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Processo nº 796/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - A, identificada nos autos, foi acusada pelo magistrado do Ministério Público no Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, da autoria material de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 365º do Código Penal.
Notificada em 17 de Novembro de 1999 – bem como da possibilidade de requerer, em vinte dias, a abertura de instrução – veio, em 21 de Dezembro seguinte, requerer essa abertura, o que foi indeferido por despacho judicial que teve o seu pedido por extemporâneo.
Como então se ponderou, notificada naquela data, pessoalmente, dispunha a arguida de vinte dias para o requerimento, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), prazo que, assim, foi excedido.
Depois de se considerar que, não obstante o nº 1 do artigo 104º deste diploma legal preceituar que se aplicam as disposições da lei processual civil à contagem dos prazos para a prática de actos processuais, acrescentou-se que tal não significa que o mesmo aconteça em sede de peremptoriedade dos prazos, sendo certo que a disciplina autónoma do processo penal não contempla a figura da dilação.
1.2. - Inconformada, recorreu a interessada para o Tribunal da Relação de Évora desse despacho, uma vez que, sendo cidadã dinamarquesa e residente nesse País, requereu a abertura de instrução no prazo dos cinquenta dias subsequentes à sua notificação por via postal para a Dinamarca.
A arguida – acrescenta – careceu desse prazo por não conhecer a língua portuguesa nem advogado português e só através de advogado dinamarquês encontrou quem lhe explicasse o sentido e o alcance prático da notificação.
Em seu entender – e no que ora interessa – a interpretação conjugada dos artigos 287º, nº 1, 104º e 4º do CPP, no sentido de excluir a possibilidade de aplicação da dilação a um cidadão estrangeiro sem advogado constituído em Portugal, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República (CR), sendo ainda certo que a não notificação à arguida, em língua que ela conheça, é acto nulo e contrário à Constituição, por violar os seus direitos de defesa, consagrados no artigo 32º, nº 1, da lei fundamental.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 13 de Novembro de 2001, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Nesse aresto, depois de se dar como assente, em matéria de facto, designadamente, que a arguida, 'em todos os actos processuais em que interveio, nomeadamente, no momento da apresentação da queixa crime e no da realização dos actos de retractação e de interrogatório do arguido [...], sempre se expressou em língua portuguesa, de forma pormenorizada e minuciosa', tendo sido notificada pessoalmente do requerimento acusatório de 17 de Novembro de
1999, abordou-se a suscitada problemática de constitucionalidade.
Por um lado, teve-se em consideração que, dada a regulamentação 'precisa, detalhada e até exaustiva' do regime de notificações fixado no CPP, nomeadamente nos artigos 113º e seguintes, sem que neles haja menção de observância de dilação, não é de recorrer ao regime processual civil; e, designadamente, com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tirado em Plenário, nº 2/96 – publicado no Diário da República, I Série A, de 10 de Janeiro de 1996 – foi adoptado o entendimento nos termos do qual a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, pelo que a abertura da instrução tem de ser requerida no prazo, peremptório, previsto no nº 1 do artigo 287º do CPP.
Por outro lado, as garantias de defesa do arguido são respeitadas na medida em que o nº 2 do artigo 196º do CPP preceitua que o arguido pode indicar, para além da sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha, para onde devem ser remetidas as notificações postais que lhe devam ser feitas, não fazendo sentido, nessas circunstâncias, que o prazo não comece a contar a partir da notificação da pessoa indicada.
2.1. - Novamente inconformada, interpôs a arguida recurso do citado acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o que fez nos seguintes termos:
'[...] tendo sido notificada do douto Acórdão, tendo legitimidade para tal, e tendo oportunamente suscitado a questão da inconstitucionalidade da não notificação da acusação à Arguida em língua que ela conheça, por ser acto nulo e contrário à Constituição, ao violar os seus direitos de defesa, consagrados no artigo 32°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, o que fez nas suas motivações de recurso, vem do mesmo Acórdão, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos conjugados dos artigos 70°, número 1, alínea b), 72°, número 2 e 75°, todos da Lei 28/82, de 15 de Novembro, relativamente à questão da inconstitucionalidade suscitada. Para além disso, do facto de a Arguida ter assinado papéis em língua portuguesa, o Tribunal, mediante presunção judicial, retirou a conclusão de que a Arguida conhecia a língua portuguesa e, por isso, não lhe considerou aplicáveis as garantias estabelecidas no artigo 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(aprovada para ratificação pela Lei 65/78, de 13 de Outubro) e a alínea a) do número 3 do artigo 14° do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(aprovado para ratificação, pela Lei 29/78, de 12 de Junho), assim violando reflexamente os artigo 32°, número 1 e 13° da Constituição da República Portuguesa. Assim: Esta interpretação conjugada dos artigos 92º, números 1 e 2, 113º e 283º, do Código de Processo Penal, no sentido de que o arguido que tenha assinado papéis deve ser, por presunção judicial, considerado conhecedor suficiente da língua portuguesa e não carecer de tradução dos documentos e de assistência por intérprete, ou como tendo renunciado ao direito de tomar conhecimento da acusação contra ele proferida em língua estrangeira que domine, viola igualmente o artigo 32º, número 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que a Recorrente desde já invoca, estando em tempo para o fazer, uma vez esta questão foi suscitada pela primeira vez no douto Acórdão, ou seja, em momento posterior à sua última. intervenção processual. A Arguida querela igualmente de inconstitucional, por violação dos artigos 32º, número 1 e 13º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14º, número 3, alínea a) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, os artigos 92°, números 1 e 2,
113° e 283° na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão recorrido, segundo a qual: a) Se deve presumir que o arguido que assinou papéis escritos em português conhece suficientemente a língua; e b) Por essa mesma razão, não lhe deve ser dada a conhecer a acusação contra ele proferida em língua estrangeira que conheça, designadamente na sua língua materna. A Recorrente querela ainda de inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, estatuído no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, e das garantias de defesa do arguido, estabelecidas no artigo 32º, número 1 da Lei Fundamental, e do princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos números 1 e 2 do artigo 20º do mesmo corpo de leis, a interpretação conjugada dos artigos 287°, n° 1, 104° e 4° do Código de Processo Penal no sentido de excluir a possibilidade de aplicação da dilação a um arguido estrangeiro sem advogado constituído em Portugal, questão esta que suscitou oportunamente na sua motivação de recurso. Termos em que se requer a V. Exas. a admissão do presente recurso .'
O recurso foi recebido pelo Desembargador relator, o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional – nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
2.2. - Já neste Tribunal, foi proferido, em 31 de Janeiro de
2002, despacho que, tendo presente o requerimento de interposição do recurso considerou:
'[...] Depreende-se do exposto que se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional três questões essenciais que se articulam com o plano jurídico-constitucional das mesmas:
'a) A da 'notificação da acusação em língua que ela conheça'; b) A da interpretação conjugada dos artigos 92º, n.º 1 e 2, 113º e 283º do Código de Processo Penal; e c) A da interpretação das normas dos artigos 287º, n.º1, 104º e 4º do Código de Processo Penal.'
3.- Relativamente à questão da notificação da acusação, a recorrente não suscita nenhuma questão de constitucionalidade normativa. O que impugna é o próprio acto de notificação em si, pelo que não pode tomar-se conhecimento desta questão.
4.- No que toca à alegada interpretação normativa dos artigos 92º, n.º1 e 2,
113º e 283º do Código de Processo Penal, 'no sentido de que o arguido que tenha assinado papéis deve ser, por presunção judicial, considerado conhecedor suficiente da língua portuguesa e não carecer de tradução dos documentos e de assistência de intérprete, ou como tendo renunciado ao direito de tomar conhecimento da acusação contra ele proferida em língua estrangeira que domine...', também não se pode tomar conhecimento da questão porquanto o tribunal não aplicou tais normas com a interpretação invocada pela recorrente, sendo certo que a recorrente o que pretende é questionar a matéria de facto em que assentou a decisão e a valoração da prova efectuada. Na verdade, relativamente a esta matéria, o acórdão recorrido limitou-se a referir, no ponto II – B) que resultava da análise dos autos que:
'1- A arguida A, em todos os actos processuais em que interveio, nomeadamente, no momento da apresentação da queixa crime e no da realização dos autos de retractação e de interrogatório de arguido, juntos a fls. 21 a 25, sempre se expressou em língua portuguesa, de forma pormenorizada e minuciosa;
2- portanto, pode afirmar-se, sem qualquer hesitação que a mesma tem perfeito conhecimento do português;
3- assim e logicamente, a sua notificação, no âmbito destes autos, deveria ser efectuada em português e não em qualquer outro idioma (...)' Está, pois, excluída do âmbito do recurso de constitucionalidade a discussão da matéria de facto em que assentou a decisão e da prova valorada para esse efeito, que é, como se disse, o que a recorrente pretende, como ressalta à evidência no seu requerimento.
5.- Porém, a terceira das questões enunciadas, oportunamente suscitada, respeitante à interpretação conjugada dos artigos 287º, nº 1, 104º e 4º do Código de Processo Penal, no sentido de excluir a possibilidade da aplicação da dilação a um arguido estrangeiro sem advogado constituído em Portugal, que entende violar os princípios consagrados nos artigos 13º, 32º, nº 1, e 20º, nºs.
1 e 2, da Constituição, seguirá para alegações, a este âmbito normativo se circunscrevendo o âmbito do recurso.
6.- Notifique para efeitos de conhecimento do âmbito do recurso, tal como delimitado fica, e para alegações, considerando o exposto no nº 5 deste despacho.'
2.3. - Apresentou a arguida, oportunamente as suas alegações, concluindo do seguinte modo:
'1ª A Arguida é nacional da Dinamarca, país onde cresceu e vive.
2ª A Arguida não tinha, à data da notificação da acusação, mandatário constituído no nosso país.
3ª A Arguida requereu a abertura de instrução dentro do prazo de cinquenta dias subsequente à sua notificação por via postal para a Dinamarca, tendo sido o referido requerimento rejeitado por extemporâneo, e tal decisão confirmada em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Évora.
4ª Funda-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/96, de 6 de Dezembro de 1995, in DR, I-A, de 10 de Janeiro de 1996, que fixou, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a jurisprudência de acordo com a qual 'a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, pelo que a abertura de instrução tem que ser requerida no prazo, peremptório, de vinte dias, previsto no nº 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal'.
5ª Porém, o caso dos autos é bem diferente da hipótese que o Supremo Tribunal de Justiça teve em mente: trata-se de uma acusação proferida em Setúbal contra uma arguida que reside na Dinamarca e que, para além do mais, não entende a língua portuguesa, nem dispunha, à data, de mandatário constituído em Portugal.
6ª Circunstâncias várias que militam no sentido de o interessado carecer de prazo mais dilatado que o normal para a preparação da sua defesa.
7ª E que determinam a inconstitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 287º, nº 1, 104º e 4º do Código de Processo Penal no sentido de se excluir a possibilidade de aplicação da dilação a um arguido estrangeiro sem advogado constituído em Portugal, por violação dos princípios consagrados nos artigos 13º, 32º, nº 1, e 20º, nºs. 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
8ª A interpretação fixada pelo douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº
2/96 tem na sua base casos de notificação feitas entre duas comarcas diferentes, dentro do território português, não podendo a sua doutrina ser aplicada a situações que não se enquadrem na sua ratio.
9ª A interpretação conjugada dos artigos 287º, nº 1, 104º e 4º do Código de Processo Penal, no sentido de excluir a possibilidade de aplicação da dilação a um arguido estrangeiro sem advogado constituído em Portugal, constitui, salvo melhor entendimento, uma violação flagrante do princípio da igualdade estatuído no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual situações diferentes merecem tratamento diferente, violando ainda as garantias de defesa do arguido, estabelecias no artigo 32º, nº 1, da Lei Fundamental, e o princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos nºs. 1 e 2 do artigo 20º do mesmo corpo de leis. O arguido residente no estrangeiro não está em situação de igualdade em relação ao residente em Portugal, ainda para mais não conhecendo a língua portuguesa e não dispondo de advogado constituído cá, que rápida e diligentemente entre em acção para proceder à defesa do seu cliente. O residente no estrangeiro, numa situação destas, não consegue requerer a abertura de instrução no prazo máximo de vinte dias.
10ª Pelo que a dilação é uma garantia imprescindível do due process of law, quando são acusados estrangeiros que não têm advogado constituído na jurisdição pela qual corre o processo.
11ª De facto, ponderados os valores em causa no processo civil e no processo penal, carece de sentido que um réu dinamarquês, em processo civil, possa dispor da dilação de trinta dias, porque é citado no estrangeiro, e que um arguido da mesma nacionalidade, em processo penal, não disponha da mesma possibilidade para reagir à acusação.'
Por sua vez, em contra-alegações, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu assim:
'1 – Não pode inferir-se da Lei Fundamental a necessária vigência de prazos dilatórios no âmbito do processo criminal, não podendo operar-se uma apriorística comparação de regimes com determinados actos a praticar em processo civil, dada a substancial diferença de fisionomias entre tais processos e a existência de ónus e cominações específicas para a actuação das partes no processo civil.
2 – Não é manifestamente exíguo o prazo de 20 dias para apresentação de um sucinto requerimento de abertura de instrução, por parte da arguida, a residir em país da EU, onde foi pessoalmente notificada da acusação.
3 – Pelo que a interpretação normativa questionada não viola os princípios da igualdade e das garantias de defesa.
4 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Cumpre decidir.
II
1. - O objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade é delimitado à interpretação conjugada das normas dos artigos 287º, nº 1, 104º e 4º do Código de Processo Penal, no sentido de excluir a possibilidade da aplicação da dilação a um arguido estrangeiro sem advogado constituído em Portugal, por alegada violação dos princípios consagrados nos artigos 13º, 32º, nº 1, e 20º, nºs. 1 e 2, da Constituição da República.
De acordo com a primeira das normas convocadas, e nos termos da sua parte inicial, a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a partir da notificação da acusação ou do arquivamento, contagem feita em conformidade com o disposto na lei processual civil, nos precisos dizeres do nº 1 do artigo 104º – que, de resto, se compagina com o preceituado no artigo 4º do mesmo texto de lei, nos termos do qual, nos casos omissos, se as disposições do Código Penal não forem aplicáveis por via analógica, são de observar as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal, aplicando-se, na sua falta, os princípios gerais do processo penal.
Com efeito, o legislador processual civil tem-se preocupado com o regime de comunicação do actos processuais, nomeadamente quando realizados à distância, no entendimento que aí reside uma das principais causas da morosidade processual.
Não estando ora em causa a apreciação das medidas mais recentemente adoptadas nesta área, ponto é que a sua aplicação no processo penal deixe intocados os direitos e garantias dos intervenientes, mormente no que respeita aos arguidos e à organização das respectivas defesas. Como é óbvio, os valores de interesse público que apontam para a efectivação da garantia do bom andamento procedimental, a culminar em prazo razoável, não podem colidir ou, sequer, desvalorizar a consagração de um processo equitativo e justo.
O Supremo Tribunal de Justiça, em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437º e seguintes do Código de Processo Penal, considerando a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos, abordou a dilação em termos que se reterão em parte (cfr. acórdão nº 2/96, publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Janeiro de 1996).
Aí se escreveu, nomeadamente:
'[...] o legislador [...] não quis acolher o expediente da prorrogação do prazo, consagrado na lei de processo civil (artigos 145º, nºs. 5 e 6). Se fosse essa a sua vontade, tê-lo-ia dito, pois não ignorava certamente que o referido artigo
145º previa o justo impedimento (nº 4) ao lado da prorrogação do prazo, mediante o pagamento de multa (nºs. 5 e 6). A omissão de qualquer referência à prorrogação (contrariamente ao que sucede com a contagem dos prazos – artigo
104º, nº 1, do Código de Processo Penal) não pode interpretar-se senão no sentido da sua deliberada exclusão. E é compreensível a diferentes orientação do novo Código de Processo Penal, porquanto o expediente da prorrogação do prazo, já em si discutível no domínio do processo civil, e só aí admitido por concessão a razões de ordem pragmática, não é compatível, em rigor, com as exigências de celeridade processual, requerida não apenas pelo valor da liberdade do arguido, mas também pela própria eficácia do sistema penal.
É patente no novo regime processual penal – em todo ele – uma preocupação flagrante de celeridade, porventura obsessiva num ou noutro ponto, no intuito de dar um novo rumo «às coisas», procurando, do mesmo passo, afastar o estigma da morosidade quer persegue a justiça, por vezes injustamente porque sem culpa sua e com o sacrifício de muitos que a servem. E muitos arestos do mesmo alto tribunal se seguiram, todos de igual pendor. Citam-se, a título meramente exemplificativo, ano de 1989, os de 15 de Março, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 385, p. 527, de 5 de Abril, in Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, t. 2, p. 8, de 10 de Maio, in Boletim do Ministério da Justiça, nºs. 387, p. 293, 479, de 14 de Junho, no processo nº 40 092, de 29 de Dezembro, no processo nº 40 298, de 20 de Dezembro, no processo nº 40 562, ano de 1990, de 14 de Março, no processo nº 40 539, de 22 de Março, no processo nº 40 725, e de 11 de Julho, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 399, p.
422.'
O acórdão parcialmente transcrito, após citar doutrina em que se apoia, conclui pela inexistência de prazos dilatórios, 'mesmo em benefício de arguidos residentes em comarca diversa daquela onde pendam os respectivos processos': o novo Código de Processo Penal não prevê nem admite o benefício de prazos dilatórios, para essa solução apontando as linhas de força consubstanciadas na 'modernidade', 'celeridade' e 'autonomia' que, na tese do aresto, reforçam a conclusão alcançada.
É certo que, como observa a recorrente a dado passo, não se trata, in casu, de 'uma acusação proferida em Matosinhos contra um arguido que reside na Maia, mas sim de uma acusação proferida em Setúbal contra uma arguida que reside na Dinamarca'.
A observação, reforçada pela nota de que a recorrente é súbdita dinamarquesa e foi notificada em 'língua que não conhecia', não podendo, consequentemente, compreender a acusação contra ela formulada, vale o que vale se se atentar na matéria de facto dada por provada, a este respeito, pelas instâncias (para além da assistência que o defensor oficioso é suposto ter prestado) e que o acórdão da Relação assim enuncia:
'1- A arguida A, em todos os actos processuais em que interveio, nomeadamente, no momento da apresentação da queixa crime e no da realização dos autos de retractação e de interrogatório de arguido, juntos a fls. 21 a 25, sempre se expressou em língua portuguesa, de forma pormenorizada e minuciosa;
2- portanto, pode afirmar-se, sem qualquer hesitação, que a mesma tem perfeito conhecimento de português;
3- assim e logicamente, a sua notificação, no âmbito destes autos deveria ser efectuada em português e não em qualquer outro idioma;
4- o prazo para o requerimento de abertura da instrução é o prazo peremptório de vinte dias, estipulado na alínea a), do nº 1 do art. 287º do CPP, sem qualquer margem para dúvidas;
5- a arguida foi pessoalmente notificada do requerimento acusatório em 17.11.99, conforme fls. 95 verso, devendo ter requerido a abertura da instrução até
7.12.99.
6- só o fez em 21.12.99, não podendo deixar e concluir-se que o requerimento da abertura de instrução é intempestivo.'
2. - Na concreta problemática resultante do âmbito do recurso não está propriamente em discussão a existência ou inexistência de dilação, mas sim a suficiência ou insuficiência do prazo legalmente previsto na lei processual penal, avaliada em duas vertentes, a do hipotético inadequado conhecimento da língua portuguesa, a representar eventual contrariedade na actuação do sujeito processual, e a da razoabilidade do prazo, em si mesmo considerado, para o requerimento de abertura de instrução.
Ora, poder-se-ia dizer, perante o circunstancialismo fáctico subjacente, que estaria em causa a apreciação da constitucionalidade do decidido, no concreto controlo exercido quanto à legalidade da norma fundamentante, o que se recortaria como amparo, figura não consagrada entre nós, constitucional e legalmente. Ao Tribunal Constitucional, como é incontroverso, cabe apreciar a constitucionalidade de normas jurídicas aplicadas pelos tribunais nas suas decisões, mas não a mera inconstitucionalidade de uma decisão judicial, em si mesma considerada (cfr., por todos, o acórdão nº 20/96, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Maio de 1996).
Mas não se crê ser essa a perspectiva correcta.
O que, na verdade, se pretende retirar da factualidade descrita, e convoca a uma projecção normativa em sindicância, é a conclusão segundo a qual um prazo de vinte dias para requerer a abertura de instrução, a contar da notificação da cessação, não é, hoje, representável como desrazoável, de modo a significar uma diminuição inadmissível dos direitos de defesa e da tutela jurisdicional do notificado, no pressuposto, aferido igualmente pela razoabilidade, de uma conduta diligente e zelosa por parte deste (cfr., a este propósito, em caso dotado de afinidade com o presente o acórdão nº 632/99, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Março de 2000).
Por outras palavras, o prazo de vinte dias para requerer a abertura da instrução – para mais, nos termos simples utilizados (requereu-se a abertura da instrução por não se concordar com a acusação, acrescentando-se que não se compreende esta por a arguida não falar português e ter agido em conformidade com as instruções que a Polícia de Cascais lhe deu) – mostra-se adequado à prática de tal acto processual, revelando-se manifestamente excessivos os pretendidos cinquenta dias para a sua realização, a ocorrer no espaço da União Europeia. Acresce que, não se surpreende desrespeito ao princípio da igualdade, na medida em que se pretende defender que o arguido a residir no estrangeiro não se encontra em situação de igualdade relativamente ao residente em território português. Observou-se, a este propósito, não subsistirem actualmente razões que subentendam um tratamento igual de situações desiguais, de modo a justificar censura em sede do princípio constitucional da igualdade.
Identicamente, e agora no tocante ao princípio do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, conjugadamente com as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, se poderia entender que o prazo estabelecido pelo legislador não contempla, como devia, o circunstancialismo resultante de uma acrescida dificuldade ditada por razões que se prendem em razão da comunicação do acto ou da deslocação das partes ou sujeitos processuais.
A objecção, no entanto, também não colhe, pois, como se deixou dito, em sede não sindicável neste lugar, não se recorta um deficiente conhecimento da língua portuguesa com eventual reflexo na organização da defesa da arguida.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 12 de Julho de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida