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Processo n.º 157/02
2ª SecçãoRelator – Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 14 de Maio de 1992, J..., melhor identificado nos autos, intentou, no Tribunal Judicial de Coruche, acção com processo especial de restituição de posse contra A ... e mulher M.... Por sentença de 1 de Julho de 1998, veio a acção a ser julgada procedente. Recorreram os réus para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 11 de Abril de 2000, negou provimento ao recurso. Interposto novo recurso, desta feita para o Supremo Tribunal de Justiça, este, por Acórdão de 23 de Janeiro de 2001, julgou extinta a instância por o autor ter alegado, na petição inicial, ter celebrado um contrato de arrendamento rural e não ter conseguido provar tal alegação, como impunha o n.º 5 do artigo 35º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro. No requerimento de arguição de nulidade de tal decisão, por omissão de pronúncia quanto ao regime da nulidade de que padecia o contrato controvertido – questão que fora discutida na primeira e na segunda instância –, e, nas palavras do autor, por 'prolação de uma decisão-surpresa, violadora dos princípios da confiança e do contraditório e por não ter havido «recurso» ao mecanismo legalmente previsto nos artigos 732º-A e seguintes do C.P.C., sendo certo que ao recorrido era impossível saber ou detectar que VEx.ªs iriam decidir em sentido contraditório ao que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu por douto acórdão de
6/10/98, publicado na C.J., Acórdãos do STJ, Tomo III, págs. 51 a 55', veio o autor acrescentar o seguinte:
'A interpretação por VEx.ªs defendida afigura-se até viciada de inconstitucionalidade por violação do princípio constitucional da confiança, consignado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.' Por Acórdão de 13 de Dezembro de 2001 foi totalmente indeferida a arguição de nulidades escrevendo-se, no que ora importa:
'Não se vê, assim, que haja qualquer violação das normas dos artigos 732, 716 e
66 [sic, por 666º] a 670 do C.P.C., nem - muito menos - que a interpretação seguida pelo douto acórdão esteja ‘viciada por violação do princípio constitucional da confiança, consignado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa’, como também propugna o arguente.' Inconformado, pretendeu o autor interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas a) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 732º-A do Código de Processo Civil, pela forma como foi interpretada neste Supremo Tribunal de Justiça, por se entender que violou os princípios da confiança, proporcionalidade e igualdade decorrentes da previsão do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.' O Exm.º Conselheiro-relator do Supremo Tribunal de Justiça não lhe admitiu o recurso, 'por inverificação de qualquer dos dois fundamentos invocados e mesmo de outro qualquer dos taxativamente previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Tribunal Constitucional.' Trouxe então o autor a presente reclamação ao Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'1. O reclamante entende que no Supremo Tribunal de Justiça foi violado o disposto no artigo 2º da CRP, em particular os princípios que emanam de tal disposição da lei Suprema.
2. Isto porque foi proferido douto Acórdão no STJ no qual foram, por interpretação não conforme com os ditames constitucionais, postergados os princípios constitucionais invocados na aplicação do artigo 732º do C.P.C.
3. Não se pode aceitar que a discricionariedade informe a aplicação do citado artigo 732º do C.P.C.
4. Logicamente só com a prolação de tal decisão no STJ se colocou a questão da inconstitucionalidade na interpretação e aplicação daquela norma, sendo impensável ou sequer equacionável que se colocasse antes.
5. Confrontado com a mesma, o reclamante de imediato reagiu, arguindo a nulidade e invocando a inconstitucionalidade de tal interpretação.
6. Proferida decisão final e irrecorrível no foro cível o ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional que não foi admitido, o que não se afigura correcto.' Ouvido o Ministério Público, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
'A presente reclamação carece de qualquer fundamento sério e razoável, já que inexistem manifestamente os pressupostos dos tipos de recurso de fiscalização concreta interpostos pelo reclamante: a decisão recorrida não recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação de qualquer norma, não se vislumbrando, por outro lado, qualquer questão de ilegalidade qualificada, susceptível de cognição por este Tribunal.' Cumpre decidir. II. Fundamentos Como é referido pelo Ministério Público, a presente reclamação carece de fundamento sério e razoável. Não importa, para isso, apurar se ao reclamante assiste razão quando invoca que a decisão recorrida foi uma decisão-surpresa face a anterior jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (o caso do acórdão de 6 de Outubro de 1998 onde, embora com um voto de vencido, se julgou que a falta de redução a escrito de um contrato de arrendamento rural, anterior ao Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, constitui uma anulabilidade atípica – não oficiosamente declarável mas invocável a todo o tempo – e ao qual só é aplicável o regime previsto no n.º 5 do artigo 35º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, quando, tendo havido contrato verbal anterior, qualquer das partes tenha posteriormente exigido à outra a sua redacção a escrito).
É que esta circunstância – que poderia ser relevante para efeitos da dispensa do
ónus de suscitação da inconstitucionalidade de uma norma aplicada na decisão recorrida, em recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro – não é relevante para os dois tipos de recurso que se pretendeu interpor. Não o é, para o recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do referido artigo, porque não se trata de um recurso que exija, como seu requisito, a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, nem sequer tendo havido, na decisão recorrida, qualquer recusa de aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade. Mas não é tal circunstância relevante, também, no presente caso, para o recurso previsto na alínea f) do n.º 1 do referido artigo 70º, porque não houve aplicação de qualquer norma que tenha sido impugnada, nem antes, nem depois da decisão de fundo, por desconforme com lei com valor reforçado ou estatuto de região autónoma (não sendo, manifestamente, caso de aplicação de normas constantes de diploma regional, não está em causa a sua desconformidade com lei geral da República). Não merece qualquer reparo, portanto, o despacho do Exm.º Conselheiro-relator que, no Supremo Tribunal de Justiça, considerou não estar verificado qualquer dos dois fundamentos invocados para o recurso: quanto a recurso previsto na referida alínea f), não tendo havido aplicação de norma desconforme com norma paramétrica infra-constitucional, não há que cuidar de uma qualquer ilegalidade do artigo 732º-A do Código de Processo Civil (como pretendido no requerimento de interposição de recurso), ou do artigo 732º do Código de Processo Civil (como pretendido na reclamação), sendo certo, ainda para mais, que o primeiro não foi aplicado na decisão recorrida e o (n.º 1 do) segundo foi implicitamente aplicado na decisão de 13 de Dezembro de 2001, mas não na de 23 de Janeiro desse ano. Isto, sendo certo, por outro lado, que, como se disse, estar normas também não foram impugnadas, nem antes, nem depois da decisão de fundo, por desconformidade com lei com valor reforçado ou estatuto de região autónoma. No que diz respeito ao recurso previsto na citada alínea a), não tendo havido na decisão recorrida recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade – seja a do artigo 732º, que implicitamente foi aplicada na última decisão em que o podia ter sido (a de 13 de Dezembro de 2001) seja a do artigo 732º-A, que poderia ter sido aplicada no momento da prolação da decisão de 23 de Janeiro de 2001 (mas não foi) – igualmente faltam os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Tendo-se deixado em aberto a questão de saber se a decisão do Supremo Tribunal de Justiça proferida em 23 de Janeiro de 2001 se poderia considerar como
'decisão-surpresa' 'para efeitos de dispensa do ónus de suscitação da inconstitucionalidade de uma norma durante o processo' (relevante face à alínea b) do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), importa apenas deixar ainda clara a irrelevância de uma eventual convolação do recurso de constitucionalidade pretendido interpor com expressa invocação da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, em recurso interposto ao abrigo da referida alínea b). Na verdade, ainda que (a exemplo do que admitiu nos Acórdãos deste Tribunal n.º
277/92 e 351/92, publicados no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992 e de 23 de Março de 1993) se pudesse convolar o recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto numa das alíneas do n.º 1 do artigo 70º num outro recurso de constitucionalidade, sempre teriam de se verificar os requisitos próprios deste. E, no caso da alínea b) do n.º 1 daquele normativo, isso supõe que na decisão recorrida se fizesse aplicação de uma norma que tivesse sido constitucionalmente impugnada durante o processo pelo recorrente. Ora, a verdade é que a norma que é referida no requerimento do recurso de constitucionalidade – a do artigo 732º-A do Código de Processo Civil – não foi aplicada na decisão recorrida, sendo certo que é nesse requerimento que o recorrente delimita o objecto do recurso (cfr., vg, os Acórdãos n.º 20/97 e
243/97, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 1 de Março de 1997 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 36, 1997, pp.
609-614). Faltando, pois, desde logo, esse requisito, não importa que a decisão recorrida se configure ou não como 'decisão-surpresa' para efeitos de dispensa de arguição de inconstitucionalidade durante o processo. Pode, pois, concordar-se com a decisão que, no Supremo Tribunal de Justiça, não só considerou não estarem verificados os requisitos dos recursos de constitucionalidade e de legalidade interpostos, como de 'outro qualquer dos taxativamente previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Tribunal Constitucional.' III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se desatender a presente reclamação e condenar o reclamante nas custas, sendo a taxa de justiça fixada em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 24 de Abril de 2002. Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa