Imprimir acórdão
Processo n.º 109/11
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de acórdão proferido pela 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em 02 de dezembro de 2010 (fls. 494 a 513), para apreciação da constitucionalidade:
i) “da norma constante do artigo 412º, n.º 4 do CPP, na redação em vigor, quando interpretada no sentido de que, na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deverá identificar as concreta[s] provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicando sempre o início e o fim de cada um dos depoimentos gravados, mesmo quando essas referências não constem da ata, sob pena de o recurso sobre a matéria de facto não poder ser apreciado” (fls. 518);
ii) “da norma constante do artigo 411º, n.º 1 do CPP conjugado com o n.º 4 do mesmo diploma legal no sentido de que é extemporâneo o recurso interposto para além do 20º dia depois da leitura de sentença (e até ao 30º dia) quando venha a ser rejeitado o recurso sobre a matéria de facto” (fls. 518).
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
«1ª
O Tribunal a quo entendeu as normas dos artigos 412°, n.º 3 e 4 do C.P.P. no sentido de que a localização dos depoimentos que suportam o recurso da matéria de facto deve ser sempre identificada, mencionando-se o início e o termo de cada um deles, mesmo quando essas referências não constem da ata.
2ª
Aceção do mesmo Tribunal foi ainda a de que, à luz do disposto no artigo 411°, n.º 4, por referência do seu n.º 1 do C.P.P., é extemporâneo o recurso que não tenha sido interposto nos 20 (vinte) dias subsequentes ao depósito da douta sentença recorrida quando o mesmo venha a ser rejeitado sobre a matéria de facto.
3ª
O direito à defesa e, em concreto, ao recurso, encontra consagração no artigo 32°, n.º 1 da C.R.P., sendo apenas admitidas restrições ao mesmo quando haja um incumprimento das regras formais exigidas para o seu quadro de desenvolvimento, nomeadamente a inobservância dos ónus estabelecidos pela lei processual.
4ª
Concretamente, quando o recurso incide sobre a matéria de facto, o Código de Processo Penal exige, no seu artigo 412°, n.º 3, para que do mesmo se possa conhecer, que o recorrente especifique:
«a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas. “.
5ª
Foi entendimento do Acórdão Recorrido que o recorrente, embora tivesse individualizado os concretos pontos da matéria de facto que se consideravam incorretamente julgados, não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 412°, n.º 3, alínea b), por não ter especificado, de entre as faixas da gravação, aquelas onde se encontram registadas as passagens de determinado depoimento.
6ª
Da perspetiva da recorrente, essa interpretação adotada é manifestamente inconstitucional, porque restringe o direito de defesa do arguido, na dimensão do direito ao recurso, quando este cumpriu as formalidades mínimas exigidas por lei para recorrer da decisão que lhe foi aplicada.
7ª
O recorrente deu cumprimento àquela disposição legal na medida em que o artigo 412°, n.º 4 do C.P.P. apenas obriga a que, quando as provas tenham sido gravadas, a identificação dos respetivos depoimentos seja efetuada por referência ao que consta da ata em que os mesmos tenham sido prestados.
8ª
Ora, da ata da sessão de julgamento não consta uma separação temporal dos depoimentos e, em virtude disso, o recorrente teve o cuidado de transcrever na motivação, a frase exata que consta da mesma acerca dessa identificação, mais referindo essa ausência de informação no texto do seu recurso, pelo que o mesmo não tinha condição de melhor cumprir o disposto naquele preceito, mais não podendo mais ser-lhe exigido.
9ª
Citando o Acórdão da Relação do Porto n.º 246/08.3TTVLG.P1 de 8 de fevereiro de 2010: “Não constando tais menções da ata respetiva, o recorrente cumpre os seus ónus se indicar os concretos pontos de facto de que discorda com referência, separada e relativamente a cada um deles, dos concretos meios de prova pessoais constantes da gravação, documentos ou outros que, a seu ver, impõem decisão diversa da empreendida pelo Tribunal de 1ª Instância.”. (negrito nosso)
10ª
Assim, a nulidade cometida não poderia, obviamente, porque alheia à responsabilidade do recorrente, traduzir-se em cerceamento do direito ao recurso, e designadamente ao recurso em sede de decisão sobre a matéria de facto. A este propósito, atente-se no artigo 6°, n.º 3 da C.E.DH., segundo o qual o arguido tem o direito de “Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa. “. (sublinhado nosso)
11ª
Cumpre realçar que, não obstante o recorrente não ter feito referência daquela impossibilidade de melhor identificar os depoimentos, nas conclusões do seu recurso, tendo-o feito na motivação do recurso, deveria ter-lhe sido dada oportunidade de aperfeiçoar as conclusões, ao abrigo do disposto no artigo 4 17°, n. °3 do C.P.P. (cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 529/03, de 31 de outubro)
12ª
E nem se diga que «(...) para isso também teríamos que lhe permitir o aperfeiçoamento da própria motivação do recurso (...)“, pois que por tudo o exposto, está claro de ver que na motivação do recurso foram deduzidas todas as indicações previstas e exigidas nos artigos 412°, n.º 3 e 4 do C.P.P.., pelo que o convite de aperfeiçoamento apenas se aplicaria às conclusões, porque apenas quanto a estas concedemos uma incompletude.
13ª
Assim, a interpretação do artigo 412°, n.º 4 do C.P.P., no sentido de que o arguido é obrigado a identificar os depoimentos que pretende ver reapreciados, mesmo quando essa identificação não consta da ata, sob pena de rejeição do recurso, é inconstitucional, por tolher o direito ao recurso previsto no artigo 32°, n.º 1 da C.R.P. e o direito do acusado dispor dos meus necessários à sua defesa, por força do artigo 6°, n.º 3 da C.E.D.H.
14ª
O presente recurso entende visa também ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 411°, n.º 1 do C.P.P. conjugado com o seu n.º4, quando interpretada no sentido de que deve ser rejeitado, por intempestivo, o recurso que não tenha sido interposto nos 20 (vinte) dias subsequentes ao depósito da douta sentença recorrida, quando não tiver sido cumprido integralmente o previsto nos artigos 412°, nºs 3 e 4.
15ª
À luz do disposto no artigo 411°, n.º 1 do C.P.P., o prazo geral de recurso é de 20 (vinte) dias e, à luz do no n.º 4 do mesmo preceito, esse prazo é alargado para 30 (trinta) dias se o recorrente impugnar a matéria de facto com base em meio de prova gravado em audiência — como é o caso.
16ª
Assim, tendo o acórdão sido depositado em 20 de maio de 2010 e o recurso interposto em 18 de junho de 2010, ou seja, no 29. ° dia após o depósito daquele, foi o mesmo interposto tempestivamente, de acordo com o disposto no art. 411° n.º 4 do C.P.P., pelo que, salvo o devido respeito, haveria o mesmo que ter sido admitido.
17ª
É que, o prazo de interposição do recurso nada tem que ver com o cumprimento, ou não, dos ónus que o recorrente tem a seu cargo quando pretende impugnar a matéria de facto e a posterior apreciação que venha a ser feita da motivação do mesmo.
18ª
Neste sentido, leia-se o Ac. da Relação de Guimarães n.º 384/09.5GAEPS-G1 de 10 de janeiro de 2011: “(...) para efeitos de apreciação da tempestividade do recurso, não tem fundamento rejeitá-lo por não ter sido cumprido integralmente o referido art. 412.° n.°3 e 4. O que releva, para efeitos de tempestividade do recurso, é o fim visado pelo recorrente: Impugnação da matéria de facto fundada na reapreciação da prova gravada. (negrito nosso)
19ª
Ou ainda o Ac. do Tribunal de Évora n.º 11/05.OFCPTM.E1 de 22 de abril de 2010: “A atribuição do prazo de 30 dias a que se refere o n.º 4 do art. 411º do CPP não depende da perfeição com que venha a ser feita a Impugnação da matéria de facto. Assim, bastará o pedido do duplicado da gravação da prova testemunhal produzida em audiência e depois uma ainda que ineficaz impugnação da matéria de facto, para que o recorrente veja o prazo de 20 dias para interpor recurso alargado para 30.”. (negrito nosso)
20ª
Tal torna-se ainda mais flagrante, na medida em que o mesmo não se limita a impugnar matéria de facto. Na verdade, no recurso interposto, embora a impugnação da matéria de facto e as alegações de direito sejam “autonomizáveis’, o prazo para a apresentação do recurso é uno - sendo alargado em 10 (dez) dias, para além do prazo geral de 20 (vinte) dias previsto no art. 411° n.º 1 do C.P.P..
21ª
O entendimento proferido viola o artigo 6°, nºs 1, 1ª parte e 3, alínea b) da C.E.D.H., segundo os quais “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (...)“ e o acusado tem o direito de «Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa”, respetivamente. (sublinhado nosso)
22ª
Por tudo o exposto, a interpretação exarada pelo Tribunal a quo afigura-se desconforme com a Constituição, por violação do seu artigo 32°, n.º 1, e também porque não deixará vigorar na ordem jurídica portuguesa aquele preceito de direito internacional público, violando dessa forma, também, o disposto no artigo 8°, n.º 2 da C.R.P.» (fls. 548 a 553)
3. Por sua vez, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas contra-alegações:
«49º
Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:
a) negar provimento ao recurso formulado pelo recorrente, quanto à primeira questão de constitucionalidade, pelo facto de a interpretação normativa suscitada, relativa ao art. 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, não contrariar a Constituição da República Portuguesa, como resulta de jurisprudência assente deste Tribunal Constitucional;
b) assim, não deverá ter-se por inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma constante do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que, na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deverá identificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicando sempre o início e o fim de cada um dos depoimentos gravados, mesmo quando essas referências não constem da ata, sob pena de o recurso sobre a matéria de facto não poder ser apreciado;
c) em contrapartida, deverá concluir-se pela inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32º, nº 1 da CRP, da interpretação do artigo 411º, nº 1 do CPP, conjugado com o nº 4 do mesmo diploma legal, no sentido de ser extemporâneo o recurso interposto para além do 20º dia depois da leitura de sentença (e até ao 30º), quando o recurso sobre matéria de facto venha a ser rejeitado pelo tribunal ad quem». (fls. 607 e 608)
4. Uma vez inscrito em tabela, suscitaram-se dúvidas na secção quanto à possibilidade de conhecimento do recurso no que diz respeito à primeira questão, pelo que foi proferido o acórdão n.º 546/2012, notificando o recorrente para, no prazo de 10 (dez) dias se pronunciar sobre a eventualidade de não ser conhecida a questão enunciada no ponto 1, devido à não coincidência entre a norma enunciada e norma aplicada, ao que o recorrente respondeu o seguinte:
“A., recorrente nos autos em epígrafe, notificado para se pronunciar sobre a eventualidade de o recurso por si interposto não ser conhecido quanto à questão enunciada no ponto 1 do requerimento de interposição do mesmo, devido à não coincidência entre a norma enunciada e a norma aplicada, vem expor e requerer a V/ Exa. o seguinte:
1. No ponto 1 do seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente manifestou pretender a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma constante do artigo 412°, n.º 4 do CPP, quando interpretada no sentido em que, na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deverá identificar as concreta provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicando sempre o inicio e o fim de cada um dos depoimentos gravados, mesmo quando essas referências não constem da ata, sob pena de o recurso sobre a matéria de facto não poder ser apreciada.
2. Na realidade, no despacho que apreciou a reclamação para a conferência, seguindo a interpretação que já havia sido adotada no despacho que rejeitou o recurso, entendeu-se que o recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 412°, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP. Entendeu-se que, embora tivesse individualizado os concretos pontos da matéria de facto que se consideravam incorretamente julgados, não havia especificado, por referência a esses factos e do modo legalmente exigível, as provas que imporiam decisão diversa da recorrida. Entendeu-se, nomeadamente, que o recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 412°, n.º 3, al. b) do CPP por não ter especificado, de entre as faixas da gravação, aquelas onde se encontram registadas as passagens de determinado depoimento.
3. Ora, o artigo 412°, n.º 3, al. b) está intrinsecamente relacionado com o disposto no artigo 412°, n.º 4, ambos do CPP, também aplicado nos autos e que constitui desenvolvimento ou concretização daquele, ao dispor que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas h) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.°, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
4. Ora, foi precisamente a conformidade desta norma com a Constituição da República Portuguesa que o recorrente quis ver apreciada em virtude de, no caso concreto, se tratar de provas gravadas, mas cuja de cuja ata não resultavam quaisquer especificações que permitissem indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
5. De forma que se verifica uma coincidência, pelo menos parcial entre a norma cuja conformidade com a constituição se pretende ver apreciada — a constante do 412°, n.º 4 do CPP e as normas invocadas pelo tribunal recorrido para indeferir a impugnação da matéria de facto — as constantes dos artigos 412°, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP.
Termos em que deverá o recurso ser integralmente apreciado, nos termos já peticionados.”
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
- Questão prévia: Conhecimento do objeto do recurso
4. Como ponto prévio, importa apreciar se este Tribunal pode conhecer do objeto deste recurso, uma vez que, apesar de aludir à questão da (eventual) impossibilidade de conhecimento das questões objeto de recurso – por falta de suscitação processualmente adequada das inconstitucionalidades normativas –, o Ministério Público acaba por concluir que não subsiste fundamento para o não conhecimento (fls. 572).
O ora recorrente suscitou as questões de inconstitucionalidade em sede de reclamação para a conferência do despacho do Relator junto do Tribunal da Relação de Évora, que não admitiu o recurso ordinário (fls. 485 a 487 e §§ 7º 8º das conclusões, a fls. 489), não o tendo feito em sede de motivação e conclusões do recurso anteriormente interposto. Ora, esse é, sem dúvida, o momento adequado para suscitar as questões de constitucionalidade, na medida em que o poder jurisdicional do tribunal recorrido ainda não se tinha extinguido, pelo que o recorrente pode, nesse momento processual, confrontar o tribunal recorrido com uma questão de inconstitucionalidade normativa que só se apresentou como oportuna após a prolação do referido despacho de não admissão.
O recorrente tinha, portanto, razões suficientes para apenas ter suscitado as questões de inconstitucionalidade que constituem objeto do presente recurso em sede de reclamação para a conferência do despacho de não admissão proferido pelo Relator junto do Tribunal da Relação de Évora.
Questão diversa é a de saber se em relação a cada uma das questões colocadas subsistem outros fundamentos para o não conhecimento do objeto deste recurso, colocando-se este problema particularmente em relação à primeira questão.
Recorde-se que um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade neste Tribunal é que exista coincidência entre a norma aplicada pelo tribunal recorrido e a norma cuja inconstitucionalidade é suscitada pelo recorrente, de modo a que este último se possa pronunciar sobre ela. Sucede que, no caso em apreço, o modo como o recorrente configurou a norma constante do artigo 412º, n.º 4 do CPP, não coincide com o modo como ela foi aplicada pelo tribunal recorrido.
Senão vejamos:
O recorrente configurou a norma, colocando o acento tónico “na identificação das concreta[s] provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicando sempre o início e o fim de cada um dos depoimentos gravados, mesmo quando essas referências não constem da ata, sob pena de o recurso sobre a matéria de facto não poder ser apreciado” (fls. 518)”.
Pelo contrário, a ratio decidendi não se baseia na indicação do início e do fim de cada um dos depoimentos, mas sim na falta de especificação, por referência aos factos, nos moldes legalmente exigíveis, de quais as provas que no entender do recorrente imporiam decisão diversa (cfr. fls. 508, pag. 15 da decisão do Tribunal da Relação de Évora).
Assim sendo, não existe coincidência entre a norma cuja inconstitucionalidade é suscitada pelo recorrente e a norma aplicada pelo tribunal recorrido, pelo que não deve este Tribunal conhecer do objeto deste recurso quanto à primeira questão.
5. Passemos então à segunda questão de constitucionalidade, a qual – recorde-se – se relaciona com a interpretação normativa extraída “do artigo 411º, n.º 1 do CPP conjugado com o n.º 4 do mesmo diploma legal no sentido de que é extemporâneo o recurso interposto para além do 20º dia depois da leitura de sentença (e até ao 30º dia) quando venha a ser rejeitado o recurso sobre a matéria de facto” (fls. 518).
O n.º 4 do artigo 411º do CPP fixa um prazo mais longo de interposição de recurso – 30 dias –, quando esteja em causa recurso “que tiver por objeto a reapreciação da prova gravada”. Ora, a decisão recorrida considerou que, não estando preenchidos os requisitos legais necessários à reapreciação da matéria de facto, o prazo previsto no n.º 4 do artigo 411º do CPP não seria de aplicar, vigorando antes o prazo geral de 20 dias fixado pelo n.º 1 do mesmo preceito legal.
A questão da fixação de um prazo de motivação de recurso penal mais longo, quando esteja em causa a impugnação de matéria de facto, foi bastante discutida e controvertida antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que procedeu a uma profunda revisão do CPP. Com efeito, antes dessa data, discutia-se sobre se era admissível a extensão do prazo geral de motivação, por força da aplicação subsidiária do n.º 6 do artigo 698º do CPP (assim, ver Ac. de fixação de jurisprudência do STJ n.º 3/2012, de 8 de março de 2012, e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição atualizada, 2011, 1136).
Ajuizando da alegada inconstitucionalidade de interpretação normativa que não permitia a extensão do prazo de motivação, por aplicação subsidiária daquela norma processual civil, este Tribunal concluiu pela improcedência daqueles argumentos, precisamente, num caso de impugnação de matéria de facto fundada na apreciação de prova gravada (cfr. Acórdão n.º 542/2004, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), tendo, posteriormente, decidido “julgar inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e do processo equitativo, e das garantias de defesa consagradas nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma dos artigos 411.°, n.º 3, 414.°, n.ºs 2 e 3, e 420.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de permitir ao tribunal ad quem a apreciação oficiosa da tempestividade do recurso que para ele foi interposto, e a decisão no sentido da intempestividade, quando esta decorre inteiramente da questão da legalidade de uma prorrogação do prazo para recorrer, ou motivar, o recurso deferida precedentemente pela primeira instância, por decisão que não foi impugnada ou questionada por outro sujeito do processo.” (cfr. acórdão n.º 103/2006, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Porém, desde a reforma de 2007, o próprio legislador passou a prever um prazo mais longo de interposição de recurso (artigo 411º, n.º 4, do CPP), tendo colocado um ponto final naquela polémica. A única questão a dirimir nos presentes autos assenta, portanto, na possibilidade de aplicação de um prazo mais curto – neste caso, o prazo geral – quando o relator do tribunal de recurso tenha entendido que não pode conhecer-se do objeto do recurso quanto à matéria de facto (cfr. novamente Ac. de fixação de jurisprudência do STJ n.º 3/2012, de 8 de março de 2012, acima citado).
Ora, na linha do preconizado pelo Ministério Público (cfr. fls. 602 a 604), entende-se que o momento decisivo para a fixação legal do prazo de recurso penal não pode deixar de ser a data de apresentação do respetivo requerimento de interposição, sendo irrelevante a decisão – sempre posterior – que o relator venha a proferir quanto à admissibilidade de conhecimento do respetivo objeto. Assim é porque a finalidade que presidiu à fixação de um prazo mais longo assenta, precisamente, na maior dificuldade na preparação do recurso penal sobre matéria de facto, por exigir uma audição integral da prova gravada.
Assim sendo, a finalidade que justifica a fixação de um prazo mais longo de interposição de recurso não reside – nem podia residir – na própria aferição da procedência ou admissibilidade do recurso, mas antes na atenuação das dificuldades de elaboração do recurso que tenha por base a impugnação de prova produzida e gravada em suporte magnético ou digital. É, aliás, nesse sentido que a jurisprudência Supremo Tribunal de Justiça se tem pronunciado (cfr. ac. do STJ no proc. n.º 1704/07.2BTBBG.P1.S1, de 11/01/2012).
O prazo de interposição de recurso é fixado, pela lei, em função do modo como o recorrente concebe o respetivo objeto – ou seja, optando por recorrer apenas quanto a matéria de facto, quanto a matéria de Direito ou quanto a ambas –, aplicando-se o prazo mais longo, quando haja cumulação de impugnação de facto e de Direito. Assim, sendo a interpretação normativa extraída pela decisão recorrida dos n.ºs 1 e 4 do artigo 411º coloca em causa, de modo grave, o princípio da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP) bem como o processo equitativo e as garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Com efeito, um aspeto tão decisivo como o prazo de interposição de recurso de decisão penal condenatória não pode ficar dependente de uma ulterior ponderação acerca da procedência substancial do recurso, sob pena de o recorrente não dispor de meios para determinar, com um grau elevado de certeza, qual o prazo processual a que está sujeito. Em última instância, tal conduziria a que todos os recorrentes passassem, “ad cautelam” a interpor recursos sobre matéria de facto que envolvesse uma apreciação de prova gravada no prazo geral, mais curto, de 20 dias, sob pena de enfrentarem, a final, uma decisão de extemporaneidade.
Em conclusão, considera-se que a interpretação normativa segundo a qual os recursos penais para reapreciação de prova gravada deixam de beneficiar do prazo alargado de interposição de 30 dias quando venham a ser rejeitados relativamente à matéria de facto – por exemplo, por falta de cumprimento das especificações exigidas pelo n.º 3 do artigo 412º, do CPP, como ocorreu nos presente autos – afeta, de modo grave o princípio da segurança jurídica e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP) bem como o processo equitativo e as garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP e padece, portanto, de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer do objeto do recurso quanto à primeira questão;
b) Julgar inconstitucional a norma extraída “do artigo 411º, n.º 1 do CPP conjugado com o n.º 4 do mesmo diploma legal no sentido de que é extemporâneo o recurso interposto para além do 20º dia depois da leitura de sentença (e até ao 30º dia) quando venha a ser rejeitado o recurso sobre a matéria de facto”, por violação do princípio da segurança jurídica e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP) bem como do princípio do processo equitativo (artigo 20º, nº 4, da CRP) e das garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP;
c) Em consequência, em cumprimento do artigo 80.º, n.º 2, da LTC, os autos devem baixar ao tribunal recorrido, para que este reforme a decisão em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas legais, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro