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Processo nº 321/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Subdirector-Geral da Direcção-Geral do Património, de 3 de Abril de 1998 – proferido ao abrigo de competência delegada e subdelegada pelo Despacho nº
44/DG/96, de 10 de Dezembro de 1996, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1997 – que, sob a invocação do disposto no artigo 8º do Decreto-Lei nº 23 465, de 18 de Janeiro de 1934, determinou a desocupação da casa do Estado que usufruía, sob pena de ter lugar o respectivo despejo administrativo.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TACL), por decisão de 5 de Janeiro de 2000, negou provimento ao recurso, o que levou o interessado a recorrer para a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tendo, nas respectivas alegações, suscitado a questão da inconstitucionalidade daquela norma, por alegada violação do nº. 2 do artigo
34º e do artigo 65º, ambos da Constituição da República (CR).
Aquele Tribunal, no entanto, por acórdão de 29 de Março de 2001, viria a negar provimento ao recurso, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Inconformado, A recorreu desse aresto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do citado artigo 8º que entende violar os aludidos preceitos constitucionais.
Recebido o recurso, em sede de alegações pronunciaram-se recorrente e recorrido.
Formulou o primeiro as seguintes conclusões:
'1- Não podem, razões de índole quantitativa e economicista, afrontar um direito de cariz fundamental, como o é, o direito à habitação.
2- Reforça aquela premissa, a inviolabilidade do domicilio, consagrada no artº.
34 nº 2 da CRP.
3- Qualquer norma, que viole o esqueleto de princípios que suportam a estrutura dos direitos mais básicos da nossa organização judiciária e social, e nomeadamente do direito à habitação, destabiliza o projecto de implementação de uma política habitaciona1, estável, coerente, equitativa e não discricionária, e
é incapaz de se integrar no modelo jurídico que é hoje preconizado.
4- O artº. 8° do D.L. n.º. 23465 de 18/01/1934, é uma norma sexagenária e autista, que limita de forma perigosa a subordinação pacífica e necessária, que o artº. 266° n° 2 alínea e) impõe, e que inflama, implacavelmente, uma já, de per si, precária situação, potenciando a existência de situações jurídicas extremamente voláteis.
5- Tal volatilidade é inequivocamente originada na violação dos citados preceitos constitucionais, o artº. 65° e o artº. 34° n° 2.
6- A defesa de uma norma que transforma precariedade em agressão, que legitima a desconsideração dos direitos do cidadão é imprudente e inconstitucional.
7- A cessão a título precário veicula o despejo administrativo, não na mera avaliação dos pressupostos e seu decretamento, mas na sua execução.
8- O princípio da reserva da função jurisdicional, proíbe que seja a administração por sua decisão a promover a entrada das autoridades policiais ou administrativas no domicílio dos cidadãos.
9- O artº. 8° não respeita a lei. Potencia a agressão dos direitos, merece a adequada punição, a materializar-se no juízo de inconstitucionalidade que já comporta, por violação dos artºs. 34°, nº 2, 65° e 202°, todos da Constituição da República Portuguesa.'
Por sua vez, o Director-Geral do Património concluiu do seguinte modo as suas contra-alegações:
'1. O art. 8° do Dec.-Lei n.o 23456, de 18/01/1934, não prevê relações locatícias, sendo irrelevante, para efeitos da apreciação da constitucionalidade, que possam existir outros institutos jurídicos (com outras formas de protecção jurídica) alheios à norma objecto de fiscalização;
2. O art. 65° da CRP é uma norma programática e não exequível por si mesma, exigindo uma intervenção da lei e de decisões políticas e administrativas;
3. A eficácia jurídico-constitucional do art. 65° da CRP limita-se à obrigação do Estado em definir e promover políticas de urbanização e habitação e não à atribuição dos seus imóveis aos cidadãos;
4. O art. 65° da CRP não impõe ao Estado a obrigação de não executar o despejo dos seus imóveis precária e ilegalmente ocupados por alguns particulares, não estando, por isso, o art. 8° do Dec.-Lei nº. 23465, de 18/01/1934, ferido de inconstitucionalidade;
5. É duvidoso que o alcance da inviolabilidade do domicílio abranja residentes ou domiciliados sem qualquer título legitimador do domicílio;
6. O regime de direito privado só se aplicará aos bens do domínio privado do Estado caso o interesse público não seja posto em cheque com tal aplicação - Vide art. 1304°, in fine, do Código Civil;
7. O art. 8° do Dec.-Lei n.o 23 465 é uma norma especial destinada ao tratamento de um acto de direito público, incluindo-se no que o Prof. Doutor Marcello Caetano denominou 'regime administrativo de direito privado';
8. O acto que ordena a entrega dos bens previsto no mencionado art. 8° não é um acto jurisdicional, mas sim administrativo, pois não visa dirimir um conflito de interesses, antes visando prosseguir os fins de interesse público que ao Estado incumbe realizar;
9. Inserindo-se tal acto na função administrativa, o mesmo deverá ser declarado pela Administração Pública e não pelos Tribunais, não existindo, assim, qualquer usurpação de poder;
10. O acto consagrado na norma ora objecto de fiscalização goza do chamado privilégio da execução prévia, isto é, faculdade que assiste à Administração Pública em executar as suas decisões antes da discussão nos Tribunais, atendendo
à prevalência de certos interesses de natureza pública, podendo sempre a sua legalidade ser aferida 'a posteriori', mediante os recursos contenciosos previstos na lei.
11. Assim sendo, 'não se vê que o despejo forçado sem decisão anterior de um tribunal, baseado na lei que manda atender à prevalência de certos interesses de natureza pública sobre os privados ofenda alguns dos princípios decorrentes da Constituição, designadamente o art. 34°, nº. 2 (direito à protecção do domicílio)' (Parecer da PGR n.o 38/91 );
12.Por todo o exposto, o art. 8° do Dec.-Lei n.o 23465, de 18/01/1934, não se encontra ferido de qualquer inconstitucionalidade.'
Cumpre decidir.
II
1.1. - Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº
23 465, de 18 de Janeiro de 1934, do seguinte teor:
'As pessoas colectivas ou os particulares que tenham para seu uso bens do Estado, cedidos a título precário, e ainda os que ocuparem sem título são obrigados a entregá-los dentro do prazo de sessenta dias a contar do aviso postal que receberem da repartição competente, sob pena de serem despejadas imediatamente pela autoridade administrativa ou policial, sem direito a qualquer indemnização.'
O preceito insere-se em diploma que criou uma disciplina específica, subtraída ao regime geral de direito privado, destinada a ser observada sempre que o Estado ceda um qualquer prédio, rústico ou urbano, na consecução de um fim de interesse público, de modo a que, como se exprime a nota preambular respectiva, as relações entre os interessados não contrariem 'as necessidades da administração'.
O referido texto legal criou um regime assente na livre denúncia, por parte do Estado, do arrendamento de bens imóveis pertencentes ao seu domínio privado, permitindo-lhe, se isso se lhe representasse conveniente,
'despedir os arrendatários dos seus prédios, rústicos e urbanos ou mistos, antes de o arrendamento acabar', denunciando o contrato, para esse efeito e sob a invocação dos seus interesses, para o fim do prazo ou mesmo antes desse momento
(cfr. o artigo 1º do citado diploma), direito esse que lhe assistia mesmo no caso de os anteriores contratos terem sido celebrados preteritamente por outros senhorios (artigo 7º).
Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, passou a fazer parte do regime geral do arrendamento o princípio segundo o qual, em regra, o senhorio não goza do direito de denúncia (artigo 1095º), sendo certo que, de qualquer modo, os arrendamentos de prédios do domínio privado do Estado, feitos a terceiros, sempre constituem excepção ao arrendamento urbano comum, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 1083º do Código Civil, como veio a ser reafirmado na alínea a) do nº 2 do artigo 5º do Regime do Arrendamento Urbano
(R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
A disciplina do texto de 1934 foi, no entanto, revogada
(implicitamente) pelo Decreto nº 139-A/79, de 24 de Dezembro, que pretendeu aglutinar num texto único a legislação relativa ao arrendamento de bens imóveis do domínio privado do Estado – que se encontrava dispersa e desactualizada – com a finalidade de assegurar, como se colhe da leitura da parte final da respectiva nota preambular, 'um justo equilíbrio entre a indispensável defesa dos interesses do Estado e a protecção que deve ser garantida aos dos particulares seus arrendatários' (na verdade, o diploma surgiu inicialmente como decreto regulamentar, lapso que viria a ser objecto de rectificação, publicada na I Série do Jornal Oficial de 23 de Julho de 1980, passando a constituir o Decreto-Lei nº 507-A/79, de 24 de Dezembro).
No domínio do texto de 1934 considerava-se que o Estado, ao dar de arrendamento um qualquer bem imóvel do seu domínio privado, operava transitoriamente, em nome das necessidades e dos interesses sentidos da Administração, não podendo, em consequência, sujeitar-se às soluções da lei civil estabelecidas para as relações entre senhorios e arrendatários, pelo que, nessa lógica, sempre existiria a possibilidade de livre denúncia do contrato de arrendamento por parte do Estado.
Como quer que seja, a norma do artigo 8º, ao dispor sobre cedência dos bens do Estado a título precário (ou ocupação não titulada dos mesmos), assumiu-se autonomamente em relação aos demais preceitos do diploma
(artigos 1º a 7º) e não foi 'tocada' pelo Decreto-Lei nº 507-A/79, firmando-se o entendimento da sua vigência (com interesse, a este respeito, cfr. os Pareceres da Procuradoria-Geral da República nºs. 132/82, 30/85, 38/91 e 61/96, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Junho de 1984, 14 de Agosto de 1985,
28 de Abril de 1995 e 9 de Dezembro de 1997, respectivamente).
1.2. - Segundo o recorrente, e em síntese, a norma questionada enferma de diversos vícios de inconstitucionalidade, ao permitir a realização de um despejo administrativo, subtraído, como tal, à intervenção jurisdicional, e, bem assim, ao ofender a inviolabilidade do domicílio, com repercussão na política habitacional que ao Estado incumbe constitucionalmente executar.
Não é este, no entanto, o entendimento defendido pela entidade recorrida que, não só não surpreende qualquer dos vícios imputados à norma pelo recorrente, como a não enquadra na área das relações locatícias, concebida que está para os bens do Estado cedidos a título precário ou ocupados sem título: neste último caso, deparam-se-nos situações 'verdadeiramente despidas de qualquer tutela jurídica'; na primeira das hipóteses, a cedência autorizada não investe o utente em situação jurídica constitutiva de direitos, não ficando a Administração adstrita a condutas típicas da relação locatícia quando esteja em jogo a realização de interesses públicos.
2.1. - A decisão recorrida, ao confirmar e manter a sentença da
1ª instância, aceitou como firme um determinado quadro fáctico que interessa, neste momento, parcialmente reter para melhor inteligibilidade da questão.
Assim, teve-se presente que, por termo da entrega datado de 1 de Janeiro de 1962, o pai do ora recorrente, na qualidade de 2º Sargento da Companhia de Engenhos da G.N.R., foi 'autorizado a habitar', 'no interesse exclusivo do Estado', a moradia nº 40 do Aquartelamento de Alcântara-Cavalaria, afecta ao Comando-Geral da G.N.R., 'sendo a entrega feita a título precário', mediante o pagamento de uma 'renda mensal'.
De acordo com a 'condição segunda' do termo de entrega, o segundo outorgante obrigou-se 'a dar inteiro e fiel cumprimento às disposições contidas nas instruções publicadas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública no Diário do Governo número trezentos e cinco, 2ª série, de trinta e um de Dezembro de mil novecentos e cinquenta e seis, de que tem inteiro e perfeito conhecimento e, bem assim, a entregar a moradia no estado em que se encontrava à data deste termo'.
Como é evidente, e decorre da natureza do objecto do presente recurso e dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, não compete a este Tribunal determinar qual a interpretação mais correcta e adequada das normas de direito infraconstitucional em análise, mas apenas ajuizar se a concreta interpretação normativa – que, no caso, foi afastada com fundamento na sua inconstitucionalidade – afronta ou não a lei fundamental.
Ora, partindo desta premissa, verifica-se que a decisão recorrida concluiu no sentido da inexistência de um contrato de arrendamento, constatando uma cedência a título precário, livremente revogável pela Administração.
Escreveu-se nela, a certo ponto:
'Subjacente ao acto administrativo contenciosamente impugnado existe tão-só uma cedência precária, a título oneroso, no interesse do Estado, de um imóvel urbano pertencente ao mesmo, efectuada no cumprimento do art.º 95.º do DL n.º 33905, de
2/9/44 e sujeita à observância, designadamente, do n.º 20 das instruções aprovadas por despacho do Subsecretário de Estado do Tesouro, de 14/12/56, in D.G. n.º 305, de 31/12/56. Conforme bem decidiu a sentença recorrida, tal cedência não configura, assim, um contrato de arrendamento, improcedendo, assim, todas as conclusões do recurso nele pressupostas. Diz, a propósito, a sentença recorrida com a qual se concorda:
‘Conforme se vê do termo de entrega indicado na alínea A) dos factos, a moradia em questão, afecta ao Comando-Geral da GNR, é atribuída, no interesse exclusivo do Estado, ao 2.º Sargento, A, do Segundo Esquadrão do Regimento de Cavalaria da GNR, para cumprimento do art.º 95.º do DL n.º 33.905, de 02.09.44, nas seguintes condições: Primeira- A entrega é feita a título precário mediante o pagamento da renda mensal de 44$00 (...). Segunda- O segundo outorgante obriga-se a dar inteiro e fiel cumprimento às disposições contidas nas instruções publicadas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública no Diário do Governo n.º 305, 2.ª Série, de 31.12.56, de que tem inteiro e perfeito conhecimento, e, bem assim, a entregar a moradia no estado em que se encontrava à data deste termo. De acordo com o art.º 95.º do DL n.º 33905, de 02.09.44 'Os oficiais, sargentos e praças terão residência obrigatória nos quartéis ou em moradias para tal fim destinadas’ . Assim, por imposição deste preceito o pai do recorrente tinha residência obrigatória no quartel da GNR onde servia, sendo-lhe atribuída, para habitar, uma moradia afecta àquele Regimento, no interesse exclusivo do Estado e a título precário, como expressamente prevê o Termo de Entrega. Assim sendo, é aplicável à situação dos autos a previsão do art.º 8.º do DL n.º
23 465 e as Instruções, aprovadas por despacho do Subsecretário de Estado do Tesouro (publicadas no D.G. n.º 305, de 31.12.56), nomeadamente o seu n.º 20, nos termos do qual 'Os beneficiários das casas de Estado atribuídas nos termos destas instruções obrigam-se a despejá-las no prazo de trinta dias, quando superiormente lhe for determinado, por motivo de conveniência de serviço, exoneração, aposentação ou falecimento do titular'. Assim, nos termos daqueles preceitos tem o Estado o direito de exigir a desocupação dos bens cedidos a título precário, sendo o beneficiário obrigado a entregá-los no prazo previsto no citado n.º 20. Por outro lado, é de entender que este regime ( de cedência onerosa a título precário) se mantém em vigor, por não se encontrar previsto pelo DL n.º
507-Al79, de 24-12, e pelo Dec. Regulamentar n.º 56/79, de 22/9, que revogaram o regime de arrendamento de prédios previstos nos art°s 1.º a 7.º do DL n.º 23.465
(neste sentido Parecer n.º 61/96 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, DR, II Série, n.º 283, de 09.12.97). Nestes termos, ao contrário do que pretende o recorrente não estamos perante um contrato de arrendamento, mas perante uma cedência a título precário, livremente revogável pela Administração (neste sentido Ac. do STA de 18.11.97, acima citado
). Aliás, estando-se perante uma cedência precária, esta é insusceptível pela sua própria natureza, e de acordo com os ditames da boa fé, de criar no beneficiário quaisquer direitos (fundamentais ou não), ou expectativas com carácter de definitividade, a qual se encontra afastada ab initio.'
2.2. - Infere-se do exposto que o tribunal a quo situou a norma do artigo 8º no âmbito do chamado regime administrativo do domínio privado do Estado, próxima da legislação sobre 'casas de função', a implicar uma cessão temporária de bens desse domínio que logo cessará quando a razão justificativa da cedência deixe de subsistir, permitindo à Administração que ordene a desocupação dos bens cedidos a título precário (ou ocupados sem título algum).
Assim, a atribuição de uma casa a um administrado, à sombra daquela norma, cria uma situação jurídica a todo o tempo modificável pela Administração: como acto precário, tudo se passa, na prática, como se esta, na prossecução dos interesses que se propõe alcançar, não tivesse de considerar nenhuns poderes estranhos, ou seja, como se esses actos não fossem constitutivos
(cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., tomo I, Coimbra, 1973, pág. 457; J.M. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I. Lisboa, 1982, pág. 501).
A cedência a título precário, tal como se entendeu resultar da norma do artigo 8º e dada a sua conjugação com as 'Instruções sobre a atribuição de casas do Estado a funcionários e cálculo das respectivas rendas'
(publicadas no Diário do Governo, II Série, de 31 de Dezembro de 1956), foi, por conseguinte, justificada no âmbito da função administrativa do Estado, na perspectiva da satisfação de um determinado interesse público.
Assim, deixa de haver justificação quando esse interesse, por sua vez, não subsista mais, situações como a do falecimento do cidadão que esteve na origem da cedência, a sua aposentação, transferência, requisição, destacamento ou qualquer outra situação profissional que implique a deslocação do agente para outro serviço. Então, e no âmbito dos circunstancialismos procedimentais previstos, pode accionar-se a mecânica de desocupação, sem que seja de falar, ao contrário do que o recorrente defende, em
'intromissão' normativa inconstitucional – tendo presente o disposto no artigo
202º da Constituição – na área própria da função jurisdicional.
Surpreende-se nesta transitoriedade funcional, que ilumina a norma do artigo 8º, ausência de qualquer sentido vinculístico (cfr., a este propósito, J.A. Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª ed., Coimbra, 2002, pág. 161).
Ora, não obstante inegáveis semelhanças estruturais com a locação ou o comodato – consoante se trate de cessão onerosa ou gratuita, respectivamente – e sem prejuízo da transferência da coisa que a cessão origina e, bem assim, da constituição de poderes de uso e fruição, a verdade é que se está perante um acto juspublicisticamente regido e que a interpretação normativa dada pela decisão recorrida não intenta servir o interesse público da composição de conflitos de interesse, próprio da função jurisdicional. Não está em causa a comercialidade dos bens – como, no fundo, pretende o recorrente – nem ao órgão da Administração são cometidas funções de jurisdição, mas sim o poder de ceder, a título precário, bens do domínio privado do Estado, considerando a indispensabilidade ou necessidade dos bens para os fins a que estão institucionalmente afectados e o relevo e interesse social das actividades prosseguidas, bem como o poder de recuperar esses bens, desde que observado o formalismo estabelecido legalmente.
Como bem se ponderou no acórdão nº 568/98 deste Tribunal, publicado na II Série do Diário da República, de 25 de Novembro de
1999, ao pronunciar-se sobre a norma que prevê o despejo sumário ordenado pelas câmaras municipais, no âmbito do RGEU (artigo 165º, § 4º, do Decreto nº 38 382, de 7 de Agosto de 1951),o despejo administrativo aí previsto não visa a cessação do contrato de arrendamento, com a respectiva entrega do prédio livre e devoluto ao senhorio, pois trata de uma realidade que nada tem a ver com a existência de um conflito de interesses privados, pressuposto no despejo como meio de cessar o contrato de arrendamento.
O conteúdo do 'despejo administrativo' ordenado pelas câmaras municipais no exercício das suas competências – escreveu-se nesse aresto, na perspectiva do RGEU, em termos que se podem adaptar e transferir para o caso dos autos – 'consiste em não permitir a utilização do prédio para uma actividade diversa daquela determinada pela respectiva licença de utilização', não sendo seu objectivo uma desocupação do imóvel, em termos de se impedir a utilização ou a fracção pelos seus proprietários ali ocupantes, mas sim nos de sem pretender evitar uma utilização de forma desconforme com o respectivo licenciamento.
Adaptadamente, as considerações então expendidas têm inteiro cabimento no tratamento a conceder ao caso concreto.
3.1. - Convoca também o recorrente o disposto no artigo 65º da Constituição.
O 'direito à habitação' aí previsto foi já objecto de ponderação pelo Tribunal Constitucional, que o tem entendido na sua caracterização de direito fundamental de natureza social, como um direito a prestações, de conteúdo não determinável ao nível das opções constitucionais, a pressupor, antes, uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efectividade está dependente da 'reserva do possível', em termos políticos, económicos e sociais (assim, por exemplo, os acórdãos nºs. 130/92,
381/93, 60/99, 508/99, 649/99 e 29/2000, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992, 6 de Outubro de 1993, 30 de Março de 1999, 17 de Março, 24 de Fevereiro e 8 de Março de 2000, respectivamente).
O cidadão não é, por conseguinte, titular de um direito imediato e uma prestação efectiva, já que este direito não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo. O preceito constitucional, escreveu um autor, não consubstancia uma regra de imediata consecução, já que se limita a consagrar um princípio orientador de legislação ordinária e a meta para que deverá tender a acção do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais
(cfr. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª ed., Coimbra, 2001, pág.
177).
Assim, não só o direito à habitação não é susceptível de conferir, por si mesmo, um direito judicialmente exercitável, implicando a interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo – o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei, como se ponderou no citado acórdão nº 130/92 – como não é defensável alegar violação da norma do nº 1 do artigo 65º da Constituição, na medida em que se pretende convocar o disposto no artigo 17º do mesmo texto. Como no mesmo aresto se sublinhou, o direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica quer, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão, 'não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo'.
3.2. - De igual modo, não assiste razão ao recorrente quando invoca ofensa à inviolabilidade de domicílio, consagrada no nº 2 do artigo 34º da Constituição.
No entendimento que professa a garantia da inviolabilidade do domicílio não deve limitar-se à concepção civilística de residência habitual, antes, sob pena de 'permissividade arbitrária', há-de entender-se amplamente como 'espaço fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente, se desenvolve uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar', como se escreveu, em passagem que recupera, no acórdão deste Tribunal, nº 452/89, publicado no Diário da República, I Série, de 22 de Julho de 1989.
É, no entanto, evidente o abuso extrapolativo da transcrição, compreensível no contexto de buscas domiciliárias policiais a implicar introdução em cada de habitação de alguém (a norma em causa permitia a realização de buscas nos segmentos habitacionais dos grupos e caravanas de
'nómadas', em trânsito ou estacionadas, sem fazer depender essas buscas, na ausência de consentimento dos interessados, de determinação de autoridade judicial competente, nem as limitar ao período diurno).
Com efeito, os postulados são significativamente distintos, não se recortando qualquer 'permissividade arbitrária', a representar ofensa à inviolabilidade do domicílio, nem tão pouco violação da tipificação dos casos que justifiquem as restrições a esse princípio, quando se está perante a medida administrativa que a norma em sindicância prevê: não sendo fácil definir rigorosamente o objecto da inviolabilidade do domicílio, como reconhecem Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 213), o certo é que a protecção constitucional tem em vista assegurar a vontade ou o consentimento da pessoa como condição sine qua non da possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandato judicial, o que obviamente constitui problemática colocada em diferente plano.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 26 de Setembro de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida