialidade e independência do tribunal de julgamento.
27. O juiz do julgamento, ao apreciar a validade ou invalidade daqueles atos, abordando a nulidade que aí foi conhecida e declarada, numa lógica de anulação ou de aproveitamento dos atos em causa, tem intervenção em fase anterior do processo, isto é, na fase de inquérito, tendo estado implicado na definição do objeto do processo, não havendo assim a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento, que é imposta pelo princípio do acusatório.
28. Ao entender diversamente, o Tribunal recorrido fez uma interpretação do disposto nos arts. 14.º, 17.º in fine, 31º, n.º 1, 122.º, 268.º e 269.º, todos do CPP, bem como assim como do artº 79.º, n.º 1 in fine da LOFTJ, desconforme com o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrado no art.º 31º, n.º 5 da CRP.
29. O sentido interpretativo subjacente à aplicação que conjugada das normas dos arts. 14.º, 17.º in fine, 33.º, n.º 1, 122.º, 268.º e 269.º, todas do Código de Processo Penal e do art.º 79.º, n.º 1 in fine da LOFTJ que foi feita no Acórdão recorrido, ao reconhecer ao tribunal de julgamento competência para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos jurisdicionais do Juiz de Instrução declarado incompetente pelo Aresto de 17.03.2004, praticados em fase de inquérito, é inconstitucional, por ofensivo do princípio da estrutura acusatória do processo criminal, consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
30. Termos em que o sentido interpretativo do disposto nos arts. 14.º, 17.º in fine, 33º n.º 1, 122.º, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, bem assim como o art.º 79.º, n.º 1 in fine da LOFTJ, constitucionalmente conforme com o princípio da estrutura acusatória do processo criminal, consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa impõe que a validação ou invalidação dos atos praticados pelo Juiz de Instrução declarado incompetente seja efetuada por um Juiz de Instrução, estando vedada tal avaliação crítica e decisão ao Juiz Presidente do Tribunal de Julgamento ou ao Tribunal Coletivo, o que deve ser declarado.
…
B) Relativamente às questões enunciadas nos pontos II. III e IV do requerimento de interposição de recurso.
…
CONCLUSÕES:
1. Nos termos do art.º 1 do Código Penal, em abstrato, crime é o facto descrito e declarado punível por lei.
2. A concretização processual da abstração legal “crime” é feita de acordo com o estabelecido no art.º 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, sendo tal narração que, acompanhada da indicação das disposições legais aplicáveis, constituí a imputação de um crime concreto ao Arguido, imputação que o disposto no art.º 339.º, n.º 4 do CPP impõe que se mantenha na discussão da causa, embora “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos”.
3. De tal conceção de crime, decorre que não há facto material sem concretização do tempo e do lugar da sua prática.
4. Se não for possível a determinação desses elementos do facto, o crime pode ser processualmente imputado mesmo sem a narração espacial e temporal, mas, sendo possível, a imputação processual integra a narração, ainda que sintética (art.º 283.º, n.º 3, al. b) do CPP), do tempo e do lugar.
5. Assim, uma vez efetuada tal concreta determinação, o tempo e o lugar integram o facto não só ontologicamente mas também quanto à sua cognição, pois o facto criminoso não é uma abstração parcelada, é um facto concreto e unitário.
6. À luz desta conceção, as circunstâncias de tempo, lugar e modo não se apresentam como um elemento acessório, mas antes um elemento integrante dos factos objeto da acusação, pelo que, alterando-se a narração do núcleo do tempo ou do lugar que integram o crime imputado, verifica-se a imputação de um crime diverso, não sendo mantida a imputação do mesmo crime.
7. Sendo que a nova indiciação de um crime em concreto diverso não é confundível com a indiciação de um diverso tipo legal de crime, a qual, sem alteração da narração factual, incluindo o lugar e o tempo, constitui alteração da qualificação jurídica dos factos, que não está em causa na douta decisão recorrida e que está regulada no n.º 3 do art.º 358.º do CPP.
8. Os limites à identidade do crime, na qualificação de uma alteração, terão que ser a total garantia dos direitos de defesa do Arguido e a prossecução da justiça e da verdade material, pelo que, sempre que essa alteração ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos.
9. A alteração de factos descritos no despacho de pronúncia como ocorridos num dia indeterminado situado entre outubro de 1998 e outubro de 1999, tinha o menor 14 anos de idade, no sentido de poderem ter ocorrido em dia não concretamente apurado, situado entre o fim do ano de 1997 e julho de 1999, tinha o assistente 13/14 anos de idade, traduz a imputação de um crime diverso.
10. As circunstâncias referidas no despacho proferido, ao virem substituir os factos da pronúncia por factos novos, que transformam o quadro factual descrito noutro manifestamente diferente no que respeita aos seus elementos integrantes, constituem verdadeiras alterações substanciais de factos, enquadráveis no regime previsto no art. 359º do CPP, e não do art. 358º, pois delas resulta a imputação de um crime diverso - cfr. o art.º 1º, al. f) do CPP.
11. Da alteração em causa resulta não a mera especificação dos factos descritos na pronúncia, mas uma inovação do quadro fáctico relativo às circunstâncias de tempo, com imputação de um crime diverso.
12. A interferência na defesa do arguido decorrente de tal alteração tem força suficiente para impedir que a alteração seja tratada no âmbito do art.º 358.º, n.º 1 do CPP, uma vez que a mesma ficou inviabilizada.
13. Preparando o visado pela alteração, há cinco anos a sua defesa (por referência à data da comunicação) relativamente a um imputado crime num certo período, já de si excessivamente longo, não respeitando de modo algum as suas garantias de defesa ser restringido, decorridos cinco anos, à possibilidade de uma defesa incidental, em tempo estritamente necessário, quando já não pode dispor de meios de prova a que ainda poderia ter tido acesso antes desse período.
14. Com a comunicação de alteração de factos ao ora Recorrente não estava em causa a consequente produção de prova suplementar relativamente a um qualquer facto complementar, mas antes a produção de prova que entendida por necessária ao exercício efetivo do direito de defesa, no que se inclui a renovação dos meios de prova tidos por necessários e convenientes ao efetivo exercício das garantias de defesa consagradas no art.º 32.º da CRP.
15. Na questão em análise verificaram-se pois alterações de factos que modificaram a narração do núcleo do lugar e ou do tempo dos crimes imputados nos termos acima referidos, importando analisar se efetuadas tais alterações de factos e, ainda que respeitado o disposto no artigo 358.º do CPP, podem mostrar-se absolutamente postergadas as garantias de defesa do Arguido.
16. As alterações de factos que se verificaram modificaram, no final da audiência de julgamento, a narração do núcleo do lugar e ou do tempo dos crimes imputados, tendo ocorrido a variação temporal de um ano relativamente aos factos imputados na acusação e, subsequentemente, no despacho de pronúncia.
17. Atendendo à distância temporal dos factos novos imputados ao Arguido – tendo decorrido mais de 10 anos entre a data da suposta prática daqueles e o momento em que tais factos lhe foram comunicados – a estratégia que definiu para exercer o seu direito à defesa face à acusação e despacho de pronúncia (em que teve em conta o lugar e ou o tempo dos factos que lhe foram imputados na acusação) e à dificuldade de lançar mão de alguns meios prova ou até mesmo à impossibilidade de oferecer alguns meios de prova (como por exemplo os dados de tráfego telefónicos, devido à sua subsequente eliminação), na decorrência da alteração dos factos, foram absolutamente esvaziadas, do ponto de vista substancial, as garantias de defesa do Arguido.
18. Assim, deve entender-se que, não obstante terem sido formalmente asseguradas as garantias de defesa através do cumprimento da comunicação prevista no artigo 358.º, n.º 1 do CPP, materialmente, a repercussão que a divergência de lugar e ou do tempo, a esta distância temporal teve na atividade de defesa do Arguido, traduz-se, inequivocamente, no esvaziamento das suas garantias de defesa.
19. No caso concreto, foram postergadas as garantias de defesa do Arguido, de forma tal que impossibilitou o exercício efetivo das possibilidades de defesa em relação aos factos novos, com inerente violação do disposto no art.º 32.º, n. 1 da CRP.
20. Não podendo por isso afirmar-se que o exercício do direito de defesa, na sua plenitude, ainda era possível.
21. A alteração dos factos do despacho de pronúncia efetuada pelo Tribunal de julgamento não se integra, pois, numa alteração não substancial dos factos, admitida nos termos do disposto no art.º 358.º, n.º 1 do CPP, mas antes numa alteração substancial dos factos descritos na acusação, por, no caso vertente, a interpretação subjacente à aplicação que daquela norma foi feita violar a garantia do exercício efetivo do direito de defesa, consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da CRP.
22. A interpretação normativa conjugadas dos arts. 1.º, al. f) e 358.º do CPP efetuada pelo Tribunal recorrido, no sentido de que a alteração do tempo da prática do ato imputado, mesmo que por um período de mais de um ano, não integra o conceito de crime diverso e não compromete o exercício efetivo do seu direito de defesa, sendo por isso qualificada como uma alteração não substancial dos factos, é inconstitucional por violação do princípio da plenitude das garantias de defesa consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da CRP, a qual deve ser declarada.
23. A interpretação normativa conjugadas dos arts. 1.º, al. f) e 358.º do CPP conforme ao princípio consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da CRP, impõe que se considere que a alteração do tempo da prática do ato imputado, por um período de mais de um ano, integra o conceito de crime diverso e que compromete o exercício efetivo do seu direito de defesa, seja qualificada como uma alteração substancial dos factos, sujeita ao regime do art.º 359.º do CPP.
…
III.
…
CONCLUSÕES:
1. A interpretação normativa conjugada dos art.ºs 358.º, n.º 1 e 1.º, ai. f) do CPP, conforme àqueles princípios e preceitos constitucionais e aos princípios neles consagrados, bem como o direito a um processo equitativo tal como consagrado no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3, als, a) e b) da CEDH, impunha que o despacho proferido ao abrigo e para os efeitos do disposto no art.º 358.º, n.º 1 do CPP, tivesse sido proferido em momento anterior, consentâneo com a defesa das garantias e direitos ali consagrados.
2. O que está em causa no é a convocação do instituto do art.º 358.º ou 359.º do CPP, mas a oportunidade dessa convocação por referência ao processo concreto em que a mesma surge na sua compaginação com os restantes direitos que têm de ser assegurados.
3. Até porque a alteração em questão, de um período determinado para um alargado em 365 dias, configura, em boa verdade, uma nova acusação que, como tal, implica uma nova contestação, com indicação da prova que for tida por necessária e adequada e a respetiva produção, com toda a tramitação processual subsequente, no que se incluem as alegações.
4. Ainda que possa aceitar-se que – literalmente – tal comunicação pode ter lugar até ao final da discussão da causa, em momento imediatamente anterior à sentença, a interpretação da oportunidade da convocação do intuito em causa não se pode ater ao seu elemento literal – “Se no decurso da audiência” –, antes tem de ser integrada pelos restantes princípios informadores do sistema processual penal e constitucional, numa compaginação do princípio do asseguramento de todas as garantias de defesa com o princípio da verdade material.
5. Com a comunicação da alteração de factos ao ora Recorrente não está em causa, a consequente produção de prova suplementar relativamente a um qualquer facto complementar, mas antes a produção de prova que a defesa entenda por necessária ao exercício efetivo do direito de defesa, no que se inclui a renovação dos meios de prova tidos por necessários e convenientes ao cumprimento efetivo das garantias de defesa consagradas no art.º 32.º da CRP.
6. Assim, a admissão de alterações após conclusão das alegações orais, embora consentida pela mera literalidade legal - “no decurso da audiência”-, constitui surpresa e irracionalidade processuais, violadoras da plenitude das garantias de defesa (que tem ínsita a estrutura acusatória do processo penal e o princípio do contraditório) conferida pelo art.º 32.º da CRP e do processo equitativo imposto pelo artº 20.º, n.º 4 da CRP e pelo artº 6.º da CEDH.
7. A violação das garantias de defesa está evidenciada pela conjugação da extemporaneidade da decisão com a amplitude temporal das alterações preconizadas.
8. Sendo a admissibilidade de alterações indiciárias justificada pelo princípio da verdade material, não pode este princípio aos da plenitude das garantias de defesa, do acusatório e do contraditório, devendo os “conflitos” ser resolvidos com recurso aos princípios da adequação, da exigibilidade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, cuja observância é imposta pelo artº 18.º da CR.P.
9. Neste enquadramento constitucional, as alterações devem ser comunicadas no mais curto prazo após a sua indiciação no decurso da audiência, o que também está estatuído e de forma mais direta no art.º 6.º, n.º 3, al. a) da CEDH, que confere ao acusado o direito de “ser informado no mais curto prazo, em linguagem que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada”, impondo-se a correspetiva obrigação de forma mais evidente quando a acusação passa a ser a acusação inicial alterada, em relação à qual vinha sendo exercido o direito ao contraditório e à defesa.
10. Ao fim de mais de cinco anos de julgamento, não pode deixar de se entender que tal estado de coisas briga com um processo justo e equitativo, o qual exige, como seu elemento conatural, que acusação e defesa tenham a possibilidade efetiva de defender os seus interesses numa posição idêntica, e não numa situação substancial de desvantagem, em que o princípio da igualdade de armas se apresenta como elemento incindível daquele, como aliás tem sido sucessivamente reafirmado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
11. A comunicação da referida alteração no momento em que foi efetuada, viola ainda o direito a um processo equitativo e o princípio da igualdade por violação do disposto nos art.ºs 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP e art.º 6.º, n.º 1 e 3 al. a) da CEDH.
12. Pelo que forçoso será concluir que a (injustificada) extemporaneidade da comunicação das alterações dos factos viola, objetivamente, a plenitude das garantias de defesa consagradas no art.º 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP e o princípio do processo equitativo imposto pelos arts. 20.º, n.º 4 da CRP e 6º da CEDH.
13. Termos em que a interpretação normativa conjugada dos art.ºs 358.º, n.º 1 e 1.º, al. f) do CPP efetuada no Acórdão recorrido, no sentido de que a comunicação da alteração não substancial dos factos constantes do despacho de pronúncia, abrangendo quase todos os factos ali vertidos, efetuada após as alegações finais, decorrido mais de um ano sobre o termo das mesmas e da produção de prova, e mais de 4 anos sobre a produção da prova oferecida pela acusação pública e pelos assistentes, foi efetuada em prazo razoável e adequado, não sendo impeditiva do exercício efetivo dos direitos de defesa dos arguidos por ela visado, nem violadora das garantias de defesa do arguido, do direito à decisão da causa em prazo razoável e sequer do direito a um processo equitativo, inconstitucional por manifestamente violadora do disposto nos art.ºs 32.º, n.º 1, 2 e 5, 20.º, n.º 4 e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, bem como ainda do disposto no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3 al. a) da CEDH, e como tal do direito a um processo justo e equitativo, inconstitucionalidade que deve ser declarada.
14. A interpretação normativa conjugada dos art.ºs 358.º, n.º 1 e 1.º, al. f) do CPP conforme àqueles princípios e preceitos constitucionais e aos princípios neles consagrados, bem como o direito a um processo equitativo tal como consagrado no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b) da CEDH, impunha que o despacho proferido ao abrigo e para os efeitos do disposto no art.º 358.º, n..º 1 do CPP, tivesse sido proferido em momento anterior, consentâneo com a defesa das garantias e direitos ali consagrados.
…
IV.
…
CONCLUSÕES:
1. A interpretação normativa conjugada dos art.ºs 97.º, n.º 5 e 358.º, n.º 1 do CPP efetuada pelo Tribunal recorrido, no sentido de que a comunicação da alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que se consideram indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos, sendo esta constituída por centenas de declarações e depoimentos de assistentes, testemunhas, peritos e consultores, por milhares de documentos, por dezenas de perícias, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação das decisões e das garantias de defesa do arguido, consagrados nos art.ºs 205.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP, bem como do direito a um processo equitativo tal como consagrado no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b) da CEDH.
2. A indicação, no despacho proferido ao abrigo do art.º 358.º, n.º 1 do CPP, de “face a toda a prova produzida em audiência de julgamento entre a qual (mas sem prejuízo da que não for neste momento expressamente organizada)” tal como efetuada pelo Tribunal de Julgamento, não permite ao arguido visado pela comunicada alteração, aferir qual da prova concretamente produzida conduziu à decisão de modo a ser possível a contraprova eficiente e, portanto, que organize eficazmente a sua defesa.
3. A mera afirmação de que a comunicação é feita nos termos do art.º 358.º do CPP, de modo algum constitui fundamento de direito que possa ser aceite como bastante.
4. Ora, a fundamentação apresentada equivale à falta de fundamentação, pois abrange toda a prova produzida ao longo de cinco anos de audiência de julgamento, bem como a prova adquirida ainda na fase de inquérito, não descriminando os meios de prova indicados relativamente a cada uma das alterações comunicadas, não permitindo ao arguido atingido pela comunicação das alterações, compreender, ainda que indiciariamente, as provas que as sustentam e, consequentemente, organizar a sua nova defesa.
5. E, por isso, tal fundamentação é violadora do dever de fundamentação dessa decisão, por esvaziar de conteúdo útil o exercício efetivo do direito de defesa e não assegurar o respeito pelo princípio do contraditório que, afinal, o art.º 358.º do CPP visa acautelar.
6. A interpretação normativa conjugada dos art.ºs 97º, n.º 5 e 358.º, n.º 1 do CPP efetuada pelo Tribunal recorrido, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que se consideram indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos, sendo esta constituída por centenas de declarações e depoimentos, de assistentes, testemunhas, peritos e consultores, por milhares de documentos, por dezenas de perícias, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação das decisões e das garantias de defesa do arguido consagrados nos art.ºs 205.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP, bem como do direito a um processo equitativo tal como consagrado no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b) da CEDH.
7. A interpretação normativa do disposto nos art.ºs 97.º, n.º 5 e 358.º, n.º 1 do CPP conforme àqueles preceitos constitucionais e aos princípios neles consagrados, bem como o direito a um processo equitativo tal como consagrado no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b) da CEDH, impõe que no despacho proferido ao abrigo e para os efeitos do disposto no art.º 358.º, n.º 1 do CPP sejam especificados os motivos de facto e de direito da decisão proferida, devendo a fundamentação ser suficiente e adequada ao exercício de todas as garantias de defesa constitucionalmente consagradas naqueles preceitos constitucionais e normas convencionais, termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação normativa efetuada no Acórdão recorrido, com as legais consequências.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
“1. – Primeira questão de inconstitucionalidade, referente às normas dos artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do CPP.
1.1. – O Acórdão da Relação que, na fase de inquérito, anulou o ato de distribuição do Juiz de instrução criminal, perentoriamente considerou que não tinha ocorrido violação do princípio do Juiz natural e que a distribuição, não era um direito.
1.2. – Encontrando-se, o processo no tribunal de julgamento, este considerou-se competente para, dando cumprimento ao decidido pela Relação, apreciar a validade/invalidade dos atos praticados pelo Juiz de instrução.
1.3. – Nessa tarefa, o tribunal não procedeu a uma apreciação substancial dos atos, antes situando-o na fase de inquérito e tendo em consideração a função do juiz de instrução criminal naquela fase e aos atos que legalmente deve praticar, adotou o critério de que apenas seriam invalidados os atos que na perspetiva finalística do processo, não deviam ter sido praticados, ou os que não tenham observado os pressupostos legais, que em abstrato condicionavam a sua prática.
1.4. – Sendo ampla a função do tribunal de julgamento no controlo dos vícios processuais que se situam em fases anteriores do processo (artigo 311.º, n.º 1, do CPP), a competência assumida pelo tribunal e a forma como a exerceu, não viola a estrutura acusatória do processo penal (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição).
1.5. – Assim, deve negar-se, nesta parte, provimento ao recurso.
2. – Segunda questão de inconstitucionalidade, referente à norma do artigo 1.º, n.º 1, alínea f) e 358.º do CPP.
2.1. – Objeto do recurso, segundo o recorrente: “da inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 1.º, al. f) e 358.º do CPP, com o sentido interpretativo subjacente à aplicação que delas foi feita (…) segundo o qual as alterações de factos que modificam a narração do núcleo do lugar e ou do tempo dos crimes imputados não são alterações substanciais de factos, por violação do princípio da plenitude das garantias de defesa, consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da CRP”.
2.2. – O acórdão recorrido interpretando o artigo 358.º e 1.º, alínea f) do CPP, entende que a alteração das circunstâncias da execução do crime, como o dia, a hora ou o local da sua prática apenas deverão ser qualificados como substanciais se elas transformarem o objeto do processo num outro distinto.
2.3. – Também considerou a Relação que se uma alteração de factos comunicado ao arguido comprometer a sua defesa, deverá ser qualificada como substancial.
2.4. – São, pois, diferentes, a dimensão normativa efetivamente aplicada e aquela que vem questionada.
2.5. – Partindo da interpretação que acolheu, no acórdão recorrido – exercendo a Relação uma competência que só a ela cabe e não ao Tribunal Constitucional - apreciaram-se criteriosamente as concretas alterações, situando-as e analisando-as no contexto da extensa prova produzida e concluindo que elas não alteravam o objeto do processo, nem comprometiam a defesa do arguido, qualificaram-se, consequentemente, como não substanciais.
2.6. – Por outro lado, na motivação do recurso para a Relação – o momento próprio – o recorrente o que sustenta, sob a capa de normatividade, é que é a decisão da 1.ª instância, ao qualificar as alterações como não substanciais, violou o artigo 32.º da Constituição.
2.7. – Assim, faltando dois requisitos de admissibilidade do recurso, não deve conhecer-se do mérito.
3. – Terceira questão de inconstitucionalidade, referente à norma do artigo 1.º, n.º 1, alínea f) e 358.º, n.º 1, do CPP.
3.1. – A interpretação normativa que o recorrente identificou como o objeto do recurso não corresponde àquele que, como ratio decidendi, o acórdão recorrido adotou.
3.2. – Faltando, pois, esse requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, não deve conhecer-se do seu objeto, nesta parte.
4. – Quarta questão de inconstitucionalidade, referente à norma dos artigos 97.º, n.º 5 e 358.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP.
4.1. – A interpretação levada a cabo pela Relação não corresponde à identificada pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso.
4.2. – Durante o processo o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade numa interpretação diferente daquela que identificou como objeto do recurso, sendo que, nenhuma delas, corresponde à efetivamente aplicada.
4.3. – Faltando, pois, requisitos da admissibilidade do recurso, não deverá, nesta parte, dele conhecer-se.”
A Casa Pia de Lisboa, I.P., apresentou contra-alegações que concluiu do seguinte modo:
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 33º n.º 1, 14.º, 17.º, 268.º e 269.º, do CPP
I. O Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu o acórdão a ordenar a remessa dos autos para o tribunal atualmente competente, era ele próprio competente para proceder à extração das legais consequências da nulidade dos atos de instrução sub judice, nomeadamente a validação ou invalidação destes, só não o logrando por manifesta falta de elementos nos autos de recurso que lho permitissem, com seja o elenco e teor dos atos de instrução declarados nulos.
II. Se a Relação de Lisboa entendesse que o tribunal competente para extrair as conclusões da nulidade em causa fosse o (5.º Juízo A ou o 3.º Juízo do) TIC, teria expressamente ordenado a remessa para esse tribunal e não para o tribunal atualmente competente.
III. Por outro lado, se esse fosse o seu entendimento – que o tribunal competente, nos termos do artigo 33º, n.º 1, para dar cumprimento ao por si determinado, era exclusivamente o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, face às regras da competência material, territorial, hierárquica e funcional – ordenaria a remessa do para o 5.º Juízo A daquele, que detinha a competência original em razão da distribuição, e não para o 3.º Juízo perante o qual corria a fase de instrução à data da prolação do Acórdão.
IV. Ao expressamente reconhecer que desconhecia a fase em que o processo se encontrava, não obstante julgasse que em fase de instrução, o acórdão admitiu a possibilidade que estivesse a tramitar noutro tribunal, daí que a decisão recorresse à formulação Tribunal atualmente competente o que exclui o entendimento que só o TIC (em qualquer dos seus Juízos) o fosse.
V. Com a decisão de ordenar a remessa dos autos ao tribunal atualmente competente, a Relação de Lisboa referiu-se ao tribunal competente de acordo com o estado em que o processo se encontrava à data da prolação, o que significava remeter os autos para o tribunal onde o processo seguia os seus termos na data do acórdão, sabendo que a fase de inquérito já estava encerrada.
VI. Estando a presidente do coletivo da 8.ª Vara Criminal de Lisboa obrigada, nos termos do artigo 311.º, n.º 1, do CPP, a conhecer das nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa é indisputável ser este Tribunal materialmente competente para validar os atos nulos em causa, nos termos prescritos no artigo 33º, n.º 1, do mesmo diploma.
VII. A 8.ª Vara apenas apreciou se o 1º Juízo do TIC tinha competência material, territorial, hierárquica e funcional para praticar os atos em causa, não apreciando o mérito daqueles.
VIII. A validação não assentou num juízo de concordância com os pressupostos factuais que determinaram a realização da diligência investigatória em si, mas apenas o reconhecimento de que o tribunal competente os poderia ter determinado caso o processo houvesse corrido perante ele.
IX. Consequentemente o decidido pelo tribunal de julgamento não representa uma invasão a esfera de competência quer do MP, quer do Juiz de instrução a quem compete exclusivamente promover e autorizar os atos em inquérito, não ofendendo a estrutura acusatória do processo penal.
X. Do exposto decorre que o Tribunal de 1.ª instância não violou os preceitos constitucionais invocados – artigos 28.º, 32.º, n.º 1, 2 e 5, 205.º, e 211.º, n.º 1 e 2, da CRP – na interpretação que fez dos artigos 33º n.º 1, 14.º, 17.º, 268.º e 269.º, do CPP, ao validar os atos de instrução em causa.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 1.º, f) e 358.º do CPP
XI. Quanto à questão de saber se alterações de lugar e tempo são substanciais ou não, comece-se por dizer que se é verdade que é importantíssimo o circunstanciar do crime, concretizando a concreta situação de vida em que se deu a sua prática, a realidade é que o tempo e o lugar não são imprescindíveis para que se possa dizer que tal crime foi cometido, bastando que se consiga balizar minimamente o local e o tempo em que tal facto ocorreu, ainda que com limites relativamente latos.
XII. Decorre da formulação do artigo 283.º, n.º 3, b), do CPP que a indicação do lugar, tempo e motivação, deve ser incluída na acusação, se possível, o que confere um caráter de eventualidade a tal indicação, apontando claramente no sentido da não imprescindibilidade de tal indicação, ou a sua maior ou menor precisão, para que se possa validamente imputar o facto ao agente.
XIII. Na prática judiciária, há inúmeras acusações que contêm formulações não precisas: “em dia não concretamente apurado, mas situado entre os meses de janeiro e março de 2009 numa rua paralela à avenida da liberdade”, sem que com tal não se deixe de imputar a prática de tal ilícito ao agente.
XIV. Dizer que o facto imputado ocorreu num dia indeterminado situado não entre outubro de 1998 e outubro de 1999, mas entre fins de 1997 e julho de 1999, não implica a imputação ao arguido de qualquer crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis pelo que tal alteração de lugar e modo não constitui uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia.
XV. As alterações de lugar e tempo não configuram uma modificação da conduta criminosa, mas apenas das circunstâncias da sua execução, emoldurando aquela conduta na concreta situação da vida em que ocorre, sem que com isso se desvirtuem os elementos essenciais do tipo, precisamente por isso é que não configuram a imputação de novo tipo incriminador ou a agravação dos limites máximos aplicáveis.
XVI. A vinculação temática, decorrência da estrutura acusatória do processo penal, deve ser temperada com o princípio da investigação, por sua vez decorrência do princípio da verdade material, e que constitui uma válvula de escape para a rigidez processual que representaria o facto do julgador, apercebendo-se no decurso da audiência que as circunstâncias de lugar tempo e modo em que ocorre a prática do ilícito poderão não ser exatamente as descritas na acusação embora caibam na mesma situação de vida unitária, não a desvirtuando nos seus elementos caracterizadores essenciais, não pudesse integrar tais circunstâncias no objeto do processo.
XVII. Se a alteração dos factos tornar, na prática, impossível o exercício efetivo da defesa, com o sentido em que o arguido afetado não consegue exercitar a sua defesa eficazmente porque não há prova possível para o novo quadro temporal indiciado, poderá representar em abstrato uma alteração disciplinada pelo artigo 359.º; mas já não quando, ainda que onerado na sua posição, consegue, com maior ou menor dificuldade, alinhar prova com a qual pretende contrariar a ampliação do quadro temporal, caso em que não é sustentável que a sua defesa se tenha visto irremediavelmente comprometida.
XVIII. Face à abundância de prova, e independentemente da sua pertinência ao objeto dos autos e utilidade para a boa decisão da causa, que o arguido D. encontrou para contrariar o alargamento temporal da prática dos factos (vd. requerimento probatório fls. 64.915 a 64.921), não é, in casu, sustentável que ficasse impossibilitado de se defender com as alterações de tempo comunicadas.
XIX. É que é diferente dizer que o crime não ocorreu entre 98 e 99, mas sim entre fins de 97 e meados de 99 e dizer que não ocorreu entre 98 e 99, mas sim algures na década de 90, só esta última situação tornando virtualmente impossível a defesa do arguido.
XX. Considerando que a estratégia de defesa do arguido consistiu essencialmente na demonstração que no período considerado não poderia estar no local em causa, mas noutro qualquer, para tanto juntando recibos de portagens, listagens de chamadas telefónicas, etc., o acréscimo de alguns meses ao período considerado não representa uma dificuldade intransponível. Oneroso sim, mas longe de impossível.
XXI. A interpretação feita pelo tribunal dos artigos 1.º, f) e 358.º do CPP em nada ofende os direitos de defesa do arguido, inexistindo a invocada inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º, n.º 1, 2 e 5, da CRP.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 1.º, f) e 358.º, n.º 1, do CPP
XXII. Quanto à extemporaneidade da comunicação das alterações não substanciais, adiante-se que não obsta a que sejam comunicadas o facto de já terem decorrido as alegações dos sujeitos processuais, nada existindo da lei que o impeça.
XXIII. Tal não só é aceitável como parece mais lógico, caso contrário, comunicando-se as alterações no decorrer da produção de prova poderia ocorrer que, face à nova prova admitida acerca das alterações, se suscitarem novos indícios probatórios que, ponderados pelo Tribunal levassem a nova alteração dos factos.
XXIV. Resultando a comunicação das alterações de um juízo indiciário que pressupõe alguma ponderação da prova, é natural que o Coletivo só após alguma deliberação sumária sobre as provas já existentes nos autos conclua pela possibilidade de vir a dar como provadas alterações aos factos da pronúncia, tanto mais sabendo-se do enorme acervo probatório que já existia nos autos a exigir a ponderação do tribunal.
XXV. Nada nos autos sustenta a alegação do arguido D. que o tribunal apenas apreciou as declarações do assistente em causa para decidir da possibilidade de alteração, consequentemente devendo comunica-las nesse momento, sob pena de se violar o direito do arguido a preparar adequadamente a sua defesa para a alteração factual da pronúncia.
XXVI. Muito pelo contrário, da análise crítica da prova constante da decisão final, resulta claramente que o tribunal, para dar como provadas as alterações aos factos da pronúncia, considerou outras provas além do depoimento do assistente, e que a últimas destas a ser produzida o foi em momento muito mais próximo da sua comunicação que aquele depoimento.
XXVII. A comunicação das alterações é um mecanismo de exclusiva defesa dos direitos dos arguidos, não se vislumbrando como pode o exercício daquele, dentro dos limites temporais definidos na própria norma ofender o direito a um julgamento rápido que assiste a arguidos, assistentes e demandantes.
XXVIII. O juízo do Tribunal sobre tais factos de que resulta a alteração não substancial sempre será provisório, só se formando a sua convicção após a produção de prova sobre estes, facultando aos sujeitos afetados por tal decisão a possibilidade de indicarem a prova que entenderem necessária e de escrutiná-la devidamente em audiência contraditória, sem que com isso se ofendam as garantias de defesa e se subverta o princípio do acusatório.
XXIX. Tendo a decisão de comunicação das alterações sido feita em tempo, em atenção ao prescrito no artigo 358º, do CPP, nenhuma inconstitucionalidade deve ser declarada por violação dos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, 2 e 5, 18.º n.º 2 e 3, da CRP e 6.º, n.º 1 e 3, a) da CEDH.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 97.º, n.º 5 e 358.º, n.º 1, 2 e 3, do CPP
XXX. No que se refere à inconstitucionalidade decorrente do facto do tribunal ter feito a comunicação das alterações não substanciais de factos constantes da pronúncia com a indicação dos novos factos remetendo para a prova produzida nos autos, não tem razão o recorrente ao pretender que deveria fundamentar a sua decisão nos termos exigíveis para a decisão final da causa: isto é com a indicação de todos os meios de prova em que se funda a sua convicção – meramente indiciária – e análise crítica da mesma.
XXXI. Tal entendimento não tem sustentação legal, decorrendo dos artigos 358.º e 359.º do CPP, que o Tribunal apenas deve comunicar aos arguidos afetados quais as alterações que entende indiciadas face à prova produzida.
XXXII. O artigo 97.º, n.º 5, do CPP refere-se à fundamentação de decisões o que não é o caso porquanto a decisão de comunicação não é uma decisão em sentido próprio mas a comunicação da possibilidade de, face à prova produzida, vir a entender que a descrição factual constante da pronúncia poderá ser ampliada.
XXXIII. A fundamentação da decisão interlocutória apenas deve permitir ao arguido visado percecionar o seu sentido e conteúdo essenciais e já não tentar convencer do acerto da decisão, simultaneamente permitindo-lhe o integral controlo do raciocínio que presidiu e está subjacente à decisão, como se exige à decisão final que ponha termo à causa.
XXXIV. O Tribunal limita-se a emitir um juízo perfunctório decorrente do que já foi dito, lido e visto na audiência até esse momento e não a expressão de uma convicção já formada, apenas advertindo que poderá vir a dar como provada a ampliação ou alteração da factualidade que circunstancia o crime não emitindo uma decisão definitiva, a qual dependerá da prova que vier a ser produzida.
XXXV. Os arguidos também conhecem, por ter sido produzida perante si, a prova a que se ateve o tribunal pelo que se não concebe a necessidade do Tribunal fundamentar o seu juízo provisório com a indicação exaustiva dos meios de prova donde provem.
XXXVI. Se o Tribunal procedesse à análise crítica da prova em que fundou o seu juízo perfunctório, estaria a antecipar a sua decisão sobre tais factos, adiantando, mesmo que sumariamente, a ponderação e valoração atribuída aos meios de prova que considerou para o efeito, o que não é permitido pelo processo penal.
XXXVII. Por último, tenha-se presente que esta questão já foi apreciada por esta elevada instância ao decidir o recurso apresentado pelo arguido A. acerca da mesma inconstitucionalidade agora suscitada, parcialmente transcrita na decisão de que se recorre (a fls.74.108 e 74.109), a qual entendeu que “Assim sendo, e independentemente de um juízo mais profundo (...) a interpretação normativa que assenta na remissão do despacho para os meios probatórios constantes dos autos e produzidos durante a extensa audiência de julgamento aparenta não ser incompatível com a dimensão constitucional do dever de fundamentação de decisões interlocutórias (...)”.
XXXVIII. Não se descortina, assim, que a interpretação que o Tribunal fez dos artigos 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º, do CPP, violem qualquer garantia de defesa, ou a obrigação de fundamentação das suas decisões definitivas, e por isso os artigos 205.º, n.º 1 e 32.º da CRP e 6.º n.º 1 e 3, a) e b), da CEDH,
TERMOS EM QUE não deve ser declarada nenhuma das inconstitucionalidades invocadas, confirmando-se a decisão recorrida por ser conforme à lei e à constituição”.
O arguido D. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de fevereiro de 2012, apenas na parte em que decidiu o recurso interlocutório do despacho proferido a fls. 17.042-17.046 do processo principal.
Este Recurso não foi admitido por despacho da Desembargadora Relatora.
O arguido reclamou desta decisão para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação, tendo então o arguido recorrido em 6 de junho de 2012 para o Tribunal Constitucional da referida parte do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012, nos seguintes termos:
“Pretende-se a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 113.º, nrs. 3 e 6, 115.º, n.º 1 e 178.º, n.º 2 do CP (todos na versão correspondente à Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, ao tempo em vigor), com o sentido interpretativo subjacente à aplicação conjugada que delas foi feita no despacho de fls. 17.042 a 17.046 dos autos, integralmente confirmado no Acórdão ora recorrido (decisão constante do trecho de fls. 73.366 a 73.409, que conheceu e julgou improcedente o recurso interlocutório interposto daquele despacho), do qual se extrai, como ratio decidendi, a regra segundo a qual o prazo para o exercício do direito de queixa só começa a correr da data em que o ofendido completar 16 anos de idade, por violação do principio da legalidade, consagrado no art.º 1.º, nrs. 1 e 3 do CP e no art.º 29.º, n. 1 da CRP.”
Por despacho proferido pelo Conselheiro Distribuidor no Tribunal Constitucional foi determinado que este recurso (processo n.º 455/12) fosse remetido ao presente processo, a fim de se proceder a um julgamento conjunto.
O arguido D. apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“1. O Recorrente interpôs o presente recurso para a apreciação da inconstitucionali4ade das normas constantes dos arts. 113.º, n.ºs. 3 e 6, 115.º, n.º 1 e 178.º, n.ºs 1 e 2 do CP (na versão ao tempo em vigor, correspondente à Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, re1ativmente ao primeiro e terceiro normativos e ao Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, relativamente ao segundo normativo), com o sentido interpretativo subjacente à aplicação conjugada que delas foi feita no despacho de fls. 17.042 a 17.046 dos autos, integralmente confirmado no Acórdão ora recorrido (decisão constante do trecho de fls. 73.366 a 73.409, que conheceu e julgou improcedente o recurso interlocutório interposto daquele despacho), do qual se extrai, como ratio decidendi, a regra segundo a qual o prazo para o exercício do direito de queixa só começa a correr da data em que o ofendido completar 16 anos de idade, por violação do princípio da legalidade, consagrado no art.º 1.º, n.ºs 1 e 3 do CP e no art.º 29.º, n.º 1 da CRP.
2. Vem assim questionado um certo sentido interpretativo das normas dos arts. 113.º, n.ºs 1, 3 e 6, 115.º, n.º 1 e 178.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, no seu confronto com o disposto no art.º 1.º, n.º 3 do CP e art.º 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos princípios ali ínsitos, que contém em si, com suficiente autonomia, os critérios jurídicos genérica e abstratamente referidos ao texto, de tal modo que permitem a sua utilização em casos semelhantes.
3. De acordo com o princípio e os comandos ínsitos no art.º 29.º, n.º 1 da CRP, e no art.º 1, n.ºs 1 e 3 do CP, o regime legal relativo ao exercício do direito de queixa bem como da legitimidade do Ministério Público para a promoção da ação penal será o vigente à data dos imputados factos ao Recorrente a não ser que outro mais favorável tenha sobrevindo.
4. O Recorrente foi acusado pela prática, em dia indeterminado dos meses de novembro ou dezembro de 1999, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível nos termos do art.º 172.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na pessoa do Assistente B., então com 13 anos de idade, vindo a ser condenado pela prática desse crime que se considerou ter ocorrido num daqueles meses e ano, pelo que são aplicáveis as normas dos artigos 113.º e 178.º do Código Penal na redação introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 setembro, e l15.º, na redação do Decreto-Lei n.º 45/98, de 15 março.
5. Nos termos do disposto no art.º 178.º,n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, o procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 172.º do CP depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima, podendo o Ministério Público, nestes casos, e quando praticado contra menor de 16 anos, dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.
6. Tal normativo legal sofreu as alterações introduzidas Lei n.º 99/2001, de 25 de agosto, (vigente à data do início dos presentes autos), mas que, no que aqui releva, se manteve inalterável, sendo que o seu n.º 1 se manteve inalterável e o n.º 4 manteve a redação do n.º 2
7. No que concerne à legitimidade para o regime do exercício do direito de vale o disposto no art.º 1l3.º, do Código Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, vigente à data dos factos imputados ao Recorrente e do início dos presentes autos, nos termos do qual, quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, e sendo este menor de 16 anos, pode o Ministério Público, dar início ao procedimento criminal, quando o direito não puder ser exercido pelo representante legal e o interesse daquele o impuser.
8. Por sua vez, no que respeita ao prazo para o exercício do direito de queixa, é aplicável o art.º 115.0, n.º 1 do Código Penal, na redação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março (vigente à data dos factos imputados ao Recorrente e do início dos presentes autos), nos termos do qual o direito extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.
9. Das normas aplicáveis decorre que o crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 172.º, nºs 1 e 2, na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro reveste natureza semipública (cfr. o disposto no art.º 178.º, n.º 1 do CP, na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, mas também na que lhe foi conferida pela Lei n.º 99/2001, de 25 de agosto).
10. Nos crimes de natureza semipública, a queixa constitui um pressuposto processual (pressuposto punitivo da punição), sendo que a legitimidade para a deduzir pertence ao ofendido ou ao seu representante legal, exceto nos casos excecionais previstos na lei.
11. Do cotejo do disposto nos arts. 113.º, n.º 6, 178.º, n.ºs 1 e 2 na redação da Lei n.º 65/98, de 2 de setembro e 178.º, n.ºs 1 e 4 na redação da Lei n.º 99/2001, de 25 de agosto, com as regras gerais atinentes ao direito de queixa, constantes dos n.ºs 1 e 3 do primeiro daqueles artigos e do artº 115.º, n.º 1, na redação do DL n.º 48/95, de 15 de março, decorre que a legitimidade da intervenção do Ministério Público nos termos da daqueles normativos, pressupõe, obrigatoriamente, que a vítima seja menor de 16 anos, a inércia ou desconhecimento das pessoas a quem cumpre o exercício do direito de queixa em representação daquela e que o procedimento criminal corresponda ao interesse da vítima.
12. Daquelas normas decorre ainda que a capacidade para o exercício do direito de queixa por parte da vítima, adquirida na data em que completa 16 anos de idade, faz cessar qualquer possibilidade de intervenção do MºPº nos moldes consagrados no art.º 1 78.º, n.º 2 do CP, não podendo tal exercício do direito de queixa ser efetuado por mais ninguém.
13. Não obstante, da interpretação normativa efetuada no Acórdão recorrido decorre a legitimidade do Ministério Público para iniciar o procedimento criminal pelo crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 172.º, n.ºs 1 e 2, na redação em referência, relativo a ofendido que já tenha completado dezasseis anos de idade por, no sentido ali expresso, tal legitimidade lhe ser conferida pelo disposto no art.º 178.º, n.º 2 na redação desta mesma lei, bem como pelo disposto no art.º 178.º, n.º 4, na redação da Lei n.º 99/2001, de 25 de agosto (tal como de resto por qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 destes normativos), conjugados com o disposto nos art.ºs 48.º e 49.º do CPP.
14. Tal resultado interpretativo, para além de inovador e “criativo”, traduzindo uma interpretação das referidas normas de índole generalizante, apta a determinar a sua aplicação a casos semelhantes, implica um critério normativo do qual decorre a ampliação do sentido da lei, dessa forma criando uma norma que não qualquer correspondência na letra nem no espírito da lei e, como tal, vedada pelo princípio da legalidade consagrado nos art.º 1.º, n.º 1 e 3 do CP e no art.º 29.º, n.º 1 da CRP.
15. A interpretação normativa do art.º 115.º, n.º 1 do CP efetuada no Acórdão recorrido, por recurso ao art.º 113.º, n.º 6 do CP, este na redação vigente é, assim, inconstitucional por violadora do disposto nos art.º 1.º, n.º 1 e 3 do CP e no art.º 29.º, n.º 1 da CRP, o que deve ser declarado
16. Não tendo o Ministério Público legitimidade para dar início ao procedimento criminal em que o ofendido por um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 1 72.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na redação da Lei n.º 65/98, de 02/09 já tenha completado os dezasseis anos e não tenha apresentado sido apresentada a exigível queixa, coloca-se a questão de saber qual o prazo para o exercício daquele direito.
17. A questão de constitucionalidade suscitada coloca-se quanto ao sentido interpretativo acolhido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa quanto ao prazo para o exercício do direito de queixa e da consequente legitimidade do Ministério Público para promover a ação penal.
18. Do Acórdão recorrido extrai-se, pois, como ratio decidendi, a regra segundo a qual o prazo para o exercício do direito de queixa pelo ofendido relativamente à prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 172.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na redação da Lei n.º 65/98,de 2/09, ou qualquer um dos crimes elencados no art.º 178.º, n.º 1 do CP, na redação da lei n.º 65/98, de 2/09, bem como na redação da Lei 99/2001, de 25 de agosto, só começa a correr da data em que o ofendido completar dezasseis anos de idade, ainda que o mesmo tenha tido conhecimento dos factos e do seu agente desde momento muito anterior à data em que completou aquela idade.
19. Do Acórdão recorrido decorre como critério decisório que o exercício do direito de queixa consagrado no art.º 115.º, n.º 1 do CP (na redação da Lei n.º 65/98, de 2/09) relativamente à prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 172.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na redação da Lei n.º 65/98, de 2/09, considera-se tempestivo quando efetuado no prazo de seis meses após o ofendido completar dezasseis anos de idade.
20. O entendimento subjacente à decisão recorrida, foi, pois, ode que, no caso dos autos, o terminus a quo do prazo para o exercício do direito de queixa estipulado no art.º 115.º, n.º 1 do CP, seria o da data em que os alegados ofendidos completaram dezasseis anos de idade.
21. Porém, o entendimento segundo o qual o prazo de seis meses, estabelecido naquela norma legal, começa a correr da data em que a vítima adquira capacidade para exercer o direito de queixa não tem consagração expressa na lei, porquanto o art.º 115.º, n.º 1 do CP, na redação aplicável, alude à data de conhecimento, por parte do titular do direito de queixa, do facto e dos seus autores, não abrindo, a este respeito, quaisquer exceções que não sejam as constantes da parte final do preceito, manifestamente inaplicáveis ao caso vertente.
22. O prazo para o exercício do direito de queixa conta-se desde o tempo em que o queixoso teve conhecimento do facto e da identidade do seu autor, pelo que o sentido interpretativo sustentado no Acórdão recorrido não tem apoio na norma constante do art.º 115.º, n.º 1, nem no art.º 113.º, n.ºs 1, 3. 5 e 6, nem tão pouco no art.º 178.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, ou rio art.º 178.º, n.ºs 1 e 4 (todos nas redações aplicáveis).
23. Tal entendimento normativo careceria de base legal expressa, ou seja, de norma que claramente estatuísse que no caso dos crimes elencados no art.º 178.º, n.º 1 do CP - e eventualmente noutros -, o prazo para a apresentação da queixa começaria a correr a partir da data em que o incapaz completasse dezasseis anos de idade, independentemente da data em que em que este tomasse conhecimento do facto e da identidade dos seus autores. Mas tal norma não existia no nosso ordenamento juscriminal.
24. A Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro alterou a redação dos arts. 113.º e 115.º do CP, sendo particularmente relevantes para a questão ora em apreço a alteração ao n.º 6 do art.º 113.º e o novo n.º 2 do art.º 115.º.
25. Dispõe atualmente o art.º 113.º, n.º 6 do CP que “Se o direito de queixa não for exercido nos termos do n.º 4 nem for dado início ao procedimento criminal nos termos da alínea a) do número anterior, o ofendido pode exercer aquele direito a partir da data em que perfizer 16 anos. “.
26. Por seu turno, a disposição aditada ao art.º 115 e que presentemente constitui o seu n.º 2 é do seguinte teor: “O direito de queixa previsto no nº 6 do artigo 113º extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o ofendido perfizer 18 anos.”
27. As alterações normativas acima referidas modificaram, pois, profundamente o regime legal relativo ao exercício do direito de queixa e à extinção deste no caso de os ofendidos serem, à data dos factos, menores de 16 anos de idade, sendo notória a ampliação do prazo de caducidade do direito de queixa, cujo terminus a quo é agora fixado na data em que o ofendido completar 18 anos de idade.
28. Das disposições conjugadas dos arts. 113.º, n.º 6 e 115.º, n.º 2 atualmente vigentes, resulta que o ofendido, após perfazer 16 anos de idade, passa a dispor de um período de 2 anos e 6 meses para, querendo, exercer o direito de queixa.
29. Confrontando o novo regime com o anteriormente vigente resultam claras as diferenças, pois do prazo de caducidade do direito de queixa agora previsto no art.º 115.º, n.º 2 do CP, na redação da lei n.º 59/2007, de 04/09, é objetivamente delimitado por referência ao momento em que o ofendido complete 18 anos de idade.
30. Mas esta disposição não tinha paralelo em qualquer das que vigoravam ao tempo dos factos que constituem o objeto dos presentes autos. A única norma aplicável ao caso era então a constante do art.º 115.º, n.º 1 do CP (cuja redação, aliás, se manteve inalterada): “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.”
31. Por outro lado, parece evidente que as disposições constantes dos arts. 113.º, n.ºs 1 e 3 e 115.º, n.º 1 do CP, nos termos em que foram invocadas inicialmente no despacho de fls. 17.042 a 17.046 dos autos e que o Acórdão recorrido acolheu, não eram aplicáveis aos factos dos autos, porque nem o direito de queixa foi exercido pelo legal representante, nem se pode sustentar que o Assistente, só tomou conhecimento dos factos após completar 16 anos de idade.
32. Assim sendo, resulta cristalino que a interpretação normativa que naquele despacho, e agora no Acórdão recorrido, se fez das normas aplicadas ao caso, maxime da constante do art.º 115.º, n.º 1 do CP, foi a de que o direito de queixa se extingue no prazo de 6 meses contados 4a data em que o ofendido perfizer 16 anos de idade.
33. Esta interpretação não encontra qualquer arrimo na letra daquele preceito legal, art.º 115.º, n.º 1 do CP, pelo que não traduz de modo algum uma interpretação extensiva do mesmo.
34. Aliás, não se tratará aqui sequer de equacionar acerca da possibilidade de recurso à interpretação extensiva em Direito Penal – que, como é sabido, é discutido por alguma doutrina e jurisprudência no que respeita à interpretação extensiva de normas incriminadoras em sentido amplo. Uma tal interpretação teria, nos termos do art.º 9.º, n.º 2 do Código Civil, que encontrar na letra da lei “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
35. A interpretação em direito penal atento o princípio da legalidade não pode, extravasar a correspondência verbal possível e consentida pela lei, dúvidas não existindo, pois, que em direito penal a integração de lacunas através de interpretação analógica (quer ela seja de normas ou de direito) se encontra expressamente excluída por disposição constitucional e ordinária (artº.s. 29º nº 3 da C.R.P. e artº. 1º n.º 3 do C.P. respetivamente).
36. Face ao exposto e atenta a natureza processual material das normas relativas ao instituto da queixa, nas suas várias vertentes – exercício, caducidade e desistência -, e à inerente sujeição ao princípio da legalidade, consagrado no art.º 29.º, n.º 1 da CRP e no art.º 1.º, n.ºs 1 e 3 CP, não é admissível a sua aplicação analógica.
37. Assim, não obstante no Acórdão recorrido se afirmar não ter sido feita qualquer aplicação analógica da norma processual em causa, antes tendo aplicado, em conjugação com as normas jurídicas que no caso vertente se aplicam, interpretando-as de acordo com o espírito da lei, manifestamente, nem a letra do preceito em referência – art.º 115.º, n.º 1 do CP -, a verdade é que nem a sua letra, nem o seu espírito, contempla, ou suporta, minimamente, o sentido interpretativo sufragado no Acórdão recorrido.
38. Pelo Contrário, o que as alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, evidenciam relativamente ao regime anteriormente vigente decorrente das alterações introduzidas pela Lei nº 65/98, de 2 de setembro, é a existência de uma verdadeira e própria lacuna que o legislador da Reforma de 2007 entendeu por bem colmatar por via legislativa, como inevitavelmente teria que ser – inovando por via da introdução das normas constantes dos arts. 113.º, n.º 6 e 115.º n.º 2 do CP.
39. Do Acórdão recorrido decorre uma interpretação do disposto no art.º 5.º, n.º 1 do CP, na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 48/95, de 15 de março no sentido de que o alargamento do prazo do exercício do direito de queixa dali previsto para, de seis meses após o termo ali fixado, não comporta uma interpretação analógica daquela norma penal, mas antes um interpretação conjugada das várias normas penais e processuais penais aplicáveis, interpretadas de acordo com o espírito da lei.
40. Contudo, a interpretação normativa efetuada no Acórdão recorrido, conduziu ao alargamento, não contemplado na lei, do prazo do exercício do direito de queixa, sendo pois forçoso concluir que se traduziu, em sentido verdadeiro e próprio, na integração de uma lacuna da lei penal.
41. Tal integração redundou na aplicação analógica da norma constante do art.º 115.º, nº 1 do CP, no que respeita ao prazo ali previsto para o exercício do direito de queixa, a situações como a dos presentes autos, com o sentido normativo segundo o qual o terminus a quo da contagem do prazo seria o da data em que os ofendidos adquirem capacidade de exercício do direito de queixa (cfr., a contrario, o disposto no art.º 113.º, n.º 3 do CP), ou seja, a data em que completem dezasseis anos, independentemente do momento em que tenham tomado conhecimento do facto e da identidade dos seus autores.
42. A interpretação normativa efetuada no Acórdão recorrido das normas do art.º 113.º, n.º 3, e 115.º, n.º 1 do CP, na redação vigente à data dos factos, implica um alargamento do prazo para apresentação da queixa, com base na aplicação analógica do regime atual dos art.ºs 113.º, n.º 6 e 115.º, n.º 2, do CP, a um caso manifestamente não incluído na intenção do legislador.
43. Tal analogia, ao determinar um alargamento do prazo de exercício do direito de queixa, não contemplado na lei, permitindo a verificação de uma condição de procedibilidade que, de outro modo, não se verificaria, redunda em desfavor do arguido, sendo inadmissível, conduzindo a uma solução desconforme e violadora do princípio da legalidade ínsito no art. l.º, n.ºs 1 e 3 do CP e no art.º 29.º, n.º 1 da CRP.
44. Causando prejuízo grave e irreversível para o sujeito por ela visado, por impedir a preclusão do prazo taxativamente fixado na lei de seis meses para o exercício do direito de queixa desde o conhecimento do facto e do seu responsável.
45. Tal interpretação normativa atenta contra o princípio da legalidade, previsto no art.º 1.º, n.ºs 1 e 3 do CP e 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), por redundar na integração de uma lacuna in malam partem, o que, naturalmente, é legal e constitucionalmente vedado ao julgador.
46. Do Acórdão recorrido decorre ainda como critério decisório que a queixa deduzida por ofendido da prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º 172.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 65/98, de 02/09 (ou de qualquer um dos crimes elencados no art.º 178.º, n.º 1 do CP), no prazo de seis meses consequentes ao mesmo perfazer dezasseis anos de idade, se deve considerar tempestivamente apresentada estando o Ministério Público, consequentemente, legitimado para exercer e promover a ação penal.
47. O sentido interpretativo das normas dos arts. 113.º, n.ºs 1 e 3 e 115.º, n.º 1 do CP (na redação ao tempo vigente), bem com do art.º 178.º, n.º 1, na redação da Lei 65/98, de 02/09 e 178.º, n.ºs 1 e 4, na redação da Lei 99/2001, de 25/08, subjacente à decisão recorrida, contém em si critérios jurídicos genérica e abstratamente referidos ao texto, com suficiente autonomia para permitirem a sua utilização em casos semelhantes.
48. Estando por isso ferida de inconstitucionalidade interpretação normativa das normas constantes dos arts. 113.º, n.ºs 1, 3 e 6 e 115.º, n.º 1 do CP, subjacente à aplicação que delas foi feita no despacho de fls. 17.042 a 17.046 dos autos, sufragada a pp. 90 e ss. e 95 e ss. do Acórdão proferido em 1.ª instância e a fls. 73.366 a 74.409 do Acórdão recorrido, segundo a qual o prazo para o exercício do direito de queixa só se inicia na data em que o ofendido perfizer 16 anos de idade, extinguindo-se apenas quando decorridos seis meses sobre aquela data, por a mesma violar o disposto no art.º 29.º, n.º 1 da Constituição dá República Portuguesa (CRP), a qual deve ser declarada, com as legais consequências.
49. É ajuda de todo inadmissível a hipótese de aplicação aos factos em apreço nos presentes autos do novo regime introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro. Tal aplicação retroativa de um regime jurídico manifestamente desfavorável viola o disposto no art.º 2.º, n.º 1 do CP e nos arts. 18.º, n.º 3 e 29.º, n.ºs. 1 e 4, ambos da CRP.
50. Tal aplicação, porque contra reum, implica ainda a violação do disposto no art.º 29.º, n.º 4 da CRP, na proibição que este comando constitucional impõe de aplicação retroativa de normas matérias menos favoráveis ao arguido, o que deve ser declarada, com as legais consequências.
51. Prevenindo entendimento contrário, a questão que agora se coloca é, pois, se, à luz do entendimento plasmado no Acórdão recorrido – de que o prazo do exercício do direito de queixa só se inicia na data em que o ofendido complete 16 anos de idade, tendo o seu termo na data em que complete 16 anos e 6 meses - é possível concluir pela manutenção do direito de queixa pelo ofendido da prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.º 172.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na redação da Lei n.º 65/98, de 02/09, bem como pela sua tempestividade, eficácia e validade, quando o exercício de tal direito, é efetuado no termo do prazo de seis meses após o ofendido ter completado dezasseis anos, de forma absolutamente genérica, e precedido de sucessivas e inequívocas declarações do mesmo ofendido nos termos das quais nega ter sido vítima de qualquer ato integrador de um crime daquela natureza.
52. A declaração de vontade de procedimento criminal nos termos acabados de referir, não pode traduzir, quanto ao visado por aquela, o propósito do exercício do direito de queixa, já que essa intenção não foi nem expressa, nem inequivocamente afirmada, bem pelo contrário.
53. Devendo até entender-se que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 116.º, n.º 1 do CP, que o exercício do direito de queixa não pode ser exercido por ofendido que no decurso do prazo de seis meses após perfazer dezasseis anos, afirma por sucessivas vezes sucessivas que não foi vítima da prática de qualquer crime de abuso sexual, não declarando em cada uma dessas vezes o desejo de procedimento criminal, e que posteriormente, vem afirmar ter sido abusado sexualmente, mas por ninguém que conhecesse ou reconhecesse e decorrido o prazo de seis meses, afirmar que afinal um dos referidos abusadores foi por si reconhecido na data do facto que lhe imputa, quer no álbum fotográfico com o qual foi confrontado, no período de seis meses após perfazer dezasseis anos, por de tais condutas decorrer a renúncia ao exercício daquele direito.
54. Tal entendimento não foi acolhido no Acórdão recorrido, do qual decorre um sentido interpretativo da norma do art.º. 115.º, n.º 1, do CP e dos art.ºs 48.º e 49.º, n.º 1 do CPP, que permite aceitar como válido e suficiente para desencadear o procedimento criminal, o exercício do direito de queixa por ofendido que sucessivamente negou ter sido vítima de atos integradores do ilícito criminal a que se vem fazendo referência e que quando a final do prazo para o exercício de tal direito manifesta essa vontade o faz de forma absolutamente genérica, afirmando desconhecer a identidade de quem o vitimou, e de forma condicional sujeita à possibilidade de ser vir a recordar de eventuais atos sobre si cometidos e dos seus agentes.
54. Do Acórdão recorrido decorre ainda que a eficácia do direito de queixa relativamente a um crime semipúblico se preenche com uma declaração genérica de que pretende procedimento criminal contra todo e qualquer autor de factos que contra si tenham sido cometidos, incluindo daqueles de que se não recorda mas possa vir a recordar, ainda que o ofendido tivesse conhecimento do facto e do seu autor desde da data do facto, mas tenha negado tais factos e conhecimento, reiteradamente, em momento anterior.
55. Tal sentido interpretativo das normas do art.º. 115.º, n.º 1, do CP e dos art.ºs 48.º e 49.º, n.º 1 do CPP, que permite aceitar como válido e suficiente para desencadear o procedimento criminal, permitindo a verificação de um condição de procedibilidade que, de outro modo, não se verificaria, não é conforme com o princípio da legalidade consagrado nos art.ºs l., n.ºs 1 e 3 do CP e 29.º, n.º 1 da CRP.
56. O critério decisório subjacente à decisão recorrida contém em si critérios jurídicos com suficiente autonomia para permitir a sua aplicação em casos semelhantes, pelo que deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas do art.º 115.º, n.º 1 e dos art.ºs 48.º e 49.º, n.º 1 do CPP, do CP, com o sentido interpretativo que ali lhe foi conferido.
O Ministério Público contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
“1. A interpretação conjugada dos artigos 113.º, n.ºs 1 e 4 (versão atual) ou 3 (versão anterior), 115.º, n.º 1 e 175.º do Código Penal (versão anterior à Lei nº 59/2007), no sentido de que nos crimes de abuso sexual de criança, o direito de queixa do ofendido, menor, só se extingue seis meses depois do conhecimento dos factos pelos legais representantes, ou seis meses depois do menor perfazer 16 anos, data em que adquire ele próprio o direito de queixa, não viola o princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Deverá, pois, negar-se provimento ao recurso.”
A Casa Pia de Lisboa, I.P., contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
“Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 113.º n.º 1, 3 e 6, 115.º, n.º 1 e 178.º n.º 1 e 2 do CP
I. A interpretação do art. 115.º, n.º 1, CP no sentido de o direito de queixa não se poder extinguir antes de decorrido o prazo de seis meses a contar da possibilidade do seu exercício, o que com menor sucede quando completa 16 anos, resulta da conjugação desta norma com as estatuições dos artigos 178.º, n.º 1 (1º parágrafo) e 4 e 113º, n.º 3 e 6, do CP.
II. O TIC, na decisão instrutória, a 1ª instância, no despacho de fls. 17042 a 17046, fizeram e a Relação de Lisboa no Acórdão recorrido, que confirmou a correção desta interpretação, sufragando os fundamentos das decisões anteriores, fizeram uma leitura conjugada de todas as normas aplicáveis à situação em apreço procurando o sentido normativo com que as mesmas devem interpretadas.
III. O preceituado no art. 9.º do CC, impõe que o Tribunal, na falta de disposição expressa a regular certa questão, procure no texto das normas aplicáveis o sentido útil mais conforme à lei, à justiça e à vontade do legislador com que aquelas devem ser aplicadas à questão concreta; mas já não obriga que este esteja expresso na lei – caso em que seria desnecessária qualquer interpretação –, mas tão-somente que seja admissível face à literalidade da norma.
IV. A tese sustentada pelo Arguido de que o terminus a quo da contagem do prazo para o exercício da queixa será o da data em que as vítimas, completando 16 anos, adquirem capacidade de exercício do direito de queixa, independentemente do momento em que tenham tomado conhecimento do facto e da identidade dos seus autores, conduz a uma situação perversa: o direito de queixa da vítima extingue-se quando esta adquire capacidade para o exercer.
V. A única interpretação possível da disciplina do n.º 1, do artigo 115.º, do CP, é que só quando o titular do direito de queixa efetivamente o é, por estar em condições de exercer a queixa, se pode iniciar a contagem do prazo de 6 mesas previsto naquele normativo, pois antes essa faculdade não está na sua disposição jurídica sob pena de se cair no mencionado paradoxo: o direito extingue-se no momento em que nasce na esfera do sujeito.
VI. Como bem nota o Acórdão em causa, a interpretação das normas aplicadas sufragada pelas decisões recorridas sai reforçada pela consagração legal expressa que a mesma mereceu na revisão da Lei 58/2007, de 4/Set., sendo sintomático que a jurisprudência existente – vd. Ac. TRP de 15/04/2009 in www.dgsi.pt – apenas confirme a tese acolhida naquelas e não a defendida pelo Arguido.
VII. Impõe-se, pois, concluir que a interpretação dos artigos 113.º n.º 1 e 3, 115.º, n.º 1 e 178.º, n.º 1 e 2, do CP, é conforme à Constituição e não viola os artigos 29.º, n.º 1, da CRP.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 115.º, n.º 1 do CP e 48.º e 49º do CPP - Validade da queixa do ofendido B.
VIII. Na inquirição de 25-03-2003 – fls. 2973 a 2795 – o assistente B. “(...) declara desejar procedimento criminal contra todos e quaisquer homens que de si tenham abusado sexualmente, incluindo-se até alguns dos quais se possa vir a recordar com mais pormenor (negrito e sublinhado nosso)
1X. A inquirição não prosseguiu (…) devido ao adiantado da hora e porque se confessa já demasiado cansado e até perturbado com as recordações que se viu na necessidade de fazer, vai-se proceder à interrupção desta inquirição, marcando-se a sua continuação para amanhã.
X. O ofendido em causa quando identifica o arguido como sendo uma das pessoas que dele abusaram criminalmente na inquirição de 28-03-2003 a fls. 4005 a 4013 dos autos, não diz que deseja procedimento criminal contra a este mas sim que “Continua a desejar procedimento criminal contra os autores dos crimes dos quais foi vitima nomeadamente, o médico H., o Dr. D. e o indivíduo constante na fotografia nº 8 do álbum de fotografias constante do processo, cuja identidade desconhece”. (negrito e sublinhado nosso)
XI. Sendo pacífico que a validade da queixa não exige a identificação concreta do agente no ato em que aquela é deduzida, podendo tal ocorrer em momento posterior sem que tal tolha o exercício da ação penal, nada na lei permite a conclusão que por o queixoso, no momento em que exerce o seu direito, estar eventualmente em condições de identificar um dos agentes e não o fazer resulta afetada a aptidão da queixa para desencadear o procedimento.
XII. É certo que a queixa é condição de procedibilidade, mas a tanto basta uma manifestação expressa de vontade por parte do ofendido em que o agente seja perseguido criminalmente ainda que tal manifestação não contenha desde logo a identificação concreta deste a qual poderá ocorrer em momento posterior.
XIII. Estando em causa um crime semipúblico e tendo sido validamente apresentada a respetiva queixa antes de decorrido o prazo de caducidade o MP tinha plena legitimidade para investigar e acusar o arguido pela prática dos factos pelos quais veio a ser condenado.
XIV. Em face disto, não procede a inconstitucionalidade invocada pelo arguido, da interpretação normativa feita pelas instâncias recorridas dos artigos 115.º, n.º 1 do CP e 48.º e 49.º do CPP, no sentido em que a queixa, nos moldes em que o ofendido B. o fez, foi validamente exercida, porquanto tal interpretação é conforme à lei e em nada ofende o princípio da legalidade.
TERMOS EM QUE não deve ser declarada nenhuma das inconstitucionalidades invocadas, confirmando-se a decisão recorrida por ser conforme à lei e à constituição”
O arguido F. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de fevereiro de 2012, nos seguintes termos:
“O recorrente pretende que seja apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
1. Artº 340º do Código de Processo Penal, por violação do artº 32º da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido da negação da produção de prova complementar com fundamento em o Tribunal já ter formado a sua convicção, mesmo tratando-se de meios de prova muito relevantes para aferição da credibilidade das declarações prestadas em audiência pelo assistente ofendido, devendo tal norma processual, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, ser interpretada e aplicada no sentido de que tal produção de prova, porque necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa deve ser admitida, no âmbito do poder-dever de produção de prova complementar.
Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso interlocutório de fls 55674 a 55682 e, a fls 73679, foi julgada improcedente pela decisão recorrida, que negou provimento ao recurso.
2. Artºs 1º-f) e 358º do CPP, por violação do artº 32º da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que as alterações do lugar e/ou do tempo de factos indiciários, feitas no decurso da audiência de julgamento, mesmo que, pela sua enorme amplitude, modifiquem a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, integrantes do facto concreto e unitário, da realidade unitária do facto criminoso, são não substanciais, devendo tais normas processuais, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, ser interpretadas no sentido de que tais alterações devem ser consideradas como substanciais, pois só esta qualificação permite, nos termos do disposto no artº 359º do CPP, o exercício de todas as garantias de defesa.
Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso interlocutório de fls 64115 a 64142 e, a fls 74074, foi julgada improcedente pela decisão recorrida, que, a fls 74180, negou provimento ao recurso.
3. Artº 358º do CPP, por violação dos artºs 20º-4, 32º-1, 2 e 5, 18º-2 e 3, da Constituição, e artº 6º-1 e 3-a) da CEDH, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que a comunicação de alterações de enorme amplitude quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos indiciários pode sempre ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento, devendo tal norma processual, para serem respeitadas as garantias de defesa e do processo equitativo conferidas pelas normas constitucionais violadas, ser interpretada no sentido de que a comunicação de alterações é inadmissível, por extemporânea, se, constituindo então surpresa e irracionalidade processuais, é feita após conclusão das alegações orais e decorridos vários anos após a conclusão da produção de prova relativa a esses factos, incluindo as declarações do assistente ofendido, prestadas há mais de quatro anos.
Esta inconstitucionalidade foi suscitada também no recurso interlocutório de fls 64115 a 64142 e, a fls 74099, foi julgada improcedente pela decisão recorrida, que, a fls 74180, negou provimento ao recurso.
4. Artºs 358º-1 e 340º do CPP, por violação do artº 32º-1 da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de não serem admissíveis os meios de prova requeridos na sequência da comunicação de alterações de factos indiciários, para a qual o arguido não contribuiu, impossibilitando a possibilidade de defesa, devendo tais normas processuais, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, ser interpretadas no sentido de ser admissível a produção de prova na medida adequada para uma defesa eficiente, face à enorme amplitude das alterações indiciárias comunicadas.
Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso interlocutório de fls 65352 a 65374 e, a fls 74180, foi julgada improcedente pela decisão recorrida, que, também a fls 74180, negou provimento ao recurso
5. Artº 115º-1 do Código Penal, na redação anterior à Lei nº 59/2007, por violação do princípio da legalidade consagrado no artº 29º-1 da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que o direito de queixa do ofendido e a correspondente legitimidade do Ministério Público subsistem nos seis meses posteriores à data em que o ofendido complete 16 anos de idade, devendo tal norma penal, para ser respeitado o referido princípio constitucional violado, ser interpretada e aplicada no sentido de que, não prevendo a lei essa extensão de prazo, o direito de queixa e a legitimidade do Ministério Público se extinguem quando o ofendido perfaz 16 anos de idade.
Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso da decisão final, conforme conclusões transcritas a fls 75911 e, a fls 75971, foi julgada improcedente pela decisão recorrida, que, também a fls 75971, julgou improcedente a questão da caducidade do direito de queixa/ilegitimidade do Ministério Público, suscitada pelo recorrente.
6. Artº 343º-1 do CPP, por violação do artº 32º-1 da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que o exercício do direito ao silêncio pelo arguido não é inócuo, podendo globalmente desfavorecê-lo, pela repetida referência a que o arguido não prestou declarações, com repercussão na formação da convicção do Tribunal, devendo tal norma processual, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, ser interpretada no sentido de que o silêncio do arguido é completamente inócuo, não podendo em nada desfavorecê-lo.
Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso da decisão final, conforme conclusões transcritas a fls 75912 e, a fls 75979, foi julgada improcedente pela decisão recorrida.
7. Artº 127º do CPP, por violação do artº 32º-1 e 2 da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que a livre apreciação da prova pode ser feita com sobrevalorização da livre convicção e subvalorização das regras de experiência, com sobrevalorização das provas positivas e subvalorização ou mesmo esquecimento das provas negativas, com prevalência da imediação e consequente dificultação do recurso em matéria de facto, como se, nos crimes de abuso sexual, a presunção de inocência fosse substituída pela presunção de culpa, devendo tal norma processual, para serem respeitadas as garantias de defesa e a presunção de inocência estabelecidas na norma constitucional violada, ser interpretada e aplicada no sentido de que a livre apreciação da prova deve ser objetiva, sem interferência da mera impressão gerada pelos diversos meios de prova.”
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“1ª Na análise das inconstitucionalidades objeto do recurso é de ter sempre presente a matriz constitucional de que a República Portuguesa é um estado de direito democrático.
2ª Parte significativa da tramitação processual consistiu claramente em diluir os contornos e precisões da acusação, de modo a alcançar tal imprecisão e vaguidade que nenhuma defesa poderia ser significativamente eficiente. E a estas limitações intrínsecas acresceram as limitações ilegítimas impostas pelo Tribunal à produção de prova requerida.
Esta persistente atuação processual ilegítima é gritantemente desrespeitadora do Estado de direito democrático.
Inconstitucionalidade do artº 340º do CPP
3ª O recorrente indicou a interpretação inconstitucionalizante desta norma processual feita na decisão recorrida como sendo “no sentido da negação da produção de prova complementar com fundamento em o Tribunal já ter formado a sua convicção, mesmo tratando-se de meios de prova muito relevantes para aferição da credibilidade das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo assistente ofendido”.
4ª É afirmado no douto acórdão recorrido:
“Sabemos que a testemunha X., no seu depoimento, aludiu a conversações que teria mantido com o assistente G., as quais teriam em parte sido objeto de gravação. Contudo, no momento em que prestou esse depoimento, desconhecia o paradeiro da gravação e da sua transcrição.”;
“Mais tarde, o arguido F. veio requerer a junção aos autos dessas gravações, com audição na audiência de julgamento, na presença do G. e da sua irmã, Y., para reconhecimento de voz.”.
“Tudo isto, como o arguido expressamente afirma a fls. 55677 da sua motivação de recurso visa que o Tribunal afira da credibilidade das declarações prestadas pelo assistente em audiência.”;
“Perante essa prova até então produzida, considerou o Tribunal a quo que, naquele momento, os elementos/meios de prova já adquiridos nos autos são suficientes para o esclarecimento que o Tribunal considera precisar.”; “Tinham sida realizadas inúmeras diligências com essa mesma finalidade” (aferir da credibilidade do assistente G. quanto às declarações por si prestadas em audiência de julgamento e que o ligavam ao arguido F.), “as quais o Tribunal considerou como suficientes.”
5ª É patente, neste contexto do acórdão recorrido, que a confirmação do indeferimento de produção de prova complementar se fundamentou, como o recorrente indicou no seu requerimento de interposição do recurso, numa interpretação da norma do artº 340º do CPP no sentido da sua negação com fundamento em que o Tribunal já tinha formado a sua convicção, mesmo tratando-se de meios de prova muito relevantes, como é manifesto quanto à audição de gravações e reconhecimentos de vozes, muito relevantes (naturalmente em potência), para aferição da credibilidade das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo assistente.
6ª É assim manifesto que a ratio decidendi do acórdão recorrido quanto à confirmação do indeferimento da produção de prova corresponde à interpretação normativa indicada, devendo a decisão ser necessariamente no sentido do deferimento se a interpretação normativa fosse a que o recorrente propugna.
7ª O direito à produção de prova em audiência de julgamento, é uma garantia de defesa, desde que a prova pretendida não viole a lei ou direitos sobreponíveis, seja possível, potencialmente eficiente e relevante, com respeito do princípio da proibição do excesso ínsito no artº 18º-2 da Constituição.
8ª Assim, nada obsta a que a questão colocada possa ser conhecida neste recurso.
9ª Por isso, o artº 340º do CPP, na referida interpretação subjacente à decisão recorrida, é inconstitucional por violação das garantias de defesa consagradas no artº 32º da Constituição.
10ª Para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, esta norma processual penal deve ser interpretada no sentido de que tal produção de prova, porque necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, deve ser admitida, no âmbito do poder-dever de produção de prova complementar.
Inconstitucionalidade dos artºs 1º-f) e 358º do CPP
11ª O recorrente alegou interpretação inconstitucional dos artºs 1º-f) e 358º do CPP feita na decisão recorrida “no sentido de que as alterações do lugar e/ou do tempo de factos indiciários, feitas no decurso da audiência de julgamento, que, pela sua enorme amplitude, modifiquem a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, integrantes do facto concreto e unitário, da realidade unitária do facto criminoso, pondo em causa o exercício da defesa, são não substanciais, devendo tais normas, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas” pelo artº 32º da Constituição, “ser interpretadas no sentido de que tais alterações devem ser consideradas como substanciais, pois só essa qualificação permite, nos termos do artº 359º do CPP que, o exercício de todas as garantias de defesa.”
12ª As alterações comunicadas ao abrigo do disposto no artº 358º, nº 1 e 2 do CPP, são as seguintes:
“1. Que os factos descritos a fls 20.887 a 20.892, “Ponto 4.2.1” do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls 20.888, último parágrafo e fls 20889, 1º parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido “...em data não concretamente apurada, do mês de novembro de 1999, num Sábado à noite, tinha o G. completado 13 anos de idade ...”, tendo, após o jantar, o arguido F. proposto que se dirigissem para uma casa de que “... tinha a disponibilidade, sita na Alameda D. Afonso Henriques, nº 47, em Lisboa...”, podem ter ocorrido:
“- em dia não concretamente apurado, numa Sexta-feira ou num Sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (inclusive);
“- em prédio localizado na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, com número de porta não concretamente apurado, mas localizado na lateral da Alameda D. Afonso Henriques, nde se situam os números ímpares;
“- local para onde, após o jantar, o arguido F. foi com Z., com o G. e os irmãos deste AA. e BB.;
“2. Que os factos descritos a fis 20.887 a 20.892, “Ponto 4.2.1”, do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fis 20889, penúltimo parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido “... em dia não concretamente apurado, do mês de junho do ano 2000, a uma sexta feira...”, numa casa de que o arguido F. “...tinha a disponibilidade, sita na Avenida da República, em Lisboa...”podem ter ocorrido:
“- em dia não concretamente apurado, mas situado entre abril e julho de 1999;
“- numa casa sita na Avenida da República, em Lisboa, perto da zona da Feira Popular (...) local onde o arguido F. se encontrava quando o Assistente G. aí foi;
“3. que os factos descritos a fls 20.887 a 20.892, “Ponto 4.2.1, do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls 20.890, 10º parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido “...dias depois...” da situação referida no ponto “2” que que antecede, “...ainda em junho do ano 2000...”, podem ter ocorrido:
“- em dia não concretamente apurado, mas situado no período das férias escolares do verão de 1999;”
13ª Refere o acórdão recorrido a fls 74030 e 74032: Consta do despacho de pronúncia:
“Em data em concreto não apurada, do mês de novembro de 1999, num Sábado à noite, tinha o G. completado 13 anos de idade, foi, com os seus irmãos, com o arguido F. e com um indivíduo de nome Z., jantar a um restaurante chinês localizado em Alcântara.
Terminado o jantar o arguido F. propôs que fossem todos a sua casa “beber um copo “. Dirigiu-se, então, para uma casa de que o arguido F. tinha a disponibilidade, sita na Alameda D. Afonso Henriques, …, em Lisboa...”
(...) No âmbito social, falamos do mesmo acontecimento, quer seja o possível dizer-se que ele ocorreu numa das laterais da Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, quer tivesse sido possível ir mais longe e indiciariamente sustentar que os factos ocorreram concretamente no n.º .. dessa mesma Alameda.
Aliás, neste particular, o que se indiciou constitui um minus em relação ao que estava indiciado no despacho de pronúncia, pelo que, por si só, nem justificaria falarmos de alteração não substancial de factos.
Mas quanto a este mesmo acontecimento histórico, para além da referida alteração relativa ao local onde os factos terão indiciariamente ocorrido, foi também comunicado ao arguido que se entendia provisoriamente que os mesmos factos poderiam ter acontecido não em data não concretamente apurada, do mês de novembro de 1999, num sábado à noite, tinha o G. completado 13 anos de idade, mas sim em dia não concretamente apurado, numa sexta-feira ou num sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (inclusive).
“...esta realidade factual histórica constitui uma unidade que não resulta substancialmente alterada, se o Tribunal vier a apurar que esses concretos factos não aconteceram num sábado à noite do mês de novembro de 1999 mas sim numa sexta-feira ou num sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (inclusive).”
14ª Na fundamentação da confirmação do indeferimento em 1ª Instância, é afirmado no douto acórdão recorrido: “Reiteramos o nosso entendimento – conforme ao do Tribunal recorrido – de que só ocorrerá uma alteração substancial dos factos se ocorrer uma alteração que se reporte aos elementos materiais relevantes de construção e identificação factual, e acrescentamos que a avaliação que se faça dessa alteração deve ter por base a imagem e valoração social do facto.
15ª Tomando como exemplo o crime imputado na pronúncia na Alameda D. Afonso Henriques, nº …, é referido no douto acórdão recorrido: “No âmbito social, falamos do mesmo acontecimento, quer seja possível dizer-se que ele ocorreu numa das laterais da Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, quer tivesse sido possível ir mais longe e indiciariamente sustentar que os factos ocorreram concretamente no n.º … dessa mesma Alameda.
Aliás, neste particular, o que se indiciou constitui um minus em relação ao que estava indiciado no despacho de pronúncia, pelo que, por si só, nem justificaria falarmos de alteração não substancial de factos.”
16ª Quanto à alteração temporal, que passou de um sábado de novembro de 1999, para sexta-feira ou sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (com antecipação de mais de 11 meses.) O acórdão recorrido considera que “esta realidade factual histórica constitui uma unidade que não resulta substancialmente alterada, se o Tribunal vier a apurar que esses concretos factos não aconteceram num sábado à noite do mês de novembro de 1999 mas sim numa sexta-feira ou num sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (inclusive).”
“E isto que concluímos para esta concreta alteração vale para as demais comunicadas...”
(…) “Não significa isto que aos arguidos não seja dada a oportunidade de se pronunciarem e de se defenderem das alterações comunicadas. Só que isso não implica que estejamos perante uma alteração substancial dos factos, dando lugar à aplicação do disposto no art. 359.º do CPP, pois o art. 358.º também garante os direitos de defesa do arguido.”
17ª É patente que o acórdão recorrido fez uma interpretação dos artºs 1º, al. f) e 358º do CPP no sentido que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes, são não substanciais, por não se referirem aos elementos constitutivos do tipo de crime e, do ponto de vista social continuar a ser possível identificar aquela unidade factual histórica como sendo a mesma. E de que, o núcleo do lugar e/ou tempo só poderá reportar-se a elementos essenciais da descrição dos elementos típicos do crime, porque só esses poderão comprometer a defesa dos arguidos e comprimir de tal forma os seus direitos de defesa, que importem a aplicação dó disposto no art. 359.º do CPP.
18ª É manifesto que a ratio decidendi do acórdão recorrido quanto à confirmação do indeferimento da arguição de erro na qualificação das alterações como não substanciais corresponde à interpretação normativa indicada, oposta à Constituição, devendo a decisão ser necessariamente no sentido do deferimento se a interpretação normativa fosse a que a seguir se propugna.
19ª Ao contrário do que refere o douto acórdão recorrido, do ponto de vista social, com as alterações comunicadas, que não são mais ou menos pontuais ou esclarecedoras, o facto processual não é o mesmo, não é visto pelo comum das pessoas como sendo o mesmo.
Tomando como exemplo a factualidade do crime imputado na Alameda D. Afonso Henriques. Constava da pronúncia: “Terminado o jantar o arguido F. propôs que fosse todos a sua casa “beber um copo”. Dirigiu-se, então, para uma casa de que o arguido F. tinha a disponibilidade, sita na Alameda D. Afonso Henriques, nº …, em Lisboa...”
Veio a ser dado como não provado no acórdão final, a fls dos factos não provados:
“23.3. Nas circunstâncias descritas no ponto “105.12.” dos factos provados, o local para onde o G. foi era a casa do arguido F., sita na Alameda D. Afonso Henriques, nº .., em Lisboa, tendo sido o arguido F. a fazer a proposta para irem para esse local:”
Ora, não é o mesmo “facto histórico unitário”, o mesmo pedaço de vida, a mesma realidade histórica, um abuso sexual ocorrido no mês de novembro de 1999, num Sábado à noite, tendo o G. 13 anos de idade, no prédio nº 47 da Alameda D. Afonso Henriques, casa do recorrente, tendo sido este a fazer a proposta para irem para esse local, e um abuso sexual ocorrido mais de 11 meses antes, numa sexta-feira ou num sábado entre 12 de dezembro de 1998 e janeiro de 1999, tendo o assistente menos um ano – 12 anos – num qualquer prédio localizado na lateral da Alameda D. Afonso Henriques, onde se situam os números ímpares.
O mesmo se passa quanto ao abuso numa casa na Av. da República:
Também não é o mesmo “facto histórico unitário”, o mesmo acontecimento, um abuso ocorrido numa sexta-feira de junho de 2000, tendo o assistente 13 anos e um abuso sexual ocorrido em qualquer dia da semana, entre abril e julho de 1999 – tendo o assistente 12 anos.
E quanto ao crime de lenocínio:
Também não é o mesmo acontecimento, um crime imputado na pronúncia como ocorrido em parte (“dias depois”) do mês de junho de 2000, e um crime ocorrido no período das férias escolares do verão de 1999.
20ª De acordo com a al. b) do nº 3 do artº 283º do CPP, a acusação contém a narração ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (...), incluindo, se possível, o lugar, o tempo..., sob pena de nulidade.
Admite-se assim, que um crime possa ser processualmente imputado sem a narração espacial e temporal, quando, em sede de inquérito, apesar da investigação desenvolvida pelo Ministério Público, não tenha sido possível determinar as circunstâncias de tempo e de lugar.
No entanto, se essas circunstâncias tiverem sido apuradas, constam obrigatoriamente da acusação. Nesse caso, o tempo e o lugar integram o próprio facto, pois o facto criminoso não é uma abstração parcelada, é um facto concreto e unitário.
E, estando indicadas na acusação ou na pronúncia o “tempo” e o “lugar” da infração, os mesmos não podem ser arbitrariamente alterados pelo Tribunal à medida que o arguido vai fazendo prova de que não pode ter praticado os factos nos tempos e nos locais imputados.
A tal se opõe o respeito pela pessoa humana e os seus inalienáveis direitos que um Estado de Direito tem de assegurar.
É difícil não ver neste processo um esforço continuado e consciente de alcançar uma indefinição dos elementos acusatórios, com vista a impossibilitar a possibilidade de qualquer defesa, levando necessariamente – como levou – à condenação do recorrente.
21ª Face à acusação, o recorrente organizou a sua defesa em função do “lugar” e do “tempo” imputados:
A acusação no ponto 4.2.1, imputava ao recorrente a prática de crime de abuso sexual na Alameda D. Afonso Henriques, nº .., …, em Lisboa”. Em instrução, requereu e foi produzida prova, tendo-se concluído na decisão instrutória que “A casa da Alameda D. Afonso Henriques, nº .., não será certamente a correspondente ao 2º andar direito”, pelo que é pronunciado não no 2º esquerdo, mas no prédio nº ..;
No ponto 4.2.2. era imputado ao recorrente um crime de abuso sexual de criança, em “dia em concreto não apurado, do mês de junho de 2000”, numa casa de que o recorrente “tinha a disponibilidade, sita na Avenida da República, nº …, 5º.dtº., em Lisboa.” Também em instrução, requereu e foi produzida prova, tendo sido reconhecido na decisão instrutória, a fls 20806, que “A casa da Av. da República, nº .., também não pode ser a do 5º direito”, pelo que é pronunciado com a localização do abuso numa casa sita na Av. da República, em Lisboa.
22ª O recorrente organizou então a sua defesa em função do “lugar” e do “tempo” imputados na pronúncia.
23ª Com êxito, conseguiu provar que os factos não ocorreram nos locais e nos tempos imputados.
Em vez da esperada absolvição, são-lhe comunicadas as referidas alterações dos factos descritos na pronúncia, qualificadas como não substanciais, com uma amplitude espacial e temporal tal, que impossibilita e compromete o exercício da defesa.
24ª Das alterações decididas resulta, não a mera especificação dos factos descritos na pronúncia, mas uma inovação do quadro fáctico relativo às circunstâncias de tempo e lugar, com imputação de um crime diverso porque como referido, constituem um outro “facto histórico unitário”.
Crime diverso é aquele em que ocorre um desvio significativo em relação ao objeto do processo, com uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, traduzindo uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual,
O crime diverso pode ser o mesmo tipo legal de crime, desde que existam um ou mais elementos diferenciadores em relação aos factos descritos na acusação ou na pronúncia e, principalmente, se ocorrer uma diminuição das garantias de defesa.
Os critérios são complementares, não excludentes, bastando a verificação de uma das hipóteses para se concluir que há alteração substancial dos factos.
25ª Como refere Frederico Isasca (in Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, pags 139 e 144), os limites à identidade do crime, na qualificação de uma alteração, terão que ser “a total garantia dos direitos de defesa do arguido e a prossecução da justiça e da verdade material”, pelo que, “Sempre que ao pedaço individualizado da vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos”.
26ª É evidente que a defesa não só ficou dificultada, mas comprimida, inviabilizada, trucidada.
27ª Constitui entendimento consensual de Jurisprudência do Tribunal Constitucional, que o decisivo para aferir da compatibilidade de determinada interpretação das normas processuais com a Constituição, é a questão de verificar se essa interpretação impede ou dificulta uma defesa eficaz, pondo em causa as garantias de defesa do arguido.
Pelo que, ao considerar como não substanciais as alterações espaciais e temporais comunicadas, tendo toda a defesa sido estruturada em função do tempo e do lugar da imputação dos factos nos tempos e nos locais imputados, o acórdão recorrido adota uma interpretação dos artºs 1º-f) e 358º do CPP inconstitucional, por violação do núcleo essencial, das garantias de defesa, consagrado no artº 32º da CRP.
Para serem respeitadas essas garantias de defesa, as alterações comunicadas devem ser qualificadas como substanciais, pois só o regime a estas aplicável respeita o princípio do contraditório e permite o exercício de uma defesa eficaz.
Inconstitucionalidade do artº 358º do CPP
28ª O recorrente indicou (fls 76678) a interpretação inconstitucional desta norma processual feita na decisão recorrida no sentido de que “a comunicação de alterações de enorme amplitude quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos indiciários pode sempre ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento” devendo tal norma processual, para serem respeitadas as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo ínsitos nos artºs 20º-4, 32º-1, 2 3 5, 18º-2 e 3 da Constituição e artº 6º-1 e 3-a) da CEDH, ser interpretada no sentido de que a comunicação de alterações é inadmissível, por extemporânea, se, constituindo então surpresa e irracionalidade processuais, é feita após a conclusão da produção de prova relativa a esses factos, incluindo as declarações do assistente ofendido, prestadas há mais de quatro anos.
29ª Como resulta do referido no acórdão recorrido (fls 74010 e 74011) e o recorrente havia explicitado (fls 64137 e 641389) na motivação do recurso em que suscitou a inconstitucionalidade, foram comunicadas ao recorrente, “nas sessões de julgamento ocorridas em 23 de novembro de. 2009 e 14 de dezembro de 2009, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010”, as alterações referidas acima, na 12ª Conclusão.
30ª É manifesto que, como o recorrente afirmou (64140) na motivação do recurso em que suscitou a inconstitucionalidade, estão em causa alterações de enorme amplitude quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos indiciários.
31ª Refere o acórdão recorrido a fis 74093 “Nada do que ocorreu na comunicação de alterações de factos aos arguidos foi inesperado ou uma surpresa. Os arguidos tinham que saber que essa possibilidade existia e existia até ao final da audiência de julgamento e aceitaram-na – tal como as outras consequências da demora do processo – em nome de uma defesa extensa e que cobrisse totalmente a pronúncia contra eles dirigida, tal como a delinearam.
Não lhes assiste, pois, qualquer razão, atentos todos os fundamentos já expostos, para invocar que a comunicação de alterações de factos foi extemporânea e injustificada, face ao lapso de tempo decorrido desde a produção de prova e a preparação da defesa.” Acrescentando a fls 74099 “... se ela não foi realizada em momento anterior foi porque tal não era possível, nem adequado...”
32ª É manifesto que a ratio decidendi do acórdão recorrido quanto à confirmação do indeferimento da arguição da extemporaneidade da comunicação das alterações, corresponde à interpretação normativa indicada, oposta à Constituição, devendo a decisão ser necessariamente no sentido do deferimento se a interpretação normativa fosse a que a seguir se propugna.
33ª Concordamos com a frase contida a fls 74087 do acórdão recorrido: “A baliza temporal de prova que o Tribunal tem que considerar para aferir da justificação da oportunidade temporal do momento da realização das comunicações é, pois, a prova que o próprio Tribunal a quo indicou como fundamento dos seus despachos e a data em que foi produzida...”
34ª Ora a prova que o Tribunal a quo indicou como fundamento do seu despacho foi “toda a prova produzida em audiência de julgamento...” entre a qual foram indicadas:
- as declarações dos arguidos – Começaram a ser ouvidos em 13 de dezembro de 2004 (fls 25464 e 25491), e nem o recorrente nem nenhum dos coarguidos prestaram declarações quanto aos tempos e lugares alterados.
- As declarações dos assistentes - neste caso, só poderia relevar o depoimento do próprio assistente G., que prestou declarações em 28.10.2005 (fls 34868 a 34878) e 2.11.2005 (fls 34941 a 34951).
- Depoimento da testemunha Y., irmã do assistente G., ouvida na sessão de 17.7.2006 (fls 39265).
- Depoimentos das testemunhas do imóvel sito na Alameda D. Afonso Henriques:
CC. e DD. inquiridas em 8.1.2007 (fls 42708 42714); EE., FF., GG., HH., II., JJ., KK., inquiridas em 10.1.2007, (fls 42780, fls 42781, 42783, 42787, 42788); LL. e MM., inquiridas em 7.2.2007 (fls 43509).
- Os apensos ABA-f), BE, BF-1 a BF-6, BF-7, BJ (pasta 2), DZ, EK e T, estão no processo desde o início do julgamento e não contêm qualquer referência ao assistente G., nem às componentes temporal e espacial dos imputados crimes de que possa resultar a indiciação de alterações quanto a essas componentes.
35ª Ora, é assim evidente que, face à prova produzida – e já sem nos referirmos apenas às declarações do assistente – as alterações de factos poderiam ter sido comunicadas pelo menos desde fevereiro de 2007.
36ª As alterações devem ser comunicadas no mais curto prazo após a sua indiciação no decurso da audiência, o que também está estatuído e de forma direta no art. 6.º, n.º 3, al. a), da CEDH, que confere ao acusado o direito de “ser informado no mais curto prazo, em linguagem que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da acusação contra ele formulada”.
A comunicação das alterações consideradas indiciadas quase três anos depois das declarações hipoteticamente indiciantes, não é de modo algum o mais curto prazo a que o recorrente tem direito.
37ª O decurso da audiência referido no artº 358º do CPP como âmbito temporal da admissibilidade de alterações, tem que ser interpretado e aplicado em sintonia com o disposto nos artºs 360º e 361º, dos quais resulta que, na tramitação normal, finda a produção de prova, incluindo a sequente à comunicação de alterações, se seguem as alegações orais e a estas as últimas declarações do arguido.
38ª A interrupção desta sequência na tramitação processual normal está admitida apenas em casos excecionais de produção de prova superveniente, conforme o nº 4 do artº 360º.
Sem a demonstração de tais excecionalidade e superveniência, a admissão de alterações após conclusão das alegações orais, embora consentida pela mera literalidade legal – “no decurso da audiência” -, constitui surpresa e irracionalidade processuais.
39ª É manifesto que, se algumas alterações fossem indiciadas no decurso de 5 anos de audiência de julgamento, com a sequência de fases processuais acima resumida, tal indiciação teria ocorrido muito antes do início das alegações orais, permitindo e impondo o respeito pela sequência processual dos artºs 358º, 360º e 361º do CPP.
40ª O tribunal recorrido ao considerar perfeitamente justificado o momento em que as alterações de factos foram comunicadas aos arguidos, sem que haja qualquer referência a impossibilidade ou inadequação, interpretou a norma do artº 358º do CPP no sentido de que a comunicação de alterações pode ser sempre feita até ao encerramento da audiência de julgamento, com violação da plenitude das garantias de defesa conferida pelo artº 32º da CRP e do processo equitativo imposto pelo artº 20º-4 da CRP pelo artº 6º da CEDH.
41ª Para serem respeitadas essas garantias de defesa e o direito a um processo equitativo, o artº 358º do CPP deveria ter sido interpretado no sentido de que a comunicação de alterações após a conclusão das alegações orais e decorridos vários anos após a conclusão da prova relativamente aos factos objeto das alterações, constituí surpresa e irracionalidade processuais, sendo inadmissível por extemporânea.
Inconstitucionalidade dos artºs 358º-1 e 340º do CPP
42ª O recorrente indicou (fls 76678), a interpretação inconstitucional destas normas processuais feitas na decisão recorrida “no sentido de não serem admissíveis os meios de prova requeridos na sequência da comunicação de alterações de factos indiciários, para a qual o arguido não contribuiu, impossibilitando a possibilidade de defesa” devendo tais normas, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas” pelo artº 32º, nº 1 da Constituição, “ser interpretadas no sentido de ser admissível a produção de prova na medida adequada para uma defesa eficiente, face à enorme amplitude das alterações indiciárias comunicadas.”
43ª Na sequência da comunicação das alterações referidas acima, na 12ª Conclusão, e dentro do prazo que para tal lhe foi concedido, nos termos do artº 358º-1 do CPP, o recorrente, em sua defesa (fls 64364 e seguintes), reiterou que não praticou os factos que lhe são imputados relativos ao assistente Ricardo Rocha Necho, nem com as componentes espaciais e temporais constantes da pronúncia nem com as alteradas e comunicadas ou quaisquer outras. E requereu a seguinte prova:
Notificação da Casa Pia de Lisboa para juntar o livro de ocorrências do lar António Bernardo que abranja o período entre 12.12.1998 e 31.7.1999.
A inquirição dos porteiros e de uma pessoa de cada casa de cada um dos prédios com número ímpar (exceto o nº 47) da alameda D. Afonso Henriques, Lisboa, que utilizassem o respetivo prédio entre 12.12.1998 e 31.1.1999, uns e outras a identificar e indicar pela PSP, cuja notificação para o efeito se requereu.
A inquirição dos porteiros e de uma pessoa de cada casa de cada um dos prédios com número par (exceto o nº 84) ou ímpar, situados na avenida da República, em Lisboa, perto da Zona da Feira Popular, que utilizassem o respetivo prédio entre 1.4.1999 e 31.7.1999, também a identificar e indicar pela PSP, cuja notificação para o efeito também se requereu.
Em alternativa e na eventualidade de indeferimento da inquirição de testemunhas a identificar, requereu a inquirição de testemunhas que, através da Conservatória do Registo Predial de Lisboa, conseguiu identificar, relacionadas com os prédios das novas componentes espaciais comunicadas.
44ª Por despacho proferido na sessão de 26.2.2010 da audiência de julgamento, foi indeferida a requerida notificação da Casa Pia de Lisboa, a inquirição de testemunhas relacionadas com prédios da avenida da República e o Tribunal restringiu a 10 as testemunhas a inquirir relacionadas com prédios localizados na lateral da Alameda D. Afonso Henriques, onde se situam os números ímpares.
45ª Face à decisão que restringiu a 10 o número de testemunhas relacionadas com prédios da alameda D. Afonso Henriques, o recorrente declarou (fls 65228) na mesma sessão que, “sem prejuízo do recurso que vai interpor”, “prescinde da inquirição das testemunhas nos termos em que foi deferida, uma vez que tal inquirição, dado o número de locais possíveis resultantes das alterações comunicadas, é absolutamente irrelevante...”
46ª Relativamente refere o acórdão recorrido a fls 74138 e 74139 “... que prova eficaz pode ser produzida sobre os factos imputados ao arguido neste particular, inquirindo, no limite, uma testemunha de cada uma das casas da zona da Avenida da República em questão. Mesmo que cada uma dessas pessoas viesse ao Tribunal declarar que nunca viu o arguido na sua casa, estaria o Tribunal em condições de concluir que o arguido nunca esteve em nenhuma dessas casas? (...) O meio de prova em causa não é absoluto, infalível, definitivo, suscetível de afastar a dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos, quando sopesado com a demais prova já produzida. (...) “E neste caso particular, tal como o Tribunal recorrido salientou, o meio de prova requerido não é, de facto, imprescindível ou necessário à boa decisão da causa.”
47ª Quanto à Alameda D. Afonso Henriques, refere o acórdão recorrido a fls 74140 Tribunal deferiu a audição de dez testemunhas, de entre as indicadas pelo arguido e referentes à prova da circunstância de lugar – prédio sito na Alameda D. Afonso Henriques, número não concretamente determinado, mas situado na lateral dos números ímpares da Alameda.
O Tribunal fundamentou a limitação da inquirição de testemunhas a dez por considerar desproporcional admitir o número de testemunhas que no caso concreto o arguido pretendia inquirir.
48ª O acórdão recorrido entende que “Se o resultado probatório que o arguido poderia, numa hipótese muito remota, obter com a inquirição da totalidade das testemunhas já não é passível de ser eficaz à sua defesa, o resultado probatório que poderia obter com dez testemunhas é absolutamente nulo.”
49ª Concluindo que “Por tudo quanto assim foi dito, compreende-se que as diligências de prova requeridas pelo arguido tendo em vista a inquirição de centenas de testemunhas, na sequência da comunicada alteração na componente da localização factual, contendem com o princípio da proporcionalidade e, como tal, devem ser indeferidas. A eventual compressão dos direitos de defesa do arguido que daí possa resultar é inteiramente compatível com a finalidade última do processo justo e equitativo.”
50ª É patente que o acórdão recorrido faz uma interpretação do artº 340º do CPP no sentido de serem indeferidas as inquirições de testemunhas requeridas pelo arguido na sequência de alterações de factos indiciários, porque - relativamente à Av. da República - é um meio de prova que “não é absoluto, infalível, definitivo, suscetível de afastar a dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos”, imprescindível ou necessário à boa decisão da causa, e porque contende com o princípio da proporcionalidade.
51ª É manifesto que a ratio decidendi do acórdão recorrido quanto à confirmação do indeferimento das diligências de prova requeridas corresponde à interpretação normativa indicada, oposta à Constituição, devendo a decisão ser necessariamente no sentido do deferimento se a interpretação normativa fosse a que a seguir se propugna.
52ª A produção da prova requerida pelo recorrente é essencial para a descoberta da verdade material e surge perfeitamente justificada à luz do princípio do contraditório consagrado no artº 358º, nº 1, do CPP.
53ª O direito à produção de prova não pode ser um faz de conta.
54ª O recorrente utilizou a mesma estratégia de defesa (com êxito) – requerendo a inquirição de todos os moradores do nº 47 da Alameda D. Afonso Henrique – para demonstrar a impossibilidade de o abuso de que vinha pronunciado ali ter ocorrido.
55ª Parece que neste processo, se entendeu que não é a acusação que tem o ónus de provar os factos, mas sim o recorrente/arguido que tem que demonstrar que os factos não aconteceram.
56ª Dos vários intervenientes nos alegados abusos, pelos quais o recorrente veio a ser condenado, nenhum foi inquirido, além do assistente.
57ª É a palavra do assistente contra a do recorrente, que sempre negou a prática dos factos, e que disso estava tão seguro que, como referido, solicitou, sem êxito, a inquirição de testemunhas indicadas aleatoriamente por iniciativa do Tribunal.
58ª Resta ao recorrente demonstrar que nunca esteve nos locais imputados na acusação ou na pronúncia, por isso a prova requerida é legitimada pelo princípio da necessidade na busca da verdade material.
59ª Verificando-se os fundamentos do nº 1 do artº 340º do C.P.P., o indeferimento da produção de prova estaria limitado pela sua inadmissibilidade, irrelevância ou superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou por ser meramente dilatória (artº 340º, nºs 3 e 4), o que não é o caso.
60ª A negação dum meio de prova manifestamente relevante e possível viola o disposto no artº 32º-1 da Constituição, que confere ao arguido todas as garantias de defesa, não se vislumbrando que este direito de defesa possa ser restringido nos termos do artº 18º do mesmo diploma, que impõe que a restrição/compressão aos direitos fundamentais se faça pelo mínimo indispensável ao exercício de outros direitos fundamentais. E sempre atendendo às garantias processuais decorrentes do texto constitucional e dos princípios que enformam a Constituição.
61ª A inquirição dessas testemunhas é essencial para a descoberta da verdade material e surge perfeitamente justificada à luz do princípio do contraditório consagrado no artº 358º, nº 1, do CPP.
62ª Pelo que á acórdão recorrido ao indeferir a prova requerida pelo recorrente, está a coartar, a aniquilar qualquer possibilidade de defesa, violando o artº 32º, nº 1 da C.R.P., os artºs 358º, nº 1 e 340º do C.P.P.
Inconstitucionalidade do artº 115º-1 do Código Penal.
63ª Esta inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente no recurso da decisão final proferida em primeira instância, conforme conclusões transcritas a fls 75911 do acórdão ora recorrido, por violação do princípio da legalidade consagrado no artº 29º-1 da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que o direito de queixa do ofendido menor e a correspondente legitimidade do Ministério Público subsistem nos seis meses posteriores à data em que o ofendido complete 16 anos de idade.
64ª Esta suscitada inconstitucionalidade foi julgada improcedente pelo acórdão recorrido a fls 75971, julgando também improcedente, em consequência, a questão da caducidade do direito de queixa/ilegitimidade do Ministério Público, suscitada pelo recorrente.
65ª O artº 115º-1 do CP estabelecia e estabelece: “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular do direito de queixa tiver conhecimento do facto e dos seus autores” (...).
66ª A interpretação deste preceito feita no acórdão recorrido não tem aí consagração expressa e este artº 115º, na redação anterior à lei nº 59/2007 (cuja aplicação não foi posta em causa), não abria qualquer exceção a essa caducidade do direito de queixa.
67ª Por isso, tal interpretação corresponde a interpretação extensiva de normas incriminadoras em sentido amplo, com violação do princípio da legalidade consagrado no nº 1 do artº 29º da Constituição.
68ª Tal norma penal, para ser respeitado o referido princípio constitucional violado, deve ser interpretada e aplicada no sentido de que, não prevendo a lei essa extensão do prazo de seis meses, o direito de queixa e a legitimidade do Ministério Público se extinguem quando o ofendido perfaz 16 anos de idade.
Inconstitucionalidade do artº 343º-1 do CPP.
69ª Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso da decisão final, conforme conclusões transcritas a fls 75912 e, a fls 75979, foi julgada improcedente pelo acórdão recorrido.
70ª O recorrente indicou (fls 76679-76680) a interpretação inconstitucionalizante feita na decisão recorrida como sendo “no sentido de que o exercício do direito ao silêncio pelo arguido não é inócuo, podendo globalmente desfavorecê-lo, pela repetida referência a que o arguido não prestou declarações, com repercussão na formação da convicção do Tribunal”,
71ª Como transcrito a fls 75911 e 75912 (e não posto em causa), o acórdão proferido em primeira instância lembra (fls 67150 e relembra (fls 67152, 7157, 67704 e 67727) que o recorrente não prestou declarações em audiência de julgamento, voltando a relembrar, a fls 68086, no âmbito da determinação da medida da pena, que a postura do recorrente em julgamento “não foi colaborante”.
72ª O douto acórdão ora recorrido, depois de longas referências jurisprudenciais e doutrinárias afirma a fls 75977 e 75978:
“Como assinala o acórdão recorrido, o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento sobre os factos que lhe eram imputados. E mesmo quando requereu a leitura (que foi deferida e efetivada) de excertos por si selecionados, do interrogatório a que foi sujeito pelo Mmº Juiz de Instrução, mostrou-se indisponível para, posteriormente à referida leitura, prestar quaisquer esclarecimentos sobre tais declarações.”;
“Face a esta postura, o Tribunal a quo, no acórdão recorrido, considerou, com razão, que a atitude do arguido em julgamento “não foi colaborante”.”;
“O arguido, ao não prestar quaisquer declarações em julgamento relativamente aos factos que lhe eram assacados, não confessou e, não o tendo feito, também não pode verbalizar um eventual arrependimento, que igualmente não demonstrou por qualquer outro meio. Ao não falar o recorrente F. prescindiu de poder gozar de circunstâncias atenuantes de relevo como sejam a confissão e o arrependimento.
73ª Como referido no acórdão proferido em primeira instância, a fls 66454, o recorrente declarou na sua contestação que não praticou os factos que lhe são imputados, o que já havia declarado perante o Senhor Juiz de Instrução, e, como referido no douto acórdão recorrido, não os confessou em julgamento.
74ª Por isso, não podia beneficiar de confissão ou arrependimento.
75ª Apesar disso e ao ratificar a atuação do Tribunal de primeira instância, o acórdão recorrido manteve a legitimidade das muitas referências ao silêncio do recorrente, o que patenteia que o artº 343º-1 do CPP foi interpretado no sentido indicado pelo recorrente, sendo manifesto que tal interpretação foi relevante na ratio decidendi de confirmação integral da decisão condenatória.
76ª A norma do artº 343º-1 do CPP ao impor que o silêncio do arguido não o pode desfavorecer, constitui uma garantia de defesa conferida pelo artº 32º da Constituição, garantia que, sob pena de violação dessa norma constitucional, não admite limitações.
77ª Por isso, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, deve esta norma processual ser interpretada no sentido de que o silêncio do arguido é completamente inócuo, não podendo em nada desfavorecê-lo, designadamente pela muita repetida referência ao silêncio, com inevitável interferência na apreciação dos factos e na sua relevância penal, devendo os factos ser reapreciados sem referência e com esquecimento do silêncio do recorrente.
Inconstitucionalidade do artº 127º do CPP
78ª Esta inconstitucionalidade foi suscitada no recurso da decisão final, conforme conclusões transcritas a fls 75922 e, a fls 76100, foi decidido pelo acórdão recorrido “que não se verifica”, que “inexiste”,
79ª O recorrente indicou (fls 76680) a interpretação inconstitucionalizante do artº 127º do CPP feitas na decisão recorrida, como sendo no sentido de que a livre apreciação da prova pode ser feita com sobrevalorização da livre convicção e subvalorização das regras de experiência, com sobrevalorização das provas positivas e subvalorização ou mesmo esquecimento das provas negativas, com prevalência da imediação e consequente dificultação do recurso em matéria de facto, como se, nos crimes de abuso sexual, a presunção de inocência fosse substituída pela presunção de culpa.
80ª Afirma-se, nomedamente, no douto acórdão recorrido, a fls 76101, que “O acórdão não deixou de se debruçar sobre esta questão” (o assistente G. enganou-se no nome do arguido, referindo por duas vezes o nome “Z.), a fls 76102 que “teve equívocos, dúvidas, por vezes aparência de incongruências” e que “o tribunal não ficou com a impressão de que aquela retificação deixasse transparecer que o assistente tinha sido “apanhado” em alguma coisa.
81ª Depois, a fls 76105, o acórdão vinca que “não queremos deixar de afirmar e chamar a atenção para quão importante é a imediação.
82ª Face ao referido e ao mais constante do acórdão recorrido e que por economia processual se não transcreve, é manifesto que o acórdão recorrido interpretou o artº 127º do CPP no sentido indicado pelo recorrente e que tal interpretação foi relevante na confirmação da decisão de terem sido considerados provados os factos imputados ao recorrente relativamente ao assistente G..
83ª A norma do artº 127º do CPP, ao impor que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, interpretada no indicado sentido do acórdão recorrido, viola as garantias de defesa e a presunção de inocência consagradas nos nºs 1 e 2 do artº 32º da Constituição.
84ª No contexto das conclusões 97º a 134º, referidas pelo acórdão recorrido a fls 76099 e transcritas de fls 75919 a fls 75924 (que por economia processual se dão por reproduzidas), a norma processual referida, para serem respeitadas as garantias de defesa e a presunção de inocência consagradas nas normas constitucionais violadas, deve ser interpretada no sentido de que a livre apreciação da prova deve ser objetiva, sem interferência da mera impressão gerada pelos diversos meios de prova, devendo os factos vir a ser reapreciados com consideração da objetividade da prova produzida em audiência de julgamento e com postergação da mera impressão subjetiva gerada por essas provas e, quiçá, eventualmente de algum modo influenciada pela ambiência social, comunicacional e justiceira que o caso suscitou e empolou durante uma década.”
O Ministério Público apresentou alegações com as seguintes conclusões:
“1. – Primeira questão, referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 340.º do CPP.
1.1. – Porque a norma do artigo 340.º do CPP, na interpretação aplicada ao acórdão recorrido, como ratio decidendi, não corresponde àquela que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, falta um requisito de admissibilidade do recurso.
1.2. – Por outro lado, durante o processo, não foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, imputando-se a violação da Constituição à própria decisão, faltando pois, outro requisito de admissibilidade.
1.3. - Assim, nesta parte, não deverá conhecer-se do recurso.
2. – Segunda questão, referente à inconstitucionalidade da norma dos artigos 1.º, alínea f) e 358.º do CPP.
2.1. – O recorrente indica como interpretação normativa o seguinte:
“Art.ºs 1º-f) e 358º do CPP, por violação do art.º 32º da Constituição, na interpretação e aplicação feitas na decisão recorrida no sentido de que as alterações do lugar e/ou do tempo de factos indiciários, feitas no decurso da audiência de julgamento, mesmo que, pela sua enorme amplitude, modifiquem a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, integrantes do facto concreto e unitário, da realidade unitária do facto criminoso, são não substanciais, devendo tais normas processuais, para serem respeitadas as garantias de defesa conferidas pela norma constitucional violada, ser interpretadas no sentido de que tais alterações devem ser consideradas como substanciais, pois só esta qualificação permite, nos termos do disposto no art.º 359º do CPP, o exercício de todas as garantias de defesa”.
2.2. – O acórdão recorrido interpretando o artigo 358.º e 1.º, alínea f) do CPP, entende que a alteração das circunstâncias da execução do crime, como o dia, a hora ou o local da sua prática apenas deverão ser qualificados como substanciais se elas transformarem o objeto do processo num outro distinto.
2.3. – Também considerou a Relação que se uma alteração de factos comunicado ao arguido comprometer a sua defesa, deverá ser qualificado com substancial.
2.4. – São, pois, diferentes, a dimensão normativa efetivamente aplicada e aquela que vem questionada.
2.5. – Partindo da interpretação que acolheu, no acórdão recorrido – exercendo uma competência que só a ele cabe e não ao Tribunal Constitucional - apreciaram-se criteriosamente as concretas alterações, situando-as e analisando-as no contexto da extensa prova produzida e concluindo que elas não alteravam o objeto do processo, nem comprometiam a defesa do arguido, qualificaram-se, consequentemente, como não substanciais.
2.6. – Por outro lado, na motivação do recurso para a Relação – o momento próprio – o recorrente o que sustenta, sob a capa de normatividade, é que é a decisão da 1.ª instância ao qualificar as alterações como não substanciais violou o artigo 32.º da Constituição.
2.7. – Assim, faltando dois requisitos de admissibilidade do recurso não deve conhecer-se do mérito.
3. – Terceira questão, referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 358.º do CPP.
3.1. – A interpretação normativa que o recorrente identificou como o objeto do recurso não corresponde àquele que, como ratio decidendi, o acórdão recorrido adotou.
3.2. – Faltando, pois, esse requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, não deve conhecer-se do seu objeto, nesta parte.
4. – Quarta questão referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 358.º, n.º 1 e 340.º do CPP.
4.1. – A interpretação acolhida pela decisão recorrida é substancialmente diferente daquela que o recorrente identificou no requerimento de interposição do recurso, onde se fixa o objeto do mesmo.
4.2. – Acresce que, durante o processo, a questão, tal como foi suscitada, não tem natureza normativa, sendo à decisão que se imputa a violação das garantias de defesa.
4.3. – Face à inverificação daqueles dois requisitos de admissibilidade do recurso, não deve, nesta parte, conhecer-se do mérito.
5. – Quinta questão referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, na redação anterior à Lei n.º 59/2007.
5.1. A interpretação conjugada dos artigos 113.º, n.ºs 1 e 4 (versão atual) ou 3 (versão anterior), 115.º, n.º 1 e 175.º do Código Penal (versão anterior à Lei nº 59/2007), no sentido de que nos crimes de abuso sexual de criança, o direito de queixa do ofendido, menor, só se extingue seis meses depois do conhecimento dos factos pelos legais representantes, ou seis meses depois do menor perfazer 16 anos, data em que adquire ele próprio o direito de queixa, não viola o princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
5.2. Deverá pois, nesta parte, negar-se provimento ao recurso.
6. – Sexta questão, referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 347.º, n.º 1 do CPP.
6.1. A interpretação normativa concretizada pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso é diferente da interpretação que a Relação sufragou no acórdão recorrido.
6.2. Assim, faltando esse pressuposto de admissibilidade, não deverá conhecer-se do recurso.
7. – Sétima questão, referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 127.º do CPP.
7.1. A interpretação que a Relação fez do artigo 127.º do CPP, é substancialmente diferente daquela que o recorrente indica como devendo constituir objeto do recurso.
7.2. Consequentemente, não deverá dele conhecer-se.
A Casa Pia de Lisboa, I.P., apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
“i. O Recorrente foi notificado por este Tribunal da hipótese de os pontos 1, 2, 3, 4, 6 e 7 do seu requerimento de interposição de recurso não poderem ser conhecidas com fundamento em que as interpretações normativas indicadas não corresponderem à ratio decidendi do acórdão recorrido.
ii. Porém, apesar de ser notificado para tal, o Recorrente não justifica, para contrariar a advertência, a pertinência de tal recurso e o seu cabimento face a tal.
iii. Limita-se a afirmar que já havia suscitado a inconstitucionalidade previamente, o que já o fizera também aqui.
Inconstitucionalidade nos artigos 340º; 1º-f) e 358º; do Código de Processo Penal, (pontos 1, 2, 3 e 4 do recurso em apreciação).
ìv. Como bem e cristalinamente explica o Acórdão recorrido, o Recorrente limitou-se a invocar a violação pelo Tribunal dos artigos 32º, nº 1 da CRP e 6º da CEDH sem que, no entanto, fundamente a razão do seu entendimento:
v. Como bem refere o Acórdão recorrido “a limitação dos direitos de defesa do Recorrente não é necessariamente incompatível com o disposto no artigo 32º da CRP”, desde que tal limitação seja compatível e proporcional face à defesa de outros valores e direitos, seja o do Estado de prossecução da Justiça, seja o, in casu, das vítimas de verem ser a mesma realizada em resposta às ofensas de que padeceram com a atuação dolosa e criminosa do Recorrente.
vi. Vária jurisprudência citada pelo Tribunal a quo no acórdão recorrido é esclarecedora e se mostra incontroversa! Veja-se, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-12-2008 in www.dgsi.pt), Ac. TC nº 171/2005, www.dgsi.pt) Ac STJ de 615/99, in CJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo II, pág. 208 a 214,
vii. Outros princípios como os acima enunciados e para além deles, o evitar do excessivo garantismo, o evitar da prática de atos meramente dilatórios e o princípio da celeridade processual na realização da Justiça, também assumem dignidade constitucional!
viii. O artigo 32º da CRP, como o acórdão recorrido chama à colação, deve ser interpretado no seu todo e não só e apenas na norma contida no seu nº 1. Termos em que, por manifesta inexistência de qualquer inconstitucionalidade, deve ser confirmada a decisão recorrida.
ix. Quanto à interpretação dada à alínea f) do artigo 1º e artigo 358º do CPP, não assiste qualquer razão ao arguido recorrente na sua tese peregrina de que as alterações de tempo e lugar constituem uma alteração substancial, redundando a tese oposta numa interpretação inconstitucional do disposto nos artigos 1.º, f) e 358.º do CPP por violarem a tutela constitucional as garantias do arguido.
x. Se é verdade que é importantíssimo o circunstanciar do crime, concretizando o enquadramento factual da sua prática, a realidade é que o tempo (e o lugar) não é imprescindível para que se possa dizer que um dado crime foi cometido.
xi. Com isto é dizer que, ainda que não se consiga precisar o dia mês ou até ano e o exato local em que um menor foi abusado sexualmente, ao preenchimento do tipo baste que se consiga balizar minimamente tempo e o espaço em que tal facto ocorreu, ainda que com limites relativamente latos.
xii. Tal decorre de forma incontroversa da formulação do artigo 283.º, n.º 3, b), do CPP: “A acusação contém, sob pena de nulidade: (...) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, (...)” sublinhado nosso.
xiii. A indicação do lugar, tempo e motivação, deve ser incluída na acusação, desde que tal seja possível, o que confere um caráter de eventualidade a tal indicação, apontando claramente no sentido da não imprescindibilidade de tal indicação, ou a sua maior ou menor precisão, para que se possa validamente imputar o facto ao agente.
xiv. Não são todos os factos constantes da acusação que constituem a imputação do facto criminoso ao agente. A esta apenas interessam os elementos essenciais do tipo e já não a concreta precisão do lugar e tempo.
xv. Tais alterações não configuram uma modificação da conduta criminosa, mas apenas das circunstâncias da sua execução, emoldurando aquela conduta na concreta situação da vida em que ocorre, sem que com isso se desvirtuem os elementos essenciais do tipo, precisamente por isso é que não configuram a imputação de novo tipo incriminador ou a agravação dos limites máximos aplicáveis.
xvi. Há que ter presente que a vinculação temática, decorrência da estrutura acusatória do processo penal, a que o Tribunal está obrigado, deve ser temperada com o princípio da investigação, por sua vez decorrência do princípio da verdade material, que também se lhe reconhece e que constitui uma válvula de escape para a rigidez processual que representaria o facto do julgador, apercebendo-se no decurso da audiência que as circunstâncias de lugar tempo e modo não essenciais em que ocorre a prática do ilícito, poderão não ser exatamente as mesma embora pertençam à mesma “situação de vida unitária”, não a desvirtuando nos seus elementos caracterizadores essenciais, não pudesse integrar tais circunstâncias no objeto do processo, dando delas prévio conhecimento aos sujeitos possibilitando-lhes a adequada preparação da sua defesa.
xvii. Contudo inegavelmente o princípio da investigação permite ao juiz dentro do thema probandum investigar oficiosamente e recolher provas sobre os factos já constantes da acusação e da pronúncia, na perseguição da verdade material pelo que lhe é permitido investigar as concretas circunstâncias em que o crime ocorreu, não estando exclusivamente vinculado à realidade descrita na acusação (ou pronúncia). De igual modo, o tribunal é livre de fazer qualificação jurídica diferente daquela que é feita pelo Ministério Público.
xviii. O critério aqui terá que ser casuístico: se o arguido afetado pela alteração, ainda que veja a sua posição mais onerada, em termos de prova, logra, não obstante, fazer requerimento probatório com o qual pretende contrariar a ampliação do quadro espacial, não é sustentável que a sua defesa se tenha visto irremediavelmente comprometida, o que só sucederia se não fosse minimamente possível contrariar aquela com nova prova.
xix. Porém, o Recorrente indicou basta prova, como se transcreve: Fls. 64.364 a 64.394 e fls. 64.395 a 64.778 - Arguido F. (Req. Diligências de Prova):
xx. Conforme já referimos noutra sede: A “pronúncia importa para o processo um conjunto de factos que são da vida real e que são, bastas vezes, desconformes, em latitude e longitude com o que se plasmou no texto que a constitui. Não pode esse instrumento ser de tal forma moldável que não tenha qualquer conexão com o iter criminis e delimite ou comprima direitos fundamentais de defesa. A possibilidade de alteração do libelo acusatório resulta daquilo que é o processo aquisitivo da prova que é feito em julgamento, assim se garantindo o direito a um julgamento justo e equitativo, a um processo onde a paridade dos sujeitos é tal que não existem surpresas nem o arguido é confrontado com nada que, de forma substancial, não se contenha na pronúncia, traduzida no princípio da vinculação temática. Constituindo uma garantia de defesa, na medida em que impede alterações significativas do objeto de processo, alterações essas que prejudicariam (poderiam até inviabilizar) a defesa. As alterações comunicadas não são substanciais, não afetam o objeto do processo e visam, apenas, conformar a realidade a reconstituir com a prova adquirida em julgamento.
xxi. De todo modo, nenhum direito de defesa do arguido foi negado: no momento e sede própria teve oportunidade de apresentar a sua defesa, indicar prova, produzi-la e contraditar em audiência a perfilada contra ele, com respeito, portanto das garantias constitucionais que o assistem, pelo que nenhuma violação do artigo 32.º, n.º 1, 2 e 5, da CRP, nenhuma inconstitucionalidade havendo a declarar a este respeito.
xxii. Sobre esta questão, tem-se o Tribunal Constitucional pronunciado diversas vezes, concluindo pela conformidade face à Lei Fundamental da interpretação agora questionada.
xxiii. É, pois, manifesto que a interpretação que o tribunal recorrido fez dos arts. 1.º, al. f), e 358.º do CPP, é inteiramente conforme ao art. 32.º da CRP, não ocorrendo a invocada situação de inconstitucionalidade dos arts. 1.º, al. f), e 358.º, do CPP.
Inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 115º, nº 1 do Código Penal (ponto 5 do recurso em apreciação)
xxiv. A única interpretação possível da disciplina do n.º 1, do artigo 115.º, do CP, é que só quando o titular do direito de queixa efetivamente o é, por estar em condições de exercer a queixa, se pode iniciar a contagem do prazo de 6 meses previsto naquele normativo, pois antes essa faculdade não está na sua disposição jurídica
xxv. Para a questão concreta, afastada que foi, e bem, a aplicabilidade do regime instituído pela Lei 59/07, de 9 de setembro, pela proibição da retroatividade da lei penal desfavorável e aplicação do princípio da aplicação do regime mais favorável ao Recorrente, é indiferente a aplicação da redação do artigo 178.º, n.º 2, introduzida pela Lei 65/98, de 2 de setembro, ou a que resulta da Lei 99/2001, de 21 de agosto, aditando o n.º 4 pois que em ambas as versões se dispõe que, em caso de crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172.º praticados contra menor de 16 anos, o MP pode dar início o procedimento se o interesse da vítima o impuser.
xxvi. Não suscitando dúvidas que o Recorrente não questionou a fundamentação expendida pelo MP no despacho de fls.13.552 a 13.554 que precede a acusação propriamente dita, no qual expõe as razões de facto que justificam a sua intervenção em nome do interesse da vítima, a questão resume-se a saber se no caso vertente tal faculdade foi usada atempadamente ou não.
xxvii. A premissa em que assenta a argumentação do Recorrente – de que é vedado ao MP iniciar o procedimento em nome do interesse da vítima desde que o ofendido tenha capacidade para diretamente deduzir queixa – não tem acolhimento na letra da lei. É que, seja qual for a versão do artigo 178.º que se aplique, a da Lei 65/98, ou da Lei 99/2001, a intervenção do MP imposta pelo interesse da vítima depende apenas do crime ter sido praticados contra menor de 16 anos.
xxviii. O elemento fulcral da faculdade conferida ao MP de exercer a ação penal independentemente da queixa do respetivo titular é o interesse relevante da vítima em ver, ou não, instaurada a ação penal pelos factos que contra ele foram praticados.
xxix. Tal resulta da própria ratio subjacente à disciplina do n.º 2 (ou n. 4), do artigo 178.º: salvaguardar o interesse do menor vítima de abusos sexuais da não apresentação atempada de queixa, seja por si, seja pelo seu legal representante, assegurando o andamento adequado e oportuno do procedimento. Igualmente visa tal norma prevenir a perversidade resultante da não apresentação da queixa se dever a o agente do crime ser o próprio representante da vítima, titular do direito de queixa.
xxx. Resulta indiscutível a legitimidade do MP para, no caso concreto, promover a ação penal em nome do interesse da vítima e a oportunidade desta promoção, pelo que, sendo conforme à lei penal e processual penal, nenhuma inconstitucionalidade sendo de declarar por violação dos artigos 29.º da CRP.
Inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 343º, nº 1 do Código de Processo Penal (ponto 6 do recurso)
xxxi. Esta questão resume-se tão só e apenas ao facto, na sequência de o Recorrente não ter prestado declarações, o Tribunal de 1ª instância e o acórdão ora posto em crise, terem qualificado a sua postura como de não colaborante;
xxxii. O Recorrente apesar e mesmo após ter feito ler as suas declarações perante o Mmº JIC, não prestou declarações. E, tais declarações seriam só e apenas a sujeição do Recorrente a um princípio que, no seu entender mas só para as vítimas assume peculiar importância: o do contraditório!
xxxiii. Quem não fala, não permite o confronto com outra “verdade processual”, pese embora não confesse ou sequer se arrependa, obviamente, não tem uma postura colaborante.
xxxiv. Como ensina o Professor Jorge de Figueiredo Dias, citado pelo acórdão recorrido: Se o Recorrente não pode ser juridicamente desfavorecido por exercer o seu direito ao silêncio, já naturalmente, o pode ser de um mero ponto de vista fáctico, quando do silêncio derive do definitivo desconhecimento ou desconsideração de circunstâncias que serviriam para justificar ou desculpar, total ou parcialmente, a infração. (in Direito Processual Penal, 1.º Vol., pág. 449).
xxxv. O silêncio do Recorrente e a qualificação da sua postura pelo Tribunal a quo, como não colaborante, apenas serviu para justificar a inaplicabilidade de algumas circunstâncias atenuantes que, a verificaram-se, só poderiam existir em razão das declarações que o mesmo viesse a prestar. Como o são a confissão e o arrependimento.
xxxvi. Não existe, nem o Recorrente esclarece, qual é a inconstitucionalidade pretendida. Porquê?
xxxvii. Tem razão o Recorrente quando diz que o seu silêncio deve ser interpretado como “completamente inócuo”. Tanto é que assim foi. Não pode é resultar, ao contrário, em seu favorecimento.
xxxviii. Termos em que, por absoluta falta de razoabilidade e sentido, deve ser desatendida a inconstitucionalidade suscitada pelo Recorrente.
Inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 127º do Código de Processo Penal (ponto 7 das alegações de recurso)
xxxix. Esta é mais uma das falsas questões levantadas pelo Recorrente para tentar impugnar a sua condenação pelos abusos que cometeu.
xl. A prova tem de ser interpretada com objetividade, e foi, mas inserida num contexto de toda a prova produzida em julgamento. Se assim não fosse, bastaria dar como provado que o Recorrente abusou sexualmente do assistente G., sem necessidade de qualquer outra prova ou considerando. A favor ou contra!
xli. O Tribunal da Relação de Lisboa entende muito bem a razão de ciência da pretensão do Recorrente: “Esta avançada inconstitucionalidade – que, repete-se, inexiste – é entendível como última e derradeira tentativa do Recorrente/Recorrente F. em alcançar, por esta via, o que porventura antevia não conseguir obter em sede de impugnação da matéria de facto dada por assente no acórdão recorrido, que, como supra se decidiu, não se alicerçou em meras impressões.” (fls 76100);
xlii. Pese embora a opacidade do seu raciocínio, em momento algum o Recorrente consegue (ou sequer tenta) estabelecer um mínimo fio de raciocínio entre a aplicação da norma pelo Tribunal recorrido e a violação do artigo 32º, nº 1 da CRP!
xliii. Assim, por absoluta inexistência de qualquer violação da CRP, deve entender-se bem aplicado o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do CPP e a sua conformidade constitucional com o artigo 32º da CRP.
TERMOS EM QUE não deve ser declarada nenhuma das inconstitucionalidades invocadas, confirmando-se a decisão recorrida por ser conforme à lei e à constituição”.
O arguido H. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de fevereiro de 2012, nos seguintes termos:
“I – Recurso de constitucionalidade dos artigos 131º, 154,º e 155º do Cód. Processo Penal, e ainda do art. 40º do Decreto-Lei nº 11/98 de 24 de janeiro:
1. No requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente e constante de fls. 16.307 a 16.323, foi alegado terem sido praticadas em inquérito nulidades ou irregularidades processuais, consubstanciadas na omissão da notificação aos arguidos da realização das perícias sobre a personalidade de testemunhas, em violação do disposto nos art. 154º e 155º do Código de Processo Penal e também do art. 40º do Decreto-Lei nº 11/98 de 24 de janeiro, determinante da invalidade do meio de prova em apreço, por força do disposto no art. 122º do Cód. Processo Penal, e no facto de tais perícias sobre a personalidade só puderem ser realizadas às alegadas vítimas de abuso sexual quando estas forem menores de dezasseis anos, em conformidade com o disposto no art. 131º, n.º 3, do Código de Processo Penal (redação em vigor em março de 2004).
2. Por despacho proferido pelo MMo. Juiz de Instrução Criminal em 1 de março de 2004 e constante nos autos a fls. 17.020 a 17.055, foram aquelas alegadas nulidades ou irregularidades, conhecidas concluindo o tribunal pela sua inexistência, mantendo o despacho.
3. Inconformado, interpôs o recorrente competente recurso (de fls. 17.678 a 17.693) que subindo a final, veio a ser julgado no acórdão final do Tribunal da Relação de Lisboa prolatado em 23-02-2012 (de fls. 73.247 a 76.620 dos autos principais), onde sustentou referindo-se ao despacho do Juiz de Instrução: “...outra interpretação de tais normativos agrediria claramente as garantias de defesa que assistem ao arguido em processo penal por força do disposto no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
4. No acórdão do Tribunal da Relação, foi assim decidido que a interpretação dos normativos invocados – artigos 131º, 154.º e 155º do Cód. Processo Penal, e ainda a aplicação do art. 40º do Decreto-Lei nº 11/98 de 24 de janeiro, não viola as garantias de defesa que assistem ao arguido em processo penal por força do disposto no art. 32.º da CRP, pelo que a interpretação efetuada teria sido conforme àquele preceito constitucional.
5. Face ao que, ao abrigo da alínea b) nº 1 do art. 70º da LTC, se requer ao Douto Tribunal Constitucional que declare a inconstitucionalidade de todas as normas previstas no número anterior, quando interpretadas no sentido efetuado nos autos, quer pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por desconforme com o art. 32º da C.R.P, com as devidas consequências no processo.
…
II – Recurso de constitucionalidade dos artigos 33º, n.º 1, 14º, 17º in fine, 268º e 269º e ainda 97º nº. 4, todos do C.P.P., por violarem os art.º 28º, 32º, n.º 1, 2 e 5, 205º e 211º, n.ºs 1 e 2 todos da Constituição da República Portuguesa.
1. Na audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 13-12-2004 (cf. fls. 25.475 a 25.488 do Vol. 109.º), na sequência do acórdão datado de 17-03-2004, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (cf. Proc. apenso n.º 1967/04 - 3.ª, fls. 56 a 75), o tribunal proferiu um despacho que validou os atos jurisdicionais praticados pelo Juiz de Instrução Criminal do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
2, Inconformado o recorrente interpôs recurso (cf. fls. 27.462 a 27.490 e original a fls.27.493 e seguintes), agora julgado no acórdão da decisão final, onde sustentou que a interpretação assumida pelo Tribunal a quo sobre os normativos dos art.ºs 33º n.º 1, 14º, 17º, in fine, 268º e 269º, todos do C.P.P., é inconstitucional, por violar o sentido do art.º 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, no qual está consagrado o princípio da estrutura acusatória do processo criminal.
3. Sustentou ainda que o sentido interpretativo subjacente à aplicação daquelas mesmas normas efetuado na decisão recorrida, e por via dessa interpretação normativa conferindo competência ao Tribunal de julgamento para cumprir o Acórdão proferido em 17.01.04, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, extravasando e anulando a delimitação da competência funcional dos tribunais criminais contidas naquelas normas, é inconstitucional por violação do art.º 211º n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser declarada.
4. Em consequência da interpretação normativa assumida pelo Tribunal a quo, ao recorrente foi vedada a possibilidade de avaliar as conclusões da decisão recorrida, não podendo conhecer os fundamentos para a validação dos atos processuais praticados por tribunal incompetente.
5. Assim, o sentido interpretativo das normas dos art.ºs 33º n.ºs 1 e 3 e 122º, nºs 1, 2 e 3 do Cód. Processo Penal, efetuado no despacho recorrido, no sentido de que, nesta fase, não cabe efetuar a reapreciação substancial dos atos, mas apenas aferir do cumprimento dos pressupostos legais que, por uma questão de economia processual ou por falta de competência funcional do Tribunal de julgamento, é inconstitucional, por desconforme aos art.ºs 28º n.º 1 e 32º n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
6. Ao proferir uma decisão genérica de validação de todos os atos praticados pelo tribunal incompetente, o despacho sofre do vício de ausência de fundamentação o que determinou a impossibilidade de sindicar corretamente os critérios assumidos pelo Tribunal a quo, inquinando de uma nulidade da decisão, por violação do art. 97, nº 4, do Código de Processo Penal.
7. Pelo que, a interpretação normativa art.º 97º n.º 4 do Código de Processo Penal efetuado na decisão recorrida, no sentido de que não tem de explicitar os critérios que subjazem ao seu juízo de maior ou menor relevância dos atos praticados, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação das decisões consagrado no art.º 205º n.º 1 da CRP, bem como do direito ao recurso consagrado no art.º 32º, n.º 1 da mesma Lei Fundamental.
8. Vindo a ser apreciadas em sede de acórdão da decisão final (fls. 73.412 a 73.507) os despachos foram todos confirmados, pelo se impõe aferir da constitucionalidade de todas as normas invocadas, que surgiram todas como ratio decidendi e não apenas como mero obter dictum, o que se faz através do presente recurso que se apresenta assim ao abrigo da previsão da alínea b) do número um do art. 70º da LTC, e uma vez declarada, a inconstitucionalidade seja o processo reapreciado a esta luz.
…
III – Recurso de constitucionalidade dos artigos 346º n.º 1 e 347º nº 1 ambos do C.P.P., por violação do art.º 32º n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
1. Na audiência de julgamento que teve lugar em 14 de março de 2005 (fls. 28.916 ponto 2. a 8.927), o arguido A. e o recorrente vieram aos autos, pela primeira vez, expressamente, suscitar a exceção de inconstitucionalidade das normas do artº 346º nº 1 e do artº 347º nº 1 do C.P.Penal por violação do disposto nos números 1, 2 e 5 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
2. Em subsequente audiência de julgamento (17-03-2005 conforme fls. 28.916 a 28.927) foi proferido despacho conhecendo da exceção da fiscalização concreta da constitucionalidade dos referidos art. 346º nº 1 e 347º do C.P.Penal, declarando constitucional a interpretação dos artigos em causa, pelo que o Tribunal entendeu que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, caso o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão estes solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis.
3. Segundo tal despacho, a ordem definida para a instância do assistente e do demandante cível é imperativa, pelo que o defensor do arguido formulará o seu pedido de questão ao Presidente depois do Ministério Público mas antes do mandatário do assistente e do demandante cível.
4. Em sede de recurso interposto dessa decisão (a fls.29.728 a 29.749) alegou o recorrente que o sentido expresso pelo Tribunal a quo sobre estas normas não está conforme com o art. 32º nºs 1, 2 e 5 da CRP, pelo que a interpretação normativa dos art.ºs 346º, n.º 1 e 347º, n.º 1, ambos do C.P.P. efetuada na decisão recorrida é inconstitucional por violação direta daqueles preceitos constitucionais, o que deve ser decretado.
5. As invocadas inconstitucionalidades foram agora conhecidas em sede de recurso do acórdão da decisão final, vindo o Tribunal da Relação de Lisboa (fls.73.507 a 73.547) a decidir não ter havido qualquer violação do pleno exercício dos direitos de defesa, nem padecerem de inconstitucionalidade, à luz do disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do art. 32.º da Constituição e dos princípios fundamentais subjacentes a este dispositivo, as normas do processo penal em causa, arts. 346.º, n.º 1, e 347.º n.º 1, do CPP.
6. Face ao que se impõe recorrer da constitucionalidade de todas as normas invocadas, e que se apresenta assim ao abrigo da previsão da alínea b) do número um do art. 70º da LTC, com as necessárias consequências processuais.
…
IV – Recurso de constitucionalidade dos artigos 118º, n.º 1, 120º, n.º 2 al. d), 123º, 124 n.º 1 e 2, 127º, 128º, n.º 1, 323º al. a) e g), 340º n.º 1, art. 346º nº 1, todos do Código de Processo Penal, por violação dos 18º, n.º 2 e 3, 20º n.º 4 e 32º, nº 1, 2 e 5, Constituição da República Portuguesa.
1. Na sessão da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 11-03-2008 (conforme fls. 51.445 a 51.450 do Vol. 222.º), na sequência de irregularidades e de nulidades suscitadas por alguns dos arguidos, entre os quais o recorrente, a propósito da tomada de declarações ao assistente L., o Tribunal a quo por considerar não se verificar qualquer uma das violações legais e pressupostos previstos nos artºs 118º e 120º, nº 2, do C.P. Penal, julgou improcedentes as irregularidades e nulidades arguidas.
2. Deste despacho veio o recorrente a interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 51.892 a 51.905) tendo sustentado que a interpretação conjugada do disposto nos artºs 118º n.º 1, 120º n.º 2 al. d), 123º, 124 n.º 1 e 2, 127º, 128º, n.º 1, 323º, al. a) e g), 340º n.º1, art. 346º nº 1, todos do C.P.P., efetuada na decisão recorrida, no sentido de que o Tribunal - constituindo objeto da prova a hipótese da existência de um processo de transferência, que leva à efabulação daquilo que é imputado aos arguidos, pode recusar a formulação de pergunta ao assistente por não a considerar necessária para a descoberta da verdade, muito embora tal esclarecimento tenha a virtualidade de possibilitar a demonstração da falsidade dos factos acusados, a sua impossibilidade ou mesmo a inocência dos arguidos, por constituir uma compressão do direito de defesa dos arguidos atingidos por tal meio de prova que os impede de exercerem efetivamente o seu direito de defesa, no qual se inclui o direito a verem declarada a sua efetiva inocência, contraria as garantias de defesa do arguido, sendo, como tal, inconstitucional por violação do disposto nos arts. 18º n.º 2 e 3, 20º, n.º 4 e 32º nº 1, 2 e 5 todos da Constituição da República Portuguesa.
3. Tendo este recurso interlocutório sido julgado pelo tribunal da Relação de Lisboa em 23 de fevereiro de 2012, conforme acórdão (de fls. 73.624 a 73.662) foi confirmado integralmente o despacho de fls. 51.445 a 51.450 julgando-se conforme à Constituição a interpretação normativa efetuada pelo Tribunal a quo dos citados preceitos constitucionais.
4. Pelo se impõe declarar a inconstitucionalidade de todas as normas invocadas, o que se requer através do presente recurso que se apresenta assim ao abrigo da previsão da alínea b) do número um do art. 70º da LTC, com as devidas consequências no processo.
…
V – Recurso de constitucionalidade dos artigos 127º, 355º, 356º, n.º 1, 2 al. b) e 5, e 323º, al. f) todos do C.P.P, por violação dos artigos 20º n.º 4 e 32º, n.º 1 e 5 todos da Constituição da República Portuguesa.
1. Na audiência de julgamento de 20.07.2005 (a fls. 33.696/33.703) o tribunal indeferiu o requerimento do recorrente que pretendeu formular pedidos de esclarecimentos às testemunhas/assistentes NN. e OO. relativamente a questões que lhes haviam sido colocadas pela Policia Judiciária em sede de inquérito relativamente ao envolvimento do arguido H. em atos de abuso sexual praticados nas suas pessoas ou de que os mesmos tivessem conhecimento, para com isso apurar como foi feita a aquisição da prova em sede de inquérito.
2. Tal recusa fundamentou-se na aplicação dos arts. 127º, 355º, 356º, n.º 1, 2 al. b) e 5, e 323º, al. f), todos do C.P.P. no sentido de se encontrar vedada ao Tribunal ou aos restantes sujeitos processuais solicitar esclarecimentos ou colocar questões aos assistentes que incidam sobre que perguntas, em concreto, lhe foram feitas pela Polícia Judiciária aquando dessa inquirição e como foram feitas.
3. Por considerar que aquela interpretação dos referidos normativos é inconstitucional por violar diretamente os art. 20º nº 4 e 32º, n.º 1 e 5 da C.R.P, e dos princípios subjacentes a um processo equitativo previsto nos arts. 5º e 6º da CEDH, interpôs o recorrente competente recurso (cf. fls. 30725: requerimento de interposição de recurso; motivação de fls. 33946 a 33964 e original de fls. 33.983 a 34.002).
4. No acórdão final (fls.73.777 e seguintes) o tribunal da Relação de Lisboa entendeu não ser inconstitucional a interpretação normativa efetuada pelo Tribunal a quo, nem que esta tenha atentado contra algum dos princípios constitucionais enunciados, ou que violasse os direitos, liberdades e garantias do recorrente H. ou que lhe tenha estabelecido restrições desnecessárias e intoleráveis à luz da Lei Fundamental.
5. Continua o recorrente interessado em ver apreciada a invocada inconstitucionalidade nos termos descritos, o que se requer através do presente recurso que se apresenta assim ao abrigo da previsão da alínea b) do número um do art. 70º da LTC, com as necessárias consequências e repercussões processuais.
…
VI– Recurso de constitucionalidade dos artigos 356.º n.ºs 2, al, b) e 5 e 355.º n.º 1 todos do C.P.P, por violação dos artigos art.º 32.º n.ºs 1 e 5, 18.º e 204º da C.R.P. bem como o disposto no art.º 18.º da CRP, e o princípio do processo justo e equitativo salvaguardado pelo art.º 20.º n.º 4 da CRP.
1. Na audiência de julgamento de 22 de outubro de 2008 (de fls. 60.474 a 60490, Ponto II) o tribunal indeferiu o requerimento do recorrente de leitura de declarações prestadas no inquérito pelos assistentes L., E., C., K., S., B., J., N. e pelas testemunhas O. e P., que havia sido apresentado e fundamentando ao abrigo do disposto no art.º 340º, do C. P. Penal, interpretado em consonância com o art. 6º, nº 1, da CEDH.
2. Tal requerimento foi indeferido e embora reconhecendo que o regime do art.º 356º do C.P.P. constitui uma garantia de defesa do arguido, ainda assim, tendo os assistentes expressamente recusado o consentimento para as leituras em causa, entendeu que tal leitura não pode ter lugar por força no disposto no art.º 356º n.ºs 2 e 5, devidamente conjugado com o art.º 355º n.º 1, todos do C.P.P..
3. Por via de recurso (de fls.61076 a 61.096) agora conhecido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente veio suscitar, pela primeira vez, a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação feita pelo tribunal dos art.ºs 356.º n.ºs 2, al. b) e 5.e 355.º, n.º 1, ambos do C.P.P., no sentido de que tendo os assistentes expressamente recusado o consentimento para as leituras em causa, tal leitura não poder ter lugar por força do disposto no art.º 356º n.ºs 2 e 5, devidamente conjugado com o art.º 355º n.º 1, todos do C.P.P..
4. Entende o recorrente que aquela interpretação viola o reduto nuclear das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32.º n.ºs 1 e 5, 18.º e 204º da C.R.P. bem como o disposto nos art.º 18.º da CRP, e o princípio do processo justo e equitativo salvaguardado pelo artº 20.º n.º 4 da C.R.P. e pelo art.º 6.º da C.E.D.H.
6. O tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão final conhecendo desta questão, decidiu não reparar o despacho do tribunal a quo (fls. 73.784 e seguintes) pelo que o recorrente pretende ver apreciada e declarada a invocada inconstitucionalidade nos termos descritos, o que se requer através do presente recurso que se apresenta assim ao abrigo da previsão da alínea b) do número um do art. 70º da LTC, com as devidas consequências no processo.
…
VII – Recurso de constitucionalidade: dos arts. 1.º al. f), e 358.º, do CPP, quando interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, não são substanciais, por violação do art. 32.º da CRP; do art. 358.º do CPP, na interpretação feita pelo tribunal subjacente ao tempo em que a decisão recorrida – de comunicação de alterações de facto – foi proferida, por violação dos arts. 20.º n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 18.º n.ºs 2 e 3, da CRP, e art. 6.º, n.ºs 1 e 3, al. a), da CEDH; da interpretação normativa conjugada dos arts. 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º do CPP, efetuada pelo Tribunal, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que considerada indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos, por violação dos arts. 205.º, n.º 1, e 32.º da CRP, e art. 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b), da CEDH; e ainda da interpretação dos arts. 340.º e 358.º do CPP, no sentido da invocação de falta de justificação para o indeferimento dos requerimentos de prova dos arguidos, por violação do art. 32º, n.º 1, da CRP
1. Na audiência de julgamento (sessão ocorrida no dia 23 de novembro de 2009) e na sequência de despacho do tribunal a comunicar eventuais alterações de factos e/ou qualificações jurídicas, em cumprimento ao disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, o recorrente arguiu a irregularidade do mesmo despacho, por falta de fundamentação, por manifesta extemporaneidade das alterações comunicadas e também porque se tratava de alterações substanciais dos factos constantes do despacho de pronúncia.
2. Em audiência de 18 de dezembro de 2009 (a fls. 63.918 a 63.959) o tribunal a quo proferiu despacho considerando que a alteração de factos comunicada ao arguido F. consiste numa alteração não substancial de factos, que as alterações comunicadas a todos os arguidos foram tempestivas, assim como julgou procedente a arguição de irregularidade apresentada pelo recorrente no que se refere à suficiência da fundamentação do despacho de comunicação de alterações, decidindo proceder à respetiva reparação (cf. fls. 63.918 a 63.959 dos autos).
3. Inconformado o recorrente interpôs recurso (cf. fls. 64.156 a 64.183) onde, expressando a sua indignação pela extemporaneidade injustificada da comunicação das alterações de factos, defendeu que a interpretação normativa conjugada dos art.ºs 358.º n.ºs 1 e art.º 1.º al. f) ambos do C.P.P. que comporte o entendimento de que é possível, ao seu abrigo, alterar os factos do despacho de pronúncia em prazo muito para além do razoável (ao fim de mais de cinco anos de julgamento, quase um ano depois de todas as alegações finais, réplica e resposta das defesas e quase quatro anos depois do fim das declarações do Assistente em causa) de forma tal que impeça o exercício efetivo dos direitos de defesa, é inconstitucional por manifestamente violadora do disposto nos art.ºs 32.º, n.º 1, 2 e 5, 20.º, n.º 4 e 18.º, n.ºs 2 e 3 da C.R.P., bem como ainda do disposto no art.º 6.º, nºs 1 e 3 al. a) da CEDH, e como tal do direito a um processo justo e equitativo, inconstitucionalidade que deve ser declarada.
4. O sentido interpretativo subjacente à aplicação da norma do art.º 358.º, n.º 1 do CPP a que procedeu o Tribunal a quo ao efetuar a comunicação de alteração não substancial de factos está ferido de inconstitucionalidade, por violação do disposto no art.º 32º n.ºs 1, 2, e 5 da CRP, ou seja, por violação dos princípios da máxima extensão dos direitos de defesa em processo penal (em conjugação com o art.º 18.º n.º 3 da CRP) e da presunção de inocência, do direito a um processo leal, equitativo e célere, da estrutura acusatória do processo penal e do contraditório (entendido este na sua única conformação constitucionalmente admissível, como princípio de conteúdo material e dotado de plena eficácia).
5. Suscitou ainda o recorrente a questão de a alteração de factos consistente na passagem de um local determinado, para um local indeterminado dentro de uma dada zona, se traduzir em inovação do quadro fáctico da pronúncia, configurando uma alteração substancial dos factos, ao abrigo do disposto no art. 359.º do CPP, por redundar num crime diverso.
6. Assim, as alterações referidas no despacho recorrido, ao virem substituir os factos da pronúncia por factos novos, que transformam o quadro factual descrito noutro manifestamente diferente no que respeita aos seus elementos integrantes, constituem verdadeiras alterações substanciais de factos, enquadráveis no regime previsto no art. 359.º do CPP, e não do art. 358.º, pois delas resulta a imputação de um facto diverso - cfr. o art. 1.º, al. f) do CPP. Das alterações decididas resulta, não a mera especificação dos factos descritos na pronúncia, mas uma inovação do quadro fáctico relativo às circunstâncias de lugar, com imputação de um crime diverso.
7. Também considerando as garantias de defesa, esta substituição de indiciação constitui alteração substancial dos factos. O recorrente preparou há cinco anos a sua defesa relativamente a um imputado crime num prédio e num tempo determinados. Não respeita, de modo algum, as suas garantias de defesa, ser restringido, decorridos cinco, anos à possibilidade duma defesa incidental, em tempo estritamente necessário, quando já não pode dispor de meios de prova a que teria acesso em 2004, pelo que a decisão é inválida, desta feita por violação do disposto nos artigos 358.º, n.º 1, 359.º e 1.º al. f) do CPP, que faz interpretação e aplicação destes preceitos em violação das garantias de defesa constitucionalmente consagradas nos art.ºs 32.º, n.º 1, 2 e 5, 20.º, n.º 4 e 18,º, n.ºs 2 e 3 da C.R.P., bem como ainda do disposto no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3 al. a) da CEDH.
8. Já na sessão de julgamento ocorrida em 26 de fevereiro de 2010, o Tribunal, na sequência do processado na anterior sessão de julgamento (de 11 de janeiro de 2010), veio a proferir novo despacho de acordo com o qual julgou improcedente a arguição de irregularidade apresentada pelos arguidos, entre os quais o recorrente, quanto à insuficiência de fundamentação do despacho de fls. 64097 a 64107, “Ponto II”, em que fez a comunicação de alteração não substancial de factos descritos na pronúncia, nos termos do art. 358.º do CPP – cf. fls. 65137 a 65144.
9. Nessa mesma sessão de julgamento, o Tribunal proferiu um segundo despacho, pronunciando-se sobre requerimentos de diligências de prova apresentados pelos arguidos na sequência das alterações comunicadas, nos termos do qual indeferiu, pelo menos em parte, as diligências de prova requeridas pelos arguidos, entre eles o recorrente - cf. fls. 65144 a 65225.
10. Inconformado com aquele despacho, o recorrente interpôs recurso (fls. 65.508 a 65.569) onde volta a suscitar a falta de fundamentação do despacho de comunicação de alteração, que entende elevar para um nível de indeterminação absolutamente insustentável o local de cometimento do imputado ilícito criminal e, consequentemente, o exercício do direito de defesa e sem que no despacho de comunicação de alterações o tenha deixado claro para o arguido, antes sugerindo um delimitação do local mais restrita do que aquela que afinal pode vir a considerar na decisão a proferir.
11. O decurso da audiência referido no artº 358.º do CPP como âmbito temporal da admissibilidade de alterações, tem que ser interpretado e aplicado em sintonia com o disposto nos artºs 360.º é 361.º do CPP, dos quais resulta que, na tramitação normal, finda a produção de prova, incluindo a sequente à comunicação de alterações, se seguem as alegações orais e a estas as últimas declarações do Arguido, sendo que a interrupção desta sequência na tramitação processual normal está admitida apenas em casos excecionais de produção de prova superveniente, conforme o n.º 4 do art.º 360º do CPP.
12. Sem a demonstração de tais excecionalidade e superveniência, a admissão de alterações após conclusão das alegações orais, embora consentida pela mera literalidade legal – “no decurso da audiência” -, constitui surpresa e irracionalidade processuais, violadoras da plenitude das garantias de defesa conferida pelo art.º 32º da CRP e do processo equitativo imposto pelo art.º 20.º, n.º 4 da CRP e pelo art.º 6.º da CEDH, o que deverá ser declarado.
13. Invocou ainda o recorrente entender que a decisão recorrida é inválida por violação do disposto nos arts. 358º n.º 1, 359.º e 1.º al. f) do CPP, pelo que ao considerar que as alterações comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar do crimes imputado é não substancial, a douta decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, os artºs 1º., al. f) e 358.º do CPP, disposições que, nessa interpretação normativa são inconstitucionais, por violarem as garantias de defesa conferidas pelo art.º 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP, inconstitucionalidade que se pretende seja declarada.
14. Na sequência da comunicada alteração de 23.11.09, 14.12.09 e 11.01.10 o Recorrente requereu as diligências de prova constantes do seu requerimento probatório junto a fls. 64.848 a 64.858, tendo o tribunal deferido o requerido no ponto II. b) - visionamento do DVD da deslocação do Tribunal à moradia identificada em 4.1.1. do Despacho de Pronúncia - e a inquirição de 10 (dez) testemunhas das indicadas no ponto III. do mesmo requerimento, devendo o arguido indicar em 5 (cinco) dias as testemunhas selecionadas, sob pena de se considerarem as dez primeiras, indeferindo o mais ali requerido.
15. A invocação da falta de justificação para o indeferimento de produção de meios de prova, requeridos na sequência de comunicação da alteração de factos descritos na pronúncia, bem como o indeferimento da produção da prova testemunhal indicada com fundamento na desnecessidade da mesma para uma defesa eficaz, é violadora do disposto nos art.ºs 340.º e 358.º do CPP, por erro de interpretação e aplicação, bem com as garantias de defesa asseguradas ao arguido por virtude do disposto no art.º 32º, n.ºs 1 e 5, da CRP e o disposto no art.º 6.º da CEDH.
16. O que consubstancia inequívoca violação do disposto no art.º 32.º n.ºs 1 e 5 da C.R.P., dos artºs 358.º n.º 1 e 340,º do C.R.P. e art.º 6.º da C.E.D.H., pelo que a interpretação dos preceitos que sustenta o despacho, violou, de forma grave, o direito do arguido à sua defesa, tal como é configurado pelo art. 32º nº 1 da CRP e pelo art. 6º da C.E.D.H.
17. A interpretação normativa conjugada dos art.ºs 97.º, n.º 5, 358.º e 359º do C.P.P. efetuada pelo Tribunal a quo, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que considera indiciados e com remissão para toda a prova produzida nos autos, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação das decisões e das garantias de defesa do arguido consagrados nos art.ºs 205.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP e art.º 6.º da C.E.D.H.
18. No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23-02-2012, conhecendo de todas as invocadas inconstitucionalidades de normas e interpretações, decidiu-se pela conformidade à Constituição, de todas sem exceção (fls. 73.808 a 74.181), pelo que o recorrente continuando a perfilhar os entendimentos expressos supra quanto às invocadas inconstitucionalidades, pretende assim interpor competente recurso, o que faz ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, devendo, com as devidas consequências processuais, ser:
a) Declarada a inconstitucionalidade dos arts. 1.º al. f), e 358.º do CPP, quando interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, são não substanciais, por violação do art. 32.º da CRP;
b) Declarada a inconstitucionalidade do art. 358.º do CPP, na interpretação feita pelo tribunal subjacente ao tempo em que a decisão recorrida – de comunicação de alterações de facto – foi proferida, por violação dos arts. 20.º n.º 4, 32.º n.ºs 1, 2 e 5, e 18.º n.ºs 2 e 3, da CRP, e art. 6.º n.ºs 1 e 3, al. a), da CEDH;
c) Declarada a inconstitucionalidade da interpretação normativa conjugada dos arts. 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º do CPP, efetuada pelo Tribunal, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que considerada indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos, por violação dos arts. 205.º, n.º 1, e 32.º da CRP, e art. 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b), da CEDH;
d) Declarada a inconstitucionalidade da interpretação dos arts. 340.º e 358.º do CPP, no sentido da invocação de falta de justificação para o indeferimento dos requerimentos de prova dos arguidos, por violação do art. 32º, n.º 1, da CRP
…
VIII – Recurso de constitucionalidade dos artigos 48º, 49º n.º 1 do C.P.P. e artigos 113º e n.º 1 do 115º, 178º todos do Código Penal na interpretação que foi efetuada pelo tribunal por violar o art. 29º e 203º da CRP.
1. No seu articulado de contestação à acusação, sustentou o recorrente (fls. 24.392 a 24.394 ponto 1.2.) a exceção de ilegitimidade/extemporaneidade quanto à apresentação do direito de queixa pelo assistente B., tendo o acórdão de primeira instância julgado a mesma improcedente, e por conseguinte, reconhecida a legitimidade para a ação penal pelo Ministério Público, nos termos em que esta ocorreu bem com a extemporaneidade da apresentação da queixa.
2. Esta decisão fundamentou-se no normativo contido no art. 178º nº 1 e 4 do Código Penal (red. da Lei nº 99/2001, de 25 de agosto) interpretado no sentido de a intervenção do Ministério Publico poder ocorrer – substituindo-se aos titulares dos direitos de queixa, desde que devida e suficientemente justificada, o que este fez no seu despacho de fls. 13.552 a 13.554, de 29/12/2003, onde invoca as razões para a sua intervenção ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 178º, ou seja, que o interesse da vitima – “... assistente que não sendo uma criança de rua estava institucionalizado na Casa Pia de Lisboa, (...)” impunha a sua intervenção.
3. Contudo ao aplicar os artigos 48º, 49º, n.º 1 do C.P.P. e artigos 113º e n.º 1 do 115º, 178º todos do Código Penal, nos termos em que o fez, a decisão fez uma interpretação destes normativos desconforme ao princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, contido no art. 29º da CRP, e bem assim violando frontalmente o princípio da legalidade a que devem obedecer todas as decisões judiciais, por força do imperativo constitucional consagrado no artigo 203º da Lei Fundamental, estando, por esta razão, ferido de inconstitucionalidade.
4. Já no acórdão do tribunal da Relação de Lisboa (de fls. 76.228 a 76.253) veio a ser confirmado o despacho do tribunal a quo, julgando a interpretação efetuada conforme à constituição, pelo que o recorrente vem ao abrigo do disposto na alínea b) do art. 70º da LTC interpor o presente recurso de constitucionalidade com vista a que seja declarada a inconstitucionalidade dos art. 48º, 49º, n.º 1 do C.P.P. e artigos 113º e n.º 1 do 115º, 178º todos do Código Penal na interpretação que foi efetuada pelo tribunal por violar os art. 29º e 203º da CRP, com as devidas consequências processuais.
…
IX – Recurso de constitucionalidade dos artigos 147º do C.P.Penal conjugada com o disposto nos art. 125º e 127º do C.P.Penal, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, das garantias de defesa, de presunção de inocência e ainda o principio do contraditório consagrados no art. 32º nº 1, 2, 5 e 8 da C.R.P
1. Logo em sede de contestação apresentada à acusação (fls. 24.388 a 24.440 dos autos principais) suscitou o recorrente a questão de inexistência e invalidade do seu reconhecimento nos presentes autos) tendo o Tribunal a quo, por despacho de fls. 27.567, Ponto 10. 1. d)” relegado o conhecimento dessa questão para a sentença final.
2. Apesar de o poder ter feito) o tribunal a quo não tomou conhecimento dessa questão na sentença, sem prejuízo de no decurso da produção de prova, os assistentes terem sido confrontados com o álbum fotográfico (Apenso AJ), amplamente questionados sobre a forma e o momento como procederam à identificação ou reconhecimento do recorrente.
3. Em sede de recurso interposto do acórdão final em 05.11.2010, o recorrente alegou que a interpretação do art. 147º do C.P.Penal conjugada com o disposto nos art. 125º e 127º do C.P.Penal, de forma a permitir que possa valer como identificação de alguém de quem não se conhece quaisquer características físicas e apenas pelo automóvel que possui, a mera indicação sobre uma fotografia que é coletiva (a do recorrente era a única do álbum constante do apenso AJ) e que contém retratada além de um rapaz ex-casapiano, um ator português muito conhecido, sem a necessidade de efetuar as operações de reconhecimento previstas no art. 147º do C. P. Penal, viola a constituição, designadamente os princípios constitucionais da legalidade, das garantias de defesa, de presunção de inocência e ainda o principio do contraditório consagrados no art. 32º nº 1, 2, 5 e 8 da C.R.P.
4. No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação (a fls. 76.254 a 76.256) este, surpreendentemente, limitou-se a considerar que o tribunal a quo não havia omitido a análise desta questão, porque lhe fez referência na página 48 (fls. 66.461) – que como se pode constatar é a relegar precisamente para a sentença o conhecimento da questão, e a dizer que inexistem nos autos quaisquer “autos de reconhecimento fotográficos”.
5. Sendo certo que o Apenso AJ que tanto quanto se pode saber, faz parte dos presentes autos, tem como título «Dossier contendo fotografias com as respetivas identificações de indivíduos para reconhecimento” e por conteúdo 126 fotografias de homens e uma fotografia de conjunto, onde está o recorrente mais à direita, todas numeradas e a correspondente listagem dos respetivos nomes e onde foram obtidas, será adequado a ser referido como álbum fotográfico ou autos de reconhecimento fotográfico.
6. Termos em que o recorrente pretende ver declarada a interpretação do art. 147º do C.P.Penal conjugada com o disposto nos art. 125º e 127º do C.P.Penal, de forma a permitir que possa valer como identificação de alguém de quem não se conhece quaisquer características físicas e apenas pelo automóvel que possui, a mera indicação sobre uma fotografia que é coletiva (a do recorrente era a única do álbuns constante do apenso AJ) e que contém retratada além de um rapaz ex-casapiano, um ator português muito conhecido, sem a necessidade de efetuar as operações de reconhecimento previstas no art. 147º do C. P. Penal, violadora dos princípios constitucionais da legalidade, das garantias de defesa, de presunção de inocência e ainda o principio do contraditório consagrados no art. 32º nº 1, 2, 5 e 8 da C.R.P, para o que interpõe o presente recurso ao abrigo do disposto da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, que deverá ser declarada com as inerentes consequências no processo.
…
X – Recurso de constitucionalidade do artigo 127º do C.P.Penal por violação do art. 32º nºs 1, 2 e 5 da CRP
1. Ao longo do recurso que interpôs da decisão final condenatória, acusou o recorrente, não ter o tribunal a quo procedido à imparcial e objetiva avaliação e valoração da prova que se tivesse contido dentro dos limites do art. 127º do C.P.Penal, contrariando em diversas situações que foram devidamente individualizadas, as regras da experiência comum, e descurando o grau de exigência de certeza necessária, que respeitasse a presunção da inocência do arguido e o princípio do in dubio pro réu, visto que se o tivesse feito, a decisão dos factos teria que ser a de dar como não provados todos os factos indiciários.
2. O tribunal de primeira instância, no acórdão final retirou ainda conclusões não consentidas pelo princípio da livre apreciação da prova – art. 127º C.P.Penal, tendo dessa forma violado a constituição por violação do princípio da inocência – nomeadamente os artigos 32º, nº. 2 da CRP e o artigo 6º nº 2 do CEDH.
3. E já no acórdão da relação que apreciou aquele recurso, foi dada prevalência ao princípio da imediação sobre os demais princípios processuais penais, tendo para este tribunal considerado que a convicção do tribunal a quo obedece ao principio da livre apreciação da prova.
4. Considerando que a livre apreciação da prova tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, não se confundindo com meras impressões geradas no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, nem por ressonâncias da verdade, entende o recorrente ter sido feita uma interpretação do art. 127º do C.R.P. que viola os indicados princípios contidos no art. 32º nºs 1, 2 e 5 da CRP, para o que interpõe o presente recurso ao abrigo do disposto da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, que deverá ser declarada com as inerentes consequências no processo.”
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“PONTO II
Recurso de constitucionalidade dos artigos 33º, n.º 1, 14º, 17º, 268º e 269º todos do Código Processo Penal, por violarem os art.º 28º, 32º, n.º 1, 2 e 5, 205º e 211º, n.ºs 1 e 2 todos da Constituição da República Portuguesa.
[…]
B) Conclusões:
a) Através do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância em 13/12/2004 – de fls. 25.475 a fls. 25.488 dos autos principais, foram validados os atos jurisdicionais praticados pelo Juiz de Instrução Criminal do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, tendo-se considerado aquele tribunal (a 8ª vara) competente para cumprir o Acórdão proferido em 17/03/2004 pelo Tribunal da Relação de Lisboa - nos termos do qual se declarou a nulidade do despacho proferido em 07/01/2003 (a fls. 270) e ordenou a remessa ao Tribunal competente para validação ou invalidação dos atos praticados pelo Tribunal incompetente e de todos os que por aqueles se encontrem afetados -, e validou todos os atos praticados pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente.
b) Esta decisão teve por fundamento o entendimento normativo dos artigos 33º, n.º 1, 14º, 17º, 268º e 269º todos do Código Processo Penal, que veio a ser mantido pelo tribunal da Relação de Lisboa no acórdão da decisão final (cf. fls. 73.412 a 73.507), entendimento normativo que afronta a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os art.ºs 28º, 32º, n.º 1, 2 e 5, 205º e 211º, n.ºs 1 e 2.
c) Não está na livre disposição do julgador a definição do Tribunal competente para resolver as questões decorrentes da incompetência de um tribunal ou a alteração por decisão judicial, da regras de competência definidas pelo legislador.
d) O tribunal de recurso ao remeter para o Tribunal competente, só pode ser interpretado no sentido de remeter os autos para o Tribunal material e funcionalmente competente, uma vez que as regras da competência dos tribunais estão definidas por Lei e, como tal, subtraídas à livre decisão do julgador.
e) No caso de declaração de incompetência, o Tribunal que declara a incompetência, ao ordenar a remessa do processo para o tribunal competente, fá-lo necessariamente com o sentido do tribunal competente determinar quais os atos que são inválidos, e bem assim ordenar a repetição dos atos necessários para conhecer do mérito da causa.
f) O art.º 33º, n.º 1 do Código Processo Penal, determina que seja o Tribunal competente a declarar quais os atos nulos e ordenar a repetição dos atos necessários para conhecer da causa, sendo o Tribunal competente para anular os atos praticados pelo Tribunal incompetente, aquele que deveria ter assumido o poder decisório do processo, sendo outra interpretação inconstitucional.
g) A lei processual penal não elenca as espécies de competência, mas acolhe-as implicitamente no art.º 32º, n.º 1 e 2 do Código Processo Penal, ao prevenir regime excecional para a incompetência territorial.
h) Não distinguindo a lei, deverá entender-se que os diferentes números e alíneas dos art.s 11 a 18º do Código de Processo Penal delimitam, simultaneamente, a competência material e funcional dos respetivos tribunais.
i) Pelo que compete aos Tribunais de Instrução Criminal e ao Juiz de Instrução Criminal a competência funcional para proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito (cf. art.º 79º, n.º 1 da Lei de Organização e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais e art.s 17º, 268º e 269º do Código de Processo Penal) e às Varas Criminais compete proferir despacho nos termos dos art.s 311º a 313º do Código Processo Penal e proceder ao julgamento e termos subsequentes nos processos de natureza criminal e de competência do tribunal coletivo ou de júri (art.s 98º, 106º, n.º 1 da LOFTJ e art.º 14º do Código de Processo Penal).
j) Na sequência da declaração de nulidade há que proceder à apreciação de todos os atos que resultam de decisões proferidas subsequentes ao despacho declarado ferido de nulidade insanável, sendo que tais decisões e atos deles decorrentes inserem-se no âmbito da competência funcional do Juiz de Instrução Criminal, a qual decorre do estatuído nos art.s 17º, 268º e 269º do Código de Processo Penal e art.s/ 79º, n.º 1 e 64º, n.ºs 1 e 2 da LOFTJ.
k) A competência funcional de um tribunal encontra-se definida na lei e não recai na esfera de poderes jurisdicionais o poder de alterar, por via decisória, matéria de competência funcional e tão pouco com apoio ou fundamento no princípio da economia processual.
1) A interpretação normativa dos referidos preceitos invade a esfera funcional do Tribunal de Instrução Criminal, usurpando as competências que estão legalmente e por imperativo constitucional atribuídas ao Juiz de Instrução Criminal durante a fase de inquérito.
m) Estando esta determinação afastada do poder do Tribunal, não faz sentido legal debater critérios de economia processual, de celeridade ou qualquer outro valor adjetivo, pois o princípio fundamental, o da legalidade, encontra-se violado.
n) Pelo que a discussão em torno do sentido de “... Tribunal atualmente competente...” não faz sentido algum, sendo mesmo irrelevante, pois o Tribunal que declara a nulidade, no âmbito desta problemática, só podia ordenar a remessa para o tribunal cuja competência está prevista na lei.
o) Não sendo legítimo retirar da expressão “... Tribunal atualmente competente...” outro sentido interpretativo que não, o de que, tal tribunal sempre seria o Tribunal de Instrução Criminal, por ser aquele que detinha a competência material e funcional para dar cumprimento ao ali determinado.
p) A interpretação efetuada dos art.s 33º, n.º 1, 11º a 17º, 268º, 269º, 311º e 313º, todos do Código de Processo Penal, bem como o estipulado nos art.s 79º, n.º 1, 64º, nºs 1 e 2, 98º, 106º, n.º 1, todos da LOFTJ aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro e republicada pela Lei n.º 105/2003, de 10 de dezembro, que permitiu ao Tribunal de Primeira instância declarar-se competente para a validação de atos da competência funcional do Juiz de Instrução Criminal, é inconstitucional, por violar o sentido do art.º 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, no qual está consagrado o princípio da estrutura acusatória do processo criminal.
q) Aquele princípio exige que se diferencie entre o órgão que investiga e/ou acusa e o órgão que julga, tratando-se de uma garantia essencial de julgamento independente e imparcial, traduzível, no plano material, na distinção entre instrução, acusação e julgamento, e significativa, no plano subjetivo, de diferenciação entre juiz de instrução e juiz julgador, e entre estes e o órgão acusador.
r) A atribuição ao tribunal de julgamento da competência para validação ou invalidação de atos jurisdicionais para os quais é funcionalmente competente o tribunal de instrução criminal, traduz-se necessariamente numa violação expressa da delimitação funcional dos diversos tribunais criminais e, por consequência, de estrutura acusatória do processo penal português consagrado no art.º 32º, n.º 5 da Lei Fundamental.
s) A interpretação dos normativos citados, tal como assumida no despacho em crise, implica uma reformulação não autorizada do princípio de estrutura acusatória do processo criminal vigente, violando a norma constitucional do art.º 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
t) A apreciação e decisão sobre a validade ou invalidade de atos praticados por Juiz do Tribunal de Instrução Criminal em fase de inquérito sobre decisões que se prendem com direitos e garantias fundamentais do arguido, constitucionalmente consagradas, não podem ser postergadas em nome do principio da economia processual.
u) A suceder viola regras de competência funcional - art.s. 14º, 17.º, 33.º, n.º 1, 268.º, 269.º, 311º e 313º, todos do Código de Processo Penal e art.s, 64º, n.ºs 1 e 2, 79º, n.º 1, 98º e 106º n.º 1 da LOFTJ - e o princípio consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
v) A interpretação normativa efetuada das regras de competência funcional supra citadas designadamente dos art.s 14º, 17º, 33º nº 1, 268º, 269º, 311º e 313º, todos do Código de Processo Penal, e do disposto nos art.s 64º, n.ºs 1 e 2, 79º, n.º 1, 98º e 106º n.º 1 da LOTJF, reconhecendo ao tribunal de julgamento, por via dessa interpretação, competência para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos jurisdicionais praticados em fase de inquérito pelo Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, é inconstitucional, por violadora da estrutura acusatória do processo penal e da norma constitucional que o consagra, art.º 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, a qual deve ser declarada.
w) O sentido interpretativo subjacente à aplicação daquelas mesmas normas que confira competência ao Tribunal de julgamento para cumprir Acórdão proferido por tribunal em recurso sobre atos da competência do Juiz de Instrução Criminal, extravasa e anula a delimitação da competência funcional dos tribunais criminais contidas naquelas normas, sendo por conseguinte inconstitucional por violação do art.º 211º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, a qual deve ser declarada.
x) Nestes termos, a interpretação efetuada dos normativos dos art.s. 33º, nº 1, 14º. 17º, 268º, 269º, 311º e 313º todos do Código de Processo Penal, e art.s 64º, n.ºs 1 e 2, 79º, n.º 1, 98º e 106 n.º 1, é ofensiva da norma do art. 211º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, como tal devendo ser declarada com as devidas consequências.
z) Sem prescindir, importa ainda atentar que a avaliação imposta pelos art.s 33º, nº 1 e 3, e 122º, ambos do Código de Processo Penal, dos atos praticados pelo tribunal incompetente não é uma avaliação formal ou finalística, temperada peio princípio de máximo aproveitamento ou da economia processual, mas uma avaliação material tutelada por um juízo de projeção decisória, como se perante o Tribunal que avalia a validade dos atos, tivesse decorrido o processo.
ac) Os normativos conjugados dos art.s 33º, n.º 1, e 122º, ambos do Código de Processo Penal, exigem que se verifiquem todas as consequências da nulidade do ato declarada, se analisem as repercussões dessa nulidade no processo, o que determina uma avaliação substancial do universo decisório consequente.
ad) Assim, o sentido interpretativo das normas dos art.s 33º, n.ºs 1 e 3 e 122º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal, efetuado no sentido de que, nesta fase, não cabe efetuar a reapreciação substancial dos atos, mas apenas aferir do cumprimento dos pressupostos legais que, por uma questão de economia processual ou por falta de competência funcional do Tribunal de julgamento, é inconstitucional por ofensiva dos arts 28º, n.º 1 e 32º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, a qual deve ser declarada.
…
PONTO III
Recurso de constitucionalidade dos artigos 346º n.º 1 e 347º nº 1 ambos do Código de Processo Penal, por violação do art.º 32º n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
[…]
B) Conclusões:
a) Na audiência de julgamento que teve lugar em 14 de março de 2005 (fls. 28.916 ponto 2. a 28.927), suscitou o Recorrente a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 346º nº 1 e artº 347º nº 1 do Código de Processo Penal quando interpretadas no sentido de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis, é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo e que a ordem definida para a realização das instâncias é imperativa, por violação do disposto nos números 1, 2 e 5 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
b) Por despacho de 17/03/2005 (cf. fls. 28.916 a 28.927) que conheceu da exceção da fiscalização concreta da constitucionalidade dos referidos art. 346º nº 1 e 347º do Código de Processo Penal, declarou o tribunal de primeira instância a interpretação efetuada dos artigos em causa, conforme à Constituição, entendendo assim que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis, é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, caso o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão estes solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis.
c) Tal despacho declarou igualmente a conformidade com a Constituição da República interpretação efetuada sobre a imperatividade da ordem definida para a realização das instâncias, pelo que, o defensor do arguido formulará o seu pedido de questão ao Presidente, depois do Ministério Público, mas antes do mandatário dos assistentes e dos demandantes cíveis.
d) Esta interpretação dos artigos 346º nº 1 e 347º do Código de Processo Penal bem como a sua conformidade com os preceitos e princípios constitucionais foi mantida pela Relação de Lisboa, (fls. 73.507 a 73.547) decidindo não se verificar qualquer violação do pleno exercício dos direitos de defesa, nem padecerem de inconstitucionalidade, à luz do disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do art. 32.º da Constituição e dos princípios fundamentais subjacentes a este dispositivo, as normas do processo penal em causa - art.s. 346.º, n.º 1, e 347.º n.º 1, do Código de Processo Penal com a interpretação efetuada.
e) No entanto, tal interpretação dos normativos ao impedir o interrogatório direto da(s) defesa(s) e ao impôr uma sequência imperativa na formulação dos pedidos de esclarecimento aos assistentes e às partes civis - primeiramente o Ministério Público, de seguida o defensor e, por último, os advogados das partes civis e dos assistentes ou vice-versa, consoante os casos, restringe de forma inaceitável as garantias de defesa dos arguidos, comprometendo as garantias de espontaneidade e da imediação próprias de um contrainterrogatório, violando, muito em particular, os princípios constitucionais do contraditório e da presunção da inocência.
f) Aos assistentes poucas ou quase nenhumas situações encontram de entrar em contradição com o que já haviam dito anteriormente.
g) As garantias de defesa do arguido, maxime, o direito de contra interrogar e contraditar diretamente toda a prova incriminatória que seja produzida na audiência de julgamento - fora as exceções dos art.s 349º e 350º do Código de Processo Penal -, não se mantêm intactas se as normas em crise impuserem que todo o interrogatório do assistente e das partes civis, nomeadamente, do demandante cível, seja realizado por intermédio do presidente do Tribunal.
h) A aplicação do regime resultante da interpretação normativa impugnada prejudica a espontaneidade do depoimento, retirando-lhe conteúdo emocional, ou seja, tudo aquilo que permite, em sede de audiência de julgamento, aceder à humanidade da prova e, consequentemente, à possibilidade de valoração.
i) Não se pode fazer uma interpretação meramente literal das normas citadas, visto que como decorre do nº 1 do art. 9º do Código Civil, “... a interpretação não se deve cingir à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”, do qual faz parte e se sobrepõe às regras processuais penais, as normas e princípios constitucionais, donde se destaca o disposto no art. 32º n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, resíduo nuclear das garantias de defesa do arguido, onde se inscreve o direito de exercer plenamente o contrainterrogatório de toda a prova oral produzida em audiência de julgamento.
j) O regime definido nos artigos em causa para as declarações do assistente e das partes civis foi consagrado, essencialmente por o legislador considerar que tais sujeitos processuais iriam formular, durante tais declarações, uma mera repetição das pretensões subjacentes à sua posição, visto que têm um interesse no resultado da ação oposto ao do arguido, não constituindo tais declarações forma probatória com a relevância de uma testemunha (que é por essência parte sem interesse na causa), de documentos autênticos, de apreensões, vigilâncias e outros meios de prova.
k) Independentemente do atual estatuto do assistente, a verdade é que não há equiparação possível entre a tutela do estatuto processual do arguido, e a tutela do estatuto processual do assistente, detentores de interesses opostos e contrapostos, com tutelas constitucionais distintas.
1) As normas do art.º 346º, n.º 1 e art.º 347º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal., não foram previstas para uma realidade complexa, mas para uma situação simples e mecânica, em que todo o processo se preenche de prova distinta e diferenciada, prova testemunhal, documental, apreensões e buscas, vigilâncias, reconhecimentos e não fundamentalmente nas declarações dos queixosos/assistentes.
m) O sentido expresso sobre estas normas não está conforme com os princípios constitucionais do contraditório pleno e da presunção de inocência, consagrados no âmbito dos direitos e garantias do arguido, previstos no art.º 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação normativa dos art.s 346º, n.º 1 e 347º n.º 1, ambos do Código de Processo Penal efetuada na decisão recorrida é inconstitucional por violação direta daqueles preceitos constitucionais, o que deve ser declarado por este Douto Tribunal.
n) Relativamente à segunda questão de inconstitucionalidade suscitada esta resulta do facto de, tanto o tribunal de 1ª instância como o tribunal de recurso terem entendido que a ordem definida para a realização das instâncias é imperativa, exaustiva e taxativa, pelo que, o defensor do arguido formulará o seu pedido de questão ao Presidente, depois do Ministério Público, mas antes do mandatário dos assistentes e dos demandantes cíveis e, por outro, que a possibilidade do defensor pedir esclarecimentos por último (ou, aliás, qualquer outro sujeito processual) não invalida o exercício do contraditório, princípio constitucionalmente consagrado.
o) A dita imperatividade e exaustão da indicação da ordem nos referidos normativos não decorre de qualquer elemento literal constitutivo das normas nem do sistema normativo.
p) Esta ordem não reflete a natureza “tripartida” ou “tripolar” (por contraposição à bipolar) do processo penal - Ministério Público-arguido-vitima, sendo tal entendimento desconforme com os princípios e garantias constitucionais do contraditório e da presunção da inocência.
q) A apresentação da ordem nas normas referidas, é uma mera transposição para aquelas normas, da sistematização do próprio Código de Processo Penal relativamente aos sujeitos do processo, limitando-se o legislador nos artigos supramencionados a transpor a ordem pela qual descrevera os sujeitos processuais, não pretendendo com tal transposição definir taxativa e imperativamente a ordem a que os interrogatórios referidos em tais normas deviam obedecer.
r) Só este entendimento é consentâneo com os princípios constitucionais consagrados no âmbito dos direitos e garantias do arguido, e com os valores do processo penal.
s) O entendimento normativo adotado do art. 347º nº 1 do Código de Processo Penal pelas instâncias recorridas, poderia com facilidade conduzir a situações bizarras e estranhas à própria dinâmica processual civilística, como a seguinte: o princípio da adesão previsto no art. 71º do Código de Processo Penal impõe a dedução no processo penal de pedido de indemnização cível fundado no crime respetivo, funcionando este pedido como uma ação civil enxertada no procedimento criminal. Segundo a interpretação impugnada, o demandante cível será instado primeiro pelo defensor e só depois pelo seu próprio advogado, ou seja, primeiro o defensor contestava as declarações do demandante e, depois, o advogado deste concederia ao seu constituinte a possibilidade de reafirmar a matéria contestada, reformulá-la, repô-la.
t) Como garantia de defesa, o princípio do contraditório tem, entre outras consequências, a de impor que o arguido, através do seu defensor, reanalise, reformule, reveja, contradiga e contradite toda a prova produzida em audiência, determinando que a sua instância a testemunhas maiores ou menores de 16 anos por si não apresentadas, ao assistente e ao demandante cível devam realizar-se em último lugar.
u) A interpretação normativa impugnada viola insanavelmente os princípios do contraditório como garantia de defesa, e da presunção da inocência, consagrados no art.º 32º, n.ºs 1 e 2 e 5 da Constituição da República.
v) Só figurando o defensor em último lugar na ordem de avaliação ou instância da prova é que o contraditório é plenamente realizado e o princípio da presunção da inocência salvaguardado e garantido.
w) Foi esta a realidade desejada pelo legislador, que aliás tem várias ressonâncias no processo penal, a saber, entre outras, a ordem de produção da prova prescrita no artº 341º do Código de Processo Penal e o direito do arguido prestar declarações após a realização das alegações, como decorre do art.º 361º, n.º 1, daquele diploma.
x) Por outro lado, a imposição de figuração do defensor em último lugar na inquirição a testemunhas maiores ou menores de 16 anos por si não apresentadas, ao assistente e ao demandante cível, decorre do princípio da presunção da inocência.
y) Presumindo-se, sempre, o arguido inocente até trânsito em julgado de decisão condenatória por força do art. 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, só a instância do seu defensor em último lugar permite que determinada prova, no presente caso, aquela decorrente das declarações do assistente (e do demandante cível), possa ser avaliada em toda a sua plenitude incriminatória.
z) Não sendo assim, o arguido é colocado em clara desvantagem processual, pois não pode na sua instância gozar de todo o seu conhecimento sobre a realidade do processo, por saber que, em seguida, o advogado do assistente irá reconstituir ou reparar os danos provocados na sua instância.
aa) A possibilidade de o arguido (ou outro sujeito processual) poder formular pedidos de esclarecimento suplementares – cuja ordem seria naturalmente a mesma não representa uma qualquer “válvula de segurança que o tribunal deva usar quando isso for relevante para a boa decisão da causa e para a descoberta da verdade”.
ab) A única interpretação dos artºs 346º e 347º do Código de Processo Penal em harmonia com os princípios e valores constitucionais referidos, com o sistema e espírito do processo penal, é a de considerar que a ordem a adotar na instância do assistente deve ser a seguinte: primeiro o Ministério Público, advogado do assistente e, finalmente, defensor.
ac) Termos em que se defende a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos normativos dos art.s 346º, n.º 1 e 347º, n.º 1 ambos do Código de Processo Penal, no sentido em que foi aplicada, e consequentemente, revogada a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância e confirmada pela instância de recurso, e aplicando o sentido alegado pelo recorrente, por ser a única adequada e harmoniosa com o sistema jurídico penal português não ofendendo a Constituição.
…
PONTO VI
Recurso de constitucionalidade dos artigos 356.º n.ºs 2, al. b) e 5 e 355.º n.º 1 todos do Código de Processo Penal, por violação dos artigos art.º 32.º n.ºs 1 e 5, 18.º e 204º da Constituição da República Portuguesa, bem como o disposto no art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, e o princípio do processo justo e equitativo salvaguardado pelo art.º 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa
[…]
B) Conclusões:
a) Versa este recurso sobre o entendimento normativo conjugado do disposto nos art.s 356.º n.ºs 2, al. b) e 5 e 355.º, n. 1, ambos do C.P.P., no sentido de que, não tendo expressamente os assistentes dado o seu consentimento à leitura de declarações de assistentes e testemunhas o que incriminam os arguidos - por estes requerida para avaliar cabalmente a credibilidade da sua prestação em audiência de julgamento, substancialmente diferentes das prestadas em inquérito, não ser possível a leitura daquelas declarações, por ser inconstitucional por violação do reduto nuclear das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32.º n.ºs 1 e 5, 18.º e 204º da C.R.P. bem como o disposto nos art.º 18.º da CRP, e o princípio do processo justo e equitativo salvaguardado pelo artº 20.º n.º 4 da C.R.P. e pelo artº 6.º da C.E.D.H..
b) Na audiência de julgamento de dia 22 de outubro de 2008 (de fls. 60.474 a 60.490, Ponto II dos autos) o tribunal de 1ª instância indeferiu o requerimento do Recorrente, de leitura de declarações prestadas no inquérito pelos assistentes ali melhor identificados, que havia sido apresentado e fundamentando ao abrigo do disposto no art.º 340º, do C. P. Penal, interpretado em consonância com o art. 6º, nº 1, da CEDH.
c) O Tribunal da Relação de Lisboa, apreciando o recurso interposto deste despacho que sustenta o entendimento normativo que reputamos inconstitucional, perfilhou e acolheu ipsis verbis o mesmo entendimento normativo do tribunal de 1ª instância (fls. 73.784 e seguintes) de que o art. 356º nº 2 e 5 e 355º, n.º 1 ambos do Código de Processo Penal, em caso algum permite a leitura das declarações dos assistentes e das testemunhas prestadas em inquérito se estes não o consentirem.
d) Assim, segundo o entendimento normativo aplicado, basta a não autorização dos assistentes e do Ministério Público para impedir a leitura em audiência das declarações prestadas por esses mesmos assistentes e testemunhas em fase de inquérito, ainda que requerido por um arguido sem oposição dos demais arguidos.
e) O regime do art.º 356º do C.P.P. constitui necessariamente uma garantia de defesa do arguido, o que não é reconhecido no aplicado entendimento normativo, ao entender que a recusa expressa dos assistentes nas leituras, impede que estas ocorram, por força do disposto no artº 356º n.ºs 2 e 5, devidamente conjugado com o art.º 355º n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
f) O Art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa confere aos cidadãos a garantia, que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso, fórmula que não se pode traduzir numa norma meramente programática, significando antes, que há de ser perante as circunstâncias concretas de cada caso, que se hão de estabelecer os concretos direitos da defesa, no quadro dos princípios estabelecidos por lei.
g) É entendimento consensual na Doutrina e Jurisprudência Constitucional, que todas as garantias de defesa englobam indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação, tendo o art. 32º nº 1 da Constituição da República um eminente conteúdo normativo imediato, a que se pode recorrer diretamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos de lei ordinária.
h) O principio do contraditório tem acolhimento constitucional no nº 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, ao enunciar a sujeição da audiência de julgamento e dos atos instrutórios ao principio do contraditório, condicionando assim a legislação processual penal no sentido de o assegurar, sob pena de inconstitucionalidade quando assim não suceda.
i) Como é indiscutivelmente aceite, em julgamento, o contraditório é concretizado e assegurado pelo art. 327º do Código de Processo Penal, sendo a manifestação mais visível deste principio, a garantia resultante do art. 355º do Código de Processo Penal que impõe que todas as provas que não tenham sido produzidas em julgamento, não possam valer para a formação da convicção do tribunal, com as exceções previstas no número dois desse artigo, que para aqui não relevam.
j) Em processo de natureza criminal, a subordinação ao princípio do contraditório é estabelecida essencialmente em consideração do arguido, de modo a não poderem ser usadas contra ele provas que não pôde sindicar com o patrocínio de defensor, essencialidade essa que será, em regra, exclusividade.
k) Poderá considerar-se que também o Ministério Público e os assistentes são titulares do direito ao contraditório, mas o seu exercício, se impeditivo do exercício de todas as garantias de defesa do arguido, tem que respeitar os limites do art.º 18.º da Constituição, com consideração dos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação.
1) Estabelece o art.º 18º da Constituição da República Portuguesa que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente ali previstos, devendo tais restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e estabelecendo ainda que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos Constitucionais.
m) Em razão do que, por imperativo constitucional, todas as normas processuais têm que ser interpretadas de modo que as restrições ao exercício de todas as garantias de defesa respeitem os limites constitucionais, ainda que com interpretação restritiva ou extensiva, desde que necessárias e adequadas para assegurar que não sejam ultrapassados os limites constitucionais, sob pena de acarretar necessariamente a inconstitucionalidade das normas interpretadas e a sua inaplicabilidade pelos tribunais de acordo com o art.º 204.º da Lei Fundamental.
n) O entendimento normativo dos preceitos em causa e a sua aplicação, ao deixar ao arbítrio sistemático e infundamentado do Ministério Público e dos assistentes obstar à produção de meios complementares de prova que os arguidos, únicos titulares das garantias de defesa, considerem pertinentes e necessários viola frontalmente as garantias de defesa do arguido.
o) Por sua vez o princípio da oralidade implica que a forma da decisão a ser obtida deva ser a mesma proferida com base em audiência de discussão oral da matéria a considerar, e o princípio da imediação implica que a forma da decisão a ser obtida pressupõe uma relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de tal forma que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
p) Ora, com a leitura em audiência, das declarações prestadas em inquérito ambos os princípios se encontram salvaguardados, pois, durante o julgamento, a leitura dessas declarações é feita perante o tribunal.
q) A leitura em audiência das declarações prestadas anteriormente pelas testemunhas/assistentes permite – efetivamente, que sobre as mesmas se exerça o contraditório, garante a discussão oral sobre o seu teor, estando por força do disposto no art. 355º nº 1 do Código de Processo Penal, o Tribunal impedido de as valorar sem a sua renovação na audiência e tão pouco o arguido impossibilitado de descredibilizar o que é dito, por confronto com o que foi dito anteriormente.
r) Também na medida em que a leitura das declarações em nada pode interferir com a espontaneidade das declarações prestadas em sede de julgamento, uma vez esta leitura ocorrerá necessariamente em momento subsequente aos depoimentos dos assistentes e testemunhas em audiência de julgamento.
s) A admitir-se que prejudicava a espontaneidade das declarações, também não faria sentido consagrar-se a possibilidade de haver leitura por consenso das partes.
t) Sendo lidas em audiência as declarações e depoimentos prestados em inquérito, e subsequentemente, caso assim se entenda, sejam objeto de confronto com as prestadas em audiência, tal ato não só não interfere com a referida espontaneidade das declarações prestadas em audiência, mas o confronto permite inclusivamente que o Tribunal possa melhor avaliar da espontaneidade ou não dos depoimentos.
u) Assim, tal leitura e confronto em nada inquina o processo de formação da convicção com fundamento em utilização de prova proibida, já que a requerida leitura constitui uma salvaguarda das garantias de defesa permitida pelo espírito que presidiu à proibição ínsita do estatuído nos art.s 355.º e 356.º do Código de Processo Penal e pelas disposições constitucionais aplicáveis em sede de interpretação destes preceitos.
v) O principio da descoberta da verdade material é o primeiro objetivo do processo penal, e sempre que o processo deixe de se guiar por este, estaremos necessariamente perante uma violação do principio do Estado de Direito, em que resulta a compressão injustificada dos direitos, liberdades e garantias.
w) O Tribunal Constitucional tem entendido que o princípio do contraditório imposto, quanto à audiência de julgamento em processo penal, pelo n.º 5 do artigo 32º da Constituição, exige que ao arguido seja garantido o poder de discutir, contestar, ou debater o valor probatório de qualquer prova utilizada na audiência. Destaca-se o Acórdão do TC 372/2000 in DR II série de 13-11-2000:
x) Já sobre a extensão processual do princípio do contraditório dispõe o nº 5 do artigo 32º da Constituição que a ele está subordinada a audiência de julgamento, bem como os atos instrutórios que a lei determinar, remetendo assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos atos instrutórios que hão de ficar subordinados ao princípio do contraditório.
z) Por conseguinte, o entendimento do art. 356º nº 2, al. b) e 5 do CPP no sentido de não ser admissível a leitura em audiência das declarações prestadas em inquérito, estando as testemunhas presentes na audiência, quando expressamente requerido pelo arguido, é violador do principio do contraditório, estabelecido este como modalidade exponencial de favor libertatis, não se compadecendo com quaisquer limitações à possibilidade de um mais amplo e cruzado debate das provas, por parte defesa.
aa) Inexistindo em processo em que a ofensa seja de abuso sexual, gravações resultantes de escutas, fotografias de atos que configurem ou sequer sugestionem abusos pendas indicadoras que datem os abusos nas datas imputadas na acusação/pronúncia, inexistindo ainda testemunhas presenciais, que tivessem assistido aos abusos o depoimento dos ofendidos/assistentes tem um peso necessariamente fulcral e deverá ser rodeado de todas as cautelas, sob pena de se porem em causa as garantias de arguidos constitucionalmente presumidos inocentes.
ab) Inexistindo enquadramento ou apoio de psicólogos ou psiquiatras em termos de não respeitarem os procedimentos adequados à inquirição de jovens abusados, o depoimento dos ofendidos/assistentes deverá ser rodeado de todas as cautelas, sob pena de se porem em causa as garantias de arguidos constitucionalmente presumidos inocentes.
ac) Carecem de redobradas cautelas, situações em que antes de serem ouvidos pelos peritos médicos, assistentes sejam longamente ouvidos pela policia judiciária, correndo-se o risco de a verdade ser desvirtuda em detrimento de quaisquer outros interesses ou princípios.
ad) Haverá que atentar ainda na circunstância de entre a prática de factos criminosos e a prestação de depoimentos em audiência, mediar um período curto ou longo, levando muitas vezes os julgadores a recorrer a notas que tomaram dos depoimentos prestados em audiência quatro ou cinco anos antes.
ae) A leitura de declarações de testemunhas presentes em julgamento, permitindo o seu confronto com as declarações que já haviam prestado – não antes de serem inquiridos, mas na sequência dessas declarações, perante o Mmo. Coletivo, com sujeição à oralidade, imediação e de forma contraditória, respeitando o princípio da concentração da prova na audiência de julgamento, permitirá alcançar o verdadeiro objetivo do processo, que é a descoberta da verdade dos factos, pressuposto da necessidade à sujeição da sanção penal.
af) Não se pode fazer verdadeira justiça se o tribunal não tiver conhecimento das declarações prestadas por jovens alegadamente vítimas, durante o inquérito, de forma a avaliar cabalmente a sua credibilidade, tendo em conta a evolução do seu discurso e a natureza das contradições desse discurso, sendo certo que é consensual na doutrina científica, que a avaliação dessas contradições é elemento imprescindível para a formulação de um juízo adequado quanto àquela credibilidade.
ag) O princípio da Verdade Material traduz-se na necessidade de o tribunal esclarecer os factos, independentemente da acusação e da defesa, não se opondo a investigação ao principio da acusação ou mesmo a estrutura acusatória do processo penal.
ah) Não se cuida de princípios que se devam sobrepor à procura da verdade material – como sendo por exemplo situações de proibição de prova previstos no art. 126º do CPP atentos os valores subjacentes da dignidade da pessoa humana e o respeito pelos direitos humanos, nem tão pouco perturbação da capacidade de memória ou de avaliação, visto que como é sabido as memórias mais fiéis são as mais recentes em relação ao acontecimento, aquele deveria ter prevalecido.
ai) A interpretação efetuada não respeitou todas as garantias de defesa e os limites às restrições no seu exercício acarreta, necessariamente, a inconstitucionalidade das normas interpretadas e a sua inaplicabilidade pelos tribunais de acordo com o art.º 204.º da Lei Fundamental.
aj) Não é legítimo negar ao arguido um meio de defesa tão relevante para a sua absolvição, não podendo aceitar-se na interpretação conjugada do disposto nos art.s 204.º, 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5 da C.R.P. e artº 355.º e 356.º, n.ºs 2, al. b) e 5, do C.P.P. que intervenientes instrumentais possam obstar sistematicamente à produção de prova que pode ser tão relevante para a condenação ou absolvição, por mera oposição infundamentada de modo a poder aferir-se se a oposição respeita os limites constitucionais às restrições ao exercício da defesa.
ak) Neste sentido milita também um elemento histórico que importa atentar, visto, não existir nem traço nem paralelo, ao entendimento de proibição de leitura condicionada à autorização dos autos consignado no art. 356º nº 2 alínea b) e nº 5 do CPP, na história recente processual penal.
al) O código de Processo Penal de 1929 que resultou de um longo processo de reforma e compilação de legislação anterior, teve como finalidade primordial a busca da verdade material.
am) Durante a vigência daquela Código de Processo Penal, apesar de todas as alterações a que foi sujeito, quase até à entrada em vigor do atual código de processo penal, o regime de leitura de declarações de testemunhas regia-se pelos artigos 438.º e 439.º, dispondo o primeiro daqueles preceitos da leitura de declarações de testemunhas presentes na audiência de julgamento e o segundo, das ausentes, permitindo ambos a leitura dos depoimentos prestados na fase investigatória.
an) Existiu assim no Código de Processo Penal de 1929 uma forma reforçada de acesso à verdade material por parte do Juiz, que podia confrontar as testemunhas com os seus depoimentos anteriores, verificando assim a veracidade das suas declarações, instrumento útil na medida em que obrigava as testemunhas a manterem-se fiéis às declarações prestadas, e protegia-as de coações a que eventualmente pudessem estar sujeitas.
ao) Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 35.007, 13 de outubro de 1945, deu-se uma viragem de todo o sistema criminal autoritário iniciado com a Constituição de 1933 e com o Código de Processo Penal de 1929, mas mesmo durante o período de vigência deste sistema os mecanismos dos artigos 438.º e 439.º mantiveram-se em vigor inalterados.
ap) Com a revolução ocorrida em abril de 1974, alterou-se novamente o processo penal, com o duplo intuito de o simplificar e imprimir-lhe maior celeridade, o que foi feito através do decreto Lei 605/75 de 3 de novembro, mas sem alterações no regime da leitura das declarações, tendo acontecido o mesmo com os diplomas imediatamente anteriores (de 1976 e o de 1977).
aq) As alterações ao processo penal ocorridas, essencialmente após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, e nos seus diplomas de aplicação, causaram um regime disperso e com legislação contraditória, criando a necessidade de uma revisão global do sistema com então foi reconhecido.
ar) O projeto elaborado no âmbito da comissão de revisão em 1983, composta por Figueiredo Dias, Maia Gonçalves, Costa Andrade, Castro e Sousa, José António Barreiros e Cunha Rodrigues, estava sujeito ao cumprimento da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86, de 26 de setembro, onde se verifica, no ponto 63 do art. 2.º, que o Decreto-Lei a apresentar devia conter a: “Proibição, salvo em casos excecionais, de valoração em julgamento de quaisquer provas que não permitam o estabelecimento do contraditório em audiência, alargando nomeadamente o elenco de situações em que são proibidas as leituras de autos de instrução contendo declarações de arguidos, assistentes, partes civis ou testemunhas não presentes na audiência de Julgamento”.
as) A pouca doutrina que se debruçou sobre este tema, e dos quais se destaca Damião da Cunha indica este ponto da lei de autorização como uma das razões para a proibição da leitura das declarações das testemunhas em audiência, mas erradamente visto que o que se afirmou na lei de autorização legislativa, foi que deveria ser restringida a leitura de declarações proferidas por vários intervenientes processuais quando estes não estiverem presentes na audiência de julgamento.
at) Este entendimento, aliás, segue o do parecer da Comissão Constitucional nº 18/81, de 27 de junho de 1981, que levou o Conselho da Revolução a considerar inconstitucional o artigo 439.º do CPP (que permitia a leitura de depoimentos de testemunhas não presentes em audiência de julgamento), sem que, no entanto, se pronunciasse sobre o conteúdo do artigo 438.º CPP que permitia a leitura de depoimentos de testemunhas presentes em audiência de julgamento, salientamos que desde que já tivessem deposto previamente.
au) Em 1996, por iniciativa do Ministro da Justiça Vera Jardim, foi criada nova Comissão de Revisão do Código de Processo Penal, que deu luz à que veio a ser a proposta de Lei 157/VII, onde se previa o seguinte aditamento ao n.º 3 do art.º 356.º, que não veio a ser aprovado: Artigo 356.º (Leitura permitida de autos e declarações) (...) 3. É também permitida a leitura de declarações anteriormente prestadas perante o Juiz ou perante o Ministério Público: a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias;
av) Importa ainda destacar que com o Código de Processo Penal de 1987 o Ministério Publico passou a ter um estatuto inquestionável de autoridade judiciária essencial no iter processual, competindo-lhe entre outras competências: colaborar “com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito” (art.º 53.º), especialmente através da direção do inquérito, deduzir a acusação e sustentá-la em sede de instrução e durante o julgamento. Sendo no âmbito do inquérito da competência do Ministério Público, a pratica dos atos que o constituem, assim como assegurar os meios de prova (art. 267.º) que levem à prossecução das finalidades desta fase processual (art. 262.º).
aw) Com o Código de Processo Penal de 1987, deixou de existir uma fase investigatória centrada na instrução e com uma forte intervenção do Juiz de Instrução Criminal, para passar a haver um inquérito, sob direção do Ministério Público, como forma usual de efetuar a investigação criminal, passando a instrução para uma fase facultativa de controlo da acusação e de via de defesa do arguido, com o Juiz de Instrução Criminal como garante do cumprimento das liberdades constitucionais do arguido.
ax) Esta alteração é de importância para o assunto em análise, por representar a modificação do paradigma investigatório no campo da política criminal, deslocando o papel de órgão responsável pela investigação da esfera da magistratura judicial para a magistratura do Ministério Público.
az) Dispõe o art. 219º da Constituição da República Portuguesa que Ministério Público é um órgão de justiça a quem compete exercer a ação penal orientado pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática, o que é aliás também previsto estatutariamente, pelo que não pode ter, qualquer interesse particular na procedência da acusação, sendo sua obrigação recorrer das decisões desconformes com a lei e o direito, mesmo que no exclusivo interesse da defesa ou em contrário a posição anteriormente assumida no processo.
ba) Assim se chegou à redação do art. 356º nº 2 alínea b) e nº 5 do CPP que apenas viria a ser alterado com a Lei 48/2007, 29 de agosto, sem que compreenda qual a ratio da atual redação da norma, que não sendo lido à luz dos art. 32º nº 1 e 5, 18º e 204º da CRP, tolhe gravemente as garantias de defesa dos arguidos, quando precisamente o regime consagrado no art. 356º existe precisamente para dar concretização às garantias de defesa.
bb) Interpretar o artigo 356.º n.º 2 al. b) e n.º 5 do CPP no sentido de conferir ao Ministério Público e ao assistente o poder de se oporem à admissão da prova produzida antes do julgamento (leitura e exame de depoimentos prestados perante o Juiz, Ministério Público e órgãos de polícia criminal) é admitir uma limitação ao princípio da descoberta da verdade, e negar ao arguido o direito a um julgamento equitativo e justo.
bc) Pelo que as citadas disposições, mormente o art. 356º nº 2 alínea b) e 2 e 351º ambos do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido do acórdão recorrido, violam as garantias de defesa consignadas no n.º 1 e 5 do artº 32.º da CRP e reflexamente o princípio do Estado de Direito fixado no artigo 2.º da CRP e ainda o estatuto constitucional do Ministério Público fixado no n.º 1 do art. 219.º da CRP.
bd) Os direitos de defesa do arguido estão e têm que estar, constitucionalmente consagrados numa perspetiva de garantia de utilização de todos os meios possíveis para comprovação da sua inocência, não como forma de obstaculizar à descoberta da verdade material.
be) Pela atualidade e pertinência, permitimo-nos ainda acolher neste recurso os argumentos e considerações expendidos no parecer do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público ao Ministério da Justiça, pedido que incidiu sobre o projeto de Proposta de Lei nº 94/2010 que visa alterar pontualmente o Código de Processo Penal, com vista à adequação entre, por um lado, à necessidade de eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade, e, por outro, a garantia dos direitos de defesa do arguido.
bf) Donde resulta desde logo, considerarem não se afigurarem adequadas as limitações existentes no artigo 356º do Código de Processo Penal, pois que, desde que sejam garantidos o respeito pelos princípios do contraditório e da livre apreciação da prova, não se deve excluir, por princípio, a utilização e valoração da prova produzida nas fases anteriores, o que aliás sucede nos termos legais com prova documental e pericial, mas também com as declarações de testemunhas, assistentes ou partes civis, nos casos previstos na lei.
bg) Lembrando que, na generalidade dos processos criminais tramitados sob a forma comum, a audiência de julgamento, pela própria natureza e estrutura do atual processo penal, é realizada com grande dilação temporal em relação à data da ocorrência dos factos eventualmente presenciados pelas testemunhas, e por regra, e logo na fase de inquérito, são inquiridas todas as testemunhas conhecidas cujo depoimento seja relevante para a descoberta da verdade material. Nessas diligências, as testemunhas, que até podem estar acompanhadas de advogado, estão obrigadas a falar verdade, sob pena de cometerem um crime – cf. artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, e artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal. Quando a diligência é presidida por autoridade judiciária, as testemunhas prestam juramento – artigos 91.º, n.º 3, e 132.º n 1, alínea b), do Código de Processo Penal. Tudo é reduzido a auto, que é assinado por todos os presentes – artigo 100.º do Código de Processo Penal.
bh) Concluindo que a atual proposta de alterações ao Código do Processo Penal vai no sentido de uma alteração de paradigma no que às declarações do arguido diz respeito” pelo que seria profundamente ilógica a manutenção das atuais restrições à leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas por testemunhas nas fases preliminares à audiência de julgamento do processo penal, constituindo uma enorme dissonância sistemática, desde logo porquanto se é admitida a leitura sem oposição de declarações prestadas anteriormente ao julgamento pelo arguido, não se compreenderia que, por maioria de razão, sendo menores as exigências de salvaguarda de direitos fundamentais em relação às testemunhas, as declarações por si prestadas não pudessem igualmente ser lidas em audiência sem necessidade de obter a concordância do arguido, do assistente e do Ministério Público.
bi) E a propósito da eventual limitação aos Princípios da Imediação e da Oralidade, dizem ser inexistente, por um lado, porquanto a leitura de declarações prestadas por testemunhas já é permitida sem oposição, (artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal) e por outro porque a leitura de declarações será efetuada, em sede de julgamento, na presença da testemunha, e por forma a avivar a memória desta ou quando existam contradições ou discrepâncias entre as prestadas anteriormente e as prestadas em audiência de julgamento, sem que tal leitura possa ser objeto de uma ponderação casuística e oportunística no sentido da autorização de tal ato, quer por parte do arguido, quer também por parte do assistente.
bj) Ainda que se desconheçam as razões que historicamente determinaram a atual redação do art. 356º nº 2 alínea b) e 5 do CPP, parecendo que o legislador ordinário terá ido além da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, podemos contudo salientar, que em praticamente todos os ordenamentos jurídicos ocidentais, a lei processual penal contempla a permissão de leitura das declarações das testemunhas havendo contradição, assim sucede, entre outros no sistema processual penal Alemão, Espanhol, Italiano e Polaco.
bk) A interpretação restritiva do disposto nos artigos 355.º e 356.º do Código de Processo Penal adotada no sentido de que havendo oposição ou não consentimento dos assistentes, não pode, em nenhuma situação, ser efetuada a leitura de declarações prestadas em inquérito não tem suporte constitucional e legal antes constituindo uma inaceitável restrição das garantias de defesa do arguido e uma violação do direito a um processo justo e equitativo.
bl) Não é legítimo negar ao arguido um meio de defesa tão relevante para a sua absolvição, não podendo aceitar-se a interpretação conjugada do disposto nos art.s 204º, 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5 da C.R.P. e artº 355.º e 356.º, n.ºs 2, al. b) e 5, do C.P.P. no sentido que intervenientes instrumentais possam obstar sistematicamente à produção de prova que pode ser tão relevante para a condenação ou absolvição, por mera oposição ínfundamentada de modo a poder aferir-se se a oposição respeita os limites constitucionais às restrições ao exercício da defesa.
bm) Pelo que, o entendimento normativo conjugado do disposto nos art.s 356.º n.ºs 2, al. b) e 5 e 355.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de que, não tendo expressamente os assistentes e Ministério Público dado o seu consentimento à leitura de declarações de assistentes e testemunhas que incriminam os arguidos - por estes requerida para avaliar cabalmente a credibilidade da sua prestação em audiência de julgamento, uma vez que são substancialmente diferentes das prestadas em inquérito é inconstitucional, por violação do reduto nuclear das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32.º n.ºs 1 e 5, 18.º e 204º da C.R.P. bem como o disposto nos art.º 18.º da CRP, e o princípio do processo justo e equitativo salvaguardado pelo art.º 20.º n.º 4 da C.R.P. e pelo art.º 6.º da C.E.D.H. o que deverá ser declarado.
…
PONTO VII
Relativamente a este ponto são as seguintes as questões de inconstitucionalidade que o Recorrente pretende ver apreciadas e declaradas por este Douto Tribunal:
[…]
II – B) Conclusões:
a) Por despacho de 23 de novembro de 2009, (fls. 63.631 a 63.635 e depois reproduzido no despacho de 11/01/2010) o tribunal de primeira instância procedeu à comunicação de alteração de factos relativos ao Assistente C., em que é imputada a prática de crime(s) ao Arguido H., no sentido que os factos descritos a fls. 20.896 a 20.898, “Ponto 4.1.1.”, do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.896, 50 parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido na “... casa do arguido H., sita na Rua …, n.º …, Restelo, em Lisboa...”, podem ter ocorrido em moradia não concretamente apurada, mas localizada no Restelo, em Lisboa, no Bairro de moradias onde se situam as Ruas … e a Rua … e na zona dessas ruas”.
b) Em relação aos factos indicados, tendo o Recorrente suscitado o esclarecimento quanto ao alcance do despacho, veio o tribunal dizer que não limitou a comunicação a moradia que se situasse nas Ruas … e na Rua …. A comunicação abrangeu moradia localizada no Restelo, no bairro de moradias em que se situam as Ruas … e a Rua … e na zona dessas ruas, mas não limitada a localização a uma dessas duas ruas.
c) Por despacho de fls. 63.922 a 63.925 o tribunal de primeira instância procedeu à determinação do que considerava uma alteração não substancial dos factos concluindo a fls.63.925 que “...face ao que antecede, a alteração de factos comunicada ao arguido no despacho de fls. 63.631 a 63.635... consiste, no entendimento do tribunal, uma alteração não substancial de factos.”
d) Os factos objeto de comunicação, vieram a ser dados como provados no acórdão final (cf. fls. 66.556, 66.570 e 66.576) e no Douto acórdão do Tribunal da Relação, ao proceder-se à análise desta importantíssima questão, é expressamente reconhecido que se trata de uma alteração não substancial de factos, bem como que a interpretação efetuada pelo tribunal de primeira instância dos art.s. 1.º, al. f), e 358.º do CPP, foi inteiramente conforme ao art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, não ocorrendo a situação de inconstitucionalidade dos art.s. 1.º, al. f), e 358.º, do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas aos arguidos não são substanciais, por violação daquele imperativo constitucional.
e) Relativamente à primeira das questões suscitadas, entende o Recorrente ser inconstitucional a interpretação dos art.s. 1.º, al. f), e 358.º, do Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, são alterações não substanciais dos factos, por violação do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.
f) Em relação ao crime respeitante ao Assistente C., o local passou de uma vivenda concretamente identificada - sita na Rua …, n.º …, Restelo, Lisboa – para uma “... moradia localizada no Restelo. No Bairro de moradias em que se situam as Ruas .. e a Rua …. E na zona dessas ruas, mas não limitada a localização a uma dessas duas ruas.”
g) Considerando que naquele bairro (como em qualquer bairro na zona de Lisboa) existem centenas de moradias, para o Recorrente, parece inquestionável a afirmação que os factos que integram o crime, deixaram de estar indiciados como tendo ocorrido num lugar certo e determinado, para passarem a poder ter ocorrido, num local indeterminado.
h) De acordo com a interpretação efetuada, se ocorrer uma diferença de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos materialmente relevantes de construção e identificação factual e que determine a imputação de crime diverso, temos uma alteração substancial dos factos.
i) Face ao disposto no art.º 1.º, n.º 1 do Código Penal em abstrato, crime é o facto descrito e declarado punível por lei.
j) A concretização processual da abstração legal “crime” terá que ser efetuada em conformidade com o estabelecido no art.º 283.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal: a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, nomeadamente, o lugar e o tempo.
k) Sendo tal narração que, acompanhada da indicação das disposições legais aplicáveis, constitui a imputação de um crime concreto ao Arguido, imputação que o disposto no art.º 339.º, n.º 4 do Código de Processo Penal impõe que se mantenha na discussão da causa, embora “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos”.
1) Não há facto material ou ato físico sem tempo e sem lugar, pelo que o lugar e o tempo integram ontologicamente o próprio facto ou ato, mas a sua indicação pode ser impossível, quer por indeterminabilidade, quer por não ter sido alcançada a determinação;
m) Mas uma vez feita a determinação, o tempo e o lugar integram o facto não só ontologicamente mas também quanto à sua cognição, pois o facto criminoso não é uma abstração parcelada, é um facto concreto e unitário.
n) O tempo e o lugar, se concretamente determinados, integram o próprio facto, pois o facto criminoso não é uma abstração parcelada, é um facto concreto e unitário.
o) Apesar de o crime poder ser imputado mesmo sem a narração espacial e temporal, sendo possível, a imputação processual integra a narração, “ainda que sintética” (art.º 283.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal) do tempo e do lugar, mas alterando-se a narração do núcleo do tempo ou do lugar que integram o crime imputado, verifica-se a imputação de um crime diverso, não é mantida a imputação do mesmo crime.
p) A nova indiciação de um crime em concreto diverso, não é confundível com a indiciação de um diverso tipo legal de crime, a qual, sem alteração da narração factual, incluindo o lugar e o tempo, constitui alteração da qualificação jurídica dos factos.
q) Apenas se a nova indiciação não alterar o núcleo factual narrado na imputação, limitando-se a explicitar ou esclarecer a narração, ainda que sintética, dos factos, incluindo o lugar e o tempo, é que se mantém a imputação do mesmo crime, com alteração não substancial dos factos.
r) Os limites à identidade do crime, na qualificação duma alteração, terão que ser a total garantia dos direitos de defesa do Arguido e a prossecução da justiça e da verdade material, pelo que, sempre que essa alteração possa pôr em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos.
s) Nos crimes contra a autodeterminação sexual, dada a sua normal privacidade, o exercício da defesa incide, essencialmente, sobre o núcleo dos elementos temporal e espacial dos factos criminosos imputados e, se não estiver presente a total garantia dos direitos de defesa, corre-se o risco de confundir falta de prova do crime com indiciação de alterações.
t) È em consideração das garantias de defesa, que os regimes das alterações substanciais e não substanciais são diferentes, sendo que quanto a estas, o art.º 358.º do Código de Processo Penal não vai além de possibilitar uma defesa incidental, preparada no tempo “estritamente necessário” e quanto às substanciais, porque incidem sobre o núcleo factual, incluindo as suas componentes temporal e espacial, não estando, em princípio, totalmente garantida a defesa no próprio processo, o art.º 359.º Código de Processo Penal impõe que não sejam tomadas em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, admitindo o procedimento pelos novos factos em novo processo, com as mesmas possibilidades de defesa proporcionadas ab initio no processo em que foram comunicadas as alterações.
u) Ainda que por natureza, a alteração não substancial dos factos comprima, inevitavelmente, as garantias de defesa e afete a estrutura acusatória do processo penal, uma vez que o tribunal de julgamento estará inevitavelmente a imiscuir-se na indiciação de factos que não constam da acusação, interferindo em área que a Constituição da República Portuguesa e a lei processual penal reservaram ao Ministério Público e, com estritos limites, ao juiz de instrução criminal.
v) Que possa ser feito ao abrigo da faculdade prevista no art.º 358.º do Código de Processo Penal, com latitude necessariamente restrita e em homenagem a princípios conflituantes, como os da investigação e da descoberta de verdade material, é algo que não se contesta em tese geral, mas, na aplicação que do art.º 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal o Tribunal de julgamento faça tem que atentar nas circunstâncias concretas e as consequências a que supra se aludiu, sob pena de inevitavelmente violada aquela norma legal, bem assim como os princípios constitucionais constantes dos art.º 32.º, nºs. 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
w) Assim a alteração referida, ao vir substituir os factos da pronúncia por factos novos, que transformaram o quadro factual descrito noutro manifestamente diferente, no que respeita aos seus elementos integrantes, constitui verdadeira alteração substancial de factos, enquadráveis no regime previsto no art.º 359.º do Código de Processo Penal, e não do art. 358.º do Código de Processo Penal, pois delas resulta a imputação de um facto diverso - conforme o art. 1º, alínea f) do Código de Processo Penal.
x) Pelo que a interpretação efetuada dos art.s. 358.º, n.º 1, 359.º e 1.º alínea f) do Código de Processo Penal, é inconstitucional, por violar as garantias de defesa conferidas pelo art.º 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, ou seja, por violação dos princípios da máxima extensão dos direitos de defesa em processo penal (em conjugação com o art.º 18.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa) e da presunção de inocência, do direito a um processo leal, equitativo e célere, da estrutura acusatória do processo penal e do contraditório, entendido este na sua única conformação constitucionalmente admissível, como princípio de conteúdo material e dotado de plena eficácia, inconstitucionalidade essa que se pretende seja declarada com as devidas consequências, em conformidade com o disposto no art. 80º da Lei do Tribunal Constitucional.
z) A segunda questão decorrente dos despachos já identificados que vieram a ser integralmente confirmados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, neste ponto do recurso de (in)constitucionalidade, reconduz-se à interpretação efetuada do art. 358.º do Código de Processo Penal, no sentido de, à luz daquele preceito, ainda ser possível naquele momento, proceder à comunicação de alterações de facto – por violação dos art.s. 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e art. 6.º, n.ºs 1 e 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
aa) Para a correta análise e delimitação desta questão releva considerar que a audiência de discussão e julgamento teve início em novembro de 2004, tendo os dois assistentes relacionados com estes factos E. e C. começado a prestar declarações, respetivamente no dia 20 de junho de 2006 e terminado em 25 de julho de 2006, e em 23 de janeiro de 2006 terminando em 26 de fevereiro do mesmo ano, relevando ainda o exame ao local efetuado pelo Tribunal de primeira instância à casa do Restelo identificada no despacho de pronúncia, com a participação de ambos os assistentes , o que ocorreu no dia 09 de fevereiro de 2006.
ab) As alegações orais terminaram em fevereiro de 2009, após o que se sucederam sessões mensais para “produção de prova complementar” - o que, na prática, redundou em visionamento de DVDs e na abertura de documentos já juntos aos autos - vindo o Tribunal, após as necessariamente breves alegações complementares e as últimas declarações dos Arguidos, comunicar a alguns a alteração dos factos, na sessão de 23 de novembro de 2009.
ac) Objetivamente concluímos que o Tribunal de primeira instância comunicou a possibilidade de alterações de factos, quase um ano após todas as alegações finais, réplica e resposta das defesas estarem concluídas, e quase quatro anos depois do fim das declarações dos Assistentes.
ad) A interpretação meramente literal dos art.s 358.º e 359.º do Código de Processo Penal permite que a iniciativa de alteração dos factos possa ter lugar, a requerimento de qualquer um dos sujeitos processuais, ou oficiosamente, até ao final da discussão da causa.
ae) No entanto, a interpretação da oportunidade da convocação do instituto em causa não se pode ater ao seu elemento literal - “se no decurso da audiência” antes tendo de ser integrada pelos restantes princípios informadores do sistema processual penal, constitucional, numa compaginação dos direitos de defesa e respetivas garantias e o dever de perseguir a verdade material.
af) Com a comunicação de alteração de factos não está, pois, em causa, a consequente produção de prova suplementar relativamente a um qualquer facto complementar, mas antes a produção de prova que a defesa entenda por necessária ao exercício efetivo do direito de defesa, no que se inclui a renovação dos meios de prova tidos por necessários e convenientes ao cumprimento efetivo das garantias de defesa consagradas no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.
ag) Até porque, a alteração de um local determinado para um não concretamente apurado numa zona algo vaga, configura, em boa verdade, uma nova acusação que, como tal, implica uma nova contestação, com indicação da prova que for tida por adequada, respetiva produção, enfim, um novo julgamento.
ah) Há que ter em conta a inserção sistemática dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, que surgem antes da norma respeitante às alegações orais, que, por sua vez, precede a norma referente às últimas declarações do arguido e ao encerramento da discussão, que se impõe por elementares exigências de asseguramento da máxima extensão das garantias de defesa.
ai) A alteração de um local concretamente situado, para um local indeterminado dentro de um grande bairro de moradias, na zona de duas ruas, numa década atrás, não pode respeitar o princípio do processo equitativo, redundando afinal numa autêntica e inadmissível alteração qualitativa da pronúncia, o que esvazia de sentido útil a defesa deduzida pelo arguido.
aj) Em homenagem ao princípio da lealdade processual, há que assegurar as garantias de defesa, a garantia de um processo justo e equitativo e a igualdade de armas entre acusação e defesa, garantias conferidas ao arguido pelo art. 20º nº 4 e 32º nº 1 ambos da Constituição da República Portuguesa.
ak) Muito naturalmente, os arguidos organizam e sustentam a sua defesa relativamente aos factos que lhes são imputados na acusação e/ou na pronúncia, cuidando de levar aos autos, dentro do que lhe for possível, prova de vária índole relacionada com o local concreto onde os crimes teriam ocorrido, e não quanto a toda uma zona desconhecida.
al) O momento temporal da admissibilidade das alterações previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal tem que ser interpretado e aplicado em sintonia com o disposto nos art.s 360.º e 361.º do Código de Processo Penal, dos quais resulta que, na tramitação normal, finda a produção de prova, incluindo a sequente à comunicação de alterações, se seguem as alegações orais e a estas as últimas declarações do arguido.
am) A interrupção desta sequência na tramitação processual normal está admitida apenas em casos excecionais de produção de prova superveniente, conforme o n.º 4 do art.º 360º do Código de Processo Penal, mas sem a demonstração de tais excecionalidade e superveniência, a admissão de alterações após conclusão das alegações orais, embora consentida pela mera literalidade legal - “no decurso da audiência” -, constitui surpresa e irracionalidade processuais, violadoras da plenitude das garantias de defesa conferida pelo art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa e do (que tem ínsita a estrutura acusatória do processo penal e o princípio do contraditório) processo equitativo imposto pelo art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e pelo art.º 6.º da CEDH.
an) Ainda que se admitam alterações de indícios atendendo ao princípio da verdade material, este não pode sobrepor-se aos da plenitude das garantias de defesa, do acusatório e do contraditório, devendo os “conflitos” ser resolvidos com recurso aos princípios da adequação, da exigibilidade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, cuja observância é imposta pelo artº 18.º da Constituição da República Portuguesa.
ao) A sequência da atividade processual necessária à descoberta da verdade, não poderá nunca, postergar as garantias de defesa, impossibilitando-se ou limitando-se uma defesa eficaz, pois que se prejudica a própria descoberta da verdade e põe-se em risco a boa decisão da causa.
ap) Neste enquadramento constitucional, as alterações devem ser comunicadas no mais curto prazo após a sua indiciação no decurso na audiência, o que também está estatuído e de forma mais direta no art.º 6.º, n.º 3, al. a) da CEDH, que confere ao acusado o direito de “ser informado no mais curto prazo, em linguagem que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada” impondo-se a correspetiva obrigação de forma mais evidente quando a acusação passa a ser a acusação inicial alterada, em relação à qual vinha sendo exercido o direito ao contraditório e à defesa.
aq) A interpretação normativa conjugada dos art.s 358.º, n.ºs 1 e art.º 1.º al. f) do Código de Processo. Penal que comporte o entendimento de que é possível, ao seu abrigo, alterar os factos do despacho de pronúncia em prazo muito para além do razoável, de forma tal que impeça o exercício efetivo dos direitos de defesa, é inconstitucional por manifestamente violadora do disposto nos art.s 32.º, n.º 1, 2 e 5, 20.º, n.º 4 e 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa bem como ainda do disposto no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3 al. a) da CEDH, e como tal do direito a um processo justo e equitativo, inconstitucionalidade que deve ser declarada com as devidas consequências processuais.
aq) A terceira questão que o Recorrente pretende ver apreciada por este Douto Tribunal, reconduz-se à interpretação normativa conjugada dos art.s. 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, efetuada pelo Tribunal de primeira instância e depois mantido pelo Tribunal da Relação que a torna definitiva, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos considerados indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos, por violação dos art.s. 205.º, n.º 1, e 32.º da Constituição da República Portuguesa, e art. 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b), da CEDH.
ar) Como já amplamente enunciado, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 23 de novembro de 2009 e em 14 de dezembro de 2009, o Tribunal comunicou a alguns Arguidos, ao abrigo do disposto no art.º 358.º do Código de Processo Penal, a possibilidade de alteração dos factos que qualificou de não substanciais, e já reproduzidos parcialmente no presente recurso.
as) Nos despachos que comunicaram as alterações, o Tribunal a quo em sede de fundamentação limitou-se a dizer o seguinte: “Em relação ao objeto do Processo nº 1718/02.9 JDLSB - Processo “Principal” (NUIPC 1718/02.0 JSLSB) -, face à prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal considera que está indiciado e, por conseguinte, poder a vir considerar para efeitos de eventual integração no objeto do presente processo e/ou para alteração da qualificação jurídica dos factos, o seguinte:”, passando de imediato à indicação das alterações propostas.
at) Arguida a nulidade dos despachos por falta de fundamentação e/ou a sua irregularidade e sobre tais arguições, em 11/01/2010, o Tribunal a quo procedeu no seu ponto II, a fls. 64.097 e ss., à reparação parcial do despacho de fls. 63.631 a 63.635 - proferido na sessão de 23/11/09 - e de fls. 63.685 a 63.687 - proferido na sessão de 14/12/09 - quanto à comunicação de alterações de facto nos termos do artº 358º, do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
“(...) Em relação ao objeto do Processo n.º 1718/02.9JDLSB - Processo “Principal” (NUIPC 1718/02.9JDLSB) - face a toda a prova produzida em audiência de julgamento, entre a qual (mas sem prejuízo da que não for neste momento expressamente mencionada):
(...)
O Tribunal considera que está indiciado e, por conseguinte, poder vir a considerar para efeitos de eventual integração no objeto do presente processo e/ou para alteração da qualificação jurídica dos factos o seguinte:”
au) Reafirmando o que antes decidira quanto à irregularidade por falta de fundamentação no despacho proferido em 11/01/2010, sendo esta interpretação que o Recorrente não pode aceitar, por claramente afrontar o estatuído nos art. 205º nº 1 e 32º da Constituição da República Portuguesa e ainda o art. 6º da CEDH, diminuindo as suas garantias de defesa.
av) A fundamentação da decisão de alteração não substancial dos factos vertidos no despacho de pronúncia vem contida no singelo trecho acima transcrito, sendo que da frase - “face à prova produzida em audiência de julgamento”, utilizada nos despachos proferidos em 23/11/2009 e 14/12/2009 -, ou da frase “face a toda a prova produzida em audiência de julgamento, entre a qual (mas sem prejuízo da que não for neste momento expressamente mencionada)”, utilizadas não decorre fundamentação alguma inteligível que permita descortinar a razão de ser das alterações comunicadas, o que esvazia de conteúdo útil o exercício do direito de defesa e não assegura o respeito pelo princípio do contraditório que, afinal, o art.º 358.º do Código de Processo Penal visa acautelar.
aw) Passando-se de uma abstração unitária para abstrações parceladas, sem indicação de nenhuma prova concreta não se permite ao arguido percecionar, compreender, entender o que o Tribunal “sentiu”, teve em mente para considerar provadas indiciariamente as alterações comunicadas e impugná-las diretamente por não provadas ou apresentar prova que contrarie tais novos factos.
az) Não decorrendo dos despachos que comuniquem alteração de factos qualquer motivação que minimamente as sustente, invocando apenas a produção de prova, ou toda a prova produzida em audiência e a já constante dos autos à data de início da audiência, remete-se necessariamente para um vazio impossível de preencher.
ba) A norma contida no art.º 358.º do Código de Processo Penal só pode ser entendida como um aforamento do princípio da verdade material, que a lei processual penal estatui para situações que diríamos “normais”, devendo, na medida em que encerra em si mesmo um conflito com outros princípios estruturantes do processo penal, como sejam os da máxima extensão das garantias de defesa, do contraditório e da estrutura acusatória do processo, ser interpretada e aplicada num sentido restritivo, porquanto estes últimos princípios, sendo princípios constitucionais atinentes a direitos, liberdades e garantias, dispõem de força vinculante acrescida, nos termos do disposto no art.º 18º da Constituição da República Portuguesa.
bb) A fundamentação que abranja toda a prova produzida ao longo de audiência de julgamento, bem como de prova adquirida ainda na fase de inquérito, não descriminando os meios de prova indicados relativamente a cada uma das alterações comunicadas, não permitindo conhecer o caminho percorrido pelo Tribunal no sentido de julgar que tais alterações se justificam e, consequentemente, de o arguido organizar a sua nova defesa equivale à falta de fundamentação.
bc) A indicação «face a toda a prova produzida em audiência de julgamento”, não permite à defesa saber concretamente qual a prova produzida que conduziu à decisão de modo a ser possível a contraprova eficiente e que a mera afirmação de que a comunicação é feita nos termos do art.º 358.º do Código de Processo Penal, de modo algum constitui fundamento de direito.
bd) Um despacho que comunique a possibilidade de alterações proferido pelo Tribunal nos termos do art.º 358, n.ºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal é, naturalmente, uma decisão sujeita ao princípio do dever geral de fundamentação das decisões, consignado no art. 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e também no art.º 97, n.º 5 do Código de Processo Penal, impondo-se que sejam ainda especificados os motivos de facto e de direito da decisão, pelo que jamais bastará remeter apenas para a fórmula de cómodo: “face à prova produzida em audiência de julgamento” ou “face a toda a prova produzida em audiência de julgamento, entre a qual (mas sem prejuízo da que não for neste momento expressamente mencionada)”
be) Em conclusão, entendemos que a interpretação normativa conjugada dos art.s 97º, n.º 5, 358.º e 359º do Código de Processo Penal, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que considera indiciados e cuja fundamente se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos, sendo esta constituída por centenas de declarações e depoimentos de assistentes, testemunhas, peritos e milhares de documentos, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação das decisões e das garantias de defesa do arguido consagrados nos art.s 205.º, n.º 1 e 32.º da Constituição da República Portuguesa e do princípio a um processo equitativo tal como consagrado no ariº 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b) da C.E.D.H.
bf) A interpretação normativa do disposto nos art.s 97.º, n.º 5 e 358.º e 359.º do Código de Processo Penal conforme àqueles preceitos constitucionais e do princípio a um processo equitativo tal como consagrado no art.º 6.º, n.ºs 1 e 3, als. a) e b) da C.E.D.H., impõe que no despacho proferido ao abrigo e para os efeitos do disposto no art.º 358.º e 359.º do Código de Processo Penal sejam especificados os motivos de facto e de direito da decisão proferida, devendo a fundamentação ser eficiente para o exercício de todas as garantias de defesa constitucionalmente salvaguardadas.
bg) Por fim, e no âmbito dos mesmos despachos judiciais, entende o Recorrente que a interpretação efetuada dos art.s. 340.º e 358.º do Código de Processo Penal, no sentido de não ser necessária a justificação para o indeferimento dos requerimentos de prova dos arguidos, é inconstitucional por violação do art. 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
bh) Face à comunicada alteração de factos ocorrida em 23/11/2009, 14/12/2009 e de 11/01/2010 o Recorrente requereu diligências de prova constantes do seu requerimento probatório junto a fls. 64.848 a 64.858.
bi) Dessas diligências probatórias o Tribunal de primeira instância deferiu parte, ou seja, o visionamento do DVD da deslocação do Tribunal à moradia do Restelo identificada em 41.1. do Despacho de Pronúncia contendo as declarações dos Assistentes C. e E. - e a inquirição de 10 (dez) testemunhas das indicadas no ponto III. do mesmo requerimento, devendo o arguido indicar em 5 (cinco) dias as testemunhas selecionadas, sob pena de se considerarem as dez primeiras, indeferindo o mais ali requerido, designadamente a inquirição de uma testemunha por cada uma das moradias.
bj) O indeferimento resulta do entendimento do tribunal de não ser necessário para garantir o eficaz exercício da Defesa, tendo em consideração a fase processual em que os autos se encontravam, com a prova da Acusação e da Defesa já produzidas e tendo em consideração a aquisição probatória já desenvolvida pelo tribunal no decurso do julgamento, sendo no seu entendimento desproporcionado face ao art.s 32.º, n.º 1 e 5 e 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP e art.º 6.º da CEDH que para prova de tal elemento objetivo, mas não essencial o Tribunal deva admitir tal número de testemunhas.
bk) Esta decisão do tribunal de primeira instância veio a ser confirmada pelo tribunal da Relação em recurso, tornando-a definitiva e validando a interpretação efetuada dos citados art.s. 340.º e 358.º do Código de Processo Penal.
bl) Quando no despacho de pronúncia, o local esteja concretamente indicado, a defesa centra-se em demonstrar que naquele local concreto os factos não podiam ter acontecido sem necessidade de defesa em relação a qualquer outro local.
bm) Até porque de acordo com o disposto no art.º 340.º do Código de Processo Penal, o Tribunal deve obstar à produção dos meios de prova cujo conhecimento não se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
bn) Acresce que o art.º 315.º do Código de Processo Penal não determina a obrigatoriedade de o pedido de produção de meios de prova da defesa das imputações indiciárias feitas na acusação ou na pronúncia ter de ser acompanhado de uma justificação, nem tal resulta do art.º 358.º do Código de Processo Penal, quanto à prova da defesa da imputação de novos factos indiciários resultantes de alteração de factos descritos na pronúncia.
bo) Com a comunicação da alteração dos factos, o arguido fica, pois perante outra pronúncia com a inerente alteração do objeto do processo, impondo o poder-dever de descoberta da verdade material antes de mais, que o Tribunal, s em concreto entender necessária a. justificação do pedido de produção de meios de prova, disso notifique requerente.
bp) Considerando o tribunal a verificação dos fundamentos do nº 1 do artº 340º do Código de Processo Penal, o indeferimento da produção de prova estará assim, limitado pela sua inadmissibilidade, irrelevância ou superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou por ser meramente dilatória, conforme disposto nos n.ºs 3 e 4 do mesmo normativo legal.
bq) O arguido não pode ser impedido da possibilidade de defesa, cabendo-lhe exclusivamente a ele, a definição da estratégia da sua defesa, sob pena de serem violadas as garantias de defesa asseguradas por virtude do disposto no art.º 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa e o disposto no art.º 6.º da CEDH.
br) Não estando em causa a subsequente produção de prova suplementar relativamente a um qualquer facto complementar, mas antes a produção de prova que a defesa entenda por necessária ao exercício efetivo do direito de defesa, no que se inclui a renovação dos meios de prova tidos por necessários e convenientes haverá que, com toda a latitude, dar cumprimento efetivo às garantias de defesa consagradas no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.
bs) A interpretação efetuada dos normativos em causa, viola de forma grave e irreparável o direito de defesa, impedindo-o de contrariar, seja de que maneira for, a nova factualidade que lhe seja imputada,, o que consubstancia inequívoca violação do disposto no art.s 358º, n.º 1 e 340,º do Código de Processo Penal e o artº 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, e art.º 6.º da C.E.DH., pelo que tal interpretação viola, de forma grave, o direito do arguido à sua defesa.
bt) A interpretação normativa dos art.s 97.º, n.º 5 e 358.º e 359.º do Código de Processo Penal conforme àqueles preceitos constitucionais e ao disposto no art.º 6.º da C.E.D.H. impõe que no despacho proferido ao abrigo e para os efeitos do disposto no art.º 358.º e 359.º do Código de Processo Penal sejam especificados os motivos de facto e de direito da decisão proferida, devendo a fundamentação ser eficiente para o exercício de todas as garantias de defesa constitucionalmente salvaguardadas.
bu) Em conclusão, a interpretação normativa conjugada dos art.s 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, mantida pelo Tribunal da Relação, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que considera indiciados e com remissão para toda a prova produzida nos autos, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação das decisões e das garantias de defesa do arguido consagrado nos art.s 205.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa e artº 6.º da C.E.D.H. o que deve ser declarada com as devidas consequências.
…
VIII
Recurso de constitucionalidade dos artigos 48º, 49º n.º 1 do Código de Processo Penal e artigos 113º e n.º 1 do 115º, 178º todos do Código Penal na interpretação que foi efetuada pelo tribunal por violar o art. 29º e 203º da Constituição da República Portuguesa.
[…]
II - Conclusões:
a) Conhecendo da exceção de ilegitimidade/extemporaneidade para a apresentação do direito de queixa pelo assistente B., deduzida pelo Recorrente na contestação à pronúncia, em sede de acórdão final, decidiu o Tribunal de primeira instância, que esta não era extemporânea, que tinha exercida nos seis meses posteriores ao ofendido ter feito 16 anos e por via da intervenção justificada do Ministério Publico, substituindo-se aos titulares do direito de queixa ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 178º, ou seja, que o interesse da vítima – “... assistente que não sendo uma criança de rua estava institucionalizado na Casa Pia de Lisboa, (...) “ impunha a sua intervenção.
b) Admitindo, mas sem conceder, que o prazo dos seis meses para o exercício do direito de queixa, nos crimes contra a autodeterminação sexual, não caduque decorrido esse prazo sobre o conhecimento dos factos e dos seus autores, há que determinar até que momento pode o Ministério Público declarar o interessa da vítima e promover o processo.
c) O entendimento normativo efetuado na decisão cuja constitucionalidade se questiona, permite que ao Ministério Público seja consentido, ao abrigo do disposto no art. 178º nº 4 do Código Penal declarar o interesse das vítimas menores de 16 anos de idade (à data da ofensa) sem qualquer limitação temporal, mesmo quando a vítima já não possa exercer o direito de queixa por este direito ter caducado (por terem decorrido mais de seis meses sobre a idade em que a vitima adquire capacidade), e mesmo ainda decorridos seis meses após o conhecimento pelo Ministério Público dos autores do crime.
d) O art. 113º do Código Penal com a redação anterior à operada pela Lei 59/2007 não previa qualquer limite temporal à possibilidade de o Ministério Público declarar o interesse da vítima e dar início ao procedimento criminal, o que veio a ser introduzido pela Reforma de 2007, concretamente no nº 5 do art. 113º do Código Penal.
e) Revestindo o direito de queixa natureza processual, não obstante se encontrar regulado no Código Penal, as suas alterações são de aplicação imediata, visto não resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa, conforme previsto na alínea b) do art. 5º do Código de Processo Penal.
f) Sendo a decisão judicial que aprecie a exceção de caducidade e de ilegitimidade do Ministério Público deduzida em data posterior à decisão judicial, haveria que em cumprimento do disposto no art. 5º nº 1 do Código de Processo Penal, aplicar o disposto no nº 5 do art. 113º e com isso declarar verificada a exceção, sob pena de violação do princípio da legalidade.
g) O exercício do direito de queixa insere-se numa da manifestações processuais do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, contemplado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, que constitui uma das vertentes essenciais de um Estado de Direito Democrático, mas que tem como limite, o principio da legalidade previsto no art. 1º nº 3 do Código Penal e igualmente com assento constitucional, designadamente nos seus art. 29º e 203º.
h) Só com a Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro que alterou a redação dos art.s. 113.º, 115.º e do art. 178º do Código Penal, foi excluída a necessidade de queixa para o procedimento criminal, quanto ao crime de abuso sexual de crianças, p.p. (agora) no art. 171º do Código Penal.
i) Pelo que a interpretação normativa efetuada dos art. 48º, 49º nº 1 do Código Processo Penal e os art. 113º, 115º e 178º do Código Penal, violou frontalmente o princípio da legalidade a que devem obedecer todas as decisões judiciais, por força do imperativo constitucional consagrado no artigo 203º da Lei Fundamental, estando, por esta razão, ferido de inconstitucionalidade, bem como o art. 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, nos termos já indicados, o que deverá ser declarado.
j) Ainda que o Recorrente tenha admitido a possibilidade de à luz dos normativos aplicáveis ser possível a interpretação conjugada dos art. 113º, 115º e 178º do Código Penal no sentido de ser admissível a apresentação de queixa no prazo de seis meses decorridos sobre a aquisição da capacidade de queixa pela vítima, a verdade é que a única norma aplicável ao caso era, então, a constante do art.º 115.º, n.º 1 do Código Penal, cuja redação não sofreu alterações, sendo a seguinte:
“O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”.
k) Assim sendo, a interpretação que as normas aplicadas ao caso, maxime da constante do art.º 115.º, n.º 1 do Código Penal, de que o direito de queixa se extingue no prazo de 6 meses contados da data em que o ofendido perfizer 16 anos de idade, não encontra qualquer fundamento na letra daquele preceito legal, pelo que não permite a realização de uma interpretação extensiva do mesmo.
1) Sendo inadmissível a hipótese de aplicação aos factos do regime introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, visto que tal corresponderia à aplicação retroativa de um regime jurídico manifestamente desfavorável, que violaria o disposto no art.º 2.º, n.º 1 do Código Penal e nos art.s. 18.º, n.º 3 e 29.º, números 1 e 4, ambos da Constituição da República Portuguesa.
m) Assim, a interpretação dos normativos objeto deste recurso, atenta contra o princípio da legalidade, previsto no art.º 1.º, números 1 e 3 do CP e no art.º 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), por redundar na integração de uma lacuna in malam partem, o que, naturalmente, é legal e constitucionalmente vedado ao julgador.
n) Pelo que se reitera a inconstitucionalidade da interpretação das normas constantes dos art.s. 113.º, n.ºs 1 e 3 e 115.º, n.º 1 do Código Penal, segundo a qual o direito de queixa se extingue no prazo de 6 meses contados da data em que o ofendido perfizer 16 anos de idade, por a mesma violar o disposto no art.º 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o que deverá ser declarado com as devidas consequências processuais com decorre do art. 80º da Lei do Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
1. - Em cumprimento do despacho de fls. 8.807 e 8.808, o recorrente foi notificado para alegar e, querendo, se pronunciar sobre a possibilidade de não serem conhecidas as questões colocadas nos pontos “I”, “IV”, “V”, “IX” e “X” do requerimento de interposição do recurso.
2. – Não apresentou alegações e também nada disse sobre a possibilidade do não conhecimento.
3. – Devendo, pois, nesta parte e quanto àquelas questões, o recurso ser julgado deserto.
4. – Questões de inconstitucionalidade respeitantes à competência do tribunal de julgamento para validar/invalidar os atos jurisdicionais praticados pelo Juíz de Instrução, fazendo uma reapreciação não substancial dos atos.
4.1. – O Acórdão da Relação que, na fase de inquérito, anulou o ato de distribuição do Juiz de instrução criminal, que perentoriamente considerou que não tinha ocorrido violação do princípio do Juiz natural e que a distribuição não era um direito.
4.2. – Encontrando-se, o processo no tribunal de julgamento, este considerou-se competente para, dando cumprimento ao decidido pela Relação, apreciar a validade/invalidade dos atos praticados pelo Juiz de instrução.
4.3. – Nessa tarefa, o tribunal não procedeu a uma apreciação substancial dos atos, antes situando-os na fase de inquérito e tendo em consideração a função do juiz de instrução criminal naquela fase e os atos que legalmente aquele deve praticar, adotou o critério de que apenas serviam para invalidar os atos que na perspetiva finalística do processo, não deviam ter sido praticados, ou os que não tenham observado os pressupostos legais, que em abstrato, condicionavam a sua prática.
4.4. – Sendo ampla a função do tribunal de julgamento no controlo dos vícios processuais que se situam em fases anteriores do processo (artigo 311.º, n.º 1, do CPP), a competência assumida pelo tribunal e a forma como a exerceu, não viola a estrutura acusatória do processo penal (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição).
4.5. – Quanto ao critério adotado para a apreciação da validade dos atos, como a interpretação suscitada não corresponde à aplicada, não deve conhecer do recurso, nesta parte.
4.6. – Não ter sido realizada uma reapreciação substancial dos atos, antes se tendo seguido o critério que anteriormente referimos, tal não viola as garantias de defesa do arguido.
4.7. – Os atos objeto de reapreciação formam praticados pelo Juiz de Instrução “natural”, e deles foi livremente interposto recurso.
4.8. – A validação dos atos pelo tribunal de julgamento, segundo o critério adotado, não afeta a imparcialidade ou independência dos Juízes que procedem ao julgamento.
5. – Terceira questão referente à inconstitucionalidade das normas dos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, ambos do CPP.
5.1. – Esta questão de inconstitucionalidade foi suscitada e decidida como uma questão excecional.
5.2. – Porém, no sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade que vigora entre nós, foi adotada a via do recurso de constitucionalidade, ou seja, cabe recurso para o Tribunal Constitucional da decisão que, para resolução da causa, aplique, como ratio decidendi, a norma reputada de inconstitucional.
5.3. - Assim, não tendo sido as normas aplicadas, como ratio decidendi (constituído elas a própria ratio decidendi), não deve conhecer-se do objeto do recurso.
5.4. – Sendo diferentes os interesses do assistente e da parte civil no processo, aos das testemunhas, compreende-se que seja diferente o regime de tomada de declarações a uns e a outros.
5.5. – Podendo com a mediação do Presidente o defensor fazer as perguntas que reputar de úteis, o facto de elas não poderem ser feitas diretamente não viola as garantias de defesa do arguido.
5.6. – Assim, não sendo violado o artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 346.º e nº 1 do artigo 347º do CPP, não são inconstitucionais.
5.7. – A ordem de intervenção que consta dos artigos 346º, nº 1 e 347.º, n.º 1, do CPP, tem perfeita lógica.
5.8. – Sendo imperativa, não impede, todavia, que posteriormente possam ser pedidos todos os esclarecimentos necessários pelos diversos sujeitos processuais.
5.9. – Assim, nesta interpretação – a adotada na decisão recorrida - aquelas normas não são inconstitucionais por violador das garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1 e 2 da Constituição).
5.10. – A conhecer-se, deve pois, nesta parte, negar-se provimento ao recurso.
6. – Sexta questão referente à inconstitucionalidade das normas dos artigos 356.º, n.ºs 2, alínea b) e 5 e 355.º, n.º 1, todos do CPP.
6.1. Em obediência ao princípio do contraditório e da imediação, a regra geral é a de que, em julgamento, só valem as provas que tenham sido produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355.º, n.º 1, do CPP).
6.2. A possibilidade de leitura de declarações prestadas em anteriores fases do processo tem sempre caráter excecional e um regime diferenciado, seja em função da natureza dos atos processuais, seja em função da autoridade judiciária ou policial perante quem foram prestadas.
6.3. O princípio de intransmissibilidade visa, em primeira linha, proteger os direitos do arguido.
6.4. Em nome da verdade material e para que o princípio do contraditório e do direito a um processo equitativo seja respeitado, o regime legal em que taxativamente se elencam as exceções àquele principio, aplicam-se a todos os sujeitos processuais.
6.5. A norma do artigo 355.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5, do CPP, enquanto condiciona a leitura de declarações anteriormente prestadas em inquérito, perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal, de assistentes e testemunhas, ao acordo do Ministério Público, do arguido e dos assistentes, não viola os artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 4, da Constituição, nem do artigo 6.º da CEDH, não sendo, por isso, inconstitucional.
6.6. – Deve assim, nesta parte, negar-se provimento ao recurso.
7. – Sétima questão referente à inconstitucionalidade das seguintes normas:
a) dos art.s 1.º, al. f) e 358.º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, não são substanciais, por violação.
b) do art.º 358.º do Código de Processo Penal, na interpretação feita pelo tribunal subjacente ao tempo em que a decisão recorrida – de comunicação de alterações de facto – foi proferida.
c) da interpretação normativa conjugada dos art.ºs 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º todos do Código de Processo Penal, efetuada pelo Tribunal, no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que considerara indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos.
d) da interpretação dos art.ºs 340.º e 358.º do Código de Processo Penal, no sentido da necessidade de fundamentação/justificação para o indeferimento dos requerimentos de prova dos arguidos.
7.1. – Questão identificada na alínea a).
O acórdão recorrido interpretando o artigo 358.º e 1.º, alínea f) do CPP, entende que a alteração das circunstâncias da execução do crime, como o dia, a hora ou o local da sua prática apenas deverão ser qualificados como substanciais se elas transformarem o objeto do processo num outro distinto.
7.3. – Também considerou a Relação que se uma alteração de factos comunicado ao arguido comprometer a sua defesa, deverá ser qualificado com substancial.
7.4. – São, pois, diferentes, a dimensão normativa efetivamente aplicada e aquela que vem questionada.
7.5. – Partindo da interpretação que acolheu, no acórdão recorrido – exercendo uma competência que só a ele cabe e não ao Tribunal Constitucional - apreciaram-se criteriosamente as concretas alterações, situando-as e analisando-as no contexto da extensa prova produzida e concluindo que elas não alteravam o objeto do processo, nem comprometiam a defesa do arguido, qualificaram-se, consequentemente, como não substanciais.
7.6. – Assim, não correspondendo a interpretação aplicada à questionada. não deve tomar-se conhecimento do recurso.
7.7. – Questão identificada na al b)
Como a interpretação enunciada pelo recorrente não corresponde à ratio decidendi do Acórdão recorrido, não deverá conhecer-se do recurso, nesta parte.
7.8. - Questão identificada na al c)
A interpretação acolhida no Acórdão recorrido é diferente da questionada pelo recorrente, não podendo, nesta parte, conhecer-se do recurso.
7.9. - Questão identificada na al d)
Também não deverá conhecer-se do objeto do recurso por falta de correspondência entre a dimensão normativa aplicada e a questionada.
8. – Oitava questão referente à inconstitucionalidade das normas dos artigos 48.º, 49.º, n.º 1, 113.º , 115.º, 178.º todos do CPP, por violar o artigo 29.º e 203.º da Constituição.
8.1. – O recorrente não impugnou um critério normativo, entendendo antes que a prática de determinados atos violava o princípio de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável.
8.2. – Por outro lado, como, face a ter ocorrido uma sucessão de leis no tempo, a decisão recorrida, após ponderação, aplicou a mais favorável, o afirmado pelo recorrente não tem qualquer correspondência no acórdão recorrido.
8.3. – Deve pois, nesta parte, não se tomar conhecimento do recurso.”
A Casa Pia de Lisboa, I.P., apresentou alegações com as seguintes conclusões:
“Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 33.º n.º 1, 14.º, 17.º, 268.º e 269.º, do CPP
I. O Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu o acórdão a ordenar a remessa dos autos para “o tribunal atualmente competente”, era ele próprio competente para proceder à extração das legais consequências da nulidade dos atos de instrução sub judice, nomeadamente a validação ou invalidação destes, só não o logrando por manifesta falta de elementos nos autos de recurso que lho permitissem, com seja o elenco e teor dos atos de instrução declarados nulos.
II. Ao ordenar a remessa dos autos ao “tribunal atualmente competente”, a Relação de Lisboa referiu-se ao tribunal competente de acordo com o estado em que o processo se encontrava à data da prolação, o que significava remeter os autos para o tribunal onde o processo seguia os seus termos na data do acórdão, sabendo que a fase de inquérito já estava encerrada.
III. Se a Relação entendesse que o tribunal competente para extrair as conclusões da nulidade em causa fosse o (1.º ou 5.º Juízo) do TIC, teria expressamente ordenado a remessa para esse tribunal, sabendo – face aos autos de recurso – que em fase de inquérito o processo havia sido inicialmente distribuído ao 5.º Juízo e posteriormente averbado ao 1.º Juízo.
IV. Estando a presidente do coletivo da 8.ª Vara Criminal de Lisboa obrigada, nos termos do artigo 311.º, n.º 1, do CPP, a conhecer das nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa é indisputável ser este Tribunal materialmente competente para validar os atos nulos em causa, nos termos prescritos no artigo 33.º, n.º 1, do mesmo diploma.
V. Do exposto decorre que o Tribunal de 1.ª instância não violou os preceitos constitucionais invocados – artigos 28.º, 32.º, n.º 1, 2 e 5, 205.º, e 211.º, n.º 1 e 2, da CRP – na interpretação que fez dos artigos 33.º n.º 1, 14.º, 17.º, 268.º e 269.º, do CPP, ao validar os atos de instrução em causa.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 346.º n.ºº1 e 347.º, n.º 1, do CPP
VI. Não explicitando o recorrente qual o prejuízo concreto que para si resultou a interpretação normativa dos artigos 346.º n.º 1 e 347.º, n.º 1, do CPP, não indicando em quais inquirições, de que assistente/demandante, e relativamente a que concreta questão, se sentiu prejudicado por não interrogar diretamente e em último o assistente em causa, nem concretizando de que forma os n.º 1, 2 e 5 do artigo 32.º da CRP e os correlativos princípios do contraditório, da imediação da prova e da presunção da inocência, foram violados pela interpretação do Tribunal, soçobra a invocada inconstitucionalidade.
VII. Nas inquirições dos assistentes e demandantes civis, o arguido, ainda que por intermédìo da Juiz Presidente fez todas perguntas e esclarecimentos que entendeu, apenas limitadas pela sua pertinência e relevância para o objeto do processo, no decorrer de longuíssimas instâncias que duraram semanas, até mesmo, num caso, um mês, de que forma alguma resultando ofendido o princípio do contraditório plasmado no n.º 2, do artigo 32.º da CRP.
VIII. A imediação entre os meios de prova e a defesa do arguido em nada foi prejudicada pela inquirição intermediada pelo Juiz Presidente dado ter, como os demais sujeitos processuais e o coletivo, ampla oportunidade de apreciar a reação fisionómica, o discurso, e outras características geradoras da impressão causada pelas respostas do depoente.
IX. Ao pretender verter a sua própria emotividade nas questões a colocar aos declarantes, o arguido esquece que o assistente é a vítima e o demandante o lesado e não poderão ser penalizados pela contrainquirição mais viva com que o recorrente pretenda descredibilizar as suas declarações, não pela força de argumentação racional, mas pelo tom mais ou menos agressivo com que as queria colocar.
X. Tal seria tornar ainda mais penoso para os assistentes o reviver da dolorosa experiência dos abusos a que foram submetidos, por não ser neutro do ponto de vista da vítima, a forma e o tom com lhes colocam questões e representaria uma violação do princípio da dignidade da pessoa humana – sacrificado no altar das garantias de defesa do arguido em prol de uma pretensa salvaguarda de um direito assegurado plenamente pelo Tribunal – também ele tutelado pela Lei Fundamental mormente nos artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º n.º 1, 2 e 3, da CRP.
XI. Respeitado que seja o princípio da igualdade de armas, dando à acusação e defesa a mesma oportunidade na inquirição, identidade traduzida não só na possibilidade de realizar questões como nas condições em que as partes questionam o depoente, não sai prejudicado o direito do arguido à sua defesa de acordo com um processo equitativo.
XII. O que o arguido parece pretender dizer, ao afirmar a violação do princípio da presunção de inocência é que a posição do Tribunal quanto às questões em causa são reveladoras de uma posição preconceituosa relativamente a si, exprimindo esta interpretação normativa um juízo apriorístico desfavorável ao arguido que é desmentido pela absoluta igualdade com que, no plano formal e substancial, o Tribunal tratou as partes processuais.
XIII. Com a redação que deu aos artigos 346.º n.º 1 e 347.º, n.º 1, do CPP, o legislador expressamente excluiu o MP, o defensor e o advogado do assistente das entidades que podem diretamente tomar declarações ao assistente e à parte civil, não por equívoco ou distração, mas por reconhecer que vítima e lesado têm uma posição processual autónoma dentro do processo distinta do interesse público em punir a prática de ilícitos criminais.
XIV. A forma como as perguntas aos assistentes foram feitas, no âmbito da sua inquirição pelas defesas, traduziu-se, na prática, no instar direto do declarante pelo defensor, seguindo a esmagadora maioria das questões a forma que se exemplifica:
Defensor (dirigindo-se à Juiz Presidente): «Sr. L. .. nessa altura não se dava com o C..., não é? Então como sabe que o arguido o ia esperar todos os dias...?»
Juiz presidente (dirigindo-se ao assistente declarante): «Sr. L., pode responder.»
De seguida o assistente respondia, as mais das vezes a olhar diretamente para o defensor que estava a instar.
XV. Cada defensor dos arguidos na sua contrainquirição esteve sempre face a face (fisicamente estavam em dois pódios colocados frente a frente) com o declarante, pelo que pode observa a reação deste às questões colocadas, a sua fisionomia etc. tudo aquilo que consubstancia a imediação proporcionada pelo julgamento.
XVI. O despacho em causa salvaguardou expressamente a possibilidade das defesas poderem requerer esclarecimentos adicionais após a inquirição do advogado dos assistentes/demandantes, desde que pertinentes ao objeto do processo, tornando absolutamente redundante a questão da defesa instar ou não em último lugar, s.m.o,
XVII. Não deve ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 246.º, n.º 1 e 247.º, n.º 1, do CPP no sentido em que a instância aos assistentes e demandados deve ser feita por intermédio da presidente e na sequência de sujeitos processuais indicada naqueles normativos, por esta não violar o artigo 32.º, n.º 1, 2 e 5, da CRP.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 356.º n.º 2, b) e 5 e 355.º, n.º 1, do CPP
XVIII. A estrutura acusatória do processo penal concentra a prova no julgamento, por força de outros princípios, também eles estruturantes e securitários da posição do arguido: a imediação e a oralidade asseguram a aquisição da prova em julgamento, garantindo a espontaneidade do relato e minimizando ou mesmo eliminando os riscos de contaminação da prova.
XIX. A concentração da prova em julgamento garante, por outro lado, a possibilidade do exercício do contraditório, assim garantindo a todos os sujeitos processuais uma igualdade de armas que, só nesta fase é possível garantir.
XX. As declarações prestadas anteriormente à audiência final em 1.ª instância, por qualquer sujeito processual ou testemunha não são verdadeira prova mas, tão-somente, um fummus indiciário da existência de determinados factos e, não permitem, a nenhum deles o exercício do contraditório e tal é feito não para limitar a ninguém o exercício de Direitos, antes sim para os garantir, de forma equilibrada e tendo em vista o fim último do processo: a verdade material!
XXI. As normas do artigo 356.º do CPP assumem um caráter marcadamente excecional, só e apenas dentro dos seus limites permitindo a derrogação da regra e dos princípios em que a mesma se estriba, sendo uma delas a que leitura de declarações em resultado da aceitação de um princípio de consenso entre os sujeitos processuais (art. 356.º, n.º 2, al. b) e n.º 5 do CPP).
XXII. Este Venerando Tribunal (Ac. n.º 1052/96 de 10/10/96) já se pronunciou sobre os artigos 356.º n.º 2, al. b) e 5 considerando que não existe qualquer inconstitucionalidade na necessidade deste acordo (entre MP, arguido e assistente), por não implicar uma restrição inadmissível das garantias de defesa do arguido, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do Princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355º, nº 1 do CPP, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido.
XXIII. Ao contrário do pretendido pelo Recorrente, o arguido não é senhor do princípio da imediação, pois este é um princípio de garantia da sentença e, nessa medida, protege também o assistente, sendo que, a disciplina da audiência, mormente no que concerne à admissibilidade ou não da leitura de declarações prestadas antes do julgamento constitui poder de disciplina confiado ao Tribunal (artigo 14º CPP).
XXIV. Pese embora a eventualidade de ser discutível a opção legislativa portuguesa (como serão certamente as de outros países), não se vislumbra existir qualquer inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa consignadas no artigo 32º e 20º da CRP.
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 1.º, f), 340.º, 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º, do CPP
XXV. Quanto à questão de saber se alterações de lugar e tempo são substanciais ou não, comece-se por dizer que se é verdade que é importantíssimo o circunstanciar do crime, concretizando a concreta situação de vida em que se deu a sua prática, a realidade é que o tempo e o lugar não são imprescindíveis para que se possa dizer que tal crime foi cometido, bastando que se consiga balizar minimamente o local e o tempo em que tal facto ocorreu, ainda que com limites relativamente latos.
XXVI. Decorre da formulação do artigo 283.º, n.º 3, b), do CPP que a indicação do lugar, tempo e motivação, deve ser incluída na acusação, se possível, o que confere um caráter de eventualidade a tal indicação, apontando claramente no sentido da não imprescindibilidade de tal indicação, ou a sua maior ou menor precisão, para que se possa validamente imputar o facto ao agente.
XXVII. Na prática judiciária, há inúmeras acusações que contêm formulações não precisas:
“em dia não concretamente apurado, mas situado entre os meses de janeiro e março de 2009 numa rua paralela à avenida da liberdade”, sem que com tal não se deixe de imputar a prática de tal ilícito ao agente.
XXVIII. Dizer que o facto imputado não ocorreu na Rua ..., n.º .. em Lisboa, mas numa moradia no bairro de moradias do Restelo, na zona das Ruas ... e …, não implica a imputação ao arguido de qualquer crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que tal alteração de lugar e modo não constitui uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia.
XXIX. As alterações de lugar e tempo não configuram uma modificação da conduta criminosa, mas apenas das circunstâncias da sua execução, emoldurando aquela conduta na concreta situação da vida em que ocorre, sem que com isso se desvirtuem os elementos essenciais do tipo, precisamente por isso é que não configuram a imputação de novo tipo incriminador ou a agravação dos limites máximos aplicáveis.
XXX. A vinculação temática, decorrência da estrutura acusatória do processo penal, deve ser temperada com o princípio da investigação, por sua vez decorrência do princípio da verdade material, e que constitui uma válvula de escape para a rigidez processual que representaria o facto do julgador, apercebendo-se no decurso da audiência que as circunstâncias de lugar tempo e modo em que ocorre a prática do ilícito poderão não ser exatamente as descritas na acusação embora caibam na mesma situação de vida unitária, não a desvirtuando nos seus elementos caracterizadores essenciais, não pudesse integrar tais circunstâncias no objeto do processo.
XXXI. A interpretação feita pelo tribunal do artigo 358.º do CPP em nada ofende os direitos de defesa do arguido, inexistindo a invocada inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º, n.º 1, 2 e 5, da CRP.
XXXII. Quanto à extemporaneidade da comunicação das alterações não substanciais, adiante-se que não obsta a que sejam comunicadas o facto de já terem decorrido as alegações dos sujeitos processuais, nada existindo da lei que o impeça.
XXXIII. Tal não só é aceitável como parece mais lógico, caso contrário, comunicando-se as alterações no decorrer da produção de prova poderia ocorrer que, face à nova prova admitida acerca das alterações, se suscitarem novos indícios probatórios que, ponderados pelo Tribunal levassem a nova alteração dos factos.
XXXIV. O juízo do Tribunal sobre tais factos de que resulta a alteração não substancial sempre será provisório, só se formando a sua convicção após a produção de prova sobre estes, facultando aos sujeitos afetados por tal decisão a possibilidade de indicarem a prova que entenderem necessária e de escrutiná-la devidamente em audiência contraditória, sem que com isso se ofendam as garantias de defesa e se subverta o princípio do acusatório.
XXXV. Tendo a decisão de comunicação das alterações sido feita em tempo, em atenção ao prescrito no artigo 358º, do CPP, nenhuma inconstitucionalidade deve ser declarada por violação dos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, 2 e 5, 18.º n.º 2 e 3, da CRP e 6.º, n.º 1 e 3, a) da CEDH.
XXXVI. No que se refere à inconstitucionalidade decorrente do facto do tribunal ter feito a comunicação das alterações não substanciais de factos constantes da pronúncia com a indicação dos novos factos remetendo para a prova produzida nos autos, não tem razão o recorrente ao pretender que deveria fundamentar a sua decisão nos termos exigíveis para a decisão final da causa: isto é com a indicação de todos os meios de prova em que se funda a sua convicção – meramente indiciária – e análise crítica da mesma.
XXXVII. Tal entendimento não tem sustentação legal, decorrendo dos artigos 358.º e 359.º do CPP, que o Tribunal apenas deve comunicar aos arguidos afetados quais as alterações que entende indiciadas face à prova produzida.
XXXVIII. O artigo 97.º, n.º 5, do CPP refere-se à fundamentação de decisões o que não é o caso porquanto a decisão de comunicação não é uma decisão em sentido próprio mas a comunicação da possibilidade de, face à prova produzida, vir a entender que a descrição factual constante da pronúncia poderá ser ampliada.
XXXIX. O Tribunal limita-se a emitir um juízo perfunctório decorrente do que já foi dito, lido e visto na audiência até esse momento e não a expressão de uma convicção já formada, apenas advertindo que poderá vir a dar como provada a ampliação ou alteração da factualidade que circunstancia o crime não emitindo uma decisão definitiva, a qual dependerá da prova que vier a ser produzida.
XL. Os arguidos também conhecem, por ter sido produzida perante si, a prova a que se ateve o tribunal pelo que se não concebe a necessidade do Tribunal fundamentar o seu juízo provisório com a indicação exaustiva dos meios de prova donde provem.
XLI. Se o Tribunal procedesse à análise crítica da prova em que fundou o seu juízo perfunctório, estaria a antecipar a sua decisão sobre tais factos, adiantando, mesmo que sumariamente, a ponderação e valoração atribuída aos meios de prova que considerou para o efeito, o que não é permitido pelo processo penal.
XLII. Não se descortina, assim, que a interpretação que o Tribunal fez dos artigos 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º, do CPP, violem qualquer garantia de defesa, ou a obrigação de fundamentação das suas decisões definitivas, e por isso os artigos 205.º, n.º 1 e 32.º da CRP e 6.º n.º 1 e 3, a) e b), da CEDH,
XLIII. Quanto à inconstitucionalidade emergente da suposta falta de justificação do indeferimento dos meios de prova indicados pelo arguido na sequência da comunicação das alterações, diga-se que o Tribunal fundamentou a decisão acerca da prova, nas considerações gerais acerca do entendimento que faz da admissibilidade dos meios de prova relativos às alterações e da necessidade dos arguidos fundamentarem o requerimento probatório, pronunciando-se depois acerca dos meios concretamente indicados.
XLIV. O entendimento do arguido confunde a possibilidade de definir a sua estratégia de defesa, tutelada pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP, com um direito irrecusável a ver aceite toda a prova que indicar independentemente da sua relevância para a descoberta da verdade, ou necessidade para a boa decisão da causa.
XLV. Tenha-se presente que se trata de prova suplementar, que apenas deve complementar a já produzida, sendo de rejeitar a que aparece ao Tribunal como mera repetição, sem que se conheça a utilidade desta, e a que se lhe afigure não relevar ao objeto do processo, sem que quem a requer estabeleça a necessária conexão entre uma e outro.
XLVI. Por isso, não estando o Tribunal obrigado a aceitar toda e qualquer prova que o sujeito indique, nem tendo este justificado a sua necessidade e pertinência ao objeto do processo, impõe-se-lhe rejeitar as que lhe aparecem como sendo irrelevantes ou supérfluas, inadequadas ou de obtenção difícil ou muito duvidosa, ou constituírem mero expediente dilatório com o que o arguido pretende adiar ad eternum a prolação da decisão final.
XLVII. Não está, assim, ferida de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a decisão sobre a prova suplementar que interpreta e aplica corretamente os artigos 340.º e 358.º, do CPP quanto
Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do CPP e 113.º n.º 1 e 3 e 115.º, n.º 1, do CP
XLVIII. É pacífico que o ofendido tem a possibilidade de apresentar queixa no prazo de seis meses após ter completado os 16 anos de idade, caso contrário o direito de queixa do ofendido extinguir-se-ia antes de poder ter sido exercido, dado antes de atingir os 16 anos de idade o assistente não ser titular do direito de queixa, deferido ao seu legal representante.
XLIX. A única interpretação possível da disciplina do n.º 1, do artigo 115.º, do CP, é que só quando o titular do direito de queixa efetivamente o é, por estar em condições de exercer a queixa, se pode iniciar a contagem do prazo de 6 meses previsto naquele normativo, pois antes essa faculdade não está na sua disposição jurídica
L. Por outro lado, quanto à legitimidade do MP se diga que este ao aperceber-se que os factos que lhe chegaram ao conhecimento são passíveis de integrar um crime semipúblico e não tendo o respetivo titular deduzido queixa, o MP, entendendo que o interesse da vítima o impõe, pode dar início ao procedimento, seja nos termos do n.º 6, do artigo 113.º, seja nos termos do n.º 2 (ou n.º 4) do artigo 178.º, do CP, para tanto invocando fundamentadamente aquele interesse, como sucedeu.
LI. A legitimidade do MP resulta da própria ratio subjacente à disciplina do n.º 2 (ou n.º 4), do artigo 178.º: salvaguardar o interesse do menor vítima de abusos sexuais da não apresentação atempada de queixa, seja por si, seja pelo seu legal representante, assegurando o andamento adequado e oportuno do procedimento, igualmente visando tal norma prevenir a perversidade resultante da não apresentação da queixa se dever a o agente do crime ser o próprio representante da vítima, titular do direito de queixa.
LII. Porém, a intervenção do MP só é possível se o titular do interesse – a vítima – não manifestar vontade em não perseguir criminalmente o agente, desde que tenha capacidade para o fazer.
LIII. Como correlativo da possibilidade de agir em nome do interesse da vítima está o MP obrigado justificar objetivamente a existência no caso concreto de interesse relevante da vítima, o qual não é presumido, através de despacho fundamentado no qual convoque as razões de facto que levaram à sua intervenção.
LIV. Impõe-se, pois, concluir que a interpretação dos artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do CPP e 113.º n.º 1 e 3 e 115.º, n.º 1, do CP, é conforme à Constituição e não viola os artigos 29.º e 203.º da CRP.
TERMOS EM QUE não deve ser declarada nenhuma das inconstitucionalidades invocadas, confirmando-se a decisão recorrida por ser conforme à lei e à constituição”.
*
Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
1.1. Requisitos gerais do recurso de constitucionalidade
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Contudo, este requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) considera-se dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
O objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção de uma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Expostos, sumariamente, os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelos Recorrentes neste processo.
1.2. Questões suscitadas nos requerimentos de interposição de recurso
O arguido A., no requerimento de interposição de recurso do acórdão de 7 de dezembro de 2011 do Tribunal da Relação de Lisboa, pediu a fiscalização das seguintes normas:
- o artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos relevantes para a defesa do arguido, em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após a prolação daquela sentença de 1ª instância, só então sendo do conhecimento do arguido (ponto I do requerimento de interposição de recurso).
- o artigo 430.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido em que só é admissível a renovação da prova perante os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não sendo assim admissível se o pedido se fundar em documentos de prova supervenientes, maxime perante declarações de sujeitos processuais em que se baseou a sentença recorrida e que, na pendência do recurso, se retratam, assumindo por escrito, perante o tribunal de recurso, que mentiram, pedindo para serem de novo ouvidas (ponto II do requerimento de interposição de recurso).
O mesmo arguido, no requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de fevereiro de 2012 do Tribunal da Relação de Lisboa, pediu a fiscalização das seguintes normas:
- o artigo 356.º, n.º 2, b), e n.º 5, conjugado com o artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, essa leitura não pode ser admitida em audiência de julgamento, assim como o subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações (ponto I do requerimento de interposição de recurso).
- o artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que não tem que ser previamente comunicada ao arguido a alteração de uma circunstância de modo descrita na pronúncia relativa à prática do crime que o incrimina, desde que isso represente um minus e sem que tenha que ser apreciada, em concreto, a relevância da alteração dessa circunstância de modo para a defesa do arguido (ponto II do requerimento de interposição de recurso).
- o artigo 412.º n.º 3 e 4, conjugado com o artigo 417.º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto do recurso, sem que haja lugar a um convite ao aperfeiçoamento, que, apesar de especificar os concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar e as concretas provas em que se funda, não faça corresponder a cada ponto da matéria de facto cada uma das concretas provas em que se funda, antes optando por reportar a cada conjunto de factos agregados um conjunto de concretas provas que a ele se reporta, numa apresentação global das concretas razões da discordância em relação a cada núcleo factual (ponto III do requerimento de interposição de recurso).
- o artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o direito de queixa só se extingue no prazo de seis meses a partir do momento em que os ofendidos completem a idade de 16 anos (ponto IV do requerimento de interposição de recurso).
O arguido D., no requerimento de interposição de recurso apresentado em 8 de março de 2012, pediu a fiscalização das seguintes normas:
- os artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de reconhecer competência ao tribunal de julgamento para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados em fase de inquérito (ponto I do requerimento de interposição do recurso).
- artigos 1.º, al. f), e 358.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido segundo o qual as alterações de factos que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados não são alterações substanciais de factos (ponto II do requerimento de interposição do recurso).
- artigos 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido segundo o qual é admissível a comunicação de alteração não substancial dos factos constantes do despacho de pronúncia efetuada em prazo muito para além do razoável (ponto III do requerimento de interposição do recurso).
- artigos 97.º, n.º 5, e 358.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido segundo o qual a fundamentação da comunicação de alteração de factos constantes da pronúncia se basta com a indicação dos novos factos e a remissão para toda a prova produzida nos autos (ponto IV do requerimento de interposição do recurso).
O mesmo arguido, no requerimento de interposição de recurso apresentado em 6 de junho de 2012, pediu a fiscalização dos artigos 113.º, n.º 3 e 6, 115.º, n.º 1, e 178.º, n.º 2, do Código Penal, na versão dada pela Lei n.º 65/98, interpretados no sentido segundo o qual o prazo para o exercício do direito de queixa só começa a correr da data em que o ofendido completar 16 anos de idade.
O arguido F. no requerimento de interposição de recurso pediu a fiscalização das seguintes normas:
- artigo 340.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido da possibilidade de ser negada a produção de prova complementar, com fundamento em que o Tribunal já formou a sua convicção, mesmo tratando-se de meios de prova muito relevantes para aferição da credibilidade das declarações prestadas em audiência pelo assistente ofendido (ponto 1. do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 1º, al. f), e 358.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que as alterações do lugar e/ou do tempo de factos indiciários, feitas no decurso da audiência de julgamento, mesmo que, pela sua enorme amplitude, modifiquem a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, integrantes do facto concreto e unitário, da realidade unitária do facto criminoso, são não substanciais (ponto 2. do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 358.º do Código de Processo Penal, interpretado com o sentido de que a comunicação de alterações de enorme amplitude quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos indiciários pode sempre ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento (ponto 3. do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 358.º, n. 1, e 340.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de não serem admissíveis os meios de prova requeridos na sequência da comunicação de alterações de factos indiciários, para a qual o arguido não contribuiu (ponto 4. do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, na redação anterior à Lei n.º 59/2007, interpretado no sentido de que o direito de queixa do ofendido e a correspondente legitimidade do Ministério Público subsistem nos seis meses posteriores à data em que o ofendido complete 16 anos de idade (ponto 5. do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 343.º, n.º1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o exercício do direito ao silêncio pelo arguido não é inócuo, podendo globalmente desfavorecê-lo, pela repetida referência a que o arguido não prestou declarações, com repercussão na formação da convicção do Tribunal (ponto 6. do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 127.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a livre apreciação da prova pode ser feita com sobrevalorização da livre convicção e subvalorização das regras de experiência, com sobrevalorização das provas positivas e subvalorização ou mesmo esquecimento das provas negativas, com prevalência da imediação (ponto 7. do requerimento de interposição de recurso).
O arguido H., no requerimento de interposição de recurso, pediu a fiscalização das seguintes normas:
- artigos 131.º, 154.º e 155.º do Código Processo Penal, e artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de janeiro, na interpretação sustentada pela decisão recorrida, relativamente a nulidades cometidas na realização de perícias sobre a personalidade de testemunhas (ponto I do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 33.º, n.º 1, 14.º, 17.º, in fine, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de reconhecer a competência ao tribunal de julgamento para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados em fase de inquérito (ponto II 3 do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não cabe efetuar a reapreciação substancial dos atos, mas apenas aferir do cumprimento dos pressupostos legais (ponto II 5 do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não têm de ser explicitados os critérios que subjazem ao juízo de maior ou menor relevância dos atos praticados (ponto II 7 do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 346,º n.º 1, e 347.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimento aos assistentes e demandantes cíveis (ponto III 2 do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 346.º, n.º 1, e 347.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a ordem definida para a instância do assistente e do demandante cível é imperativa, pelo que o defensor do arguido formulará o seu pedido de questão ao Presidente depois do Ministério Público mas antes do mandatário do assistente e do demandante cível (ponto III 3 do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 118.º, n.º 1, 120.º n.º 2, al. d), 123.º, 124.º, n.º 1 e 2, 127.º, 128.º, n.º 1, 323.º, al. a) e g), 340.º, n.º1, e 346.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o Tribunal, constituindo objeto da prova a hipótese da existência de um processo de transferência, que leva à efabulação daquilo que é imputado aos arguidos, pode recusar a formulação de pergunta ao assistente por não a considerar necessária para a descoberta da verdade, muito embora tal esclarecimento tenha a virtualidade de possibilitar a demonstração da falsidade dos factos acusados, a sua impossibilidade ou mesmo a inocência dos arguidos (ponto IV do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 127.º, 355.º, 356.º, n.º 1, 2, al. b), e 5, e 323.º, al. f), todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de se encontrar vedado ao Tribunal ou aos restantes sujeitos processuais solicitar esclarecimentos ou colocar questões aos assistentes que incidam sobre que perguntas, em concreto, lhe foram feitas pela Polícia Judiciária aquando da sua inquirição em fase inquérito e como foram feitas (ponto V do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 356.º n.º 2, al. b), e 5, e 355.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que tendo os assistentes expressamente recusado o consentimento para a leitura de declarações prestadas em inquérito por assistentes e testemunhas, tal leitura não pode ter lugar (ponto VI do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 1.º, al. f), e 358.º, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, não são substanciais (ponto VII 18 a) do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que é possível alterar os factos do despacho de pronúncia em prazo muito para além do razoável (ao fim de mais de cinco anos de julgamento, quase um ano depois de todas as alegações finais, réplica e resposta das defesas e quase quatro anos depois do fim das declarações do Assistente em causa) (ponto VII 3 do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 358.º, 360.º e 361.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência (ponto VII 12 do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que se considera indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos (ponto VII 18 c) do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 340.º e 358.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é necessária justificação para o indeferimento dos requerimentos de prova apresentados pelos arguidos no seguimento da comunicação da alteração dos factos da pronúncia (ponto VII 18 d) do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 178.º, nº 1 e 4, do Código Penal, interpretado no sentido de a intervenção do Ministério Público poder ocorrer substituindo-se aos titulares dos direitos de queixa, desde que devida e suficientemente justificada (ponto VIII do requerimento de interposição de recurso).
- artigos 147.º, 125.º e 127.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que possa valer como identificação de alguém de quem não se conhece quaisquer características físicas e apenas pelo automóvel que possui, a mera indicação sobre uma fotografia que é coletiva e que contém retratada além de um rapaz ex-casapiano, um ator português muito conhecido, sem a necessidade de efetuar as operações de reconhecimento previstas no artigo 147.º do Código de Processo Penal (ponto IX do requerimento de interposição de recurso).
- artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação sustentada pela decisão recorrida, relativamente ao modo como se procedeu à avaliação da prova (ponto X do requerimento de interposição de recurso).
1.3. Desistência parcial dos recursos
O arguido A., nas alegações de recurso por si apresentadas, declarou renunciar a suscitar as questões por si enunciadas no ponto II de ambos os requerimentos de interposição, desistindo dos recursos nesses segmentos.
O arguido H., nas alegações de recurso por si apresentadas, declarou desistir do recurso, relativamente às questões por si suscitadas nos pontos I, IV, V, IX e X.
O recurso para o Tribunal Constitucional pelos arguidos em processo penal traduz-se numa faculdade que estes podem livremente exercer, estando também na sua disponibilidade o direito de dele desistirem.
A desistência do recurso representa, com efeito, o abandono, por parte do recorrente, da relação processual que fizera nascer. Por isso, se o recorrente podia ter aceitado a decisão recorrida — o que equivale a dizer que podia dela não ter interposto recurso —, então, também deste há de poder livremente desistir, nos termos permitidos pelo artigo 681.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º, da LTC.
Nada obsta a que a desistência seja parcial, tendo apenas por objeto alguma ou algumas das questões de constitucionalidade que haviam sido colocadas no requerimento de interposição de recurso, o que terá como consequência a extinção deste apenas quanto a essas questões.
Assim, devem ser declarados parcialmente extintos os recursos interpostos pelo arguido A., quanto às questões colocadas nos pontos II de ambos os requerimentos de interposição de recurso por si apresentados, e pelo arguido H., quanto às questões I, IV, V, IX e X enunciadas no seu requerimento de interposição de recurso.
1.4. Falta de apresentação de alegações
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o arguido H. havia suscitado no ponto II 7 a inconstitucionalidade do artigo 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não têm de ser explicitados os critérios que subjazem ao juízo de maior ou menor relevância dos atos praticados.
Nas alegações de recurso apresentadas por este arguido, esta questão não foi abordada, pelo que, por falta de alegações, deve o recurso ser julgado deserto, nesta parte, nos termos do artigo 291.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º, da LTC.
No mesmo requerimento de interposição de recurso, o arguido suscitou no ponto VIII, a inconstitucionalidade dos artigos 48.º, 49.º n.º 1, do Código de Processo Penal, e artigos 113.º, n.º 1, 115.º e 178.º, todos do Código Penal, na interpretação que foi efetuada pelo tribunal recorrido, tendo apenas explicitado que essa interpretação era no sentido de a intervenção do Ministério Público poder ocorrer substituindo-se aos titulares dos direitos de queixa, desde que devida e suficientemente justificada.
Nas alegações apresentadas, o Recorrente, relativamente a esta questão, veio invocar, por um lado, a inconstitucionalidade do entendimento normativo efetuado na decisão recorrida que permite ao Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, declarar o interesse das vítimas menores de 16 anos de idade, à data da ofensa, sem qualquer limitação temporal, mesmo quando a vítima já não possa exercer o direito de queixa por este direito ter caducado, por terem decorrido mais de seis meses sobre a idade em que a vítima adquire capacidade, e mesmo ainda decorridos seis meses após o conhecimento pelo Ministério Público dos autores do crime; e, por outro lado, a inconstitucionalidade segundo a qual o direito de queixa, nestes casos, se extingue no prazo de 6 meses contados da data em que o ofendido perfizer 16 anos de idade.
Enquanto no requerimento de interposição de recurso a inconstitucionalidade era apenas apontada ao facto do Ministério Público se poder substituir aos titulares do direito de queixa promovendo, por sua iniciativa, a ação penal, nas alegações de recurso a inconstitucionalidade já é apontada quer ao período de tempo em que, segundo a decisão recorrida, ela pode ocorrer, quer ao critério que fixa o prazo de caducidade do direito de queixa de crimes cometidos contra menores.
Estamos perante uma manifesta alteração do conteúdo da interpretação normativa questionada no requerimento de interposição do recurso efetuada em sede de alegações.
Como já acima se afirmou, em termos gerais, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou a interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Tendo o Recorrente operado nas alegações uma manifesta modificação do critério normativo cuja apreciação tinha sido requerida no requerimento de interposição de recurso, não pode essa alteração ser admitida, devendo o recurso ser julgado deserto, nesta parte, nos termos do artigo 291.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º, da LTC., uma vez que, a norma inicialmente questionada não se encontra abrangida pelas alegações de recurso apresentadas.
Deve, assim, ser julgado deserto o recurso interposto por H. quanto às questões colocadas nos pontos II 7 e VIII do seu requerimento de interposição de recurso.
1.5. Não conhecimento parcial dos recursos
O Ministério Público nas contra-alegações pronunciou-se pelo não conhecimento das seguintes questões:
- Ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 7 de dezembro de 2011 apresentado pelo arguido A.;
- Ponto III do requerimento de interposição de recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23 de fevereiro de 2012 apresentado pelo arguido A.;
- Pontos II, III e IV do requerimento de interposição de recurso apresentado em 8 de março de 2012 pelo arguido D.;
- Pontos 1, 2, 3, 4, 6 e 7 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido F.;
- Pontos II 5, III, VII e VIII do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H..
Os Recorrentes defenderam o conhecimento do mérito destas questões de constitucionalidade.
Por decisão do pleno da Secção os arguidos foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de não serem conhecidas as seguintes questões:
- Ponto IV do requerimento de interposição de recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23 de fevereiro de 2012, apresentado pelo arguido A.;
- Recurso apresentado pelo arguido D. em 6 de junho de 2012;
- Ponto 5 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido F..
O arguido D. defendeu o conhecimento do mérito destas questões, enquanto o arguido A. remeteu para o anteriormente alegado.
1.5.1. Recursos interpostos pelo arguido A.
1.5.1.1. Questão I do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 7 de dezembro de 2011
O arguido A. pediu, no ponto I do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 7 de dezembro de 2011, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos relevantes para a defesa do arguido, em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após a prolação daquela sentença de 1ª instância, só então sendo do conhecimento do arguido.
Com a resposta aos recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa pelo Ministério Público, pela Casa Pia de Lisboa e pelos assistentes J., K. e B., o arguido A. veio juntar aos autos três documentos (2 DVD’s com entrevistas dos assistentes L. e E. e 1 livro da autoria de L.).
O Ministério Público, no parecer a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que tais documentos não deviam ser admitidos nesta fase processual.
Notificado, nos termos e para os efeitos do n.º 2, do artigo 417.º, do Código de Processo Penal, veio o arguido A., reiterar que os três documentos por si juntos fossem admitidos, requerendo, ainda, a junção de mais cinco documentos (2 DVD’s com entrevistas do arguido M. e do assistente K. e publicações das entrevistas concedidas por estes a três órgãos de comunicação social).
Através de novo requerimento veio o arguido A. requerer a junção de mais cinco documentos.
Em 7 de dezembro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão em que decidiu não admitir, com fundamento na sua extemporaneidade, a junção aos autos dos documentos oferecidos pelo arguido A. com a resposta aos recursos do Ministério Público, da Casa Pia de Lisboa e dos assistentes J., K. e B., bem como os oferecidos com os requerimentos posteriores.
O Tribunal recorrido fundamentou esta decisão no disposto no artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”, tendo interpretado este preceito com o sentido de que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido.
Neste aresto defendeu-se que o último momento até ao qual o arguido pode produzir prova através da apresentação de documentos é o do encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, estando-lhe vedada essa possibilidade já em sede de recurso, nomeadamente como suporte da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mesmo quando se tratem de documentos supervenientes.
Defende o Ministério Público que o tribunal recorrido, além desta fundamentação, também considerou que os documentos juntos eram absolutamente irrelevantes para a decisão da causa, o que resultaria, por um lado, na adoção de uma segunda linha argumentativa de indeferimento, a qual, ao não ter sido impugnada junto do Tribunal Constitucional, retiraria qualquer utilidade prática à apreciação da constitucionalidade da norma impugnada, e, por outro lado, na não correspondência entre a norma impugnada e a aplicada pela decisão recorrida.
Contudo, da leitura da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 7 de dezembro de 2011, conclui-se que o tribunal recorrido, depois de afirmar que não era possível a junção de documentos, como meio de prova, após o encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, limitou-se a acrescentar que os documentos juntos, pela sua natureza e conteúdo, não tinham a força probatória suficiente para, com a sua simples apresentação, se verificar que eles iriam incontestavelmente influir na decisão da causa, sendo sempre exigível, num juízo de livre ponderação da prova, a sua valoração conjugada com os restantes elementos probatórios, produzidos com observância de regras processuais próprias, com publicidade, na presença de todos os intervenientes processuais e com o cumprimento do princípio do contraditório, em que os interessados são confrontados com versões antagónicas dos factos.
Não se afirmou, pois, que os documentos apresentados não tinham qualquer relevância para a decisão da causa, mas apenas que os mesmos não eram suscetíveis de “incontestavelmente influírem na decisão da causa”.
Esta afirmação não foi proferida como autonomamente justificativa da decisão de não admissão dos documentos, a qual apenas se baseou na sua apresentação extemporânea, tendo apenas visado afastar a possibilidade de estarmos perante uma situação em que poderia ser convocável uma tese “mais expansiva”, nas palavras do acórdão recorrido, que, excecionalmente, admitisse a junção de documentos dotados de uma força probatória capaz de, só por si, determinar uma alteração da decisão recorrida.
Deste modo, não se emitiu um juízo de irrelevância da prova apresentada, como fundamento da sua inadmissibilidade, mas apenas se apontou que os documentos juntos não tinham uma força probatória que justificasse uma outra ponderação de interesses.
Este argumento visou apenas afastar a aplicação duma eventual exceção à regra da não admissibilidade da junção de documentos após o encerramento da audiência em 1.ª instância, tendo sido essa regra que fundamentou a decisão recorrida.
Assim, não só a decisão recorrida não invoca um segundo fundamento para a não admissão dos documentos apresentados em sede de recurso, como também não existe uma ausência de correspondência entre o critério questionado e o critério aplicado por aquela decisão.
É certo que, na formulação do Recorrente da interpretação normativa, cuja fiscalização de constitucionalidade se pretende, se faz referência a uma situação de junção de documentos relevantes para a defesa do arguido, quando o critério normativo em que se apoiou a decisão recorrida desconsidera qualquer juízo sobre a relevância dos documentos. Esta discrepância de mero pormenor não é, contudo, suficiente para que se considere que o objeto do recurso definido pelo respetivo requerimento de interposição não coincide com a norma aplicada pela decisão recorrida, exigindo apenas uma precisão da enunciação da questão colocada ao Tribunal Constitucional pelo Recorrente, tendo em conta o critério efetivamente utilizado.
Assim, neste recurso deve ser fiscalizada a constitucionalidade da norma constante do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos que o arguido considera relevantes para a sua defesa, em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido.
1.5.1.2. Questão III do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de fevereiro de 2012
O arguido A. pediu, no ponto III do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de fevereiro de 2012, a fiscalização da constitucionalidade do artigo 412.º, n.º 3 e 4, conjugado com o artigo 417.º, nºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto do recurso, sem que haja lugar a um convite ao aperfeiçoamento que, apesar de especificar os concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar e as concretas provas em que se funda, não faça corresponder a cada ponto da matéria de facto cada uma das concretas provas em que se funda, antes optando por reportar a cada conjunto de factos agregados um conjunto de concretas provas que a ele se reporta, numa apresentação global das concretas razões da discordância em relação a cada núcleo factual.
O Ministério Público, nas suas contra-alegações, defende que o recurso não deve ser conhecido nesta parte porque foi omitido o cumprimento do dever de suscitação prévia perante o tribunal recorrido desta questão de constitucionalidade e porque o critério enunciado não corresponde ao critério seguido pela decisão recorrida, relativamente ao cumprimento do dever de especificação dos pontos da matéria de facto impugnada.
Se é verdade que o Recorrente não colocou previamente ao tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora submete ao Tribunal Constitucional, admite-se que não lhe era exigível tal antecipação.
Na verdade, a adoção desse comportamento implicaria a admissão de um incumprimento voluntário dos requisitos de apresentação formal de uma peça processual, antecipando desse modo um eventual juízo reprovador do tribunal nesse sentido, o que seria frontalmente contrário aos seus próprios interesses.
Nestas situações, tal como este tribunal já entendeu em casos similares (v.g. os Acórdãos n.º 605/95 e 122/2000, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt) deve considerar-se que a parte está dispensada no cumprimento do ónus exigido pelo artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
Já quanto à apontada falta de coincidência entre o critério normativo enunciado pelo Recorrente e aquele que foi adotado na decisão recorrida há que ter presente as razões que motivaram a rejeição do recurso do arguido na parte em que impugnava a decisão da matéria de facto da primeira instância.
Lê-se no acórdão recorrido:
“Alega o recorrente que pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto quanto aos pontos 106. a 106.22., 113. a 116., 120. a 124, 125. a 127. e 131 a 135.2..
Verifica-se, porém, que o recorrente não deu cumprimento ao disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, nem nas conclusões, nem na motivação do recurso.
De acordo com o n.º 3 deste preceito o recorrente ao impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas.
E o n.º 4 do mesmo artigo estabelece que, quando as provas tenham sido gravadas, as menções das als. a) e b) devem ser feitas por referência ao consignado na ata de julgamento, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Como se refere no Ac. do STJ de 28/10/2009, proferido no âmbito do Proc. 121/07.9PBPTM.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt a impugnação deve ser feita ponto por ponto, não relevando uma impugnação genérica ou imprecisa dos factos.
Ora, o recorrente, pese embora tenha começado por indicar os pontos de facto que pretendia impugnar, ao longo de 583 páginas tece as mais variadas considerações sobre o acórdão recorrido, refere-se a provas produzidas indiscriminadamente durante o inquérito, instrução e julgamento, sem que, contudo, faça qualquer referência aos concretos pontos de facto que está a impugnar.
Ou seja, o recorrente impugna de forma genérica a matéria de facto, não especificando em relação a cada ponto de facto as razões da sua discordância.
Nestes casos em que o recorrente não dá cumprimento ao ónus de impugnação especificada, nem nas conclusões, nem na motivação de recurso, não há que endereçar-lhe convite para aperfeiçoamento, pois tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.”
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não admite, pois, que o arguido nas alegações de recurso a ele dirigidas tenha reportado a cada conjunto de factos agregados um conjunto de concretas provas que a ele se reporta, numa apresentação global das concretas razões da discordância em relação a cada núcleo factual, antes referindo que nessas alegações o arguido se limitou a tecer as mais variadas considerações sobre o acórdão recorrido, referindo-se a provas produzidas indiscriminadamente durante o inquérito, instrução e julgamento, sem que, contudo, faça qualquer referência aos concretos pontos de facto que está a impugnar.
É uma leitura bem diferente da impugnação da decisão da matéria de facto daquela que o arguido formula como critério normativo a ser fiscalizado pelo Tribunal Constitucional, pelo que o conteúdo normativo integrante desta questão não corresponde à ratio decidendi do acórdão recorrido.
Por esta razão não deve o recurso em causa ser conhecido quanto a esta questão.
1.5.1.3. Questão IV do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de Fevereiro de 2012
O arguido A. pediu no ponto IV do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de Fevereiro de 2012, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o direito de queixa só se extingue no prazo de seis meses a partir do momento em que os ofendidos completem a idade de 16 anos.
Este arguido, no requerimento de abertura de instrução, havia suscitado a questão de os crimes dos autos serem semipúblicos e nenhuma das supostas vítimas, ou os seus representantes legais, terem apresentado queixa no prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, ou seja de seis meses, a contar da data em que tiveram conhecimento dos factos, o que conduzia à falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal.
O Juiz do Tribunal de Instrução Criminal proferiu despacho a julgar não verificada a causa de extinção do procedimento criminal invocada pelos arguidos.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, no acórdão proferido em 23 de fevereiro de 2012, o julgou improcedente.
O Tribunal da Relação de Lisboa não atendeu a pretensão do arguido, por ter entendido que, relativamente aos crimes pelos quais o arguido havia sido condenado não se havia apurado que os representantes legais dos menores tivessem tido conhecimento dos respectivos factos e dos seus autores antes dos ofendidos completarem 16 anos, pelo que o direito de queixa dos ofendidos, cujo exercício é necessário ao prosseguimento do procedimento criminal, só se extinguia no prazo de seis meses a partir do momento em que completassem a idade de 16 anos, tendo as respetivas queixas sido apresentadas dentro desse prazo.
O acórdão recorrido utilizou um critério normativo, relativo ao exercício do direito de queixa quando os ofendidos são menores de 16 anos e ao respectivo prazo de caducidade, que incluiu no seu conteúdo, como elemento decisivo, o não apuramento do conhecimento, pelos representantes legais daqueles, dos factos integradores da infracção criminal em causa e dos seus autores antes dos ofendidos completarem 16 anos.
Já a norma cuja fiscalização de constitucionalidade o arguido peticiona não contempla esse elemento, pelo que o seu conteúdo abrange todos os casos em que o ofendido completa 16 anos sem ter sido exercido o direito de queixa, independentemente da possibilidade que os representantes do ofendido tiveram para a apresentar, enquanto aqueles não atingiram aquela idade.
Esta é uma norma diversa daquela que foi utilizada pelo tribunal como fundamento da decisão de reconhecimento de legitimidade do Ministério Público para deduzir procedimento criminal contra os arguidos, uma vez que desprezou a circunstância decisiva, no raciocínio da decisão recorrida, de não se ter demonstrado que até à data em que os ofendidos perfizeram 16 anos alguém estivesse em condições de deduzir queixa.
Assim, caso o tribunal apreciasse a constitucionalidade da norma indicada pelo Recorrente (e só esta pode apreciar face à vigência do princípio do pedido neste tipo de recurso) e concluísse pela sua inconstitucionalidade, tal declaração não provocaria uma alteração da decisão recorrida, uma vez que esta, tal como o Recorrente a enunciou, não coincide com a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que o recurso deduzido, nesta parte, não revela qualquer utilidade.
Por esta razão não deve ser conhecido o recurso interposto pelo arguido A. quanto a esta questão.
1.5.2. Recursos interpostos pelo arguido D.
1.5.2.1. Questão II do requerimento de interposição de recurso apresentado em 8 de março de 2012
O arguido D. pediu, no ponto II do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional por si apresentado em 8 de março de 2012, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 1.º, al. f), e 358.º, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido segundo o qual as alterações de factos que modificam a narração do núcleo do lugar e ou do tempo dos crimes imputados não são alterações substanciais de factos.
Nas sessões de julgamento em 1.ª instância, ocorridas em 23 de novembro de 2009 e 14 de dezembro de 2009, foram comunicadas pelo Tribunal alterações de factos constantes da pronúncia, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010, as quais foram então qualificadas como não substanciais.
O arguido em recurso interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa discordou desta qualificação, defendendo que as alterações efetuadas deviam ser consideradas substanciais.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente este fundamento do recurso, não tendo, contudo, fundamentado a sua decisão no critério normativo, cuja inconstitucionalidade o arguido vem arguir perante o Tribunal Constitucional.
Na verdade, da leitura da parte da decisão recorrida em que esta questão é tratada (fls. 764-828 do acórdão) verifica-se que, apesar de se entender que a alteração nos elementos espaço-temporais, tais como dia, hora ou local da prática do crime, em regra, constituem alterações não substanciais de factos, esse juízo já não vale quando essas circunstâncias possam contender com elementos constitutivos do tipo de crime, como aconteceria, no caso em apreço, se as alterações de datas comunicadas implicassem uma alteração na idade da vítima do crime com relevo para o preenchimento do tipo de abuso sexual de criança imputado, ou quando desvirtuem a realidade histórica que vem imputada ao arguido, o que só acontecerá quando as alterações dos elementos espaço-temporais transformem o objeto do processo num outro distinto, por se perder por completo a identidade, imagem e valoração social do facto (fls. 790 do acórdão).
O Tribunal recorrido partindo do critério de que há uma alteração substancial dos factos quando dela resulte a imputação de um crime diverso daquele que constava do despacho de pronúncia, embora admita que tendencialmente uma alteração dos elementos espaços-temporais não é suficiente para que essa situação ocorra, defende que só uma ponderação das particularidades do caso concreto é que poderá permitir a qualificação da alteração como substancial ou não substancial.
Daí que só tenha concluído que, no presente caso, as alterações efetuadas aos factos imputados ao arguido D. eram não substanciais, porque elas não transformavam o quadro factual descrito na pronúncia em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual (fls. 807 do acórdão).
O Tribunal recorrido não retirou, pois, da simples circunstância das alterações se traduzirem na modificação da narração do núcleo do lugar e ou do tempo dos crimes imputados ao arguido, que se tratavam inevitavelmente de alterações não substanciais da pronúncia, tendo antes extraído essa conclusão da análise das particularidades das concretas modificações operadas nesses aspetos factuais.
Nesse sentido lê-se no acórdão recorrido:
Do ponto de vista do homem médio, a imagem e valoração social que se tem de cada uma das unidades factuais alteradas mantém-se dentro dos elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, ainda que tenham sido modificados os locais ou as datas em que determinado arguido praticou um certo ato com relevo sexual com um dos menores.
Para melhor o explicitar, seguiremos aqui, para todas as alterações comunicadas objeto deste recurso…
…
Comunicou-se ao arguido que factos ocorridos num dia indeterminado situado entre outubro de 1998 e outubro de 1999, tinha o menor 14 anos de idade, podem ter ocorrido em dia não concretamente apurado, situado entre o fim do ano de 1997 e julho de 1999, tinha E. 13/14 anos de idade.
Mas o conjunto factual tem a seguinte descrição de contexto (cf. fls. 20876): “Num dia indeterminado situado entre outubro de 1998 e outubro de 1999, tinha o menor 14 anos de idade, o arguido D. encontrou-o nas instalações da Provedoria da CPL, onde se situava o seu Gabinete.
Valendo-se do ascendente que a sua posição lhe conferia, disse ao E. para o acompanhar, levando-o até uma arrecadação, situada na cave daquele edificio que habitualmente se encontrava fechada e onde praticamente ninguém ia.
Aí, o arguido D. começou a acariciar o pénis do menor, ao mesmo tempo que acariciava o seu próprio pénis que, entretanto, tinha posto fora das calças.
Depois, segurou a cabeça do menor, forçando-o a dobrar-se e introduziu-lhe o pénis ereto na boca, aí o tendo friccionado.
De seguida, pegou na mão do menor e forçou-o a manipular-lhe o pénis até ejacular.
Após a prática dos atos descritos, o arguido D. deu ao menor 3 mil escudos e abandonou o local.”
Como é bom de ver, quanto aos elementos constitutivos do tipo de crime (para além da relevância que a idade do menor tem), esta realidade histórica, ocorrida no gabinete do arguido D. na Provedoria da Casa Pia de Lisboa, transmutou-se numa distinta porque indiciariamente se veio a apurar que os factos terão ocorrido não entre outubro de 1998 e outubro de 1999 mas em dia não concretamente apurado, situado entre o fim do ano de 1997 e julho de 1999? Manifestamente entendemos que não. Alteração de factos ocorreu sem dúvida, mas não transformando o crime noutro diverso. Ele continua a ser uma e a mesma realidade histórica perfeitamente identificável (fls. 809-810 do acórdão).
A qualificação destas alterações como não substanciais não resultou, pois, da aplicação do critério normativo cuja inconstitucionalidade foi invocada pelo arguido, mas sim duma ponderação das concretas alterações efetuadas ao conceito de “crime diverso”.
Não se revelando que a norma, cuja fiscalização foi requerida, tenha integrado a ratio decidendi do acórdão recorrido, não deve o mérito do recurso ser conhecido nesta parte.
1.5.2.2. Questão III do requerimento de interposição do recurso apresentado em 8 de março de 2012
O arguido D. pediu, no ponto III do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional por si apresentado em 8 de março de 2012, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido segundo o qual é admissível a comunicação de alteração não substancial dos factos constantes do despacho de pronúncia efetuada em prazo muito para além do razoável.
Nas alegações de recurso o arguido modificou os termos do critério enunciado, dizendo, por um lado, que pretendia a verificação da constitucionalidade da interpretação normativa conjugada dos artigos 358.º, n.º 1, e 1.º, al. f), do Código de Processo Penal, efetuada no Acórdão recorrido, no sentido de que a comunicação da alteração não substancial dos factos constantes do despacho de pronúncia, abrangendo quase todos os factos ali vertidos, efetuada após as alegações finais, decorrido mais de um ano sobre o termo das mesmas e da produção de prova, e mais de 4 anos sobre a produção da prova oferecida pela acusação pública e pelos assistentes, foi efetuada em prazo razoável e adequado.
Como já acima se afirmou, em termos gerais, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Tendo o Recorrente operado nas alegações uma radical modificação do critério normativo cuja apreciação tinha sido requerida no requerimento de interposição de recurso, não pode essa alteração ser admitida, devendo este Tribunal cingir o seu juízo à norma primitivamente enunciada, a qual não deixou de ser contemplada pelas alegações apresentadas.
Por este motivo, será relativamente à interpretação normativa indicada no requerimento de interposição de recurso que se irá verificar se a mesma preenche os requisitos necessários à fiscalização da sua constitucionalidade.
Nas sessões de julgamento em 1.ª instância ocorridas em 23 de novembro de 2009 e 14 de dezembro de 2009, foram comunicadas pelo Tribunal alterações de factos constantes da pronúncia, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010, as quais foram então qualificadas como não substanciais.
O arguido em recurso interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa discordou da possibilidade de serem efetuadas alterações aos factos constantes do despacho de pronúncia, após o lapso de tempo decorrido entre a produção da prova e a altura em que foram comunicadas as alterações dos factos.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente este fundamento do recurso, não por ter considerado que era possível proceder àquela alteração depois de decorrido um lapso de tempo irrazoável entre a produção da prova e a comunicação da alteração, mas, antes pelo contrário, por ter entendido como perfeitamente justificado o momento em que as alterações de factos aqui em causa foram comunicadas aos arguidos (fls. 841 do acórdão).
É, pois, evidente que o critério normativo enunciado pelo arguido no seu requerimento de interposição de recurso não corresponde à posição sustentada no acórdão recorrido, não integrando a sua ratio decidendi, pelo que não é possível apreciar esta questão.
1.5.2.3. Questão IV do requerimento de interposição de recurso apresentado em 8 de março de 2012
O arguido D. pediu, no ponto IV do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional por si apresentado em 8 de março de 2012, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 97.º, n.º 5, e 358.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido segundo o qual a fundamentação da comunicação de alteração de factos constantes da pronúncia se basta com a indicação dos novos factos e a remissão para toda a prova produzida nos autos.
Conforme já acima se referiu, nas sessões de julgamento em 1.ª instância ocorridas em 23 de novembro de 2009 e 14 de dezembro de 2009, foram comunicadas pelo Tribunal alterações de factos constantes da pronúncia, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010, as quais foram então qualificadas como não substanciais.
O arguido em recurso interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa discordou da possibilidade de serem efetuadas tais alterações aos factos constantes do despacho de pronúncia, com a fundamentação constante dos respetivos despachos, que considerou insuficiente.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente este argumento do recurso, por ter considerado suficiente a fundamentação constante dos últimos despachos em causa.
Contudo, não se pode inferir desta decisão que ela tenha aceite como pressuposto que a fundamentação se resumia à indicação dos novos factos e a remissão para toda a prova produzida nos autos. Antes resulta da sua leitura, nomeadamente da remissão que fez para o acórdão do Tribunal da Relação proferido no apenso ZK e para o acórdão do Tribunal Constitucional que sobre ele recaiu que, no caso em apreço, tais despachos não se limitaram a apresentar um rol de meios probatórios, tendo antes selecionado, de modo individualizado, quais os meios pertinentes para a formação da convicção quanto à alteração comunicada.
Não se constatando que o critério normativo enunciado pelo arguido, no seu requerimento de interposição de recurso, integre a ratio decidendi do acórdão recorrido, também não é possível apreciar esta questão de constitucionalidade.
1.5.2.4. Recurso interposto em 6 de Junho de 2012
O arguido D. no recurso interposto em 6 de Junho de 2012 para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de Fevereiro de 2012, pediu a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 113.º, n.º 3 e 6, 115.º, n.º 1, e 178.º, n.º 2, do Código Penal, na versão dada pela Lei n.º 65/98, interpretados no sentido segundo o qual o prazo para o exercício do direito de queixa só começa a correr da data em que o ofendido completar 16 anos de idade.
Este arguido no requerimento de abertura de instrução, havia suscitado a questão de os crimes dos autos serem semipúblicos e nenhuma das supostas vítimas, ou os seus representantes legais, terem apresentado queixa no prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, ou seja de seis meses, a contar da data em que tiveram conhecimento dos factos, o que conduzia à falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal.
O Juiz do Tribunal de Instrução Criminal proferiu despacho a julgar não verificada a causa de extinção do procedimento criminal invocada pelos arguidos.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, no acórdão proferido em 23 de fevereiro de 2012, julgou-o improcedente.
O Tribunal da Relação de Lisboa não atendeu a pretensão do arguido, por ter entendido que, relativamente aos crimes pelos quais o arguido havia sido condenado não se havia apurado que os representantes legais dos menores tivessem tido conhecimento dos respectivos factos e dos seus autores antes dos ofendidos completarem 16 anos, pelo que o direito de queixa dos ofendidos, cujo exercício é necessário ao prosseguimento do procedimento criminal, só se extinguia no prazo de seis meses a partir do momento em que completassem a idade de 16 anos, tendo as respetivas queixas sido apresentadas dentro desse prazo.
O acórdão recorrido utilizou um critério normativo, relativo ao exercício do direito de queixa quando os ofendidos são menores de 16 anos e ao respectivo prazo de caducidade, que incluiu no seu conteúdo, como elemento decisivo, o não apuramento do conhecimento, pelos representantes legais daqueles, dos factos integradores da infracção criminal em causa e dos seus autores antes dos ofendidos completarem 16 anos.
Já a norma cuja fiscalização de constitucionalidade o arguido peticiona não contempla esse elemento, pelo que o seu conteúdo abrange todos os casos em que o ofendido completa 16 anos sem ter sido exercido o direito de queixa, independentemente da possibilidade que os representantes do ofendido tiveram para a apresentar, enquanto aqueles não atingiram aquela idade.
Esta é uma norma diversa daquela que foi utilizada pelo tribunal como fundamento da decisão de reconhecimento de legitimidade do Ministério Público para deduzir procedimento criminal contra os arguidos, uma vez que desprezou a circunstância decisiva, no raciocínio da decisão recorrida, de não se ter demonstrado que até à data em que os ofendidos perfizeram 16 anos alguém estivesse em condições de deduzir queixa.
Assim, caso o tribunal apreciasse a constitucionalidade da norma indicada pelo Recorrente (e só esta pode apreciar face à vigência do princípio do pedido neste tipo de recurso) e concluísse pela sua inconstitucionalidade, tal declaração não provocaria uma alteração da decisão recorrida, uma vez que esta, tal como o Recorrente a enunciou, não coincide com a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que o recurso deduzido, nesta parte, não revela qualquer utilidade.
Além disso, o acórdão recorrido, em resposta à argumentação do Recorrente, também sustenta que, apesar dos ofendidos já terem completado 16 anos à data em que o Ministério Público iniciou as diligências investigatórias, encontrando-se a decorrer o prazo de 6 meses para aqueles apresentarem queixa, sempre tinha o Ministério Público legitimidade para desencadear o procedimento criminal, porque o interesse dos menores o justificava, sustentando assim, implicitamente, a aplicabilidade do disposto no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 99/2001, no decurso dos 6 meses seguintes após os ofendidos completarem 16 anos.
Deste modo, o acórdão recorrido utilizou um segundo argumento como fundamento da decisão de reconhecer ao Ministério Público legitimidade para deduzir o procedimento criminal contra o arguido, pelo que, não tendo sido impugnada a inconstitucionalidade deste fundamento alternativo, ele sempre suportaria a decisão recorrida face a uma eventual inconstitucionalidade do seu primeiro fundamento, o que também redundaria numa inutilidade do recurso nesta parte.
O facto do arguido ter invocado a inconstitucionalidade do critério em que se apoia este segundo fundamento nas suas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional não obsta ao raciocínio acima exposto, uma vez que, conforme acima se referiu, o Recorrente ao indicar, no requerimento de interposição de recurso, uma única interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia sindicar, delimitou, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentido qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que apresentou. Por esta razão, a invocada arguição da inconstitucionalidade do segundo fundamento apresentado pela decisão recorrida em suporte da legitimidade do Ministério Público, somente efectuada em sede de alegações, traduz-se numa ampliação do objecto do recurso que não pode ser considerada, pelo que a apreciação do recurso revela-se inútil face à inevitável subsistência de um segundo fundamento, cuja constitucionalidade não foi validamente posta em causa.
Pelos motivos expostos não deve ser conhecido o recurso interposto pelo arguido D. quanto a esta questão.
1.5.3. Recurso interposto pelo arguido F.
1.5.3.1. Questão 1 do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. pediu, no ponto 1 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 340.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido da possibilidade de ser negada a produção de prova complementar, com fundamento em que o Tribunal já formou a sua convicção, mesmo tratando-se de meios de prova muito relevantes para aferição da credibilidade das declarações prestadas em audiência pelo assistente ofendido.
Na audiência de julgamento em 1.ª instância, o arguido, na sequência do depoimento prestado pela testemunha X., formulou requerimento, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, pedindo que fosse ordenado a essa testemunha que, tendo encontrado o suporte de uma gravação de uma entrevista com o assistente G., apresentasse esse suporte, requerendo também que fosse feita a sua reprodução em audiência, na presença do assistente e da testemunha Y., para se pronunciarem quanto ao reconhecimento de vozes.
Foi proferido despacho a indeferir o requerido.
O arguido recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa que o julgou improcedente.
Contudo, esta decisão não teve como pressuposto que os meios de prova cuja produção se impediu eram muito relevantes para aferição da credibilidade das declarações prestadas em audiência pelo assistente ofendido. Antes, pelo contrário, referiu que, perante os elementos que o Tribunal a quo tinha que ponderar no momento em que proferiu o despacho recorrido, entendemos, efetivamente, que não eram de considerar as diligências requeridas pelo arguido F. como sendo necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (fls. 433 do acórdão).
O critério normativo cuja fiscalização foi requerida pelo arguido não corresponde, pois, à ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que o recurso para o Tribunal Constitucional não pode ser conhecido nesta parte.
1.5.3.2. Questão 2 do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. pediu, no ponto 2 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 1º, al. f), e 358.º, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que as alterações do lugar e/ou do tempo de factos indiciários, feitas no decurso da audiência de julgamento, mesmo que, pela sua enorme amplitude, modifiquem a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, integrantes do facto concreto e unitário, da realidade unitária do facto criminoso, são não substanciais
Estamos perante a suscitação da mesma questão que foi colocada pelo arguido D. no ponto II do seu requerimento de interposição de recurso e, relativamente à qual, no ponto 1.5.2.1. supra, já se verificou que a interpretação normativa indicada não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na verdade, também relativamente às alterações de factos constantes do despacho de pronúncia, respeitantes a comportamentos do arguido F., o Tribunal recorrido não retirou da simples circunstância das alterações se traduzirem na modificação da narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados ao arguido, que se tratava de alterações não substanciais da pronúncia, tendo extraído essa conclusão da análise das particularidades das concretas modificações operadas nesses aspetos factuais.
Neste sentido lê-se no Acórdão recorrido:
“Mas transpondo este critério e enquadramento teórico para o processo em apreço e para os pedaços de realidade histórica que aqui nos importam, não poderemos deixar de concluir que no âmbito social, e do ponto de vista do homem médio, os núcleos de factos que foram indiciariamente imputados aos arguidos F., D. e H. no despacho de pronúncia e aqueles outros que posteriormente lhes foram objeto de comunicação de alteração não substancial, são vistos como um mesmo acontecimento.
Os factos que, do ponto de vista social, modelam o crime, traduzem-se na circunstância de aquele arguido, ter tido uma determinada ação tipificada na lei como crime, para com aquela concreta vítima, quando ela tinha uma idade abrangida pelo tipo legal de crime, tendo sido possível apurar que isso ocorreu numa data e local algo difusos, mas ainda assim passíveis de situar no tempo e no espaço, com uma margem de indefinição perfeitamente admissível no concreto contexto em que se verificaram os factos (como tantas vezes foi explicado pelo Tribunal recorrido na fundamentação da matéria de facto do acórdão final e como, em sede de recurso interlocutório, também já nos pronunciamos a propósito da invocada “vaguidade da acusação”).
Será que, por exemplo, por não ter sido possível apurar que os factos ocorreram concretamente numa casa sita na Alameda D. Afonso Henriques, n.° .., em Lisboa, antes se indiciando apenas que tenham ocorrido num prédio localizado na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, com número de porta não concretamente apurado, mas localizado na lateral da Alameda D. Afonso Henriques, onde se situam os números ímpares, é uma alteração suscetível de, do ponto vista social, transformar este acontecimento num crime diverso? A resposta afigura-se-nos ser manifestamente negativa.
E esta realidade concreta é muito mais apreensível se tivermos em consideração a totalidade do conjunto de factos que aqui estão em causa – porque são eles que constituiem o pedaço de vida histórico que o tribunal vai apreciar.
Consta do despacho de pronúncia:
“Em data em concreto não apurada, do mês de novembro de 1999, num Sábado à noite, tinha o G. completado 13 anos de idade, foi, com os seus irmãos, com o arguido F. e com um indivíduo de nome Z., jantar a um restaurante chinês localizado em Alcântara.
Terminado o jantar o arguido F. propôs que fossem todos a sua casa “beber um copo”. Dirigiu-se, então, para uma casa de que o arguido F. tinha a disponibilidade, sita na Alameda D. Afonso Henriques, nº. .., em Lisboa.
No interior desta, o arguido F. dirigiu-se ao G. e disse-lhe para o acompanhar a um quarto pois “tinha uma coisa que lhe queria mostrar”, que os seus irmãos já tinham visto.
Já nesse quarto, sentou-se na cama junto do Ricardo e começou a acariciar-lhe os ombros, costas e pernas.
Depois, o arguido F. empurrou a cabeça do menor na direção da sua braguilha.
O G. afastou-se, tendo-lhe, então, o arguido dito que “tinha uma boa casa”, que o “Ricardo poderia ter uma boa vida”, que a sua mãe poderia também “ter uma boa vida” e que lhe daria muito dinheiro.
Enquanto falava, o arguido F., abriu a braguilha e segurou novamente a cabeça do G. na direção desta, tendo introduzido, de seguida, o seu pénis na boca do menor, aí o tendo friccionado.
Depois, o arguido baixou as calças, disse ao menor para baixar as dele, o que este fez.
Então, e depois de virar o menor de costas para si, ao mesmo tempo que o inclinou, dobrando-o, o arguido introduziu o seu pénis ereto no ânus do menor, aí o tendo friccionado.
Após tais atos, o menor regressou a casa na companhia dos irmãos”.
No âmbito social, falamos do mesmo acontecimento, quer seja possível dizer-se que ele ocorreu numa das laterais da Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, quer tivesse sido possível ir mais longe e indiciariamente sustentar que os factos ocorreram concretamente no n.º … dessa mesma Alameda.
Aliás, neste particular, o que se indiciou constitui um minus em relação ao que estava indiciado no despacho de pronúncia, pelo que, por si só, nem justificaria falarmos de alteração não substancial de factos.
Mas quanto a este mesmo acontecimento histórico, para além da referida alteração relativa ao local onde os factos terão indiciariamente ocorrido, foi também comunicado ao arguido que se entendia provisoriamente que os mesmos factos poderiam ter acontecido não em data não concretamente apurada, do mês de novembro de 1999, num sábado à noite, tinha o G. completado 13 anos de idade, mas sim em dia não concretamente apurado, numa sexta-feira ou num sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (inclusive).
Contudo, esta alteração de data não pode ser desligada da unidade fáctica histórica a que diz respeito. Não falamos de um qualquer abuso sexual alegadamente cometido pelo arguido F. relativamente ao menor G., mas sim daquele que terá acontecido em prédio localizado na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, com número de porta não concretamente apurado, mas localizado na lateral da Alameda D. Afonso Henriques, onde se situam os números impares, local para onde, após o jantar, o arguido F. foi com Z., com o G. e os irmãos deste AA. e BB., como acima vimos.
Ora, esta realidade factual histórica constitui uma unidade que não resulta substancialmente alterada, se o Tribunal vier a apurar que esses concretos factos não aconteceram num sábado à noite do mês de novembro de 1999 mas sim numa sexta-feira ou num sábado à noite, situado entre 12/12/98 e janeiro de 1999 (inclusive).
Mais uma vez, do ponto de vista social, continua a identificar-se a mesma ocorrência com relevância criminal, como tendo sido aquela que terá envolvido o arguido F. e Z., com o G. e os irmãos deste, AA. e BB., num acontecimento que se desenrolou na Alameda D. Afonso Henriques. A situação não passou a ser outra realidade histórica, especialmente quando no processo não existe nenhum outro abuso sexual indiciado que tenha uma descrição similar (nomeadamente no que se refere aos envolvidos, sequência dos factos, localização e data).
E isto que concluímos para esta concreta alteração vale para as demais comunicadas, como adiante veremos (fls. 783-786 do Acórdão).
…
Em conclusão, aderindo, como aderiram os arguidos recorrentes, à definição de alteração substancial de factos a que atendeu o Tribunal recorrido, com todas as explicitações que atrás deixámos enunciadas, considera-se que as alterações de factos objeto do presente recurso não transformam o quadro factual descrito na pronúncia em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual.
Do ponto de vista do homem médio, a imagem e valoração social que se tem de cada uma das unidades factuais alteradas mantém-se dentro dos elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, ainda que tenham sido modificados os locais ou as datas em que determinado arguido praticou um certo ato com relevo sexual com um dos menores.
Para melhor o explicitar, seguiremos aqui, para todas as alterações comunicadas objeto deste recurso, o mesmo tipo de abordagem que já acima se fez para a primeira das alterações comunicadas ao arguido F. (a que dizia respeito à Alameda D. Afonso Henriques).
Comecemos pela comunicação ao arguido F. de que factos ocorridos em dia não concretamente apurado, do mês de junho do ano 2000, a uma sexta-feira, numa casa de que aquele tinha a disponibilidade, sita na Avenida da República, em Lisboa, podem ter ocorrido em dia não concretamente apurado, mas situado entre abril e julho de 1999, numa casa sita na Avenida da República, em Lisboa, perto da zona da Feira Popular, local onde o arguido F. se encontrava quando o assistente G. aí foi.
A data do acontecimento continua a ser não concretamente apurada, mas em vez de uma sexta-feira do mês de junho de 2000, passou a estar indiciado o abuso sexual como tendo ocorrido entre os meses de abril e julho de 1999. O arguido continua a ser o arguido F. e o menor abusado o G.. O local do cometimento do crime mantém-se numa casa sita na Avenida da República, em Lisboa, particularizando-se a localização da casa como sendo perto da zona da Feira Popular.
Pergunta-se, seguindo o pensamento de Souto Moura, este facto processual ainda é o mesmo, na medida em que o acontecimento histórico que enquadra ainda é visto pelo comum das pessoas como sendo o mesmo?
Não podemos deixar de concluir positivamente. Para o comum das pessoas, para o homem médio, o acontecimento histórico é aquele abuso sexual alegadamente perpetrado pelo arguido F. sobre o menor G. numa casa na Avenida da República. Não é irrelevante conseguir determinar a data, ainda que aproximada, em que isso aconteceu – até porque o tipo de crime pressupõe que o menor se enquadre dentro de uma determinada faixa etária – mas essa circunstância “tempo”, ainda que variando no espaço de um ano, não transforma o acontecimento histórico num outro totalmente diferente.
Segue-se a comunicação de uma alteração de data, ainda referente ao arguido F., no sentido de que factos ocorridos dias depois da situação referida no ponto “2. que antecede”, ainda em junho do ano 2000, podem ter ocorrido em dia não concretamente apurado, mas situado no período das férias escolares do verão de 1999.
Mais uma vez temos um arguido e uma vítima identificada, sendo imputados ao arguido um concreto número de abusos sexuais praticados na pessoa daquele menor. Se uma determinada unidade factual histórica vem descrita como tendo acontecido dias depois de uma outra bem concreta, que indiciariamente se alterou do ano de 2000 para o ano de 1999, a alteração, quanto à situação que ocorre de seguida, também de junho de 2000 para o período de férias escolares do verão de 1999, não só é lógica, como não contende com os elementos constitutivos essenciais do crime.
Seguindo, desta vez, as palavras de Germano Marques da Silva, os novos factos podem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrito no despacho de pronúncia. O cidadão comum não teria dificuldade de assim o identificar.” (fls. 807-809 do Acórdão).
Da leitura deste excerto resulta, com clareza, que também, relativamente à qualificação das alterações dos factos imputados ao arguido F. como não substanciais, ela não resultou da aplicação do critério normativo cuja inconstitucionalidade foi invocada pelo arguido, mas sim duma ponderação das concretas alterações efetuadas ao conceito de “crime diverso”.
Não se revelando, por isso, que a norma, cuja fiscalização foi requerida, tenha integrado a ratio decidendi do acórdão recorrido, não deve o mérito do recurso ser conhecido nesta parte.
1.5.3.3. Questão 3 do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. pediu, no ponto 3 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 358.º do Código de Processo Penal, interpretado com o sentido de que a comunicação de alterações de enorme amplitude quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos indiciários pode sempre ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento.
O Ministério Público pronunciou-se pelo não conhecimento desta questão de constitucionalidade, defendendo não existir uma coincidência entre o critério normativo enunciado no requerimento de interposição de recurso e o critério aplicado pela decisão recorrida, por um lado, e o critério cuja inconstitucionalidade foi suscitada perante o tribunal recorrido, por outro lado.
Lendo o modo como foi suscitada a questão perante o tribunal recorrido e o modo como este sustentou a possibilidade de proceder à alteração dos factos constantes da pronúncia na audiência de julgamento verifica-se que a enunciação da questão no requerimento de interposição de recurso apenas excede o suscitado e a ratio decidendi quando qualifica as alterações em causa como de “enorme amplitude”.
Contudo, essa qualificação não desempenha qualquer papel na argumentação desenvolvida pelo Recorrente a propósito desta questão de constitucionalidade, pelo que é possível a sua apreciação, precisando-se a redação do critério questionado, tendo em atenção os fundamentos da decisão recorrida.
Assim, nada obsta ao conhecimento da constitucionalidade da norma constante do artigo 358.º do Código de Processo Penal, interpretado com o sentido de que a comunicação de alterações quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos da pronúncia pode sempre ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento.
1.5.3.4. Questão 4 do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. pediu, no ponto 4 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 358.º, n. 1, e 340.º, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de não serem admissíveis os meios de prova requeridos na sequência da comunicação de alterações de factos indiciários, para a qual o arguido não contribuiu.
O arguido, na sequência das alterações factuais que lhe foram comunicadas, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, requereu a produção da seguinte prova:
- leitura das declarações do assistente G. prestadas em inquérito;
- notificação da Casa Pia de Lisboa para juntar o livro de ocorrências do lar António Bernardo que abranja o período entre 12/12/1998 e 31/07/1999;
- a inquirição dos porteiros e de uma pessoa de cada casa de cada um dos prédios com número ímpar (exceto o n.º ..) da Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, que utilizassem o respetivo prédio entre 12/12/1998 e 31/01/1999, umas e outras a identificar e indicar pela PSP, cuja notificação para o efeito se requereu;
- a inquirição dos porteiros e de uma pessoa de cada casa de cada um dos prédios com número par (exceto o n.º 84) ou ímpar, situados na Avenida da República, em Lisboa, perto da zona da Feira Popular, que utilizassem o respetivo prédio entre 01/04/1999 e 31/07/1999, também a identificar e indicar pela PSP, cuja notificação para o efeito também requereu;
- em alternativa e na eventualidade de indeferimento da inquirição de testemunhas a identificar, requereu a inquirição de testemunhas que, através da Conservatória do Registo Predial de Lisboa, conseguiu identificar, relacionadas com os prédios das novas componentes espaciais comunicadas;
- e a junção de 33 documentos.
Relativamente a este requerimento foi proferido despacho com o seguinte teor:
“- Ao abrigo do disposto no artigo 340.º, n.° 1,“a contrario” e no artigo 340.º, n.° 4, al b), do CPPenal, por não se revelar necessário para a descoberta da verdade e de obtenção impossível, a requerida notificação da casa Pia de Lisboa para juntar o livro de ocorrências do Lar Antonio Bernardo, que abranja o período entre 12/12/98 e 31/07/99;
- ao abrigo do disposto no artigo 340.°, n° 1, do CPPenal, “a contrario”, por o Tribunal não o considerar relevante, nem necessário para proferir uma decisão justa, objetiva e fundamentada, o Tribunal indefere
- a “inquirição dos porteiros e de uma pessoa de cada casa de cada um dos prédios com número par (exceto o n° 84) ou ímpar, situados na Avenida da República, em Lisboa, perto da Zona da Feira Popular, que utilizassem o respetivo prédio entre 1.4.1999 e 31.7.1999, também a identificar e indicar pela PSP, cuja notificação para o efeito também se requer...”;
- ou a audição dos porteiros, das pessoas especificamente identificadas e de uma das pessoas que entre 1 de abril de 1999 e 31 de julho de 1999 utilizaram as frações do n° 58°, dos n°s 60 a 60-C, dos n°s 62 a 62-C, dos n°s 64, 64-A e 64-B, dos n°s. 66, 66-A e 66-B, dos n°s 68, 68-A e 68-B, dos n°s 70, 70-A, 70-B e 70-C, do nº 72, dos n°s 74 a 74-B, dos n°s. 76 a 76-G , dos n°s. 82 a 82-C, do n°. 86, do n° 88, do n° 90, do nº 92, do n° 94, dos n° 95 e 95-A, do n° 96, dos n°s. 97, 97-A, 97-B e 97-C, do n° 98, dos n°s. 99 a 99-D, do n° 100, dos n°s. 101, 101-A e 1O1-B, dos n°s. 102 a 102-C, do n° 104, do n° 106, do n° 108 e do n° 145, da Av. da República;
- bem como a requerida determinação de diligências por parte do Tribunal, com vista a identificação de pessoas;
- e a junção dos documentos de fls. 64.690 a 64.778 e que digam respeito aos prédios sitos na Avenida da República,
- ao abrigo do disposto no artigo 340.°, n.° 1, do CPPenal, do disposto nos artigos 315.°, n.° 4 e 283.°, n.° 3, al. d) e n.° 7, do CPPenal e do artigo 32.°, n.° 1 e 5 e artigo 20.°, n° 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, por tal se revelar necessário para a boa e Justa decisão da causa e proporcionalmente adequado ao caso concreto, o Tribunal defere:
- a audição de dez testemunhas, de entre as indicadas pelo arguido a fls. 63.364 a 64.394 e referentes à prova da circunstância de lugar – prédio sito na Alameda D. Afonso Henriques, número não concretamente determinado, mas situado na lateral dos números ímpares da Alameda,
- o arguido deverá comunicar ao Tribunal, no prazo de cinco dias – a fim de possibilitar uma maior celeridade processual, sendo que se ao arguido não for possível cumprir tal prazo, que é inferior ao prazo legal, deverá comunicá-lo ao Tribunal, aplicando-se nesse caso, sem necessidade de novo Despacho, o prazo legal de dez dias -o nome das dez testemunhas a ouvir e de entre as já identificadas pelo arguido a fls. 64.367 a 64.380 (em relação aos imóveis sitos na Alameda D. Afonso Henriques), ou o que tiver por conveniente, sendo que caso o arguido nada venha a comunicar ao Tribunal, o Tribunal notificará as dez primeiras, de entre as primeiras identificadas – para os primeiros dez, mas diferentes, números de polícia de prédios –, de forma a ouvir cada testemunha em relação a um imóvel diferente;
- e defere a junção dos documentos de fls. 64.395 a 64.586, que dizem respeito aos prédios sitos na Alameda D. Afonso Henriques; indeferindo quanto ao demais requerido a fls. 63.364 a 64.394, em relação a diligências referentes aos prédios sitos na Alameda D. Afonso Henriques.
- Quanto à requerida, a fls. 64.364 a 64.394, leitura das declarações do assistente Ricardo Rocha Necho, prestadas em inquérito em 5/5/2003, constantes de linhas 20 a 23 e de 42 e 43 de fls. 4.235, linhas 106 e 107 de fls. 4.237, linhas 165 a 176 de fls. 4.239, linhas 177 a 192 de fls. 4.240, e em 6/05/2003, constantes de linhas 4 a 11 de fls. 4.282 e de linhas 12 a 14 de fls. 4.283, é diligência que tem subjacente um regime processual específico no artigo 356.°, n.° 2, al. b) e n.° 5, do CPPenal, pelo que na audiência de julgamento o Tribunal irá dar cumprimento a tal dispositivo legal.”
O arguido recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual julgou o recurso improcedente.
Contudo, essa improcedência não se baseou no critério normativo indicado pelo arguido, segundo o qual não seriam admissíveis os meios de prova requeridos na sequência da comunicação de alterações de factos indiciários, para a qual o arguido não contribuiu, mas sim, conforme resulta da leitura do acórdão recorrido, por se ter entendido que o indeferimento dos concretos meios de prova que não foram admitidos se apoiou em razões que se revelaram justificadas.
O Tribunal da Relação de Lisboa longe de adotar uma posição de recusa absoluta dos meios de prova requeridos na sequência de uma comunicação de alterações dos factos constantes do despacho de pronúncia, analisou detalhadamente as razões apresentadas pelo tribunal da 1.ª instância para recusar a produção de alguns dos meios de prova indicados pelo arguido, tendo concluído que essa recusa foi justificada.
O critério normativo cuja fiscalização foi requerida pelo arguido não integrou, pois, a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que o recurso para o Tribunal Constitucional não pode ser conhecido nesta parte.
1.5.3.5. Questão 5. do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. no requerimento de interposição de recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23 de Fevereiro de 2012, pediu a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, na redação anterior à Lei n.º 59/2007, interpretado no sentido de que o direito de queixa do ofendido e a correspondente legitimidade do Ministério Público subsistem nos seis meses posteriores à data em que o ofendido complete 16 anos de idade.
Este arguido, na contestação à acusação, suscitou a questão de os crimes dos autos serem semipúblicos e nenhuma das supostas vítimas, ou os seus representantes legais, terem apresentado queixa no prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, ou seja, de seis meses a contar da data em que tiveram conhecimento dos factos, o que conduzia à falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal.
O acórdão condenatório da 8.ª Vara Criminal de Lisboa, proferido em 3 de setembro de 2010, julgou improcedente essa exceção.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, no acórdão proferido em 23 de fevereiro de 2012, o julgou improcedente.
O Tribunal da Relação de Lisboa não atendeu a pretensão do arguido, por ter entendido que, relativamente aos crimes pelos quais o arguido havia sido condenado não se havia apurado que os representantes legais dos menores tivessem tido conhecimento dos respectivos factos e dos seus autores antes dos ofendidos completarem 16 anos, pelo que o direito de queixa dos ofendidos, cujo exercício é necessário ao prosseguimento do procedimento criminal, só se extinguia no prazo de seis meses a partir do momento em que completassem a idade de 16 anos, tendo as respetivas queixas sido apresentadas dentro desse prazo.
O acórdão recorrido utilizou um critério normativo, relativo ao exercício do direito de queixa quando os ofendidos são menores de 16 anos e ao respectivo prazo de caducidade, que incluiu no seu conteúdo, como elemento decisivo, o não apuramento do conhecimento, pelos representantes legais daqueles dos factos integradores da infracção criminal em causa e dos seus autores antes dos ofendidos completarem 16 anos.
Já a norma cuja fiscalização de constitucionalidade o arguido peticiona não contempla esse elemento, pelo que o seu conteúdo abrange todos os casos em que o ofendido completa 16 anos sem ter sido exercido o direito de queixa, independentemente da possibilidade que os representantes do ofendido tiveram para a apresentar, enquanto aqueles não atingiram aquela idade.
Esta é uma norma diversa daquela que foi utilizada pelo tribunal como fundamento da decisão de reconhecimento de legitimidade do Ministério Público para deduzir procedimento criminal contra os arguidos, uma vez que desprezou a circunstância decisiva, no raciocínio da decisão recorrida, de não se ter demonstrado que até à data em que os ofendidos perfizeram 16 anos alguém estivesse em condições de deduzir queixa.
Assim, caso o tribunal apreciasse a constitucionalidade da norma indicada pelo Recorrente (e só esta pode apreciar face à vigência do princípio do pedido neste tipo de recurso) e concluísse pela sua inconstitucionalidade, tal declaração não provocaria uma alteração da decisão recorrida, uma vez que esta, tal como o Recorrente a enunciou, não coincide com a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que o recurso deduzido nesta parte não revela qualquer utilidade.
Além disso, o acórdão recorrido, em resposta à argumentação do Recorrente, também sustenta que, apesar dos ofendidos já terem completado 16 anos à data em que o Ministério Público iniciou as diligências investigatórias, encontrando-se a decorrer o prazo de 6 meses para aqueles apresentarem queixa, sempre tinha o Ministério Público legitimidade para desencadear o procedimento criminal, porque o interesse dos menores o justificava, sustentando assim, implicitamente, a aplicabilidade do disposto no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 99/2001, no decurso dos 6 meses seguintes após os ofendidos completarem 16 anos.
Assim, a decisão recorrida utilizou um segundo argumento como fundamento da decisão de reconhecer ao Ministério Público legitimidade para deduzir o procedimento criminal contra o arguido, pelo que, não tendo sido impugnada a inconstitucionalidade deste fundamento alternativo, ele sempre suportaria a decisão recorrida face a uma eventual inconstitucionalidade do seu primeiro fundamento, o que também redundaria numa inutilidade do recurso nesta parte.
Por estas razões não deve ser conhecido o recurso interposto pelo arguido F. quanto a esta questão.
1.5.3.6. Questão 6 do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. pediu, no ponto 6 do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 343.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o exercício do direito ao silêncio pelo arguido não é inócuo, podendo globalmente desfavorecê-lo, pela repetida referência a que o arguido não prestou declarações, com repercussão na formação da convicção do Tribunal.
Se a formulação utilizada levanta algumas dúvidas quanto ao cariz normativo da questão colocada, por se dirigir ao modo como neste caso concreto foi relevado o silêncio do arguido, o seu problema fundamental reside na falta de coincidência com os fundamentos da decisão recorrida.
Relativamente a este aspeto, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, depois de realçar que o arguido que não presta declarações não pode ser prejudicado, limitou-se a dizer:
“Como assinala o acórdão recorrido, o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento sobre os factos que lhe eram imputados. E mesmo quando requereu a leitura (que foi deferida e efetivada) de excertos por si selecionados, do interrogatório a que foi sujeito pelo Mmº Juiz de Instrução, mostrou-se indisponível para, posteriormente à referida leitura, prestar quaisquer esclarecimentos sobre tais declarações.
Face a esta postura, o Tribunal a quo, no acórdão recorrido, considerou, com razão, que a atitude do arguido em julgamento 'não foi colaborante'.
O arguido, ao não prestar quaisquer declarações em julgamento relativamente aos factos que lhe eram assacados, não confessou e, não o tendo feito, também não pode verbalizar um eventual arrependimento, que igualmente não demonstrou por qualquer outro meio. Ao não falar o recorrente F. prescindiu de poder gozar de circunstâncias atenuantes de relevo, como sejam a confissão e o arrependimento.” (fls. 2731-2732 do Acórdão).
Do excerto transcrito resulta claramente que o Tribunal recorrido não perfilhou a opinião de que o exercício do direito ao silêncio pelo arguido pode globalmente desfavorecê-lo, tendo-se limitado a constatar que o silêncio do arguido impede a confissão dos crimes que lhe são imputados e a verbalização de um eventual arrependimento, o que impede que possam, nesse caso, funcionar as atenuantes da confissão e do arrependimento, quando haja lugar à condenação.
Não há, pois, uma correspondência entre o critério normativo cuja fiscalização de constitucionalidade se requereu e aquele que foi adotado pela decisão recorrida, pelo que não pode o recurso ser conhecido, nesta parte.
1.5.3.7. Questão 7 do requerimento de interposição de recurso
O arguido F. pediu, no ponto 7 do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a livre apreciação da prova pode ser feita com sobrevalorização da livre convicção e subvalorização das regras de experiência, com sobrevalorização das provas positivas e subvalorização ou mesmo esquecimento das provas negativas, com prevalência da imediação.
O arguido F., impugnou a decisão da matéria de facto constante do acórdão da 1.ª instância, no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação.
Este Tribunal apenas julgou parcialmente procedente essa impugnação, constando da respetiva fundamentação o seguinte:
“Não se nos afigura que o Coletivo de primeira instância, ao apreciar a prova produzida, tenha sobrevalorizado a livre convicção e subvalorizado as regras de experiência, com sobrevalorização das provas positivas e subvalorização ou mesmo esquecimento das provas negativas, com prevalência absoluta da imediação e consequente dificultação do recurso em matéria de facto” (fls. 2854 do Acórdão).
Ao negar que a decisão por si apreciada tenha seguido o critério cuja inconstitucionalidade é arguida, é evidente que o acórdão da Relação de Lisboa não sustentou a sua aplicação, pelo que o mesmo não foi utilizado como sua ratio decidendi.
Por este motivo, o recurso para o Tribunal Constitucional também não deve ser conhecido nesta parte.
1.5.4. Recurso interposto pelo arguido H.
1.5.4.1. Questão II 5 do requerimento de interposição de recurso
O arguido H., no ponto II 5 do requerimento de interposição de recurso, questionou a constitucionalidade da norma constante dos artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não cabe, em fase de julgamento, efetuar a reapreciação substancial desses atos, mas apenas aferir o cumprimento dos pressupostos legais.
Note-se que não se deve considerar que a referência que é feita no ponto II 5 do requerimento de interposição de recurso à “economia processual” e à “falta de competência funcional do Tribunal de julgamento”, integrem a formulação da norma a fiscalizar, constituindo antes uma indicação das razões que foram avançadas pela decisão recorrida para sustentar a interpretação agora em análise.
O Ministério Público alegou que a interpretação indicada pelo Recorrente não coincide com aquela que suportou a decisão recorrida ao apreciar o critério que deveria presidir à anulação de atos prevista no artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Fundamenta esta posição no facto da “aferição do cumprimento dos pressupostos legais, por uma questão de economia processual ou por falta de competência funcional” não integrar a ratio decidendi, e de a referência à circunstância da validação ser efetuada em fase julgamento poder criar a ideia que o tribunal recorrido adotou tal interpretação devido ao momento em que é efetuada a validação dos atos praticados em inquérito, o que não corresponde ao raciocínio seguido pela decisão recorrida.
O acórdão da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 que confirmou a decisão da 1.ª instância, defendeu que o disposto no artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, apenas impõe que o tribunal deva anular os atos que não se teriam praticado, caso a direção do processo tivesse sido assegurada pelo juiz competente, isto é aqueles que se mostram absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida no tribunal competente, esclarecendo que, de acordo com o referido normativo, não competirá ao aplicador do direito anular todos os atos emanados de juiz declarado incompetente, nem tão pouco efetuar uma avaliação fundada no mérito do conteúdo desses atos, concluindo, por isso, que não há lugar a uma reapreciação da validade substancial dos atos.
Pode dizer-se que a redação utilizada no último segmento da formulação da norma efetuada pelo Recorrente, de que não faz parte a alusão às razões de “economia processual” e à “falta de competência funcional do Tribunal de julgamento”, como acima se explicitou, é genérica, não traduzindo com precisão a ratio decidendi da decisão recorrida neste tema, mas tal deficiência de redação não se traduz numa falta de coincidência entre os conteúdos da norma enunciada pelo Recorrente e da norma aplicada, exigindo apenas uma alteração da sua redação donde decorra uma maior precisão do seu sentido.
Quanto à alusão à fase de julgamento, não assumindo este dado qualquer relevância na argumentação do Recorrente e podendo ele gerar equívocos quanto ao sentido da posição sustentada na decisão recorrida, para a qual é indiferente o momento em que é efetuada essa operação de validação, ele poderá ser omitido, sem que daí resulte uma alteração do objeto do recurso.
Justifica-se, por isso, que se proceda a uma precisão na redação da norma constante do requerimento de interposição de recurso, devendo fiscalizar-se a constitucionalidade dos artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não cabe efetuar a reapreciação substancial desses atos, devendo apenas serem anulados os atos que se mostrem absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida no tribunal competente.
1.5.4.2. Questões do ponto III do requerimento de interposição de recurso
O arguido H. pediu, no ponto III do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das normas constante dos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido:
- de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis (ponto III 2 do requerimento de interposição de recurso)
- e de que a ordem definida para a instância do assistente e do demandante cível é imperativa, pelo que o defensor do arguido formulará o seu pedido de questão ao Presidente depois do Ministério Público mas antes do mandatário do assistente e do demandante cível (ponto III 3 do requerimento de interposição de recurso).
O Ministério Público, em resposta às alegações apresentadas pelo Recorrente, suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso quanto a estas questões, com fundamento em tais interpretações não constituírem o fundamento de qualquer decisão.
De acordo com o Ministério Público, tal como o Recorrente e as instâncias atuaram, se o Tribunal Constitucional viesse a proferir um juízo positivo de inconstitucionalidade, a Relação reformaria o acórdão e a 1.ª instância, eventualmente, também a sua decisão, mas tal não teria qualquer influência no processo, não havendo decisão que, na sequência do decidido pelo Tribunal Constitucional, tivesse de ser reformada e, consequentemente, autorizasse que o assistente prestasse declarações sem a mediação do presidente e que as instâncias do defensor do arguido pudessem ocorrer apenas após as instâncias dos mandatários dos assistentes e dos demandantes civis.
Conclui, assim, o Ministério Público que o pronunciamento do Tribunal Constitucional resultaria numa apreciação “em abstrato” da constitucionalidade das normas, algo como uma fiscalização abstrata enxertada num recurso de fiscalização concreta, não se podendo, por isso, dizer que exista uma decisão que tenha aplicado as normas questionadas como sua ratio decidendi, razão pela qual não deverá conhecer-se do recurso.
Da consulta dos autos resulta que na sessão da audiência de julgamento realizada em 14 de março de 2005, o mandatário do arguido A., apresentou um requerimento em que solicitou que se permitisse que as instâncias aos assistentes fossem efetuadas diretamente, sem a mediação do Presidente do Tribunal Coletivo, pelos diferentes sujeitos processuais, e que as instâncias dos defensores dos arguidos pudessem ocorrer após as instâncias do Ministério Público, dos assistentes e dos demandantes civis, tendo invocado como fundamento para a primeira das pretensões a inconstitucionalidade do disposto no artigo 346.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e como fundamento da última pretensão uma interpretação do mesmo artigo conforme à Constituição.
Em resposta a este requerimento a mandatária do arguido H., aderiu ao requerido, tendo precisado que estendia a declaração de inconstitucionalidade ao disposto no artigo 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, invocando ainda a inconstitucionalidade da interpretação que não permitisse que os defensores dos arguidos fossem os últimos a efetuar as instâncias aos assistentes.
Na sessão de 17 de março de 2005 foi proferido despacho que, após julgar conforme à Constituição o disposto nos artigos 346.º, n.º 1 e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, indeferiu o requerido, determinando que a tomada de declarações aos Assistentes e partes civis se procedesse na forma e pela ordem expressamente enunciadas nos artigo 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com a possibilidade de quem não foi o último a pedir esclarecimentos poder formular pedido de esclarecimentos suplementar.
Desta decisão interpôs recurso o arguido H., o qual foi apreciado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 que o julgou improcedente.
É certo que, nos autos, a questão de constitucionalidade não foi suscitada pela forma que o Ministério Público entendia ser a indicada. Com efeito, o Recorrente não optou por aguardar pelo momento em que estivessem a ser tomadas declarações aos assistentes ou demandantes civis para requerer que lhe fosse permitido interrogar diretamente determinado assistente ou demandante civil e usar da palavra para tal em último lugar e, sendo-lhe tal negado por aplicação das referidas normas, interpor recurso ordinário dessa decisão, suscitando então a inconstitucionalidade daquelas normas.
Dir-se-á, contudo, que se é certo que a questão de constitucionalidade foi suscitada previamente à aplicação concreta das referidas normas, também é verdade que tal questão foi colocada tendo em vista a efetiva aplicação das mesmas à subsequente tomada de declarações aos assistentes e demandantes civis. Ou seja, em termos práticos, o que se pretendia quando se suscitou a questão de constitucionalidade foi requerer ao tribunal de primeira instância que, na subsequente tomada de declarações aos assistentes e demandantes civis, permitisse a instância direta a estes por parte dos defensores dos arguidos e ainda que a instância e os pedidos de esclarecimentos solicitados por estes ocorressem em último lugar.
Assim, quando o tribunal se pronunciou sobre a constitucionalidade das normas questionadas, em qualquer das duas dimensões questionadas, fê-lo tomando posição quanto a esta pretensão dos arguidos, no sentido de solicitar a instância direta por parte dos defensores destes e de que essa instância ocorresse em último lugar.
Deste modo, há que entender que o arguido, ora Recorrente, pretendia que as inquirições subsequentes em que foram tomadas declarações aos assistentes e demandantes civis se processassem com a instância direta por parte dos defensores dos arguidos e ainda que a mesma ocorresse em último lugar, pretensão essa negada que foi ab initio pelo tribunal, com a pronúncia da decisão recorrida, com fundamento nas interpretações normativas sindicadas.
Assim, a tomada de declarações aos assistentes e aos demandantes civis efetuada de modo a respeitar estes critérios normativos terá resultado do cumprimento da decisão anteriormente proferida, pelo que, em caso de pronúncia do Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade destas dimensões normativas, a decisão a ser reformada seria o acórdão da Relação de Lisboa e, consequentemente, o despacho proferido na audiência de julgamento de 17 de março de 2005, cujo entendimento foi aplicado em todos os casos em que foram tomadas declarações aos assistentes e demandantes civis, como aliás se retira da decisão nele proferida onde consta expressamente que “face ao juízo de conformidade de constitucionalidade pelo qual conclui, o Tribunal irá proceder à tomada de declarações aos Assistentes e às partes civis, na forma e pela ordem expressamente enunciadas nos artº 346º, nº 1 e 347º, nº 1, do C. P. Penal, mas com a interpretação que enunciou no parágrafo anterior”. Ou seja, nada nos permite excuir que não teriam de ser repetidas as declarações prestadas pelos assistentes e demandantes civis, de modo a serem realizadas, tendo em atenção a pronúncia do Tribunal Constitucional.
Do exposto se constata que a decisão do Tribunal de 1.ª instância, apesar de ter sido proferida antecipadamente à prática dos atos de interrogatório aos quais se dirigiu, assumiu um caráter definitivo sobre a matéria decidida, o que confere utilidade ao conhecimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Contudo, relativamente à segunda interpretação normativa questionada pelo Recorrente junto do Tribunal Constitucional, verifica-se que o seu enunciado não coincide inteiramente com aquele que foi sustentado pela decisão recorrida, uma vez que a mesma perfilhou o entendimento, já sustentado pela decisão da 1.ª instância, de que a tomada de declarações aos Assistentes e partes civis deveria ocorrer na forma e pela ordem expressamente enunciada nos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, mas com a possibilidade de quem não foi o último a pedir esclarecimentos poder formular pedido de esclarecimentos suplementar. Esta possibilidade não foi incluída pelo Recorrente na enunciação da interpretação normativa imputada à decisão recorrida no pedido de intervenção do Tribunal Constitucional, sendo certo que esse segmento tem um papel relevante na configuração do critério normativo utilizado pelo Tribunal recorrido para fundamentar a sua posição.
Não existindo, quanto a essa questão, uma coincidência entre a norma cuja fiscalização de constitucionalidade foi requerida ao Tribunal Constitucional e a norma aplicada pela decisão recorrida, não deve o recurso ser conhecido nessa parte, sendo apenas apreciada a questão de constitucionalidade relativa à interpretação dos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis.
1.5.4.3. Questão VII 18 a) do requerimento de interposição de recurso
O arguido H. pediu, no ponto 7 do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 1.º, al. f), e 358.º, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que as alterações de factos comunicadas, que modificam a narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados, não são substanciais.
Estamos perante a suscitação da mesma questão que foi colocada pelo arguido D., no ponto II do seu requerimento de interposição de recurso, e pelo arguido F., no ponto 2 do seu requerimento de interposição de recurso, relativamente às quais, no ponto 1.5.2.1. supra, já se verificou que a interpretação normativa indicada não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na verdade, também relativamente às alterações de factos constantes do despacho de pronúncia, relativos a comportamentos do arguido H., o Tribunal recorrido não retirou da simples circunstância das alterações se traduzirem na modificação da narração do núcleo do lugar e/ou do tempo dos crimes imputados ao arguido, que se tratavam de alterações não substanciais da pronúncia, tendo extraído essa conclusão da análise das particularidades das concretas modificações operadas nesses aspetos factuais.
Nesse sentido lê-se no acórdão recorrido:
“Em conclusão, aderindo, como aderiram os arguidos recorrentes, à definição de alteração substancial de factos a que atendeu o Tribunal recorrido, com todas as explicitações que atrás deixámos enunciadas, considera-se que as alterações de factos objeto do presente recurso não transformam o quadro factual descrito na pronúncia em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual.
Do ponto de vista do homem médio, a imagem e valoração social que se tem de cada uma das unidades factuais alteradas mantém-se dentro dos elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, ainda que tenham sido modificados os locais ou as datas em que determinado arguido praticou um certo ato com relevo sexual com um dos menores.
Para melhor o explicitar, seguiremos aqui, para todas as alterações comunicadas objeto deste recurso, o mesmo tipo de abordagem que já acima se fez para a primeira das alterações comunicadas ao arguido F. (a que dizia respeito à Alameda D. Afonso Henriques) (fls. 786 do Acórdão)
…
“Ao arguido H. comunicou-se que factos ocorridos na casa do mesmo, sita na Rua …, n.º .., Restelo, em Lisboa, podem ter ocorrido em moradia não concretamente apurada, mas localizada no Restelo, em Lisboa, no Bairro de moradias onde se situam as Ruas … e a Rua … e na zona dessas ruas.
Muito à semelhança do que acima já foi dito quanto à alteração de local comunicada ao arguido F. na situação relativa à Alameda D. Afonso Henriques, vamos precisar também o que se dizia no despacho de pronúncia em termos circunstanciais quanto a esta situação concreta: “No mês de março ou abril do ano de 2000, em data em concreto não determinada, o arguido H. contactou com o arguido M. e pediu-lhe que levasse a sua casa um menor da CPL, a fim de o sujeitar à prática de atos sexuais consigo.
O arguido M. pediu então ao E. que acompanhasse o C., à data com 13 anos de idade, a casa do arguido H..
Nesse dia, da parte da tarde, o E. acompanhou o C. à casa do arguido H., sita na Rua …, n°. …, Restelo, em Lisboa, onde o primeiro já havia estado, aí tendo sido sujeito à prática de atos sexuais por tal arguido, conforme se descreverá noutro capítulo deste despacho de acusação.
Ao chegarem à casa do arguido H., os menores foram recebidos por uma pessoa de identidade desconhecida, que encaminhou o C. para a sala, tendo o E. abandonado o local, sem que tivesse chegado a entrar na residência.
Entretanto, o arguido H., que aguardava a chegada do menor, dirigiu-se ao mesmo e conduziu-o a um quarto da residência.
Aí, o arguido H. manipulou o pénis do menor, até este ejacular, tendo o menor também manipulado o pénis do arguido.
De seguida, o arguido H. introduziu o seu pénis na boca do menor, que chupou, a mando daquele.
Depois, o arguido H. virou o menor de costas para si, dobrando-o pela cintura introduziu o seu pénis ereto no ânus do mesmo, aí o tendo friccionado.
Após a prática dos atos descritos o arguido H. deu ao menor cerca de 6 mil escudos, tendo este voltado ao Colégio.
Posteriormente, o arguido H. entregou ao arguido M. uma quantia não determinada em dinheiro, como pagamento por este lhe ter levado o menor C. nas condições descritas.”
O que indiciariamente se alterou foi uma concretização precisa do local onde os factos aconteceram, passando da casa do arguido H., sita na Rua … n.° …, Restelo, em Lisboa, para uma localização mais vaga, numa moradia não concretamente apurada, mas localizada no Restelo, em Lisboa, no Bairro de moradias onde se situam as Ruas … e a Rua … e na zona dessas ruas.
E isto torna o crime imputado ao arguido num crime diverso? Não vislumbramos como isso possa ocorrer. Os factos imputados ao arguido são bem claros quanto aos elementos típicos do crime. A moradia onde ocorreram não é seguramente um deles. O crime mantém-se o mesmo, pois o quadro factual não é diferente quanto aos elementos materialmente relevantes de construção e identificação factual.
Aliás, a circunstância de indiciariamente não se conseguir com segurança apontar a moradia do arguido H. como tendo sido o local onde o crime aconteceu, mas uma localização mais ampla, onde aquela também se pode inserir, mostra bem como o que é essencial se mantém suficientemente indiciado, o que só não acontece com aquilo que é contextual, lateral.
No que tange com o critério da interferência na defesa do arguido, vimos já que ela só pode ter força suficiente para impedir que a alteração seja tratada no âmbito do disposto no art. 358.º, n.º 1, do CPP se aquela defesa ficar comprometida, inviabilizada, o que não é o caso. Aliás, a zona da casa até se mantém no círculo restrito da área do Restelo, não se excluindo até que fosse no local indicado no despacho de pronúncia.
Finalmente, comunicou-se a este mesmo arguido que os factos ocorridos em data em concreto não determinada de meados do ano de 1998, sendo que o E. à data tinha 13 anos de idade, podem ter ocorrido em data em concreto não determinada, situada entre meados do ano de 1997 e meados do ano de 1998, tinha o E. 12/13 anos de idade.
Iremos mais uma vez socorrer-nos do contexto e das circunstâncias desta concreta situação, tal como consta do despacho de pronúncia.
Conforme resulta de fls. 20906 a 20907 dos autos, “em data em concreto não determinada de meados do ano de 1998, o arguido M. foi contactado pelo arguido H. que lhe pediu que levasse ao seu consultório um menor da CPL a fim de, no mesmo, perpetrar atos sexuais.
O arguido M. abordou o menor E., que à data tinha 13 anos de idade, mandando-o “ir ter com o Doutor H.” ao consultório do mesmo, sito nas Travessa das …, n° … em Lisboa, o que o menor fez.
No interior do consultório, o arguido H. sentou o E. ao seu colo, e deu-lhe diversos beijos na cara, tendo tentado beijar o menor na boca, sem que o conseguisse por o mesmo desviar o rosto.
O arguido H. manipulou o pénis do menor, enquanto acariciava o seu próprio pénis que retirou para fora das calças. Também colocou o seu pénis na boca do menor que, obedecendo ao que lhe foi ordenado pelo arguido, o chupou.
Depois o arguido H. introduziu o seu pénis ereto no ânus do menor, aí o tendo friccionado até ejacular.
O arguido H., depois de ter sujeitado o menor E. à prática de tais atos deu-lhe cerca de mil escudos.”
Desta factualidade o que foi alterado foi a circunstância temporal, que deixou de estar limitada a data em concreto não determinada de meados do ano de 1998, para passar a estar indiciada em data em concreto não determinada, situada entre meados do ano de 1997 e meados do ano de 1998, o que pode influenciar na idade do menor, pelo que se passou a considerar a idade de 12/13 anos em vez da de 13 anos.
É possível afirmar que esta realidade fáctica resultou desvirtuada na sua essência na sequência da mencionada alteração? Trata-se de um caso em tudo idêntico aos anteriores. Há alterações de facto circunstanciais a comunicar aos arguidos, para que em função disso organizem a sua defesa, mas não há um crime diferente do que estava indiciado no despacho de pronúncia (fls. 810-814 do Acórdão recorrido).
Da leitura deste excerto resulta que também, relativamente à qualificação das alterações dos factos imputados ao arguido H. como não substanciais, ela não resultou da aplicação do critério normativo cuja inconstitucionalidade foi invocada pelo arguido, mas sim duma ponderação subsuntiva das concretas alterações efetuadas ao conceito de “crime diverso”.
Não se revelando, por isso, que a norma, cuja fiscalização foi requerida, tenha integrado a ratio decidendi do acórdão recorrido, não deve o mérito do recurso ser conhecido nesta parte.
1.5.4.4. Questão VII 3 do requerimento de interposição de recurso
O arguido H. pediu, no ponto VII 3 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que é possível alterar os factos do despacho de pronúncia em prazo muito para além do razoável (ao fim de mais de cinco anos de julgamento, quase um ano depois de todas as alegações finais, réplica e resposta das defesas e quase quatro anos depois do fim das declarações do Assistente em causa).
Nas sessões de julgamento em 1.ª instância ocorridas em 23 de novembro de 2009 e 14 de dezembro de 2009, foram comunicadas pelo Tribunal alterações de factos constantes da pronúncia, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010, as quais foram então qualificadas como não substanciais.
O arguido, em recurso interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, discordou da possibilidade de serem efetuadas alterações aos factos constantes do despacho de pronúncia, após o lapso de tempo decorrido entre a produção da prova e a altura em que foram comunicadas as alterações dos factos.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente este fundamento do recurso, não por ter considerado que era possível proceder àquela alteração depois de decorrido um lapso de tempo irrazoável entre a produção da prova e a comunicação da alteração, mas, antes pelo contrário, por, ter entendido como perfeitamente justificado o momento em que as alterações de factos aqui em causa foram comunicadas aos arguidos (fls. 841 do acórdão).
É, pois, evidente que o critério normativo enunciado pelo arguido no seu requerimento de interposição de recurso não corresponde à posição sustentada no acórdão recorrido, não integrando a sua ratio decidendi, pelo que não é possível apreciar esta questão.
1.5.4.5. Questão VII 18 c) do requerimento de interposição de recurso
O arguido H. pediu, no ponto VII 18 c) do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 97.º, n.º 5, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a comunicação de alteração de factos do despacho de pronúncia se basta com a indicação dos novos factos que se considera indiciados e cuja fundamentação se limita a remeter para toda a prova produzida nos autos.
Conforme já acima se referiu, nas sessões de julgamento em 1.ª instância ocorridas em 23 de novembro de 2009 e 14 de dezembro de 2009, foram comunicadas pelo Tribunal alterações de factos constantes da pronúncia, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010, as quais foram então qualificadas como não substanciais.
O arguido em recurso interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa discordou da possibilidade de serem efetuadas tais alterações aos factos constantes do despacho de pronúncia, com a fundamentação constante dos respetivos despachos, que considerou insuficiente.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente este argumento do recurso, por ter considerado suficiente a fundamentação constante dos últimos despachos em causa.
Contudo, não se pode inferir desta decisão que ela tenha aceite como pressuposto que a fundamentação se resumia à indicação dos novos factos e a remissão para toda a prova produzida nos autos. Antes resulta da sua leitura, nomeadamente da remissão que fez para o acórdão do Tribunal da Relação proferido no apenso ZK e para o acórdão do Tribunal Constitucional que sobre ele recaiu, que no caso em apreço, tais despachos não se limitaram a apresentar um rol de meios probatórios, tendo antes selecionado, de modo individualizado, quais os meios pertinentes para a formação da convicção quanto à alteração comunicada.
Não se constatando que o critério normativo enunciado pelo arguido, no seu requerimento de interposição de recurso, integre a ratio decidendi do acórdão recorrido, também não é possível apreciar esta questão de constitucionalidade.
1.5.4.6. Questão VII 18 d) do requerimento de interposição de recurso
O arguido H. pediu, no ponto VII 18 d) do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fiscalização da constitucionalidade da norma constante dos artigos 340.º e 358.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é necessária justificação para o indeferimento dos requerimentos de prova apresentados pelos arguidos no seguimento da comunicação da alteração dos factos da pronúncia.
O arguido, na sequência das alterações factuais que lhe foram comunicadas, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, requereu a produção da seguinte prova:
- a leitura de todas as declarações prestadas em inquérito pelos assistentes C. e E.;
- o visionamento em audiência de DVD que contém a deslocação dos assistentes C. e E. à moradia sita na Av. …, n.º .., em Lisboa;
- a audição de 99 testemunhas;
- a audição de todos os proprietários dos imóveis abrangidos “… pelo despacho de comunicação de alterações…” que residiram, usaram ou a qualquer título ocuparam os mesmos no período temporal constante do despacho de pronúncia, considerando-se como arroladas pelo requerente todos os que venham a ser identificados;
- que o Tribunal oficiasse à Conservatória do Registo Predial de Lisboa, e/ou à PSP, no sentido de serem identificados todos aqueles que eram proprietários dos imóveis existentes nas ruas abrangidas pelo despacho de comunicação de alterações nos meses de março e abril de 2000, bem como os respetivos inquilinos ou utilizadores dos mesmos, a fim de serem ouvidos como testemunhas, que o arguido assim arrola.
Relativamente a este requerimento foi proferido despacho com o seguinte teor:
“- Ao abrigo do disposto no art° 340º, n° 1 , do CPPenal, do disposto nos art°s 315°, n° 4 e 283°, n° 3, al. d) e n° 7, do CPPenal e do art° art° 32°, n° 1 e 5 e art° 200, n° 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, por tal se revelar necessário para a boa e justa decisão da causa e proporcionalmente adequado ao caso concreto, o Tribunal defere:
- a audição de dez testemunhas, de entre as identificadas pelo arguido a fls. 64.850 a 64.857;
- o arguido deverá comunicar ao Tribunal, no prazo de cinco dias - a fim de possibilitar uma maior celeridade processual, sendo que se ao arguido não for possível cumprir tal prazo, que é inferior ao prazo legal, deverá comunicá-lo ao Tribunal, aplicando-se nesse caso, sem necessidade de novo Despacho, o prazo legal de dez dias -, o nome das dez testemunhas a ouvir e de entre as já identificadas pelo arguido a fls. 64.850 a 64 857, ou o que tiver por conveniente, sendo que caso o arguido nada venha a comunicar ou requerer ao Tribunal, o Tribunal notificará as dez primeiras, de entre as primeiras identificadas - para os primeiros dez, mas diferentes, números de polícia de prédios -, de forma a ouvir cada testemunha em relação a um imóvel diferente;
- indeferindo quanto ao demais requerido a fls. 64.848 a 64.857 em relação a moradias localizadas no Restelo, em Lisboa, no Bairro de moradias onde se situam as Ruas … e a Rua … e na zona dessas ruas.
- Quanto à requerida, a fls. 64.850, leitura “de todas as declarações prestadas em inquérito pelos assistentes C. e E.”, é diligência que tem subjacente um regime processual específico no art° 356°, n° 2, al. b) e n° 5, do C.P.Penal, pelo que na audiência de julgamento o Tribunal irá dar cumprimento a tal dispositivo legal.
- Quanto ao requerido visionamento em audiência de julgamento do DVD que contém a deslocação dos assistentes C. e E. a moradia sita na Av …, nº .., em Lisboa, por tal poder ser útil para a boa decisão da causa, no atual momento processual, ao abrigo do disposto no art° 340º, n° 1, do CPPenal, o Tribunal defere-o.”
O arguido recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa que julgou o recurso improcedente.
Contudo essa improcedência não se baseou no critério normativo indicado pelo arguido, segundo o qual não era necessária justificação para se indeferirem os meios de prova apresentados pelos arguidos no seguimento da comunicação da alteração dos factos da pronúncia.
O Tribunal da Relação de Lisboa não só nunca expressou esse entendimento, como analisou detalhadamente as razões apresentadas pelo tribunal da 1.ª instância para recusar a produção de alguns dos meios de prova indicados pelo arguido, tendo concluído que essa recusa foi justificada.
O critério normativo cuja fiscalização foi requerida pelo arguido não integrou, pois, a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que o recurso para o Tribunal Constitucional não pode ser conhecido nesta parte.
1.6. Questões a conhecer
Restam para conhecer as seguintes questões:
- suscitadas pelo arguido A. no ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 7 de dezembro de 2011 e no ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de fevereiro de 2012.
- suscitada pelo arguido D. no ponto I do requerimento de interposição de recurso apresentado em 8 de março de 2012.
- suscitada pelo arguido F. no ponto 3 do requerimento de interposição de recurso.
- suscitadas pelo arguido H. nos pontos II 3, II 5, III 2, VI e VII 12 do requerimento de interposição de recurso.
As questões colocadas pelo arguido A. no ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de fevereiro de 2012 e pelo arguido H. no ponto VI do requerimento de interposição de recurso são idênticas, divergindo apenas em aspetos de pormenor de redação.
As questões colocadas pelo arguido D. no ponto I do requerimento de interposição de recurso apresentado em 8 de março de 2012 e pelo Recorrente H. em II 3 são idênticas.
As questões colocadas pelo Recorrente F. no ponto 3. do requerimento de interposição de recurso e pelo arguido H. no ponto VII 12 do requerimento de interposição de recurso, apesar de terem sido enunciadas como se reportando a preceitos legais que não coincidem na sua totalidade e com uma formulação cuja redação difere, são idênticas.
Nos casos em que o conteúdo normativo questionado é idêntico, apesar das redações do seu enunciado não coincidirem totalmente e, por vezes, a interpretação em causa se encontrar reportada a diferentes combinações de preceitos legais, o conhecimento do mérito das respetivas questões deve ser efetuado conjuntamente, dado que a norma não deixa de ser a mesma.
Quanto às questões colocadas pelo arguido A. no ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de fevereiro de 2012 e pelo arguido H. no ponto VI do requerimento de interposição de recurso deve ser adotada a redação proposta pelo primeiro Recorrente por englobar o conteúdo desta última, sendo dotada de maior precisão, relativamente ao critério adotado pela decisão recorrida.
Quanto às questões colocadas pelo arguido F. no ponto 3. do requerimento de interposição de recurso – inconstitucionalidade do artigo 358.º do Código de Processo Penal, interpretado com o sentido de que a comunicação de alterações quanto ao lugar e/ou ao tempo de factos da pronúncia pode sempre ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento - e pelo arguido H. no ponto VII 12 do requerimento de interposição de recurso – inconstitucionalidade dos artigos 358.º, 360.º e 361.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência -, podem unificar-se na enunciação proposta por este último Recorrente, uma vez que o primeiro, nas suas alegações, questiona precisamente o facto das alterações poderem ocorrer em momento posterior à produção de prova e às alegações orais, sem que ocorram motivos excecionais ou supervenientes que justifiquem a escolha desse momento.
Assim, as interpretações normativas cuja constitucionalidade deve ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional neste processo são as seguintes:
- artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que
não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido (ponto I do requerimento de interposição de recurso do Acórdão proferido em 7 de dezembro de 2011, apresentado pelo arguido A.).
- artigos 356.º, n.º 2, b) e n.º 5, e 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, essa leitura não pode ser admitida em audiência de julgamento, assim como o subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações (ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 apresentado pelo arguido A. e ponto VI do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
- artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de reconhecer competência ao tribunal de julgamento para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados em fase de inquérito (ponto I do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido D. em e ponto II 3 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
- artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não cabe efetuar a reapreciação substancial desses atos, devendo apenas serem anulados os atos que se mostrem absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida no tribunal competente (ponto II 5 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
- artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal, interpretados com o sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência (ponto 3 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido F. e ponto VII 12 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
- artigos 346.º, n.º 1, e 347.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis (ponto III 2 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
2. O mérito dos recursos
2.1. A interpretação do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ponto I do recurso do arguido A. do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 7 de dezembro de 2011)
Com a resposta aos recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa pelo Ministério Público, pela Casa Pia de Lisboa. I.P., e pelos assistentes J., K. e B., do acórdão proferido pelo Tribunal da 1.ª Instância, o arguido A. veio juntar aos autos três documentos (2 DVD’s com entrevistas dos assistentes L. e E. e 1 livro da autoria de L.).
O Ministério Público, no parecer a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal pronunciou-se no sentido de que tais documentos não devem ser admitidos nesta fase processual.
Notificado, nos termos e para os efeitos do n.º 2, do artigo 417.º, do Código de Processo Penal, veio o arguido A. reiterar que os três documentos por si juntos fossem admitidos, requerendo, ainda, a junção de mais cinco documentos (2 DVD’s com entrevistas do arguido M. e do assistente K. e publicações das entrevistas concedidas por estes a três órgãos de comunicação social).
Através de novo requerimento veio o arguido A. requerer a junção de mais cinco documentos.
Em 7 de dezembro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão em que decidiu não admitir, com fundamento na sua extemporaneidade, a junção aos autos dos documentos oferecidos pelo arguido A. com a resposta ao recurso do Ministério Público, Casa Pia de Lisboa, I.P., e dos assistentes J., K. e B., bem como os oferecidos com os requerimentos posteriores.
O Tribunal recorrido fundamentou esta decisão no disposto no artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”, tendo interpretado este preceito com o sentido de que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido.
Neste aresto defendeu-se que o último momento até ao qual o arguido pode produzir prova através da apresentação de documentos é o do encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, estando-lhe vedada essa possibilidade em sede de recurso, nomeadamente como suporte da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mesmo quando se trate de documentos supervenientes.
Este tem sido o critério maioritariamente adotado (v.g. Maia Gonçalves, em “Código de Processo Penal anotado”, pág. 422, da 17.ª ed., da Almedina, alterando posição anterior, os Acórdãos do S.T.J. de 30-11-1994, pub. na C.J. (Ac. do S.T.J.) Ano II, Tomo III, págs. 262, e de 06-02-2008, de 22-10-2008 e de 12-10-2011, todos acessíveis em www.dgsi.pt, da Relação de Coimbra de 10-11-1999, na C.J., Ano XXIV, tomo 5, pág. 47, e da Relação do Porto de 24-01-2007, acessível em www.dgsi.pt), existindo, no entanto, arestos (v.g. o Acórdão do S.T.J. de 10-12-2009, acessível em www.dgsi.pt) que, excecionalmente, admitiram, em sede de recurso, a junção de documentos supervenientes que consideraram imprescindíveis para a decisão da causa.
O arguido A. invoca a inconstitucionalidade desta interpretação, por violar as garantias de defesa e o direito ao recurso consagrados no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, bem como o direito a um processo equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, apoiando-se na opinião de Paulo Pinto de Albuquerque (expressa em “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 461 e 1181-1882, da 4.ª ed., da Universidade Católica Editora).
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão de constitucionalidade nos Acórdãos n.º 392/2003 e 397/2006, nos quais não julgou inconstitucional o artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo-se escrito o seguinte no primeiro destes arestos:
«…a intempestividade da junção de documentos supervenientes, na fase de recurso para a relação, está diretamente conexionada com os termos em que a lei regula os recursos em processo penal, particularmente, no que concerne à reapreciação da matéria de facto.
A decisão em 2.ª instância, sobre matéria de facto, não significa um segundo julgamento no sentido de se deverem apreciar novos elementos de prova. O juízo do tribunal de recurso tem por objeto a decisão de 1.ª instância, com a possibilidade, em certos casos, de 'renovação' da prova (não de apresentação de novos elementos da prova - novas testemunhas, novos documentos) com os mesmos elementos probatórios que serviram de base à decisão recorrida.
Escrevem, a propósito, Simas Santos e Leal Henriques ('Recursos em Processo Penal', 3ª ed., pág. 58):
'Ao estatuir que 'sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença (isto é, de uma decisão que conhece, a final, do objeto do processo) abrange toda a decisão', o art. 402.º, consagra no seu n.º 1, o princípio do conhecimento amplo.
O objeto legal dos recursos é, assim, a decisão recorrida e não a questão por esta julgada; com o recurso abre-se somente uma reapreciação dessa decisão, com base na matéria de direito e de facto de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada, pré-existente, pois, ao recurso'.
Ora, a Constituição (maxime, artigo 32º n.º 1), se assegura o direito ao recurso, deixa, no entanto, ao legislador ordinário uma margem de livre conformação na regulação do recurso, não impondo, de modo algum, que esta se traduza na permissão de um segundo julgamento da questão decidida em 1ª instância.
Nesta lógica se compreende, sem vício de inconstitucionalidade, a proibição de junção de documentos supervenientes com vista a alterar a matéria de facto dada como provada em 1ª instância.»
É nítido que a interpretação sindicada está diretamente conexionada com a perspetiva sobre os termos em que a lei ordinária define o âmbito dos recursos em processo penal, particularmente no que concerne à reapreciação da matéria de facto.
O Tribunal recorrido revela a sua visão sobre este tema quando disserta a propósito do disposto no n.º 1, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal:
“Deste preceito legal resulta que os recursos dirigidos a um tribunal hierarquicamente superior não se destinam a apreciar questões novas, não visam avaliar em primeira linha questões que não tenham sido suscitadas na 1.ª instância. Pelo contrário, estes meios de impugnação das decisões judiciais visam a reanalise, a reapreciação, de questões que já tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que podiam e deviam ter sido conhecidas, apesar de não terem sido apreciadas, com o intuito de correção de vícios, de erros, de omissões ou de escolha da melhor solução jurídica para o caso.
A interposição de recurso deixaria de consubstanciar um meio de impugnação das decisões judiciais, de sindicância e de avaliação do seu mérito, com o intuito da sua modificação, para passar a ser um meio de vinculação do tribunal de recurso, do tribunal hierarquicamente superior, à decisão de questões novas, ainda não apreciadas pelo tribunal recorrido.
Deste modo, não ocorre qualquer vício da decisão judicial, suscetível de reparação pelo tribunal hierarquicamente superior através de recurso, quando o tribunal de 1.ª instância não teve a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que motiva a interposição do recurso, muito em particular por essa questão nova não ser cognoscível à data da decisão impugnada, por ter sido suscitada após a sua prolação, sendo desconhecida para o tribunal a quo.”
Em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição que, relativamente à sentença condenatória, se traduz na necessidade de assegurar ao arguido a faculdade de pedir a sua reapreciação, quer quanto à matéria de direito, como à matéria de facto, por um tribunal superior.
Mas, o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, com direito à produção de novos meios de prova, designadamente os supervenientes, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando, face às provas produzidas na 1.ª instância, conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se lê:
“Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…”.
Daí que o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso apreciar novas provas que o arguido apresente em sede de recurso, mesmo que estas sejam supervenientes. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não teve a possibilidade de ponderar tais provas, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de 2.ª instância, que também valore a prova apresentada já em sede de recurso.
Isto não quer dizer que a existência de novas provas não deva ser passível de utilização pelo arguido, de forma a que sejam assegurados, na plenitude, os seus direitos de defesa. Mas o mecanismo processual que possibilite essa utilização não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de segunda instância, que está a decidir sobre a procedência de um recurso ordinário, que analise e pondere, em primeira mão, essas provas supervenientes ao julgamento em primeira instância.
O nosso sistema processual penal prevê desde logo um expediente, no artigo 449.º do Código de Processo Penal, que, no seu n.º 1, d), admite a revisão da sentença transitada em julgado quando “se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.
Nesse recurso extraordinário, há lugar a uma fase preliminar que decorre no tribunal que proferiu a decisão a rever (artigo 451.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), procedendo-se à produção da nova prova (artigo 453.º, do Código de Processo Penal). Terminada a realização destas diligências o processo é remetido ao Supremo Tribunal de Justiça, acompanhado de informação sobre o mérito do pedido de revisão (artigo 454.º, do Código de Processo Penal). No Supremo Tribunal de Justiça, após vista ao Ministério Público, é então decidido o pedido de revisão, podendo ser ordenada a realização de qualquer diligência (artigo 455.º, do Código de Processo Penal). Pondera-se se as novas provas oferecidas são suscetíveis de infirmar o decidido. Caso seja autorizada a revisão, o processo é reenviado ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão a rever e que se encontrar mais próximo (artigo 457.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). E se o condenado se encontrar a cumprir pena de prisão ou medida de segurança de internamento, o Supremo Tribunal de Justiça decide em função da gravidade da dúvida sobre a condenação, se a execução deve ser suspensa (artigo 457.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Se ordenar a suspensão da execução ou se o condenado não tiver ainda iniciado o cumprimento da sanção, o Supremo Tribunal de Justiça decide se ao condenado deve ser aplicada medida de coação legalmente admissível no caso (artigo 457.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Após a baixa do processo e realizadas as diligências que se entenderem necessárias, procede-se a novo julgamento da causa que já atenderá aos novos meios de prova, sem quaisquer limitações quer quanto à apreciação da matéria de facto, quer quanto à sua subsunção às disposições legais, observando-se em tudo os termos do respetivo processo como se não tivesse existido a decisão revista (artigo 460.º, do Código de Processo Penal). Se a decisão revista tiver sido condenatória e o tribunal da revisão absolver o arguido, aquela decisão é anulada, trancado o respetivo registo e o arguido restituído à situação jurídica anterior à sua condenação (artigo 461.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). A sentença que absolver o arguido no tribunal de revisão é afixada por certidão à porta do tribunal da comarca da sua última residência e à porta do tribunal que tiver proferido a condenação é publicada em três números consecutivos do jornal da sede deste último tribunal ou da localidade mais próxima, se naquela não houver jornais (artigo 461.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). A decisão absolutória deve também arbitrar ao arguido uma indemnização pelos danos sofridos e ordenar a restituição das quantias relativas a custas e multas que este tiver suportado (artigo 462.º, do Código de Processo Penal). Note-se ainda que, quando o condenado a favor de quem foi pedida a revisão se encontrar preso ou internado, os atos judiciais que deverem praticar-se preferem a qualquer outro serviço (artigo 466.º, do Código de Processo Penal).
Ora, o critério sindicado se não admite que sejam apresentados, em sede de recurso ordinário, documentos supervenientes como novos meios de prova a apreciar pelo tribunal de recurso no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não impede que esses documentos possam ser apresentados e valorados no âmbito de um recurso extraordinário de revisão que ponha em causa uma decisão condenatória já transitada em julgado.
Argumenta-se, porém, que a limitação a este meio de reação “implica que o arguido tenha que aceitar passivamente o trânsito em julgado de uma sentença injusta, que lhe impõe o labéu de culpado contra a realidade de factos que suscitam “graves dúvidas” sobre a condenação recorrida. A obrigatória postergação para momento posterior ao trânsito em julgado de uma defesa que o arguido estava em condições de apresentar antes do trânsito constitui não só uma violação do princípio da presunção de inocência, como do princípio da celeridade processual. Dito de um modo simples, não é suficiente garantir o direito à revisão de um processo para quem já tem o labéu definitivo de culpado e entra logo a cumprir a pena aplicada (artigo 457.º, n.º 2), apesar de ele conhecer novos meios de prova que põem seriamente em causa a justiça da condenação. Impõe-se, portanto, nos casos de discussão dos referidos novos meios de prova uma audiência no tribunal de recurso logo na pendência do recurso ordinário (acórdãos do TEDH nos casos Helmers v. Suécia (plenário), Dondarini v. São Marino, Ekbatani v. Suécia (plenário), Pobornikoff v. Áustria, Kremzow v. Áustria, e Hermi v. Itália” (Paulo Pinto de Albuquerque, na ob. e loc. cit.).
Previamente à ponderação destes argumentos, não pode deixar, desde logo, de se mencionar que os arestos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acima identificados, que o Recorrente também invoca em defesa da sua tese, não têm por objeto a possibilidade de produção de novas provas nos tribunais de recurso, mas sim o direito dos arguidos estarem presentes e intervirem nas audiências que tenham lugar nesses tribunais, não sendo por isso convocáveis para a análise da presente questão de constitucionalidade.
Contudo, é verdade que a solução de fechar as portas dos recursos ordinários à avaliação de novas provas, mesmo que elas sejam supervenientes à prolação das decisões recorridas, e ao remeter a sua apreciação para um momento posterior ao trânsito em julgado da decisão final, introduz limitações temporais à produção dessas provas, permitindo que o processo termine com uma condenação e se inicie o cumprimento da respetiva pena, sem que elas tenham sido valoradas.
Todavia, há que ter presente que a possibilidade de novos meios de prova serem valorados pelo tribunal de recurso, o que, não se esqueça, poderia também acontecer por iniciativa da acusação, introduziria sérias perturbações e dilações à tramitação da instância recursória, pondo em causa a estabilidade e celeridade da sua tramitação, apresentando-se como uma solução dificilmente praticável.
Daí que, existindo interesses e valores dignos de tutela que justificam que se fixe um marco temporal na tramitação processual para a apresentação de provas, que exclua a fase de processamento do recurso ordinário, o legislador tenha liberdade para compatibilizar os diferentes valores em jogo, impedindo a produção de novas provas em sede de recurso ordinário, mesmo que supervenientes, mas assegurando, designadamente, que as mesmas poderão fundamentar a dedução imediata de um recurso de revisão, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, com uma tramitação caracterizada pela celeridade e pela possibilidade de ser ordenada a suspensão do cumprimento da pena entretanto iniciada, como sucede com as regras do recurso extraordinário de revisão acima descritas. É uma solução de distribuição dos custos do sacrifício de valores que respeita as exigências de proporcionalidade e que preserva o conteúdo essencial daqueles.
Além disso, não está excluída também a possibilidade de documentos supervenientes, com determinadas características, poderem excecionalmente relevar em mecanismos como o reenvio para novo julgamento ou de renovação da prova, em caso de deteção dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, possibilidade que a decisão recorrida não deixa de encarar ao considerar que os documentos em causa não eram suscetíveis de “incontestavelmente influírem na decisão da causa”.
Em suma, existindo no regime processual penal, quanto à matéria em questão, outros mecanismos, cujo regime confere ao arguido uma suficiente exequibilidade do seu direito de defesa perante a superveniência de provas, e não tendo a interpretação sindicada afastado o exercício desses meios de reação, denota-se que tal interpretação não coloca em causa a garantia do direito de defesa do arguido, designadamente do direito ao recurso de uma sentença condenatória, nem do direito a um processo equitativo
Assim sendo, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição, nem se vislumbra que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o recurso apresentado pelo arguido A. não merece provimento nesta parte.
2.2. A interpretação dos artigos 356.º, n.º 2, b), e n.º 5, e 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ponto I do recurso do arguido A. do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 e ponto VI do recurso do arguido H.).
Os arguidos A. e H., na audiência de julgamento em 1.ª instância, requereram, por diversas vezes, a leitura de declarações prestadas no inquérito por assistentes e testemunhas, para serem confrontadas com o conteúdo dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, a fim de ser avaliada a credibilidade destes.
Os assistentes opuseram-se a essa leitura.
O Tribunal, em vários despachos, indeferiu esta pretensão, com fundamento na oposição dos assistentes.
Os arguidos recorreram destas decisões para o Tribunal da Relação de Lisboa que, no acórdão proferido em 23 de fevereiro de 2012, julgou improcedente os recursos, com fundamento no disposto nos artigos 356.º, n.º 2, b), e n.º 5, e 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, essa leitura não pode ser admitida em audiência de julgamento, assim como o subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações.
Os arguidos defendem que este critério viola o reduto essencial das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) e o direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), ao não permitir que este demonstre a falta de credibilidade dos depoimentos prestados em audiência, através do seu confronto com as declarações prestadas em sede de inquérito pelos mesmos depoentes.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questão, tendo no Acórdão n.º 1052/96 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), proferido uma decisão de não inconstitucionalidade.
Disse então o Tribunal Constitucional:
“…A leitura dos autos e declarações autorizada pelo artigo 356º representa uma emanação da oralidade e publicidade da audiência, traduzindo-se porém em exceção ao princípio da imediação da prova, exceção justificada pela impossibilidade ou grande dificuldade da sua produção direta ou por outras razões pertinentes.
Mas, nas situações que, a título taxativo, são previstas naquele preceito houve o evidente propósito de acautelar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente o princípio do contraditório estabelecendo-se um regime diferenciado em função, não só da natureza dos atos processuais, como também da autoridade judiciária ou de polícia criminal perante quem foram praticados.
…
A diferenciação de tratamento estabelecida para a leitura em audiência dos diversos atos ali previstos radica na sua particular natureza e conteúdo mas também, e é esse um ponto que aqui importa sublinhar, nas maiores ou menores garantias processuais com que os mesmos foram praticados (com as formalidades estabelecidas para a audiência, levadas a cabo perante o juiz, perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal).
…
Em conformidade com o disposto no artigo 32º da Constituição 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' (nº 1), revestindo 'estrutura acusatória' e 'estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório' (nº 5).
Quando aquele preceito se reporta a 'todas as garantias de defesa', considera indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. O posicionamento do arguido num processo de tipo acusatório há de revestir uma situação de reciprocidade dialética face à acusação, pelo que, em conformidade, devem ser-lhe atribuídos aqueles meios legais de intervenção que compensem o desequilíbrio, que é pressuposto indispensável de uma correta administração de justiça. O princípio do contraditório é, afinal, expressão, ao nível jurídico-processual, do princípio da igualdade. (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, pp. 202 e ss e José António Barreiros, Processo Penal, vol. 1º, pp. 401 e ss).
A norma posta em crise só consente a leitura do depoimento da testemunha - presente na audiência de julgamento - prestado no inquérito perante um órgão de polícia criminal, desde que se verifique acordo por parte do Ministério Público, do arguido e do assistente.
Este condicionamento acha-se fundado, desde logo, na circunstância de as declarações cuja leitura se pretende não terem sido prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas.
Por outro lado, achando-se presente na audiência a testemunha em causa, há de dizer-se que quanto ao seu depoimento e à sua razão de ciência o arguido tem a possibilidade legal de exercer um pleno direito de defesa (the accused has the right [...] to meet witnesses face to face, como se escreve no artigo 1º, secção 9, da Constituição dos Estados Unidos da América).
A exigência de um consentimento alargado ao Ministério Público, ao arguido e à defesa, para que a leitura das declarações seja possível não se apresenta como encurtamento ou restricção inadequada ou inadmissível das garantias de defesa, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355º, nº 1, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido.
Não se tem assim por existente qualquer violação constitucional daquela norma.”
A norma em causa nestes recursos regula a possibilidade de leitura na audiência de julgamento de autos de declarações prestadas anteriormente por assistentes ou testemunhas que deponham nessa audiência.
No Código de Processo Penal de 1929, apesar de todas as alterações a que foi sujeito, o regime de leitura de declarações prestadas na fase instrutória do processo por testemunhas e declarantes que depusessem na audiência de julgamento manteve-se incólume durante o seu longo período de vigência no artigo 438.º. Permitia-se apenas a leitura desses relatos escritos após testemunhas e declarantes terem deposto na audiência de julgamento, com a finalidade de esclarecerem ou completarem os seus depoimentos. Privilegiava-se, assim, a oralidade e a imediação da prova, sem que o interesse na obtenção da verdade material não deixasse de permitir o recurso à leitura de depoimentos cuja prestação não reunia essas características, com a finalidade de avivar a memória das testemunhas e declarantes no momento da audiência de julgamento, permitindo simultaneamente ao tribunal aferir da credibilidade dos seus depoimentos.
A Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de setembro, ao abrigo da qual o Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, aprovou o Código de Processo Penal de 1987, limitava-se a dizer, no ponto 63, do artigo 2.º, que o Decreto-Lei a apresentar pelo Governo devia conter a “proibição, salvo em casos excecionais, de valoração em julgamento de quaisquer provas que não permitam o estabelecimento do contraditório em audiência, alargando nomeadamente o elenco de situações em que são proibidas as leituras de autos de instrução contendo declarações de arguidos, assistentes, partes civis ou testemunhas não presentes na audiência de julgamento”. A especial preocupação com a leitura de declarações prestadas, em fase de instrução, por pessoas que não se encontrassem presentes na audiência de julgamento, resultava da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 439.º, do Código de Processo Penal de 1929, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, “na medida em que permite a leitura em audiência de julgamento de depoimentos de testemunhas de acusação que não compareçam naquela audiência e às quais o arguido não tenha tido previamente a possibilidade jurídica de interrogar ou fazer interrogar' (Resolução n.º 146-A/81, do Conselho da Revolução, publicada no Diário da República, I Série, de 3 de julho de 1981, mediante Parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81, de 27 de junho de 1981, em Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16, pp. 147 e ss) .
No entanto, o Código de Processo Penal de 1987 não se limitou a proibir a leitura de depoimentos prestados em fase anterior ao julgamento por pessoas que não se encontrassem presentes na audiência, tendo começado por, no artigo 355.º, impor, como regra geral, que a produção de toda a prova a ser utilizada para efeitos de fundamentação da decisão judicial tenha de ser feita em sede de audiência de julgamento. E, no artigo 356.º, onde se instalaram as exceções a esta regra geral, apresentando um esquema mais restritivo para a reprodução das declarações processuais, nos casos em que a fonte da prova é inquirida em julgamento, do que nos casos em que essa inquirição não é possível, apenas permitiu a leitura das seguintes declarações prestadas anteriormente à audiência de julgamento por assistentes, partes civis ou testemunhas que deponham na audiência:
- as declarações prestadas perante juiz na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos, ou quando houver entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias (n.º 3);
- as declarações prestadas perante juiz, Ministério Público, ou órgãos da polícia criminal se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo (n.º 2, b), e n.º 5 – a conjugação de preceitos a que se reporta a norma de cunho interpretativo aqui sob fiscalização).
Na Revisão do Código de Processo Penal de 1998, a respetiva Proposta de Lei (n.º 157/VII), com origem num projeto elaborado por uma Comissão Revisora nomeada pelo Ministro da Justiça de então, alargava a possibilidade de leitura de declarações anteriores ao julgamento na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos ou quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias, às declarações prestadas perante o Ministério Público. Esta solução, porém, não viria a ser acolhida pela Assembleia da República, encontrando-se, contudo, em discussão neste órgão uma nova proposta de alteração do Código de Processo Penal (Proposta de Lei n.º 77/XII) que retoma o alargamento da utilização da leitura de declarações anteriores ao julgamento às prestadas perante o Ministério Público.
Como se vê, o sistema em vigor é severamente limitativo quanto à leitura, durante a audiência de julgamento, das declarações de testemunhas e assistentes proferidas em sede de inquérito, perante o Ministério Público ou órgãos de polícia criminal. Apenas as admite, independentemente da finalidade dessa leitura, quando exista um acordo nesse sentido que englobe o Ministério Público, o arguido e o assistente. Isto tem como resultado, inexistindo esse acordo, a impossibilidade da sua utilização por parte do tribunal, não só na formação da sua convicção, mas também como instrumento auxiliar no avivamento da memória de quem presta declarações em audiência ou na aferição da credibilidade desses depoimentos.
A esta solução preside a ideia inicial de que toda a prova em que se funde a convicção do julgador tem de ser realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de natureza acusatória (os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova), pelo que toda a derrogação a esta linha de pensamento só pode ser afirmada como exceção, justificada por um determinado circunstancialismo e regulada segundo um princípio de concordância prática dos valores conflituantes (vid. DAMIÃO DA CUNHA, em “O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento (arts. 356.º e 357.º, do CPP). Algumas reflexões à luz de uma recente evolução jurisprudencial.”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 3.º, pág. 405-406). Daí que, sendo a prova testemunhal em sentido amplo, quanto à sua formação, uma prova constituenda, como regra geral se proíba a admissão em julgamento da leitura de anteriores declarações processuais. Na verdade, este tipo de prova, em fase de julgamento, só está imune a qualquer juízo de desconfiança, relativamente à sua autenticidade e credibilidade, quando ela é produzida perante o julgador, aos olhos do público e com o contributo dialético dos sujeitos processuais. É essa desconfiança que, na opção legislativa, não permite a transmissibilidade daquelas declarações para a fase de julgamento, sobretudo quando elas não foram prestadas perante um juiz, dado que, quando a entidade inquiridora foi o Ministério Público ou um órgão de polícia criminal se entende que as expectativas de quem procede à inquirição, que resultam da hipótese formulada para a investigação ou da convicção formada por outros indícios já recolhidos, têm influência sobre as declarações recolhidas (vid. GERMANO MARQUES DA SILVA, em “Produção e valoração da prova em processo penal”, na Revista do CEJ, n.º 4, pág. 43).
O legislador, porém, não entendeu dotar esta proibição de prova duma força que a subtraísse ao funcionamento duma ideia, com problemática aceitação no processo penal, de autorresponsabilidade probatória das partes, numa dimensão que lhes confere poderes para disporem, por consenso, sobre a validade de determinadas provas (vid. PAULO DÁ MESQUITA, em “A prova do crime e o que se disse antes do julgamento. Estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano”, pág. 607, da ed. de 2011, da Coimbra Editora, e DAMIÃO DA CUNHA, na ob. cit., pág. 415-417). Encontrando-se todos os sujeitos processuais de acordo quanto à admissibilidade da leitura de declarações prestadas por assistentes e testemunhas, em fase anterior à do julgamento, cessa a preocupação com as desconfianças que a valia de tais declarações poderia suscitar, uma vez que os eventuais afetados pela utilização dessa prova pré-constituída manifestam a sua vontade dela ser usada, sendo certo que o julgador avaliará sempre livremente da sua relevância, segundo as regras da experiência e a sua convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal). Se os titulares de interesses juridicamente relevantes no processo penal reconhecem, numa opinião unânime, que, apesar das circunstâncias em que foi produzida aquela prova, ela pode ser útil para o julgamento do pleito, a suspeição que sobre ela recaía deixa de ter razões que impeçam a sua ponderação.
Pode então dizer-se que, em matéria de admissibilidade da leitura de declarações prestadas antes do julgamento perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal por pessoa que aí deponha, vale o princípio do dispositivo, estando nas mãos dos sujeitos processuais, por acordo, decidir sobre a sua utilização.
Os Recorrentes alegam que a exigência de que o assistente consinta na leitura dessas declarações em audiência, a requerimento do arguido, com a finalidade de assistentes, testemunhas ou partes civis serem confrontados com elas, de modo a que o Tribunal possa aferir da credibilidade dos seus depoimentos, desrespeita as garantias de defesa do arguido, referidas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, designadamente o direito ao contraditório, uma vez que impede o arguido de aceder a um meio de defesa que se encontra nos autos, limitando injustificadamente o seu direito a contraditar os depoimentos testemunhais em sentido amplo, em audiência de julgamento.
O direito de defesa do arguido engloba todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação, mas não é um direito absoluto e irrestrito que lhe permita a utilização de qualquer meio de prova no seu interesse. O legislador pode, e muitas vezes deve (v.g. as situações previstas no n.º 8, do artigo 32.º, da Constituição), impedir a utilização de provas cuja forma de obtenção ou conteúdo viole outros interesses dignos de tutela, designadamente quando elas tenham sido obtidas de forma que comprometa a sua credibilidade. Necessário é que essa limitação não se revele arbitrária ou desproporcionada.
Já vimos que a regra da proibição de utilização de depoimentos prestados perante outras entidades que não um juiz, em fases do processo anteriores ao julgamento, mesmo como um mero instrumento auxiliar de valoração da prova produzida em audiência, tem o seu fundamento nas desconfianças sobre a fiabilidade dos depoimentos prestados à margem dos princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova, e obtidos sob a direção de uma entidade que não disponha da garantia judicial. Se tais depoimentos podem suportar a decisão de deduzir uma acusação, as circunstâncias em que foram prestados suscitam naturais interrogações sobre a sua idoneidade para fundamentar uma decisão de condenação ou absolvição.
Tais desconfianças, perante tal circunstancialismo, são inteiramente legítimas, colocando em causa a credibilidade dos resultados deste modo de recolha de prova testemunhal em sentido amplo, pelo que não se revela arbitrária nem desproporciada a proibição da leitura de tais declarações em julgamento, quer como meio de prova, quer como mero instrumento auxiliar de valoração da prova testemunhal em sentido amplo aí produzida, uma vez que há sempre o risco dessa leitura contaminar os depoimentos prestados na audiência de julgamento.
Sendo estes os fundamentos da proibição, ela tem necessariamente como destinatários todos os sujeitos processuais, incluindo o arguido. A suspeição que recai sobre uma prova devido ao modo como foi obtida é independente de quem dela se pretende servir. Saber até onde deve ir a severidade desta proibição ou quais as exceções que a mesma pode admitir é uma discussão inserida na área de liberdade de conformação do legislador na compatibilização de interesses conflituantes, não competindo a este Tribunal pronunciar-se sobre qual é a melhor solução ao nível infraconstitucional.
A opção pela relevância de um consenso entre os titulares de interesses juridicamente relevantes no processo penal para que uma prova deste tipo, cuja credibilidade está sob suspeita, devido ao modo como foi obtida, possa ser admitida em julgamento, insere-se nesse espaço de liberdade do legislador ordinário, não infringindo qualquer diretriz constitucional, designadamente o direito de defesa do arguido ou o direito a um processo equitativo.
É a necessidade do acordo do assistente para que uma iniciativa do arguido, no sentido de confrontar um testemunho produzido em audiência com declarações anteriores prestadas em fase de inquérito, possa ser deferida, que está particularmente em causa no presente recurso.
O assistente é um sujeito processual cuja posição merece tutela constitucional nos termos do artigo 32.º, n.º 7, da Constituição, uma vez que é titular dos interesses jurídico-criminais que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, tendo especial interesse em ver exercida em termos adequados a ação penal, precisamente para defesa daqueles seus interesses.
Sendo claro que não se pode falar da existência de uma equiparação entre a tutela processual do arguido e a do assistente (desde logo, é a própria Constituição que confere a cada um deles uma tutela distinta e, como é natural, atribui maior relevância à tutela dos direitos de defesa do arguido), o legislador ordinário conferiu a este último uma posição processual de colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina, em regra, a sua intervenção no processo, salvas as exceções da lei (artigo 69.º, do Código de Processo Penal).
Ou seja, o assistente tem o estatuto de um verdadeiro sujeito processual, identificado, em geral, com o titular do interesse que a lei penal quis proteger com a incriminação, e a quem a lei confere competências próprias, enumeradas no artigo 69.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, entre as quais se inclui, em determinados casos, a possibilidade de agir independentemente ou até mesmo em sentido oposto ao do Ministério Público (Para maiores desenvolvimentos sobre o conceito e estatuto do assistente, cfr. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 9 e ss., Damião da Cunha, “Algumas reflexões sobre o estatuto do assistente e seu representante no Direito Processual Penal Português”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 5, 2.º, Abril-Junho 1995, pág. 153 e ss., e “A participação dos particulares no exercício da ação penal (alguns aspetos)”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, 4.º, Outubro-Dezembro 1998, pág. 627 e ss.)
Este estatuto conferido ao assistente tem sido reiteradamente reconhecido pelo Tribunal Constitucional.
Escreveu-se no acórdão n.º 690/98 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
«(…) o assistente surge como um verdadeiro sujeito processual, com atribuições próprias, permitindo-lhe a lei, pelo menos em determinadas situações, agir sozinho ou até contra o Ministério Público (cfr., por ex., artigos 69º, nº 2, 287º, nº 1, b), e 401º, nº 1, b), do CPP). Ainda que com limites, é certo, os assistentes, pelo menos nessa medida, não subordinam totalmente a sua atuação à do MP…”.
Neste mesmo sentido, se pronunciou também o Acórdão n.º 338/2006:
«A constituição de assistente, com o rol de poderes que lhe estão atribuídos, concretizando o direito do ofendido de intervir no processo, insere-se numa funcionalidade público-processual, qual seja a de poder tornar possível um melhor e mais eficaz exercício da ação penal, por banda do Ministério Público, a quem o respetivo poder está constitucionalmente conferido (art. 219.º, n.º 1, da CRP), por ser de admitir que o titular dos interesses jurídico-criminais, que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, tenha especial interesse em ver exercida em termos adequados a ação penal, precisamente em abono da defesa daqueles seus interesses, e possa, também, ser possuidor de relevantes conhecimentos de facto e de direito que possam mostrar-se pertinentes a tal melhor exercício”.
O assistente está legitimado a intervir como verdadeiro sujeito em todo o procedimento criminal, mesmo que numa posição de colaborador do Ministério Público, pelo que, tendo sido consagrada a solução de apenas ser possível a leitura em audiência de declarações anteriormente prestadas quando exista um consenso nesse sentido de todos os titulares de interesses jurídicos reconhecidos no processo penal, a participação do assistente nesse consenso seja imprescindível. A conformidade constitucional da solução adotada estende-se, por isso, à necessidade do acordo do assistente à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas.
Pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição, nem se vislumbra que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que os recursos apresentados pelos arguidos A. e H. não merecem provimento nesta parte.
2.3. A interpretação dos artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, do Código de Processo Penal (ponto I do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido D. em 8 de março de 2012 e ponto II 3 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
A origem desta questão remonta ao despacho proferido no dia 7 de janeiro de 2003 pelo Juiz de Instrução do 5.º Juízo – A, do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, na sequência da distribuição dos autos a esse juízo, despacho esse com o seguinte teor: “tendo em conta que o presente processo já foi despachado pelo Exmo. Colega do 1º Juízo deste T.I.C. (…), proceda-se ao averbamento dos presentes autos a esse juízo, dando-se a competente baixa da distribuição do processo no 5º Juízo – A”.
O arguido F. veio a recorrer deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando que todos os atos processuais praticados pelo Juiz de Instrução do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, após o despacho proferido em 7 de janeiro de 2003, são nulos, devendo daí retirar-se “as legais consequências em termos de Inquérito, dos atos jurisdicionais praticados no decurso deste e da própria acusação.”
Na sequência desse recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 17 de março de 2004, decidiu declarar a nulidade do referido despacho de 7 de janeiro de 2003 e, quanto às consequências de tal nulidade, decidiu que havia que atender ao disposto no artigo 122.º do Código de Processo Penal, no qual se concretizava o princípio da economia processual, havendo ainda que ter em atenção o disposto no artigo 33.º do mesmo diploma, no que respeita aos “efeitos da declaração de incompetência”. Mais determinou “(…) a remessa dos autos ao tribunal atualmente competente”, com vista a dar cumprimento ao decidido.
Estando encerrada a fase de instrução e tendo sido os autos distribuídos para julgamento à 8.ª Vara Criminal de Lisboa, este Tribunal, na sessão da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 13 de dezembro de 2004, na sequência do acórdão de 17 de março de 2004, do Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu o seguinte despacho:
«II - Do cumprimento do Acórdão da Relação de Lisboa de 17/3/2004, proferido pela 3° Secção (Penal) do tribunal da Relação de Lisboa, pº nº 1967/04 - 3.
1. A fls. 15.239 destes autos o arguido F. interpôs recurso do despacho de fls. 270, proferido pelo M° Juiz de direito do 5° Juízo A, do TIC de Lisboa, na sequência da distribuição que foi feita a esse juízo dos presentes autos, despacho este com o seguinte teor:
“Tendo em conta que o presente processo já foi despachado pelo meu Exmo. Colega do 1° Juízo deste T.I.C, Dr. Rui Miguel Teixeira (...) proceda-se ao averbamento dos presentes autos a esse juízo, dando-se a competente baixa da distribuição do processo no 5° juízo - A.”.
Alegou o Recorrente, em síntese das doutas alegações então apresentadas, que o despacho em causa traduziu-se num desaforamento discricionário do processo e ilícito, feito com violação de lei expressa, ordinária e constitucional, consubstanciando uma nulidade insanável do processo.
Tal nulidade, face ao teor (entre os demais preceitos expressamente referidos pelo arguido/recorrente) dos art°s. 209° e segs. do C.P.Civil, 32°, n° 9, da C.R.P. e art°s. 119°, al. e) e 122°, n° 1 e 2, do C.P.P., importava, no entendimento do Recorrente, a nulidade de todos os atos processuais praticados pelo Senhor Juiz do 1° J.I.C., o que devia ser declarado, com todas as consequências legais em termos do inquérito, quer relativamente aos atos jurisdicionais praticados no decurso do inquérito, quer em relação à própria acusação.
1.1. O Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão proferido no dia 17/3/2004 ( p° n° 1967/04-3 da 3ª Secção), que se encontra apenso aos presentes autos, decidiu, em síntese, o seguinte:
1°. O despacho recorrido não violou o princípio constitucional do Juiz Natural, pois - e após as considerações de natureza Doutrinária e Jurisprudencial que são feitas no acórdão - face ao disposto nos art°s. 17° e 19°, n° 1, do C.P.P. e art° 79°, da LOFTJ, o Tribunal territorial e materialmente competente (na fase processual do Inquérito, em que o despacho recorrido foi proferido) era o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
Acresce que o Juiz de Instrução era também o Juiz funcionalmente competente para exercer as funções jurisdicionais na fase do Inquérito, incluindo ordenar ou autorizar buscas, nos ternos do disposto nos art°s. 219°, da C.R.P., 1° a 3°, da Lei 60/98, de 27/8, 48°, do C.P.P., 79°, n°1 e 80°, da LOFTJ, 174°, n° 3 e 269°, n° 1, al. a), do C.P.P..
2°. No entanto o Sr. Juiz do 5° Juízo - A do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa não tinha competência em matéria de distribuição, pelo que o despacho de fls. 270, dando sem efeito a correta distribuição levada a efeito e atribuindo-a ao Sr. Juiz do 1° Juízo do T.I.C., padece de dois vícios de natureza processual:
a) “falta de distribuição”, consubstanciando tal despacho a prática de um ato nulo, nos termos dos arts° 4°, do C.P.Penal e 210°, n° 1 e 220°, do C.P.Civil.;
b) incompetência do tipo funcional - mas não processualmente autonomizada, uma vez que está integrada na competência material dos Tribunais, isto é, a distribuição da competência entre Tribunais do mesmo grau, nas diferentes fases do processo - do Senhor Juiz do 5º Juízo - A, do T.I.C., para proferir o despacho de fls. 270 a alterar a distribuição anteriormente feita, por força do disposto no art° 72°, n° 1, da LOFTJ, o que consubstancia uma nulidade insanável, nos termos do disposto no art° 119°, al. e), do C. P. Penal.
Pelos fundamentos que antecedem o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu pela declaração de nulidade do despacho de fls. 270.
3°. Quanto às consequências da declaração de nulidade do despacho de fls. 270, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que havia que atender ao disposto no art° 122°, do C.P.P., com a consagração do princípio da economia processual, havendo ainda que ter em atenção o disposto no art° 33°, do C.P.P., em sede específica dos “efeitos da declaração de incompetência”.
No entanto e porque dos autos do recurso não constava a indicação dos atos concretamente praticados pelo Senhor Juiz do 1° Juízo do TIC após 7/1/03, data do despacho recorrido, “...desconhecendo-se mesmo a fase processual em que os autos se encontram neste momento, tudo indicando - ao que é, de novo, público - estar a iniciar-se a fase da instrução...”, após ter declarado a nulidade do despacho de fls. 270, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu “... a remessa dos autos para o Tribunal atualmente competente, o qual deverá dar cumprimento ao agora aqui ordenado e antes deixado referido.”.
2. É ao decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, nos precisos termos aí determinado e que antecede, que este Tribunal tem de dar cumprimento.
O que se passa a fazer, tendo também em consideração a argumentação e entendimento dos sujeitos processuais que se pronunciaram quanto a tal questão.
3. O decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa comporta neste momento, na perspetiva do Tribunal, o conhecimento de duas questões:
- saber se este Tribunal corresponde ao referido como “atualmente competente” no acordão proferido, para aferir da validade/invalidade dos atos praticados pelo J.l.C na fase do inquérito após o despacho de fls. 270;
- qual o alcance e conteúdo que o Tribunal deve atribuir, nesta fase processual, ao “princípio da economia processual” consagrado no art° 122°, do C.P.Penal, para aferir da validade/invalidade de atos praticados pelo Juiz de Instrução Criminal na fase do Inquérito;
Embora a questão da “competência” seja, pela natureza de pressuposto processual, uma questão a decidir previamente ao “fundo da causa”, no caso concreto tal questão está dependente do entendimento que o Tribunal tenha quanto ao sentido do art° 122°, n° 3, do C.P.P., critério a que deverá presidir a decisão de “validação/invalidação” dos atos processuais.
3.1. O ato processual declarado nulo pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi a “afetação” que o Senhor Juiz do 5° Juízo - A do TIC fez, pelo despacho de fls. 270, ao Senhor Juiz do 1º Juízo do TIC, despacho este que alterou uma distribuição prévia e regularmente feita.
Esta atuação corresponde, no decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a “falta de distribuição”, havendo que atender ao regime e efeitos do art° 210°, n° 1 e 220º, do C.P.Civil, por força do art° 4°, do C.P.P..
Mas, como acima foi dito, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, também, que o despacho em causa padecia de um outro vício gerador de nulidade, insanável, nomeadamente incompetência “funcional” do Senhor Juiz do 5° Juízo - A, do TIC, para proferir despachos quanto à alteração da distribuição, pois por força do art° 72°, da LOFTJ, tal competência cabia ao Juiz de turno.
Incompetência esta que foi declarada.
Questão que se põe, desde logo, é: dispondo o artº 33º, nº 1, do C.P.P., quanto aos efeitos específicos da declaração de incompetência, que uma vez declarada “... o processo é remetido para o tribunal competente, o qual anula os atos que se não teriam praticados se perante ele tivesse corrido o processo e ordena a repetição dos atos necessários para conhecer da causa...” e estando o processo na fase do julgamento, há que remetê-lo para o T.I.C., para ser suprida a “falta da distribuição” (vício apontado pelo Tribunal da Relação de Lisboa) nos termos do art° 210° e/ou 220°, do C.P.Civil?
E, uma vez suprida essa falta de distribuição, apresentar o processo ao J.I.C. que resultar como aquele ‘perante o qual o processo devia ter corrido”, para aferir quais os atos que ter-se-iam praticado se o processo tivesse corrido perante ele?
Face ao decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não entendo que possa ser essa a conclusão deste Tribunal, até porque não é o expressamente determinado no acordão.
3.2. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que, no caso concreto, não houve violação do princípio constitucionalmente consagrado do “Juiz natural”, dizendo expressamente que “... a distribuição processual não é, nem pode assim constituir um princípio fundamental...”.
Havia, por conseguinte, para decidir quanto às consequências da nulidade declarada, que ter em conta o regime constante do artº 122°, nº 1, 2 e 3, do C.P.P., não conhecendo o Tribunal de recurso da validade/invalidade dos atos jurisdicionais praticados na fase do inquérito pelo Senhor J.I.C., do 1° Juízo do T.I.C., por não ter elementos suficientes nos autos de recurso.
Determinou, contudo, que tal fosse feito pelo Tribunal ”... atualmente competente...”, isto é, o da fase em que o processo se encontrasse (dado que o Tribunal da Relação desconhecia mesmo a fase processual em que os autos se encontravam no momento, embora tudo indicando, de acordo com o que era público, estar a iniciar-se a fase da instrução).
O Tribunal da Relação de Lisboa não entendeu, por conseguinte, que o efeito da declaração da nulidade (do despacho que decidiu quanto à alteração da distribuição), tinha como consequência a remessa dos autos para o T.I.C., para “validação” dos atos pelo J.I.C. que devesse ter intervindo na fase do inquérito, isto é, aquele que teria resultado “competente” de uma distribuição não alterada pelo despacho de fls. 270.
Caso assim o tivesse entendido tinha-o dito: em vez de referir-se ao Tribunal “atualmente competente” - pois o J.I.C. que veio a intervir na fase da Instrução, após distribuição para o efeito, também não era o J.I.C. que tivera competência para intervir na fase do Inquérito -, teria mandado baixar o recurso a fim de (pelo menos) os autos serem remetidos e/ou presentes ao J.I.C. com competência na fase do inquérito.
E depreende-se, face aos princípios legais em matéria de arguição e sanação de nulidades que o acórdão enuncia, que não o tenha entendido e determinado, pois é o próprio Tribunal que enuncia o princípio da economia processual para balizar a atuação do Tribunal de 1ª Instância, tendo dito que não tinha havido violação de princípio constitucionalmente consagrado, não constituindo a violação das regras da distribuição processual, por si, uma violação de um princípio fundamental.
Seria contraditório com o princípio da economia processual e com a realização da Justiça que, estando ultrapassada a fase do inquérito, o processo fosse remetido sem mais para essa fase, para aferição da validade/invalidade dos atos a que se refere o acórdão, pois face ao art° 122°, n° 3, do C.P.P., tal só se justificará processualmente se se concluir pela impossibilidade legal de os atos subsistirem nesta fase.
O que o Tribunal da Relação não fez desde logo, por não ter os elementos necessários para o efeito.
3.3. Para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal da Relação e fazendo um breve enquadramento Doutrinário, há que considerar o seguinte:
“(...) A ordem jurídica de um Estado de Direito Democrático pressupõe um mínimo de segurança e de certeza na proteção dos direitos e expectativas juridicamente relevantes, como única forma de tutelar a confiança dos cidadãos e da própria comunidade no direito (...).“.
Deste modo “(...) as causas de sanação selecionadas pelo poder legislativo e elevadas à dignidade de direito vigente podem agrupar-se em três classes fundamentais.
O termo de certos prazos, incluindo a formação de caso julgado (...).Se o interessado não reagir atempadamente o ato fica consolidado (...).
A faculdade de arguir ou não certo vício e de aceitar ou não os seus efeitos (...). Apenas os casos mais graves, onde o Estado não deve de forma alguma transigir, ficam excluídos deste regime (...),
A consecução da finalidade prosseguida pela norma jurídica violada (...)“, pois tal ‘(...) impõe um limite lógico que o sistema nunca deverá ultrapassar, sob pena de irracionalidade. Se o vício não prejudicou os interesses substanciais que a norma jurídica violada procurava acautelar, não há razão para destruir o ato. Até porque a sua repetição nada traria que já não tivesse sido alcançado, embora de forma fortuita (...)“ (João Conde Correia, “Contributo Para A Análise Da Inexistência E Das Nulidades Processuais Penais”, B.F.D., Stvdia Ivridica, Univ. Coimbra, Coimbra Editora, págs. 23 e 196).
Assim, ultrapassada a fase que antecede e declarada a nulidade de determinado ato, há que aferir dos efeitos dessa declaração de nulidade.
Dispõe o art° 122°, n°1, do C.P.P., que “... as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar...”, dizendo o n° 2 que “... a declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição e concluindo o n° 3 que “... ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela…”.
“(...) O legislador português, numa lição de equilíbrio e ponderação, optou por um sistema progressivo e limitado. A invalidade pode contagiar o processado, comunicando-se aos atos subsequentes dependentes do ato nulo e afetados por aquela. A contaminação acaba, portanto, por ser duplamente controlada, atingindo apenas esses atos. A infeção não se restringe ao ato inválido, mas também não atinge o processado.
São estes mecanismos que permitem tornar ineficaz o ato processual penal inválido ou então a consolidação dos seus efeitos.
Sem eles (...) os direitos individuais, a realização da justiça, a descoberta da verdade material e a obtenção da paz jurídica ficariam irremediavelmente afetados (...). O processo penal perderia flexibilidade, tornando-se num ótimo instrumento ao serviço de uma qualquer ideologia totalitária, mas seria imprestável para a realização (…)” da “(…) Justiça” (João Conde Correia, ob. Cit., pag. 196).
Face ao que antecede, para concluir pela destruição total de atos ou pela necessidade de renovação de outros, há que ver em que medida tal é legalmente necessário e/ou possível nesta fase processual, mas com o seguinte alcance: apenas serão invalidados os atos que na perspetiva finalística do processo não deviam ter sido praticados ou aqueles que não tenham observado os pressupostos legais que, em abstrato, condicionam a sua prática.
Este entendimento, de que a este Tribunal, nesta fase processual, não cabe a reapreciação da validade substancial dos atos, mas tão só na perspetiva que antecede, advém da conjugação de dois aspetos.
Por um lado, do já referido princípio da economia processual, consagrado no art° 122°, n° 3, do C.P.P. : “…o princípio do máximo aproveitamento dos atos processuais em processo penal leva a que só se anulem ou só se repitam atos indispensáveis para adequar o processo à tramitação que ele teria face às razões específicas de competência do tribunal que vai conhecer da causa (cfr. Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal”, pag. 190, Manuel Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal”, 1° volume, Anotado, 1996, Ed. Rei dos Livros, pág. 205 a 207).
Por outro, afastado que ficou, para este Tribunal, que o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa fosse o de que a apreciação da validade/invalidade dos atos seria levada a cabo pelo J.I.C. com competência jurisdicional na fase do inquérito (art° 17°, do C.P.P.) e porque apenas a esse Juiz cabe a competência para a prática dos atos jurisdicionais na (e da) fase do inquérito (art° 14°, do C.P.P., confrontado com art° 17°, do C.P.P.), a tarefa de valoração a que se reporta o art° 33°, n° 2, do C.P.P., conjugado com o art° 122°, do C.P.P., só pode ser tida nessa perspetiva.
Assim e tendo em atenção a presente fase do processo, deverão anular-se os atos praticados pelo J.I.C. na fase de inquérito que não se inserissem no objeto do processo, ou aqueles que foram praticados extravasando e, consequentemente violando, as competências jurisdicionais atribuídas no C.P.P. ao J.I.C. na fase do inquérito, violando direitos fundamentais.
Havendo que ter em conta, no entanto, as decisões que entretanto foram proferidas pelos Tribunais superiores, em consequência dos recursos interpostos pelos arguidos de atos praticados pelo senhor Juiz de Instrução na fase do inquérito e a apreciação que em sede de Instrução veio a ser feita pela J.I.C., em relação a meios de prova cuja obtenção foi judicialmente determinada pelo J.I.C. na fase do inquérito ou em relação a arguidas nulidades da fase do inquérito.
3.3.1. Começando pelo ato em si declarado nulo, a alteração da distribuição para afetação do processo a um outro juízo, mas dentro do mesmo Tribunal, tendo em atenção as consequências que a lei atribui a tal ato (cfr. Art° 210°, n° 1 e 220º, do C.P.Civil, por força do art° 4°, do C.P.P.), bem como o facto de o processo ter sido afetado a um Tribunal que por força do disposto nos art°s. 17°, 19°, n° 1, do C.P.P. e 79°, da LOFTJ, era o Tribunal material e territorialmente competente, ficando o processo atribuído a um Juiz de Instrução Criminal, a quem em abstrato compete exercer as funções jurisdicionais na fase do inquérito (art° 17°, do C.P.P., 79°, n° 1 e 80°, n° 1 e 2, da LOFTJ e mapa 1, anexo a DL n° 186-A/99), não se me afigura que o cumprimento do Acórdão do Tribunal da Relação tenha como consequência, nesta fase processual, determinar que os autos sejam sujeitos a nova distribuição.
Aliás, esse é o entendimento que emana do acórdão do Tribunal da Relação, quando conclui que a alteração da distribuição não importou a violação de princípio fundamental e há que ter em atenção que este Tribunal tem de dar cumprimento ao acórdão nos precisos termos aí determinado.
Como pode ler-se no acórdão, “... dúvidas não restarão que o tribunal, “natural” ou “legalmente”, competente ainda para conhecer era, ao tempo, o TIC de Lisboa (...)“.
3.3.2. Passando à apreciação da validade/invalidade dos atos praticados pelo Senhor Juiz de instrução do 1° juízo do T.I.C., após o despacho de fls. 270, há que dizer que no atual sistema judicial o exercício da ação penal pertence ao Ministério Público, a quem cabe a direção do inquérito e a delimitação do objeto do processo, cabendo a si a movimentação do processo, culminando a sua atuação com a dedução da acusação ou a decisão de arquivamento.
A intervenção do Juiz de Instrução Criminal na fase do Inquérito tem o seu âmbito legalmente delimitado: intervém nesta fase processual sempre que haja que decidir quanto a questões que tenham a ver com direitos fundamentais do arguido, sendo apenas da sua competência a prática dos atos materialmente jurisdicionais que a lei indica (Art° 17°, do C.P.P).
Esses atos são os determinados no art°. 268°, n° 1, al. a) a e), do C.P.P., os quais, contudo, são praticados a requerimento do MP, de autoridade de polícia criminal em caso de urgência, do arguido ou do assistente (art° 268°, n° 2, do C.P.P.); no art° 269°, do C.P.P, relativo a buscas, apreensões e interceções e art°s. 174°, 177°, 179° a 181°, 187° a 190°, do C.P.P., referente aos pressupostos da sua determinação, execução e validação; nos art°s. 141° e 142°, do C.P.P., quanto ao interrogatório do arguido detido; 191° a 226°, do C.P.P., relativamente à aplicação de medidas de coação.
Ora tendo em atenção o que antecede quanto à delimitação legal das funções jurisdicionais do J.I.C. na fase do inquérito e o objeto do processo tal como foi delimitado pelo Ministério Público e após ter efetivamente compulsados os autos de fls. 270 a fls. 20.743 (estas últimas folhas já referentes, no entanto, a altura posterior à dedução da acusação), estritamente para este efeito, concluo que os atos praticados pelo Sr. Juiz de instrução na fase do inquérito, entre os quais (e que pela sua maior relevância passo a referir de forma individualizada), fls. 271, 424, 526, 593, 749, 923, 942, 984 a 987, 989, 993, 1.029, 1,030, 1.039, 1.064, 1.067, 1.083, 1.139, 1.326, 1.394, 1.540, 1.699, 1.886, 1.912, 1.914, 2.024, 2.052, 2.170, 2.197, 2.219, 2.217, 2.276, 2.277, 2.278, 2.283, 2.303, 2.304, 2.305, 2.308, 2.338, 2.606, 2.625, 2.777, 2.939, 2.941, 3.081, 3.143, 3.195, 3.196, 3.213, 3.214, 3.215, 3.218, 3.219, 3.236, 3.239, 3.255, 3.279, 3.305, 3.306, 3.606, 3.668, 3.714, 3.802, 3.821, 3.825, 3.944, 3.988, 4.074, 4.097, 4.102, 4.107, 4.217, 4.271, 4.329, 4.486, 4.501, 4.507, 4.519, 4.575, 4.597, 4.598, 4.612, 4.641, 4.782, 4.808, 4.910, 5.007, 5.135, 5.271, 5.272, 5.419, 5.516, 5.841, 5.934, 5.998, 6.055, 6.264, 6.266, 6.268, 6.417, 6.574, 6.575, 6.577, 6.579, 6.593, 6.595, 6.596, 6.599, 6.600, 6.621, 6.914, 7.074, 7.370, 7.373, 7.563, 7.719, 7.835, 7.850, 7.902, 8.093, 8.293, 8.305, 8.310, 8.345, 8.393, 8.480, 8.482, 8.607, 8.930, 9.134, 9.151, 9.183, 9.301, 9.338, 9.367, 9.454, 9.876, 10.000, 10.157, 10.168, 10.179, 10.216, 10.258, 10.309, 10.349, 10.473, 10.790, 10.884, 10.985, 11.164, 11.165, 11.171, 11.219, 11.370, 11.412, 11.649, 11.678, 11.811, 11.830, 11.978, 12.335, 12.690, 12.919, 12.924, 12.941, 13.017, 13.035, 13.225, 13.229, 13.237, 13.365, 13.864, 13.941, 14.035, 14.294, 14.404, 14.424, 14.436, 15.044, 15.058, 15.269, 15.290, 15.895, 16.062, foram atos objetivamente praticados no âmbito e dentro da competência que lhe era atribuída por força do disposto nos art°s. 17°, 141°, 142°, 174°, 177°, 179° a 181°, 187° a 190º, 191° a 226°, 268°, 269°, do C. P.P., foram atos praticados a requerimento dos sujeitos processuais referidos nos art°s. 268°, n.º 2, do C.P.P., inseriram-se no objeto do processo tal como delimitado pelo Ministério Público, tendo sido praticados dentro dos objetivos e interesses inerentes à fase processual então em curso, prendendo-se intrinsecamente com o objeto da investigação.
Não há atos que este Tribunal considere que foram praticados fora das competência legalmente atribuída ou subvertendo a direção do inquérito.
Há que passar, então, a um segundo aspeto.
E foram atos que, neste momento processual, se entenda que devam ser repetidos, total ou parcialmente, por inobservância dos pressupostos legais de que a lei processual penal faz depender a respetiva prática?
Entendo que não, em consequência do disposto no art. 122°, n°2, do C.P.Penal.
Este preceito diz que o Tribunal só ordena a repetição dos atos “...sempre que necessário...”.
Ora no que diz respeito aos atos em relação aos quais os arguidos não interpuseram recurso ou não arguiram a nulidade ou irregularidade, núcleo muito reduzido, há que entender que não ocorrendo nesses atos - como entendo que não ocorreu - violação dos pressupostos legais dos quais dependiam a respetiva prática e que firam a sua subsistência, a aceitação que ocorreu dos seus efeitos pelos sujeitos processuais conduz à sua convalidação nesta fase.
Em relação a estes atos não há, no entendimento deste Tribunal, divergência entre a atividade processual levada a cabo e o modelo legal pelo qual o ato pode e deve ser praticado.
Quanto ao núcleo mais alargado de atos em relação aos quais os sujeitos processuais não se conformaram, interpondo recurso ou arguindo nulidade, invalidade ou inexistência (consoante o modo processual escolhido pelos sujeitos processuais) - como se trata, por exemplo, da aplicação das medidas de coação aos arguidos F., D., U., A. e H., na sequência dos primeiros interrogatórios de arguido detido, da determinação de tomada de declarações para memória futura, do prazo para a prática de determinados atos, não verificação do contraditório (cfr., a título de exemplo, os recursos interpostos ou arguições de nulidade a fls. 1291, 1682, 1704, 1.872, 2058, 4707, 5047, 5121, 5473, 5946, 7322, 7530, 7649, 7676, 8012, 8404, 8533, 8587, 8730, 8788, 8805, 8847, 8909, 9988, 9996, 10183, 10196, 10486, 10551, 10767, 11266, 11281, 14232, 14042, 15219, 15740, 15827, 16094, 17056, 17236) -, as decisões que vieram a ser proferidas quanto a tais atos, ou por via da decisão do recurso nas instâncias superiores ou por via do conhecimento das arguidas nulidades aquando da abertura da instrução e do proferimento da decisão instrutória, constituíram já elas uma apreciação jurisdicional da validade dos atos praticados pelo Sr. Juiz de instrução do 1º juízo do TIC na fase do inquérito.
Conhecimento (e validação ou invalidação) processualmente admissível e que não se ficou pela mera conformação formal dos atos de acordo com a lei processual, indo mesmo à apreciação da substância dos atos, do mérito do decidido, destruindo-os no caso em que foi entendido que os mesmos violaram a lei ordinária ou constitucional ou confirmando-os (cfr. Ac. RL, p° 10613/03, 3ª secção, aplicação sanção processual; p° 7936/03, 9ª secção, declaração de especial vulnerabilidade e declarações para memória futura; 10887/03-5, relacionado com medidas de coação; p° 9514/02, de 14/1/04; p° 9785/03, 3ª secção, p° 10607/03, 3ª secção e 2428/04, 9ª secção, todos relacionado com medidas de coação; p° 594/03, T. Const., relacionado com a obtenção e utilização de meios de prova/medidas de coação; p° 309/03 e 963/03, do T.Const., relacionado com medidas de coação e acesso a elementos constantes dos autos; todos apensados aos presentes autos).
Isto é, quanto a este núcleo de atos a comprovação da sua validade ou invalidade - consoante o sentido das decisões jurisdicionais que os apreciaram -, que foi feita por Tribunais competentes para o efeito, levam este Tribunal a concluir que em relação aos mesmos já foi feita a validação ou invalidação que o acórdão de 17/3/04 determina, não existindo, neste momento, atos nulos ou feridos de nulidade derivada dos atos apreciados (sem prejuízo do efeito decorrente dos recursos que se encontram pendentes, tempestiva e legalmente admitidos) que, por estarem numa dependência real e efetiva dos atos impugnados, cumpra declarar desde já, por ainda haver poder jurisdicional deste Tribunal para o efeito.
Acresce que quanto às medidas de coação, quer por força dos recursos interpostos pelos arguidos quanto a tal questão na fase do inquérito e decisões proferidas pelos Tribunais superiores na sequência dos mesmos (na sequência do que foram repetidos interrogatórios de arguidos presos, dado acesso aos arguidos a elementos dos autos), quer por força da decisão da J.l.C. na fase da instrução quanto a tal matéria - encontrando-se pendente os recursos interpostos quer pelos arguidos, quer pelo Ministério Público e pelos Assistentes, na sequência do proferimento da decisão instrutória, recurso este que inclui o decidido quanto às medidas de coação determinadas pela J.l.C. - , já foi validamente dado cumprimento (e em data anterior) ao disposto no art° 33°, n° 3, do C.P.P..
Não resta a este Tribunal, salvo melhor entendimento, considerar também que os atos relativos a medidas de coação se encontra validados.
4. Assim, nos precisos termos que antecede e dando cumprimento ao ordenado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/03/2004 e nos precisos termos aí determinados, atento o disposto no art° 122°, nº 1, 2 e 3, do C.P.P., tendo em atenção as decisões que entretanto foram proferidas em sede de recurso pelos Tribunais superiores, bem como em sede de instrução, quanto ao conteúdo dos atos praticados pelo Sr. J.I.C., do 1° juízo do T.I.C. de Lisboa na fase do inquérito - incluindo quanto às medidas de coação aplicadas aos arguidos -, decisões judiciais que já se pronunciaram quanto à validade/invalidade do núcleo de factos sobre os quais se debruçaram, incluindo aplicação de medidas de coação aos arguidos, considero validados todos os demais atos jurisdicionais praticados pelo J.I.C. do 1° Juízo, do T.I.C. de Lisboa, durante a fase do inquérito dos presentes autos, entendendo o Tribunal que não se afigura necessário determinar a repetição de qualquer ato.»
Tendo sido interposto recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, que veio a confirmar a decisão recorrida, é precisamente a interpretação normativa dos artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, no sentido de reconhecer competência ao tribunal de julgamento para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, que os recorrentes sustentam ser inconstitucional, com fundamento na violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, onde se consagra o princípio da estrutura acusatória do processo penal.
Segundo o arguido H., este princípio exige que se diferencie o órgão que investiga e/ou acusa e o órgão que julga, tratando-se de uma garantia essencial de julgamento independente e imparcial, traduzível, no plano material, na distinção entre instrução, acusação e julgamento, e significativa, no plano subjetivo, de diferenciação entre juiz de instrução e juiz julgador e entre estes e o órgão acusador.
Sustenta, por isso, que a atribuição ao tribunal de julgamento da competência para validação ou invalidação de atos jurisdicionais para os quais é funcionalmente competente o tribunal de instrução criminal, traduz-se necessariamente numa violação expressa da delimitação funcional dos diversos tribunais criminais e, por consequência, do princípio da estrutura acusatória do processo penal português consagrada no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Neste mesmo sentido, o arguido D. defende que a delimitação do âmbito da competência funcional dos diversos tribunais criminais assume-se, precisamente, como uma concretização, no plano da lei ordinária, da estrutura acusatória do processo, em obediência ao princípio plasmado no referido artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Assim, segundo este Recorrente, estando em causa a ponderação acerca da validade ou invalidade de um vastissimo conjunto de atos praticados pelo juiz de instrução do 1.º juízo do TIC de Lisboa em fase de inquérito, entre os quais se contam, inclusivamente, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva a vários dos arguidos ora submetidos a julgamento, não se vê como o Tribunal de julgamento, sem ofensa das regras de competência funcional - artigos 17.º, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do CPP - e do princípio consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição, possa conhecer, apreciar e decidir tais questões.
Acrescenta ainda que o reconhecimento de competência para tal ao tribunal de julgamento importa a violação das garantias de isenção, imparcialidade e independência do tribunal de julgamento, pois o juiz do julgamento, ao apreciar a validade ou invalidade daqueles atos, abordando a nulidade que aí foi conhecida e declarada, numa lógica de anulação ou de aproveitamento dos atos em causa, tem intervenção em fase anterior do processo, isto é, na fase de inquérito, estando implicado na definição do objeto do processo, não havendo assim a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento, que é imposta pelo princípio do acusatório.
O arguido H. sustenta ainda que a interpretação normativa questionada, ao conferir competência ao Tribunal de julgamento para cumprir o acórdão proferido em 17 de janeiro de 2004 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, extravasando e anulando a delimitação da competência funcional dos tribunais criminais contidas naquelas normas, é inconstitucional, por violação do artigo 211.º n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Vejamos se lhes assiste razão, começando por analisar o teor das normas cuja interpretação normativa é questionada.
Assim, os artigos 14.º e 17.º do Código de Processo Penal, estabelecem a competência do tribunal coletivo e do juiz de instrução, respetivamente, dispondo o último destes preceitos (na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que foi a aplicada pela decisão recorrida), sob a epígrafe «Competência do juiz de instrução»:
«Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos prescritos neste Código.»
Por sua vez, o artigo 33.º do Código de Processo Penal, cuja redação se manteve inalterada com a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, dispõe o seguinte:
«Efeitos da declaração de incompetência
1 – Declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente, o qual anula os atos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo e ordena a repetição dos atos necessários para conhecer da causa.
2 – O tribunal declarado incompetente pratica os atos processuais urgentes.
3 – As medidas de coação ou de garantia patrimonial ordenadas pelo tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, mas devem, no mais breve prazo, ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente.
4 – […]»
O artigo 122.º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece o seguinte:
«Efeitos da declaração de nulidade
1 – As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 – A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 – Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.»
Os artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, por seu turno, estabelecem quais os atos que, na fase de inquérito, devem ser exclusivamente praticados, ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução.
Na interpretação destes preceitos aqui sob fiscalização entendeu-se que nada obstava a que o tribunal de julgamento assumisse a competência para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos praticados em fase de inquérito por Juiz de Instrução Criminal, entretanto declarado incompetente.
Para apreciar a constitucionalidade deste critério normativo há que ter previamente presente que o tribunal recorrido enunciou-o, tendo como pressuposto que a validação ou invalidação de atos praticados em fase de inquérito por Juiz de Instrução Criminal, entretanto declarado incompetente, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é uma atividade em que não se toma posição sobre o mérito das decisões que ao longo do tempo foram sendo proferidas por aquele Juiz, por mais absurdas ou discutíveis que as mesmas sejam, impondo-se tão simplesmente verificar da compatibilidade, da conformidade formal ou processual, dos atos já praticados com a competência do tribunal entretanto declarada (interpretação cuja constitucionalidade é também questionada nos presentes recursos e que será objeto de apreciação no ponto seguinte).
Os Recorrentes fazem assentar a questão de constitucionalidade sobretudo na violação do princípio do acusatório acolhido no disposto no n.º 5, do artigo 32.º, da Constituição.
Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, Vol. I, pág. 522) este “(…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).”
Ainda segundo estes autores (cfr. ob. cit., pág. 522), “Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: (a) a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; (b) proibição de acumulação subjetiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; (c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa. Esta estrutura acusatória tem sido flexibilizada no sentido de nem sempre a acumulação de funções orgânica e subjetiva do juiz no processo penal pôr em causa esta mesma estrutura, devendo ter-se em conta a frequência, intensidade e relevância da intervenção do juiz em várias partes do processo (ex.: intervenção na fase de inquérito e na fase de julgamento).”
O Tribunal Constitucional já se pronunciou por variadíssimas vezes sobre questões atinentes à estrutura acusatória do processo criminal, designadamente quanto à intervenção em julgamento de juiz que, na fase de inquérito, praticou atos cometidos ao juiz de instrução (v.g. os Acórdãos n.º 935/96, 186/98, 29/99, 338/99, 423/2000, 297/2003 e 129/2007, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No primeiro dos arestos acima referidos escreveu-se sobre esta dimensão do princípio do acusatório:
“Ao consagrar o nº 5 do artigo 32º da Constituição uma tal garantia – a garantia do processo criminal de tipo acusatório –, o que, pois, a lei fundamental pretende assegurar é que a entidade que julga (o juiz) não tenha funções de investigação e acusação: esta última tarefa há de ser levada a efeito por uma outra entidade (em regra, o Ministério Público); e, no julgamento do feito penal, há de o juiz mover-se dentro dos limites postos pela acusação. Com isto, como decorre do que atrás se disse, pretende a Constituição que os arguidos, que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infração criminal, tenham um julgamento independente e imparcial, que é, justamente, o que também se lhes garante no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13 de outubro (…)”.
No Acórdão n.º 423/2000, salientou-se que era entendimento reiterado do Tribunal Constitucional nesta matéria que “um juízo de inconstitucionalidade da norma que permita a intervenção no julgamento do juiz que participou numa fase anterior, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, pressupõe que as intervenções do juiz - pela sua frequência, intensidade ou relevância - sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência”.
Na verdade, o Tribunal Constitucional tem mantido, a propósito desta questão, uma linha orientadora no sentido de que o critério da admissibilidade da intervenção no julgamento de juiz que tenha tido intervenção anterior no processo passa pela distinção entre intervenções que pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule um dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência e intervenções pontuais ou isoladas. Só no primeiro caso a estrutura acusatória do processo veda a participação do juiz no julgamento. Já a prática de atos isolados durante o inquérito não constitui, em princípio, causa de quebra objetiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.
E sobre o que, neste âmbito, deverá entender-se por imparcialidade dos tribunais, escreve-se o seguinte no citado Acórdão n.º 129/2007:
«[…] a imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas contida no artigo 32º da Constituição, mas uma decorrência do Estado de direito democrático (artigo 2º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202º n.º 1 Constituição). Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se uma exigência de não suspeição subjetiva do juiz; a atividade do juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade.
Todavia, do citado artigo 32º retira-se, para além disto, uma exigência de imparcialidade objetiva do tribunal, decorrente da estrutura acusatória do processo penal, circunstância que impede que o juiz do julgamento esteja envolvido na atividade instrutória, quer carreando para os autos elementos de prova suscetíveis de serem utilizados pela acusação, quer envolvendo-se em atos que possam significar dirigir a investigação. Esta exigência de imparcialidade objetiva do juiz, justifica-se do ponto de vista das garantias da defesa, é certo, mas igualmente pela necessidade de proporcionar ao juiz as condições de isenção requeridas pelo exercício das suas funções. Assim se explica que seja confiado ao próprio juiz o dever de se declarar impedido, a par de se permitir aos restantes sujeitos processuais a iniciativa de suscitar no processo o reconhecimento do impedimento do juiz (artigo 41º do Código de Processo Penal).»
Regressando ao caso dos autos, importa salientar que, como é facilmente percetível, a questão não é idêntica às que foram objeto dos arestos citados. No caso em apreço não se está perante uma situação em que se coloque a questão da admissibilidade de intervenção no julgamento de juiz que tenha tido intervenção em fases anteriores do processo. Trata-se, sim, de saber se o reconhecimento ao juiz de julgamento da competência para validar ou não, no plano formal, atos praticados na fase de inquérito por juiz de instrução que veio a ser declarado funcionalmente incompetente, pode colocar em causa a independência e imparcialidade do juiz de julgamento, a ponto de implicar uma violação do princípio do acusatório.
Nesta situação, o juiz do julgamento não praticou ou autorizou a prática de atos de inquérito ou de instrução no decurso destas fases processuais, isto é, não praticou atos ou autorizou diligências com vista à obtenção de provas que permitissem sustentar a culpabilidade dos visados, teve intervenção em quaisquer atos relativos à investigação ou instrução do processo, decretou a aplicação de quaisquer medida de coação de prisão preventiva ou formou qualquer juízo indiciário no que respeita à eventual sujeição dos arguidos a julgamento. No caso concreto, o que o Tribunal de 1.ª instância fez, enquanto tribunal de julgamento, e na sequência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de março de 2004, que determinou a anulação ou o aproveitamento dos atos processuais praticados ao longo da fase processual de inquérito pelo Juiz do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, foi apreciar as consequências da declaração de nulidade do despacho de fls. 270 dos autos, proferido em 7 de janeiro de 2003 (acima referido) e, consequentemente, pronunciar-se quanto à validade ou invalidade dos referidos atos processuais, com vista ao seu aproveitamento ou a ordenar a sua repetição.
Assim, o tribunal que realiza o julgamento, ao proferir o despacho em questão, não tem qualquer intervenção ou interferência nas fases de inquérito ou de instrução, nem procede a qualquer reconfiguração do objeto do processo, não podendo, por isso, falar-se em qualquer violação do princípio da estrutura acusatória do processo criminal, na dimensão em que exige que se diferencie o órgão que investiga do órgão que julga.
Deste modo, resta apreciar se poderá ter havido violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, pelo facto de esta intervenção do tribunal de julgamento ser apta a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade dos juízes que o integram ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência, pelo facto de proferirem um despacho em que se pronunciam pela validade dos atos praticados pelo Juiz de Instrução Criminal competente, determinando o seu aproveitamento.
Desde logo se dirá que esta intervenção, enquadrada na atividade de saneamento do processo, numa lógica de aproveitamento ou não de atos praticados em fase de inquérito, tendo em vista a sua validação ou não, no plano formal, é atividade diversa da apreciação das questões a decidir no julgamento propriamente dito.
Com efeito, conforme resulta do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na atividade de “saneamento do processo” está compreendida a possibilidade de o tribunal de julgamento se pronunciar “(…) sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”. Esta norma, sob a epígrafe “Saneamento do processo”, está inserida no Título I (atos preliminares), do Livro VII, do Código de Processo Penal, relativo à fase de julgamento, fase processual esta que se segue imediatamente à acusação que encerra a fase do inquérito, no caso de não ter havido instrução ou, na hipótese inversa, após a prolação do despacho de pronúncia.
Ora, esta intervenção processual isolada do tribunal de julgamento, procedendo, neste âmbito, à validação formal de atos praticados em inquérito, não converte o tribunal em órgão de acusação, até porque, estando o processo em fase de julgamento e tendo sido encerradas as fases de inquérito e de instrução, esse risco fica afastado. Por outro lado, nem pela sua frequência, intensidade ou relevância, tal tipo de intervenção é apto à criação de pré-juízos ou pré-compreensões sobre a culpabilidade dos arguidos, que firam a objetividade e isenção do juiz de julgamento, uma vez que este, no despacho em causa, se limita a efetuar uma apreciação eminentemente formal de atos anteriormente praticados. Acolhendo o princípio da economia processual, segundo a tese da decisão recorrida, nele apenas se verifica se foram praticados atos pelo juiz declarado incompetente que não se inseriam no objeto do processo ou aqueles que foram praticados extravasando e, consequentemente, violando as competências jurisdicionais atribuídas no Código de Processo Penal ao juiz considerado competente.
Neste contexto, e não se podendo confundir a validação formal de atos praticados em inquérito por juiz de instrução que veio a ser declarado funcionalmente incompetente, com a atividade de produção da prova e julgamento a ter lugar em audiência, segundo os princípios de um processo de estrutura acusatória (os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova), o perigo de uma possível contaminação do juiz do julgamento, em consequência da aludida intervenção na validação de atos praticados em inquérito, é praticamente inexistente.
Ou seja, a questão jurídica a decidir neste âmbito, segundo parâmetros objetivos que são sindicáveis, é inteiramente distinta da questão de fundo, razão pela qual não se poderá falar no perigo de formação, pelo tribunal de julgamento, de “pré-compreensões” no que respeita à culpabilidade dos arguidos.
Com efeito, importa realçar que o Tribunal de julgamento, para além de não proferir qualquer decisão ou praticar qualquer ato em sede de inquérito ou de instrução, também não se pronuncia sobre a validade substancial das decisões proferidas nessas fases do processo, limitando-se, conforme se disse, a pronunciar-se sobre quais os efeitos a retirar da declaração de incompetência do juiz de instrução criminal, quanto à validade/invalidade dos atos por ele praticados no decurso do inquérito, no sentido de apreciar da sua compatibilidade formal com as atribuições do juiz competente, sem que entre na apreciação das questões de fundo subjacentes a tais atos. Numa intervenção deste tipo não se pode entender que tal implique, por parte do Tribunal, a formulação de qualquer pré-juízo ou pré-compreensão sobre a culpabilidade dos arguidos ou uma quebra do dever de isenção ou de imparcialidade.
Conclui-se, assim, que a interpretação normativa dos artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, aqui sindicada, não ofende o artigo 32.º, n.º 5 da Constituição.
Mas o Recorrente H. sustenta ainda que a interpretação normativa questionada, ao conferir competência ao Tribunal de julgamento para cumprir o acórdão proferido em 17 de janeiro de 2004 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, extravasa e anula a delimitação da competência funcional dos tribunais criminais contida naqueles preceitos, pelo que é inconstitucional, por violação do artigo 211.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
O artigo 211.º da Constituição, sob a epígrafe “Competência e especialização dos tribunais judiciais”, tem a seguinte redação:
“1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
2. Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas”.
O n.º 1 deste artigo estabelece que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, atribuindo-lhes competência jurisdicional residual, ou seja, em todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais. Por sua vez, o n.º 2, ao admitir a possibilidade da existência, na primeira instância, de tribunais de competência específica e de tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas, reserva para o legislador ordinário não só a opção sobre a criação desses tribunais, como também uma ampla liberdade de conformação na delimitação da amplitude da competência de cada um de tais tribunais.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade, por diversas vezes, de apreciar questões de constitucionalidade em que foi invocada a violação desta norma, a propósito da repartição de competências entre tribunais judiciais.
Assim, recentemente, no Acórdão n.º 7/2012, escreveu-se o seguinte:
«[…] o n.º 2 do artigo 211.º permite que na primeira instância dos tribunais judiciais haja tribunais com competência específica e tribunais especializados para julgamento de matérias determinadas. Independentemente do sentido que deva conferir-se a esta distinção e que não interessa dilucidar, esta previsão não confere valor constitucional às normas de organização judiciária que, ao seu abrigo, tenham repartido a competência entre os diversos tribunais judiciais. E, por outro lado, também não reserva esse conteúdo para as leis especificas de organização judiciária, proibindo que as leis de processo se ocupem da matéria, porventura derrogando pontualmente o que daquelas resultaria.
Deste modo, independente do mérito da solução adotada pelo n.º 2 do artigo 384.º do CPP, não é possível retirar desta norma constitucional qualquer vinculação do legislador quanto a saber se a concordância com a suspensão provisória do processo deve competir ao juiz de instrução ou ao tribunal do julgamento ou que proíba a lei de processo de se ocupar ela própria dessa matéria[…]»
Neste mesmo sentido se pronunciaram os Acórdãos n.ºs 69/2012 e 79/2012 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No caso dos autos, resulta claro, face ao exposto, que a matéria em causa poderia ser atribuída pelo legislador ordinário, no quadro da Constituição, a tribunais de competência genérica, podendo o legislador optar, com grande liberdade, entre uma solução de unidade de foro e uma solução de pluralidade de tribunais competentes, consoante a matéria do litígio. Não se pode, por isso, afirmar que esta questão de repartição de competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais traduza ou implique qualquer juízo de censura no plano constitucional.
Assim, saber se uma determinada norma de direito ordinário implica a atribuição de competência para a prática de determinado ato jurisdicional a um ou outro tribunal – sendo concebível que haja diferentes respostas a essa questão – não envolve, à partida, uma questão de constitucionalidade.
Com efeito, estando aqui em causa na interpretação posta em crise, a atribuição da competência para a prática de determinado ato jurisdicional ao tribunal de instrução criminal ou a uma vara criminal, os quais são ambos tribunais de primeira instância (sendo o primeiro de competência especializada e o segundo de competência específica, em matéria criminal), não se vê como se poderá entender que a interpretação normativa sindicada viole o referido artigo 211.º, n.º 1, da Constituição, ao considerar ser competente para a prática do referido ato a vara criminal, sem que tal envolva qualquer subtração da competência atribuída a um tribunal de outra ordem jurisdicional.
Por outro lado, sendo inequívoco que a interpretação normativa em causa foi no sentido de a competência para a decisão pertencer a um tribunal judicial, com competência em matéria criminal, é ainda certo, conforme se disse, que a Constituição não impõe a existência de tribunais de competência específica e/ou especializada, deixando ao legislador ordinário ampla margem de liberdade na concretização da repartição das competências entre os diversos tribunais, bem como na delimitação das competências de cada um deles, quando existam numa determinada circunscrição.
Face ao exposto, e independentemente da correção ou não da interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida, é manifesto que a mesma não se traduz em qualquer violação do disposto no artigo 211.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 5, e 211.º, n.º 1 e 2, da Constituição, nem se vislumbra que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que os recursos apresentados pelos arguidos D. e H. não merecem provimento nesta parte.
2.4. A interpretação dos artigos 33.º, n.ºs 1 e 3, e 122.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal (ponto II 5 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
Ainda relativamente ao mesmo despacho que decidiu sobre a validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, o arguido H. pretende que seja apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 33.º, n.ºs 1 e 3, e 122.º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que não cabe efetuar a reapreciação substancial desses atos, devendo apenas serem anulados os atos que se mostrem absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida no tribunal competente, considerando que tal interpretação é inconstitucional, por desconforme aos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º n.ºs 1 e 2 da Constituição.
Segundo o Recorrente, ao considerar-se que a avaliação imposta pelos artigos 33.º, n.ºs 1 e 3, e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, dos atos praticados pelo tribunal incompetente é uma mera avaliação formal ou finalística, temperada pelo princípio de máximo aproveitamento ou da economia processual, não sendo uma avaliação material tutelada por um juízo de projeção decisória, impede, por um lado, o exercício dos direitos de defesa do arguido e, por outro lado, desrespeita as exigências constitucionais na imposição da medida de prisão preventiva.
Na verdade, como já adiantámos no ponto anterior, o tribunal recorrido entendeu que o juízo sobre a validade dos atos praticados pelo juiz declarado incompetente no decurso do inquérito, a efetuar nos termos do artigo 33.º, do Código de Processo Penal, se resumia à verificação da sua compatibilidade formal com as atribuições de um juiz competente, sem que tenha de entrar na apreciação das questões de fundo subjacentes e decididas por tais atos.
O artigo 33.º, do Código de Processo Penal, contém uma solução idêntica à que já constava do artigo 145.º, do Código de 1939.
Conforme resulta da leitura do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa, quanto à interpretação das normas em causa, entendeu o seguinte:
«[…]
Se bem interpretamos os recursos interpostos, todos os ora recorrentes pretendiam que o Tribunal a quo viesse a avaliar substancialmente, valorasse materialmente, todos os atos praticados pelo Senhor Juiz do 1.º Juízo do TIC de Lisboa, o que significaria, ao fim e ao cabo, a apreciação de mérito dessas decisões, que o Tribunal a quo, igualmente de 1.ª instância, reavaliasse os fundamentos que estiveram na sua base, por forma a concluir se esses despachos foram ou não proferidos secundum legem.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não é este o sentido que se impõe retirar do disposto no n.º 1 do art. 33.º do CPP. Apelando novamente ao princípio do máximo aproveitamento dos atos processuais, que subjaz a este dispositivo, o tribunal somente deve anular os atos “que se não teriam praticado”, apenas aqueles, conforme acima já se deixou assinalado, que se mostrem absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida no tribunal competente.
De acordo com o n.º 1 deste artigo, não competirá ao aplicador do direito anular todos os atos emanados de juiz declarado incompetente, nem tão pouco efetuar uma avaliação fundada no seu mérito. Inversamente, os atos praticados por tribunal incompetente, por princípio, mantêm a sua validade e a sua eficácia. Só são anulados aqueles que se mostrem incompatíveis perante a declaração de incompetência.
Mas a anulação não pode ser determinada por esses atos não terem acolhido a melhor doutrina ou a melhor jurisprudência sobre o assunto, por não terem reconhecido a interpretação mais idónea da lei ou por terem sido proferidos contra o entendimento perfilhado pelos sujeitos processuais, como de um recurso se tratasse. A anulação só pode ser declarada quando se concluir que os atos praticados não se enquadram na tramitação processual do tribunal declarado competente, quando a anulação seja indispensável para adequar o processo à tramitação que ele deveria ter tido.»
Ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa, confirmando a decisão da 1.ª instância, interpretou o n.º 1, do referido artigo 33.º, no sentido de que o tribunal somente deve anular os atos “que se não teriam praticado”, isto é, aqueles que se mostrem absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida por um juiz competente, esclarecendo ainda que, de acordo com o referido normativo, não competirá ao aplicador do direito anular todos os atos emanados de juiz declarado incompetente, nem tão pouco efetuar uma avaliação fundada no seu mérito, concluindo, por isso, que não tinha que fazer uma reapreciação da validade substancial dos atos.
Acrescente-se ainda que segundo a decisão recorrida a ideia de que não cabe efetuar uma reapreciação substancial de tais atos aplica-se independentemente do tribunal que seja considerado como competente para aferir da validade de tais atos (seja o tribunal de julgamento ou o tribunal de instrução) e independentemente da fase processual em que tal reapreciação ocorra.
A esta interpretação preside uma ideia de economia processual, designadamente do máximo aproveitamento dos atos processuais já praticados, mesmo que o tenham sido por um juiz que veio a verificar-se não ser o competente para o efeito, evitando-se, assim, a repetição de atos, por exigências alheias a um critério de justiça material.
O artigo 28.º, n.º 1, da Constituição, sob a epígrafe “Prisão preventiva”, dispõe o seguinte:
“1. A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.”
Por sua vez, o artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição, já aqui referido, sob a epígrafe “Garantias de processo criminal”, refere:
“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
(…)”
Segundo o Recorrente estas normas constitucionais exigem que os artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, sejam interpretados no sentido de que a avaliação dos atos praticados por tribunal incompetente não é uma avaliação formal ou finalística, temperada pelo princípio de máximo aproveitamento ou da economia processual, mas uma avaliação material tutelada por um juízo de projeção decisória, como se perante o tribunal que avalia a validade dos atos, tivesse decorrido o processo.
Contudo, como salienta a decisão recorrida, não se vê em que termos o modo de aplicação dos preceitos legais em causa seguida pelo tribunal de primeira instância coloque em causa as garantias de defesa do arguido, designadamente o direito ao recurso.
O arguido, relativamente aos referidos atos praticados durante o inquérito pelo Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, não deixou de poder ter a possibilidade de exercer todos os direitos de defesa que lhe assegura o direito processual penal, designadamente a possibilidade de os impugnar por via de recurso. Não é, pois, exigível, à luz das garantias de defesa em processo criminal, que os referidos atos sejam novamente reapreciados, não resultando desta interpretação normativa qualquer limitação ou compressão constitucionalmente relevante dessas garantias (sendo certo, aliás, que o recorrente, nas suas alegações de recurso não especifica, em concreto, em que medida tais garantias são colocadas em causa pela interpretação sindicada).
Em suma, as garantias de defesa do arguido não exigem que o tribunal, ao proceder à avaliação de atos declarados nulos, faça uma reapreciação dos mesmos em termos substanciais, conferindo ao arguido um nova oportunidade de recorrer quanto ao fundo da questão, uma vez que tal oportunidade já lhe foi conferida quando os referidos atos foram praticados.
Por outro lado, não se vê, e o Recorrente também não explica, em que medida a interpretação normativa questionada pode colidir com o disposto no artigo 28.º, n.º 1, da Constituição. Com efeito, conforme se disse, os arguidos, entre os quais o recorrente, tiveram oportunidade de reagir (como aliás fizeram) no que respeita às decisões proferidas pelo Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente relativas às medidas de coação aplicadas na sequência da sua detenção, não sendo constitucionalmente exigível que, estando até cessadas tais medidas de coação e estando os autos em fase de julgamento, se procedesse a uma análise substancial das decisões que as aplicaram. O facto de ter apurado que o juiz, que decretou a prisão preventiva do arguido, não era o competente para emitir tal ato não significa, só por si, que não tenham sido observados todos os requisitos constitucionais para a adoção de tal medida de coação.
Pelo exposto, conclui-se que a interpretação normativa dos artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, aplicada pela decisão recorrida, não viola o disposto nos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, ou quaisquer outras normas ou princípios constitucionais, devendo, por isso, o recurso improceder nesta parte.
2.5. A interpretação dos artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal (ponto 3 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido F. e ponto VII 12 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
Nas sessões de julgamento em 1.ª instância ocorridas em 23 de novembro de 2009 e 14 de dezembro de 2009, foram comunicadas pelo Tribunal alterações de factos constantes da pronúncia, e posteriormente reiteradas, ainda que com nova fundamentação, nas sessões de julgamento de 18 de dezembro do mesmo ano e de 11 de janeiro de 2010, as quais foram então qualificadas como não substanciais.
A decisão de proceder a estas alterações já após terem sido produzidas as alegações orais foi impugnada por recursos interlocutórios interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa, em que se manifestava a discordância de tais alterações terem sido efetuadas num momento em que já havia terminado a produção da prova.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente este fundamento do recurso, interpretando o disposto nos artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência.
Os arguidos F. e H. alegam que este entendimento viola princípios e direitos constitucionais.
Segundo o recorrente F., para serem respeitadas as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo ínsitos nos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição, e artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a norma do artigo 358.º do Código de Processo Penal, deverá ser interpretada no sentido de que a comunicação de alterações é inadmissível, por extemporânea, quando é feita após a conclusão da produção de prova relativa a esses factos.
Ainda de acordo com o entendimento deste Recorrente, o conceito de “decurso da audiência” referido no artigo 358.º do Código de Processo Penal como âmbito temporal da admissibilidade de alterações, tem que ser interpretado e aplicado em sintonia com o disposto nos artigos 360.º e 361.º, dos quais resulta que, na tramitação normal, finda a produção de prova, incluindo a sequente à comunicação de alterações, se seguem as alegações orais e, a estas, as últimas declarações do arguido. Assim, a interrupção desta sequência na tramitação processual normal está admitida apenas em casos excecionais de produção de prova superveniente, conforme o n.º 4 do artigo 360.º, pelo que, sem a demonstração de tais excecionalidade e superveniência, a admissão de alterações após conclusão das alegações orais, embora consentida pela mera literalidade legal – “no decurso da audiência” -, constitui surpresa e irracionalidade processuais, com violação da plenitude das garantias de defesa conferida pelo artigo 32.º da Constituição e do processo equitativo imposto pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, e pelo artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Segundo o Recorrente H., o sentido interpretativo subjacente à aplicação da norma do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a que procedeu o Tribunal a quo, ao efetuar a comunicação de alteração não substancial de factos, está ferido de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da Constituição, ou seja, por violação dos princípios da máxima extensão dos direitos de defesa em processo penal (em conjugação com o artigo 18.º n.º 3 da Constituição) e da presunção de inocência, do direito a um processo leal, equitativo e célere, da estrutura acusatória do processo penal e do contraditório (entendido este na sua única conformação constitucionalmente admissível, como princípio de conteúdo material e dotado de plena eficácia).
Vejamos, antes de mais, o conteúdo das referidas normas e a forma como as mesmas foram interpretadas pela decisão recorrida.
O artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia» estabelece que «Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.»
Por sua vez, o artigo 360.º do Código de Processo Penal, que tem como epígrafe «Alegações orais» estabelece, nos n.ºs 1 a 3, o procedimento a que obedecem as alegações orais, que têm lugar finda a produção da prova. O n.º 4 deste artigo, por sua vez, estabelece que «Em casos excecionais, o tribunal pode ordenar ou autorizar, por despacho, a suspensão das alegações para produção de meios de prova supervenientes, quando tal se revelar indispensável para a boa decisão da causa; o despacho fixa o tempo concedido para aquele efeito».
Finalmente, o artigo 361.º do Código de Processo Penal estabelece a tramitação subsequente às alegações orais, referindo-se o n.º 1 às últimas declarações do arguido e o n.º 2 ao encerramento da discussão.
Em termos literais, apenas o transcrito artigo 358.º se refere expressamente ao momento em que o tribunal deverá efetuar a comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, dizendo que tal deverá ocorrer “no decurso da audiência”.
O tribunal recorrido, tendo considerado, atendendo ao elemento literal da norma do artigo 358.º do Código de Processo Penal, que a expressão “no decurso da audiência” não exclui o momento posterior às alegações, entendeu ainda que da interpretação conjugada dos artigos 358.º, 360.º e 361.º do Código de Processo Penal resulta também que a comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, desde que ocorra no decurso da audiência de julgamento – e isso não exclui a fase posterior às alegações –, assegura a possibilidade de o arguido apresentar a defesa que tenha por conveniente, de forma a que a mesma seja considerada na decisão final. Concluiu, assim, a decisão recorrida que aquilo a que tem de se atender como limite para a realização da comunicação de alterações de factos é à sentença.
Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a questão de saber se a interpretação adotada pelo acórdão recorrido é a mais adequada; compete-lhe apenas apreciar se tal interpretação é desconforme à Constituição, designadamente, por violar os parâmetros dos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre o conteúdo da norma do artigo 358.º do Código de Processo Penal, num caso em que estava em questão uma dimensão normativa equivalente à que é objeto dos presentes autos.
Assim, no Acórdão n.º 387/2005, citado pela decisão recorrida, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 358.º do Código de Processo Penal, quando interpretada «no sentido de ser admissível a comunicação ao arguido da alteração não substancial dos factos especificadores dos factos sinteticamente enunciados na pronúncia, após prévia deliberação do coletivo dos juízes sobre a matéria de facto e na qual esses factos foram descritos como estando indiciados ou “provisoriamente provados”, concedendo-se prazo para a defesa».
Escreveu-se nesse acórdão:
«Na verdade, não se vê que a circunstância de a alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia ser comunicada ao arguido após deliberação dos juízes que compõem o tribunal coletivo que julga a causa em 1ª instância, dando-lhe ao mesmo tempo prazo para a sua defesa, nomeadamente, para os poder contestar e oferecer prova a produzir na mesma audiência, ofenda os princípios constitucionais do acusatório, do contraditório e da plenitude das garantias de defesa, quando a deliberação sobre tais factos novos e sobre todos os demais é assumida pelo tribunal como uma posição provisória sobre o julgamento da matéria de facto.
Sendo o julgamento da matéria de facto da competência de um órgão colegial, qualquer posição do tribunal sobre se ocorrem factos novos suscetíveis de serem tidos como uma alteração não substancial de factos apenas é possível ser tomada se se efetuar deliberação que constate a existência dos indícios desses factos e decida ordenar a sua investigação.
A existência de uma tal deliberação surge como necessidade imposta pela natureza colegial do tribunal que tem de formar a decisão: esta em vez de corresponder à vontade funcional de uma só pessoa que não precisa para a formar de conferenciar com outrem, como acontece no juiz singular, é a resultante da vontade funcional dos vários juízes.
Numa tal perspetiva – e reproduzindo asserções do acórdão recorrido – “é irrelevante que a essa comunicação se chame leitura de acórdão ou que se designe a mesma por qualquer outra expressão”.
E continua o mesmo aresto: “É que tendo sido dado prazo para a organização da defesa e admitida a produção de nova prova, essa prova a produzir poderia ter o efeito de alterar decisivamente o juízo do tribunal quanto aos factos descritos na comunicação”, possibilidade esta, de resto, bem explicitada no facto de o tribunal de 1ª instância haver expressamente consignado que os factos comunicados foram dados provisoriamente como assentes em face da prova até agora [então] produzida”.»
No caso dos autos, não se veem razões para que o Tribunal se afaste da jurisprudência deste acórdão, cujos fundamentos são transponíveis para a situação sub judice.
Com efeito, está em causa a interpretação do artigo 358.º do Código de Processo Penal no sentido de que é possível proceder à alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas alegações orais, mesmo sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência.
Ora, esta possibilidade é admitida pelo referido Acórdão n.º 387/2005, ao considerar que a circunstância de a alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia ser comunicada ao arguido após deliberação dos juízes que compõem o tribunal coletivo que julga a causa em 1ª instância, dando-lhe ao mesmo tempo prazo para a sua defesa, nomeadamente, para os poder contestar e oferecer prova a produzir na mesma audiência, não ofende os princípios constitucionais do acusatório, do contraditório e da plenitude das garantias de defesa (parâmetros estes que, no caso concreto, os recorrentes consideram também ter sido violados pela norma em causa, na interpretação sindicada).
Não se vê, assim, como tenham sido violados os princípios do acusatório, do contraditório e da plenitude das garantias de defesa dos arguidos, pelo facto de a comunicação da alteração não substancial dos factos ter sido efetuada após as alegações orais.
De acordo com a interpretação normativa sindicada e aplicada pela decisão recorrida, é admissível que essa comunicação ocorra depois de o tribunal coletivo, enquanto órgão colegial, se ter reunido para deliberar, tendo por base a análise toda a prova produzida. Ora, admitir como possível que tal comunicação ocorra neste momento temporal em nada contende com os referidos princípios constitucionais, posto que confere aos arguidos exatamente os mesmos direitos e possibilidades de defesa e de exercício do contraditório que conferiria se tivesse ocorrido em momento anterior, não se revelando necessário que se exija para tal que se verifiquem circunstâncias de excecionalidade e de superveniência.
Assim, não se poderá falar, a este respeito, da existência de uma restrição de direitos, liberdades e garantias dos arguidos, no sentido em que tal restrição se encontra prevista no artigo 18.º da Constituição, uma vez que a exigência prevista no artigo 358.º do Código de Processo Penal tem em vista a proteção de direitos dos arguidos constitucionalmente consagrados, não resultando da interpretação normativa sindicada qualquer restrição aos mesmos.
Por outro lado, também não se vê de que modo a interpretação normativa questionada possa colocar em causa o princípio da presunção da inocência, em qualquer das dimensões já referidas, nem os arguidos concretizam as razões em que fundamentam a alegada violação deste princípio.
No entanto, uma vez que os recorrentes invocam a violação de um parâmetro constitucional que não foi especificamente analisado no referido acórdão, importa apreciar a questão também à luz do mesmo.
Assim, os recorrentes sustentam, em primeiro lugar, que a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida viola o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, o qual dispõe que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de uma decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.” A exigência de um processo equitativo consta também do invocado artigo 6.º da Convenção dos Direitos do Homem.
O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94).
O direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efetivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.
A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiado exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 415 e 416, do vol. I, da 4.ª edição, da Coimbra Editora).
A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não deixa de permitir uma ampla liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Contudo, impõe, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
Sendo estas as dimensões em que se concretiza este princípio, não se vê de que forma a interpretação normativa em análise o possa ter colocado em causa.
Com efeito, se se verificar que só após as alegações orais, mas antes da sentença, o tribunal se encontra em condições de fazer um juízo indiciário da prova produzida – seja porque só então, após a produção de toda a prova, está em condição de o fazer, seja porque tal é imposto pela própria natureza colegial do tribunal, como acontece no presente caso – concluindo que da mesma poderá resultar uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia, não se vê que a tal ofenda a garantia de um processo justo e equitativo, posto que a referida alteração, efetuada neste momento processual, garanta, como efetivamente garante, aos arguidos os mesmos meios de defesa.
Dir-se-á, como fazem os Recorrentes, que, a admitir-se a alteração nessa altura, há um maior distanciamento temporal em relação ao momento em que foram produzidas determinadas provas ou em relação aos factos. Contudo, essa será um circunstância dependente de contingências várias, como sejam, por exemplo, a maior ou menor duração e complexidade do processo, a maior ou menor proximidade entre a data da ocorrência dos factos e a do julgamento, a maior ou menor visibilidade das alterações a efetuar, vicissitudes essas que não são controláveis pelo Tribunal, nem poderão ser fundamento para antecipar o momento até ao qual será admissível que se proceda a uma alteração dos factos descritos na pronúncia.
Não se vislumbra, pois, que a interpretação sindicada coloque em causa a garantia de um processo equitativo, não se verificando assim também qualquer inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
Face ao exposto, não se podendo concluir que a interpretação normativa em causa viole as referidas normas e princípios ou que se vislumbre que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, devem os recursos interpostos por F. e H. improceder nesta parte.
2.6. A interpretação dos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º do Código de Processo Penal (ponto III 2 do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo arguido H.).
Conforme já acima se relatou, aquando da verificação do preenchimento dos requisitos necessários ao conhecimento desta questão de constitucionalidade, na sessão da audiência de julgamento realizada em 14 de março de 2005, o mandatário do arguido A. apresentou um requerimento em que solicitou que se permitisse que as instâncias aos assistentes fossem efetuadas diretamente, sem a mediação do Presidente do Tribunal Coletivo, pelos diferentes sujeitos processuais, tendo invocado como fundamento a inconstitucionalidade do disposto no artigo 346.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Em resposta a este requerimento, a mandatária do arguido H. aderiu ao requerido, tendo precisado que estendia a declaração de inconstitucionalidade ao disposto no artigo 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Na sessão de 17 de março de 2005 foi proferido despacho que, após julgar conforme à Constituição o disposto nos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, indeferiu o requerido, determinando que a tomada de declarações aos assistentes e partes civis se procedesse na forma expressamente enunciada nos artigo 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Desta decisão interpôs recurso o arguido H., o qual foi apreciado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 que o julgou improcedente, perfilhando o entendimento que havia sido aplicado pelo Tribunal da 1.ª instância.
O arguido H. vem arguir a inconstitucionalidade da norma constante dos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, do Código de Processo Penal, interpretados pelo tribunal recorrido no sentido de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis.
Vejamos, antes de mais, o teor dos preceitos a que se reporta a interpretação cuja constitucionalidade é questionada.
O artigo 346.º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Declarações do assistente», estabelece no seu n.º 1, que «Podem ser tomadas declarações ao assistente, mediante perguntas formuladas por qualquer dos juízes e dos jurados ou pelo presidente a solicitação do Ministério Público, do defensor ou dos advogados das partes civis ou do assistente.»
Por sua vez, o artigo 347.º do mesmo código, sob a epígrafe «Declarações das partes civis», dispõe no seu n.º 1, que «Ao responsável civil e ao lesado podem ser tomadas declarações, mediante perguntas formuladas por qualquer dos juízes ou dos jurados ou pelo presidente a solicitação do Ministério Público, do defensor ou dos advogados do assistente ou das partes civis.»
Estes preceitos que não se afastam do disposto no artigo 428.º, do Código Processo Penal de 1939, o qual refletia uma prática anterior, disciplinam a prestação de declarações por parte de dois específicos intervenientes processuais: o assistente e as partes civis. Assim, antes de apreciar as questões de constitucionalidade aqui em discussão, importa tecer algumas considerações sobre o respetivo estatuto processual destes sujeitos processuais.
No que respeita à figura do assistente, estabelece o artigo 68.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, ressalvados os casos em que leis especiais confiram tal direito, podem constituir-se assistentes em processo penal:
- os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos [alínea a)] – no caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, poderão constituir-se assistentes as pessoas indicadas na alínea c) e, no caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, poderão fazê-lo as pessoas indicadas na alínea d);
- as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento [alínea b)];
- qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção [alínea e)].
Conforme resulta do artigo 69.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o assistente tem a posição processual de colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as exceções da lei.
Ou seja, o assistente tem o estatuto de um verdadeiro sujeito processual, identificado, em geral, com o titular do interesse que a lei penal quis proteger com a incriminação, e a quem a lei confere competências próprias, enumeradas no artigo 69.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, entre as quais se inclui, em determinados casos, a possibilidade de agir independentemente ou até mesmo em sentido oposto ao do Ministério Público.
Este estatuto conferido ao assistente tem sido reiteradamente reconhecido pelo Tribunal Constitucional, conforme já acima se referiu no ponto 2.2. deste acórdão.
Relativamente ao estatuto do lesado ou demandante cível no âmbito do processo penal, a sua intervenção explica-se, desde logo, pela consagração no artigo 71.º do Código de Processo Penal do chamado princípio da adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado nos casos taxativamente enumerados no artigo 72.º. Este pedido é deduzido pelo lesado, ainda que se tenha constituído ou não se possa constituir assistente (cfr. art. 74.º, n.º 1, do CPP).
Segundo Figueiredo Dias (in. “Direito Processual Penal”, vol. I, pág. 508-509, da ed. de 1974, da Coimbra Editora,), o lesado integra «um conceito lato de ofendido», no qual se compreendem «as pessoas a quem deve ser dada legitimidade para deduzir, em processo penal, um pedido de indemnização, ou qualquer outro de natureza patrimonial, derivado de uma infração penal», devendo ser considerada como tal «toda a pessoa que, segundo as normas de direito civil, tenha sido prejudicada em direitos seus, juridicamente protegidos».
Assim, a formulação de pedido indemnizatório por parte do lesado implica a apreciação de uma ação de indemnização cível enxertada no âmbito do processo penal, mas que não perde a sua especificidade de ação civil, sendo que do ponto de vista material o lesado ou o responsável civil se mantêm como sujeitos dessa ação civil (cfr. artigos 74.º a 80.º e 82.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), tendo, assim, um estatuto processual específico, que não contende com os direitos do arguido enquanto sujeito processual na ação penal.
O Recorrente sustenta que a decisão recorrida, ao interpretar as referidas normas no sentido de que a tomada de declarações aos assistentes e aos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão estes solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimento, restringe de forma inaceitável as garantias de defesa dos arguidos, comprometendo as garantias de espontaneidade e da imediação próprias de um contrainterrogatório, violando, muito em particular, os princípios constitucionais do contraditório e da presunção da inocência.
Segundo o Recorrente, as garantias de defesa do arguido, maxime, o direito de contra interrogar e contraditar diretamente toda a prova incriminatória que seja produzida na audiência de julgamento, não se mantêm intactas se as normas em crise impuserem que todo o interrogatório do assistente e das partes civis, nomeadamente, do demandante cível, seja realizado por intermédio do presidente do Tribunal, pois a aplicação do regime resultante da interpretação normativa impugnada prejudica a espontaneidade do depoimento, retirando-lhe conteúdo emocional.
Subjacente a esta argumentação está o pensamento de que “o direito de contrainterrogar e contraditar diretamente toda a prova incriminatória que seja produzida na audiência de julgamento”, integra as garantias de defesa do arguido e o conteúdo do princípio do contraditório.
Para a apreciação da questão, importa desde logo ter presente que, na solução adotada para a tomada de declarações ao assistente e às partes civis, o legislador não deixou de ter em atenção a circunstância de, sobretudo nos casos em que o lesado seja simultaneamente assistente e demandante civil e o arguido seja, ao mesmo tempo, demandado, estes terão no processo posições conflituantes, o que poderá levar a que a instância direta se torne potenciadora de uma maior crispação entre os intervenientes, com prejuízo para o normal funcionamento da audiência de julgamento.
Ou seja, nesta situação, mesmo a admitir-se a eventual existência de maior espontaneidade decorrente da instância direta, tal alegada vantagem tenderia a ser prejudicada por uma maior perturbação dos trabalhos da audiência, com sacrifício do normal desenrolar da mesma e prejuízo para a correta valoração da prova.
Por outro lado, no que respeita às garantias de imediação, não se vê que as mesmas possam ser colocadas em causa, quer pela solução da instância direta do julgador, quer pela solução resultante destas normas na interpretação da decisão recorrida.
O princípio da imediação pode definir-se como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão» (cfr. Figueiredo Dias, na ob. cit., pág. 232). Ou seja, este princípio poderá ser entendido no sentido de ser exigível um contacto direto do Tribunal com todas as provas, as quais terão de ser produzidas e/ou analisadas em audiência de julgamento.
É certo que entre as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, podemos incluir o princípio da imediação das provas, enquanto exigência do processo criminal de um Estado de direito assente no respeito da dignidade da pessoa humana. Assim, para que este princípio seja respeitado em sede audiência de julgamento, onde tem o seu campo essencial de aplicação, importa que não possam ser admitidas, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, com a ressalva de algumas provas contidas em atos processuais cuja leitura em audiência, pelas suas características, deva ser permitida pela lei processual.
Ora, sendo este o conteúdo deste princípio, não se vê em que termos o facto de ser o tribunal a inquirir diretamente o assistente ou o demandante civil e de ser também por seu intermédio que são pedidos os esclarecimentos pretendidos pelos demais sujeitos processuais, neles se incluindo os defensores dos arguidos, possa colocar em causa a garantia de imediação.
Com efeito, esta garantia de imediação está igualmente salvaguardada quer na hipótese de o assistente ou demandante cível ser interrogado diretamente pelo mandatário do arguido, quer na hipótese de o ser por intermédio do juiz presidente, pois, em qualquer das situações, existe um contacto direto do Tribunal com as provas (neste caso as declarações do assistente e do demandante cível), as quais devem ser produzidas em audiência de julgamento, com a presença e intervenção dos restantes sujeitos processuais, a quem é conferida a possibilidade de avaliar e contraditar essa prova.
Por outro lado, para além de, com rigor, não se poder falar da existência, entre as garantias de defesa, de uma garantia de espontaneidade das declarações de qualquer interveniente processual (podendo, quanto muito, no plano do direito infraconstitucional colocar-se a questão de saber qual o sistema que melhor favorece essa espontaneidade), o facto é que, em abstrato, não está demonstrado que a espontaneidade dos depoimentos seja favorecida ou desfavorecida pela instância direta dos mandatários dos sujeitos processuais, em detrimento do interrogatório efetuado com a mediação do Tribunal.
Com efeito, numa instância direta, devido a posições processuais potencialmente conflituantes, poderão ter lugar diversas interrupções do juiz, com vista a assegurar a regularidade procedimental, o que, a verificar-se, poderá contribuir para uma maior perturbação do interrogatório dos depoentes do que numa instância em que as questões são colocadas desde logo através da mediação do Tribunal.
Por outro lado, o princípio do contraditório, nos termos em que está constitucionalmente consagrado, não significa que tenha de haver um contrainterrogatório direto em relação a todos os intervenientes ouvidos em audiência de julgamento. Exige, sim, que seja facultado ao arguido o direito de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova.
Ora, estas exigências reclamadas por tal princípio são salvaguardadas na solução resultante da interpretação normativa adotada pela decisão recorrida, não sendo constitucionalmente exigível, para tal, que o contra interrogatório ao assistente ou à parte civil seja feito de forma direta por parte do mandatário do arguido. Com efeito, a garantia de contraditório mostra-se cumprida desde que seja permitido ao arguido solicitar esclarecimentos em relação a todos os factos em relação aos quais o assistente ou a parte civil se tenham referido nas suas declarações, independentemente de tais esclarecimentos serem feitos diretamente ou por intermédio do Tribunal.
Acresce que o legislador, ao determinar, nos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que os pedidos de esclarecimentos sejam feitos através do Presidente do Tribunal Coletivo, consagrou esta solução tendo em atenção a configuração do estatuto processual do assistente e do lesado ou responsável civil, bem como a natureza da ação em que cada um se insere.
Assim, é constitucionalmente admissível a existência de uma diferença de procedimento entre a tomada de declarações às testemunhas e ao assistente ou demandante cível, posto que não se coloque em causa, como não se coloca efetivamente no caso concreto, as garantias de defesa do arguido.
Forçoso é, pois, concluir que a norma em questão, não constitui qualquer violação de normas ou princípios constitucionais, designadamente os consagrados nos n.ºs 1, 2 e 5, do artigo 32.º, da Constituição, devendo, em consequência, também nesta parte o recurso interposto pelo arguido H. improceder.
*
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar extintos, por desistência, os recursos do arguido A., quanto às questões colocadas nos pontos II de ambos os requerimentos de interposição de recurso por si apresentados, e do arguido H., quanto às questões colocadas nos pontos I, IV, V, IX e X do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
b) Julgar deserto o recurso do arguido H., quanto às questões colocadas nos pontos II 7 e VIII do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
c) Não conhecer do recurso do arguido A., quanto às questões colocadas nos pontos III e IV do requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de fevereiro de 2012 por si apresentado;
d) Não conhecer do recurso do arguido D., quanto às questões colocadas nos pontos II, III e IV, do requerimento de interposição de recurso por si apresentado em 8 de março de 2012, e quanto à questão colocada no requerimento apresentado em 6 de Junho de 2012;
e) Não conhecer do recurso do arguido F., quanto às questões colocadas nos pontos 1, 2, 4, 5, 6 e 7, do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
f) Não conhecer do recurso do arguido H., quanto às questões colocadas nos pontos III 3, VII 3 e VII 18 a), c) e d) do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
g) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido;
e, em consequência,
h) Julgar improcedente o recurso do arguido A. quanto à questão colocada no ponto I do requerimento de interposição de recurso, do acórdão da Relação de Lisboa proferido em 7 de dezembro de 2011, por si apresentado;
i) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 356.º, n.º 2, b) e n.º 5, e 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consentimento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemunhas, essa leitura não pode ser admitida em audiência de julgamento, assim como o subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações;
e, em consequência,
j) Julgar improcedentes o recurso do arguido A., quanto à questão colocada no ponto I do requerimento de interposição de recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2012 por si apresentado, e o recurso do arguido H., quanto à questão colocada no ponto VI do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
l) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 14.º, 17.º, n.º 1, in fine, 33.º, n.º 1, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de reconhecer competência ao tribunal de julgamento para apreciar e decidir da validação ou invalidação de atos de Juiz de Instrução Criminal declarado incompetente, praticados em fase de inquérito;
e, em consequência,
m) Julgar improcedentes o recurso do arguido D., quanto à questão colocada no ponto I do requerimento de interposição de recurso por si apresentado, e o recurso do arguido H., quanto à questão colocada no ponto II 3 do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
n) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 33.º, n.º 1 e 3, e 122.º, n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que no despacho de validação pelo tribunal de julgamento dos atos do Juiz de Instrução Criminal, declarado incompetente, praticados em fase de inquérito, não cabe efetuar a reapreciação substancial desses atos, devendo apenas serem anulados os atos que se mostrem absolutamente incompatíveis com a tramitação processual que deveria ter sido seguida no tribunal competente;
e, em consequência,
o) Julgar improcedente o recurso do arguido H., quanto à questão colocada no ponto II 5 do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
p) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal, interpretados com o sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência;
e, em consequência,
q) Julgar improcedentes o recurso do arguido F., quanto à questão colocada no ponto 3 do requerimento de interposição de recurso por si apresentado, e o recurso do arguido H., quanto à questão colocada no ponto VII 12 do requerimento de interposição de recurso por si apresentado;
r) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 346.º, n.º 1, e 347.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que a tomada de declarações dos assistentes e dos demandantes cíveis é sempre realizada pelo Presidente, no caso de Tribunal Coletivo, e, quando o Ministério Público, o advogado do assistente, o advogado do demandante cível ou o defensor pretendam que seja formulada alguma questão ou pedido algum esclarecimento, deverão solicitar ao Presidente do Tribunal que formule tais questões ou pedidos de esclarecimentos aos assistentes e demandantes cíveis;
e, em consequência,
s) Julgar improcedente o recurso do arguido H., quanto à questão colocada no ponto III 2 do requerimento de interposição de recurso por si apresentado.
*
Custas dos recursos pelos Recorrentes, fixando-se as seguintes taxas de justiça, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98 de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma):
- recurso interposto pelo arguido A. do Acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Dezembro de 2011 – 20 unidades de conta;
- recurso interposto pelo arguido A. do Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Fevereiro de 2012 – 20 unidades de conta;
- recurso interposto pelo arguido D. em 8 de Março de 2012 – 25 unidades de conta;
- recurso interposto pelo arguido D. em 6 de Junho de 2012 – 10 unidades de conta;
- recurso interposto pelo arguido F. – 25 unidades de conta;
- recurso interposto pelo arguido H. – 30 unidades de conta.
*
Lisboa, 7 de fevereiro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.