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Processo n.º 809/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Na presente ação de acidente de trabalho, pendente no Tribunal de Trabalho de Setúbal, em 21/09/2012 foi proferido despacho a atualizar a pensão anual do sinistrado, recusando, para tanto, a aplicação do artigo 82.º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e do artigo 1.º, nº 1, al. c), inciso i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 59.º, n.º 1, al. f) da Constituição.
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional dessa decisão, nos termos da alínea a) do n.º1 do artigo 70.º e do n.º 3 do artigo 72.º, ambos da LTC.
Por seu turno, também a demandada Companhia de Seguros A. S.A. interpôs recurso do referido despacho para o Tribunal Constitucional.
3. Os recursos foram admitidos.
4. Convidada a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso, a Companhia de Seguros A. S.A. nada disse, sendo o recurso que interpôs julgado deserto.
5. Neste Tribunal, o recorrente Ministério Público produziu alegações, no sentido da confirmação do despacho recorrido, com a seguinte conclusão:
1. A norma do artigo 82.º, n .º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro em articulação com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), ponto i) do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, na parte em que impede a atualização de pensões por incapacidades inferiores a 30%, mas não remíveis nos termos do artigo 75.º, n.º 1, da mesma Lei, por serem superiores a seis vezes a retribuição mínima mensal garantida, em vigor no dia seguinte à data da alta, é inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
6. A questão colocada nos presentes autos prende-se com a limitação da atualização das pensões anuais por acidente de trabalho nos casos, como o dos autos, em que a incapacidade parcial permanente não atinge 30% e o seu montante ultrapassa o sextuplo da retribuição mínima mensal garantida no dia seguinte à data da alta.
Entendeu a decisão recorrida, com a concordância do Ministério Público nas alegações apresentadas neste Tribunal, que o impedimento à atualização da pensão anual fixada nos presentes autos, decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 82.º da Lei 98/2009, de 4 de setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho ou LAT) e no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), inciso i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, viola os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justa indemnização, consagrados nos artigos 13.º, 18.º, n.º 2 e 59.º, n.º 1, al. f) da Constituição.
7. A mesma questão sub judicio foi recentemente apreciada no Acórdão n.º 79/2013, desta 2ª seção (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Diz-se nesse aresto:
“A) A questão da atualização das pensões não remíveis
4. O Fundo de Acidentes de Trabalho foi criado pelo Decreto-Lei n.º 142/99, 30 de abril, em execução do disposto na Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, que aprovou o anterior regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. No preâmbulo daquele decreto-lei pode ler-se que, “relativamente ao regime de atualização de pensões, o presente diploma prevê a atualização nos mesmos termos do regime geral da segurança social”. E, na verdade, o artigo 39.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97 cometia a um fundo dotado de autonomia administrativa e financeira, a criar por lei, no âmbito dos acidentes de trabalho, a “responsabilidade” pelas atualizações de pensões devidas por incapacidade permanente igual ou superior a 30% ou por morte. As pensões por incapacidade permanente inferior a 30%, independentemente do seu valor anual, eram obrigatoriamente remíveis, de acordo com o estatuído no artigo 56.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril (diploma que veio regulamentar a Lei n.º 100/97). Neste quadro, compreende-se a incumbência cometida ao Fundo de Acidentes de Trabalho no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), subalínea i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril: reembolsar as empresas de seguros dos montantes relativos às atualizações das pensões devidas por incapacidade permanente igual ou superior a 30%, e somente a essas. Como referido pelo Mmo. Juiz a quo, a solução legal resolveu os problemas em matéria de atualização de pensões por acidente de trabalho detetados na legislação anterior, já que “passaram a ser obrigatoriamente remíveis todas as pensões devidas a sinistrados em acidentes de trabalho, por incapacidade inferior a 30%, independentemente do valor da pensão anual”.
A premência da questão da atualização de pensões por acidentes de trabalho, de acordo com a inflação, é manifesta. Isso mesmo também já foi expressamente reconhecido por este Tribunal, designadamente no seu Acórdão n.º 302/99 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/): pela não atualização, o quantitativo da pensão tende a ficar, com o passar do tempo, cada vez mais desadequado à perda de capacidade de ganho do trabalhador, “o que, o mesmo é dizer, como uma justa reparação quando o trabalhador é vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional – cfr. a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição”.
Tem, pelo exposto, pertinência a análise dos antecedentes legislativos desenvolvida a este respeito no despacho recorrido e, em especial, a sua conclusão: se é certo que a Lei n.º 100/97 previa apenas a atualização de pensões por incapacidade igual ou superior a 30% (v. o respetivo artigo 39.º, n.º 2) – e isto sem prejuízo da admissão, a título facultativo, da sua remição parcial (cfr. o respetivo artigo 33.º, n.º 1, e o artigo 56.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 143/99) - o problema da desvalorização das restantes pensões não se colocava, pois todas as pensões por incapacidade inferior àquele patamar eram obrigatoriamente remíveis.
5. O sistema dicotómico e em si mesmo coerente baseado nas correlações remição obrigatória–não atualização e remição facultativa–atualização da pensão remanescente ou da pensão não remida cessa com a substituição da Lei n.º 100/97 e do Decreto-Lei n.º 143/99, pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, conjugada com a continuação da vigência do estatuído no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), subalínea i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, que limita a atualização das pensões atribuídas por acidentes de trabalho aos casos de incapacidade permanente igual ou superior a 30%.
Com efeito, para além do artigo 82.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009 continuar a cometer ao Fundo de Acidentes de Trabalho a responsabilidade apenas pelas atualizações das pensões devidas por incapacidade permanente igual ou superior a 30% - como sucedia com o artigo 39.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97 – o seu artigo 75.º, epigrafado “Condições de remição”, alterou as condições de remição nos seguintes termos:
« 1- É obrigatoriamente remida a pensão anual vitalícia devida a sinistrado com incapacidade permanente parcial inferior a 30% e a pensão anual vitalícia devida a beneficiário legal desde que, em qualquer dos casos, o valor da pensão anual não seja superior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida, em vigor no dia seguinte à data da alta ou da morte.
2 – Pode ser parcialmente remida, a requerimento do sinistrado ou do beneficiário legal, a pensão anual vitalícia correspondente a incapacidade igual ou superior a 30% ou a pensão anual vitalícia de beneficiário legal desde que, cumulativamente, respeite os seguintes limites:
a) A pensão anual sobrante não pode ser inferior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida em vigor à data da autorização da remição;
b) O capital da remição não pode ser superior ao que resultaria de uma pensão calculada com base numa incapacidade de 30%».
Como se vê, surge uma nova possibilidade, passando a ser lícito distinguir quatro situações:
– As pensões obrigatoriamente remíveis na sua totalidade (n.º1);
– As pensões facultativamente remíveis em parte (n.º 2);
– As pensões insuscetíveis de remição, parcial ou total, em razão da conjugação de um grau de desvalorização do sinistrado inferior a 30% com um montante da pensão atribuída cujo valor seja superior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida (n.os 1 e 2 a contrario sensu);
– As pensões insuscetíveis de remição, parcial ou total, em razão da conjugação de um grau de desvalorização do sinistrado igual ou superior a 30% com um montante da pensão atribuída cujo valor seja inferior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida (n.º 2, alínea a), a contrario sensu; e que tinha correspondência no artigo 56.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99).
A terceira situação – à qual se reconduz justamente à situação do sinistrado no caso sub iudicio – é nova e decorre da opção feita pelo legislador no artigo 75.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009 de - diferentemente do que sucedia no artigo 56.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 143/99, em que os elementos determinantes da remição obrigatória eram de verificação alternativa – exigir a verificação cumulativa de dois elementos para o mesmo tipo de remição - o grau de desvalorização do sinistrado e o montante da pensão a que ele tem direito.
Por outro lado, as pensões insuscetíveis de remição podem, conforme mencionado, corresponder a uma incapacidade inferior, igual ou superior a 30%: se a incapacidade relevante for inferior a 30%, a pensão correspetiva insuscetível de remição ratione valoris - artigo 75.º, n.º 1 – não é atualizável (cfr., a contrario sensu, os artigos 1.º, n.º 1, alínea c), subalínea i), do Decreto-Lei n.º 142/99 e 82.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009); já se a incapacidade relevante for igual ou superior a 30%, a pensão correspetiva insuscetível de remição ratione valoris - artigo 75.º, n.º 2, alínea a) - é, todavia, atualizável (cfr. os mesmos preceitos). Do mesmo modo, são atualizáveis as pensões facultativamente remíveis, na parte em que não tenham sido remidas, por decisão do sinistrado ou por imposição da lei, já que tais pensões correspondem, nos termos do artigo 75.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, a incapacidades iguais ou superiores a 30%. Aliás, um dos direitos não afetados pela remição parcial dessas pensões é justamente o da atualização da pensão remanescente (cfr. o artigo 77.º, alínea d), da Lei n.º 98/2009).
Coloca-se, por isso, com toda a pertinência a seguinte questão de constitucionalidade: é admissível à luz da Constituição a existência de pensões devidas a sinistrados por acidentes de trabalho não remíveis e que também não sejam atualizáveis de acordo com a inflação?
6. A resposta a tal questão dada no despacho recorrido e acolhida nas alegações do Ministério Público é inequivocamente negativa.
E, na verdade, não se vislumbra qualquer razão legítima que justifique o impedimento legal de atualização das pensões insuscetíveis de remição, nos mesmos moldes em que as restantes pensões não remidas são atualizadas, ou seja, de acordo com os termos do artigo 82.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, em articulação com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), subalínea i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril. É de subscrever o entendimento sufragado no despacho recorrido de que, tal como sucede nos casos das pensões remíveis não remidas ou das pensões sobrantes em resultado da remição parcial da pensão originária, também em relação às pensões correspondentes a uma incapacidade permanente parcial inferior a 30% “está em causa a manutenção do valor efetivo das pensões, importando garantir aos sinistrados um valor de reparação constante, que não se degrade conforme as flutuações da moeda”. Mais: há que assegurar a igualdade de tratamento, relativamente a todos os que auferem uma pensão não remível ratione valoris, independentemente do respetivo grau de incapacidade permanente parcial ser superior, igual ou inferior a 30%, porquanto a finalidade da pensão é em todos os casos o mesmo – trata-se de uma prestação destinada “a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de ganho resultante de acidente de trabalho” (cfr. o artigo 48.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009; nesta perspetiva, a pensão desempenha uma função substitutiva do vencimento para a subsistência do beneficiário, conforme tem sido salientado na jurisprudência deste Tribunal) – ; e tal finalidade fica irremediavelmente comprometida com a desvalorização monetária. Por idêntica ordem de razões, também se deve impedir – como refere o Mmo. Juiz a quo – “que os sinistrados em acidente de trabalho, afetados de uma incapacidade inferior a 30% mas com pensões superiores a seis vezes a retribuição mínima mensal garantida, sejam colocados numa situação de desvantagem em relação aos sinistrados com incapacidade inferior a 30%, mas que viram as suas pensões imediatamente remidas, não correndo assim o risco da desvalorização monetária”.
Em suma, a não atualização das pensões de montante igual ou superior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida em vigor no dia seguinte ao da alta do trabalhador sinistrado que em consequência do acidente de trabalho tenha ficado com uma incapacidade permanente parcial inferior a 30% viola o direito à justa reparação do trabalhador sinistrado consignado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, uma vez que não acautela a desadequação do quantitativo da pensão à função reparatória e compensatória que lhe é inerente (neste sentido, cfr. o já referido Acórdão deste Tribunal n.º 302/99). Acresce que tal solução de não atualização, ao impor soluções diferentes relativamente a quantias que desempenham nos termos da Constituição e da lei função idêntica – como sucede relativamente às pensões remíveis não voluntariamente remidas, às pensões sobrantes determinadas em razão de prévia remição parcial e às pensões não remíveis compensatórias de incapacidade permanente parcial igual ou superior a 30% -, também não se mostra materialmente fundada, sendo por isso mesmo arbitrária.
Com efeito, como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 546/2011 (igualmente disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ):
«[É] ponto assente que o n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt – que o caráter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face a ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavelmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis».
No caso presente, porém, não se vislumbram motivos razoáveis para a previsão de atualização apenas do valor das pensões devidas por incapacidade permanente igual ou superior a 30% estabelecida no artigo 82.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, em articulação com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), subalínea i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, pelo que tal limitação se mostra também violadora do princípio da igualdade consignado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.”
8. Esta doutrina mostra-se inteiramente transponível para a situação em apreço, pelo que cumpre decidir em conformidade.
III. Decisão
9. Pelo exposto, decide-se:
A) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea f), ambos da Constituição, a norma contida no artigo 82.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, em conjugação com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), inciso i), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, na parte em que impede a atualização de pensões anuais por incapacidades inferiores a 30%, não remíveis obrigatoriamente nos termos do artigo 75.º, n.º 1, da mesma Lei n.º 98/2009, por serem superiores a seis vezes a retribuição mínima mensal garantida, em vigor no dia seguinte à data da alta; e
B) Julgar improcedente o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 20 de fevereiro de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.