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Proc. nº 696/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Tribunal Militar Territorial de Lisboa condenou A ... pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 193º, nº 1, alínea b), do Código de Justiça Militar, na pena de quatro anos de prisão, substituída por igual tempo de presídio militar. A ... interpôs recurso da decisão condenatória, sustentando a inconstitucionalidade da norma do artigo 193º, nº 1, do Código de Justiça Militar, 'enquanto nele se qualifica como crime essencialmente militar o crime de peculato através da distracção e utilização em proveito próprio do dinheiro, por violação dos artigos 211º e 213º da Constituição'.
O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 25 de Outubro de 2001, considerou que a norma impugnada não viola a Constituição, uma vez que nela se prevê um crime 'essencialmente militar, ou seja um crime que se destina a proteger os bens jurídicos militares e cuja prática atinge fundamentalmente esses bens jurídicos e os valores que eles tutelam e que assegurem o cumprimento da missão militar'.
2. A ... interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal Militar, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 193º, nº 1, do Código de Justiça Militar.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: a) O elemento diferenciador entre o tipo de crime previsto no artigo 193° do CJM e o do artigo 375° do Código Penal é a qualidade de 'integrado ou ao serviço das Forças Armadas' o qual no Código Penal corresponde a 'funcionário'; b) O conceito de funcionário público para efeitos penais abrange o funcionário militar, pelo que se o R. não tivesse sido julgado em tribunal militar, tê-lo-ia sido nos tribunais comuns; c) Com a promulgação da CRP de 1976 passou a competir aos tribunais militares o julgamentos dos crimes essencialmente militares, sendo que com o afastamento do foro pessoal, a qualidade de militar, por si só, deixou de ser motivo para a qualificação do facto como crime essencialmente militar; d) O Tribunal Constitucional na sua jurisprudência mais recente tem exigido a violação dum bem especificamente militar na qualificação de um crime como essencialmente militar; e) Resulta da conjugação do artigo 197° da Lei Constitucional 1/97 com o n° 3 do artigo 211º da CRP, quando em confronto com artigo 213º, que, presentemente, aos tribunais militares compete o julgamento dos crimes estritamente militares; f) O conceito de crime estritamente militar não pode deixar de ser entendido como sendo facto que ofende bens jurídicos que se encontram particularmente adstritos à prossecução das finalidades das forças armadas e que transcendam a tutela indirecta e mediata da disciplina destas, e que não tem relação com os crimes comuns; g) Sendo que só podem ser objecto de protecção penal os bens ou interesses constitucionalmente protegidos, no caso dos autos, o desvio de quantias em dinheiro pertencentes às Forças Armadas, não ofende um interesse associado à função específica de defesa nacional que se encontre plasmado na Constituição, condição do livre desenvolvimento dos cidadãos portugueses e da preservação dos seus interesses individuais e colectivos; h) Antes sim, a existir um dever especial de controle e administração de verbas e quantias postas a seu cargo, tal dever encontra-se particularmente adstrito ao funcionamento e actuação de funcionários dos Ministérios do Orçamento e do Plano, Direcção Geral da Contabilidade Pública, Banco de Portugal, que não das Forças Armadas i) Não possam ser considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consistem no facto de se conexionarem de qualquer forma com a segurança, disciplina ou coesão das Forças Armadas j) O facto de o arguido ter a qualidade de militar é irrelevante para qualificar o facto praticado como essencialmente militar, e por maioria de razão, estritamente militar, afastado que está o foro pessoal dos militares e sendo que não foram postos em causa bens jurídicos especificamente militares ligados à função militar específica de defesa da Pátria; k) O dinheiro tem natureza e função pecuniária, económica e fiduciária, e não é pelo facto de estar afecto às Forças Armadas que passa a ter natureza de essencialmente militar ou estritamente militar, tal como o afecto ao Ministério da Justiça, da Educação da Solidariedade, das Finanças, não têm a natureza de essencialmente judiciário, académico, solidário, ou financeiro; l) Sendo todos os cidadãos são iguais perante a lei, não se vislumbra razão para, em tempo de paz, distinguir condutas desviantes do dinheiro destinado ao pagamento de bens de consumo corrente nomeadamente água, luz, energia, gasolina nas Instituições Militares, sendo que nos outros órgãos do estado que têm por dever especial a administração de verbas, tais condutas não são especialmente incriminadas; m) A essencialidade do dinheiro é genérica e comum a todos: escolas, hospitais,
órgãos de soberania, encontrando-se a sua protecção assegurada pelo direito penal comum; n) Os valores como a disciplina, a honra, a coesão, embora valores militares fundamentais podem e devem constituir ponto de conexão do ilícito disciplinar militar. No entanto, não podem, nem devem, por eles mesmos e em si mesmos, assumir-se como bens militares dignos e necessitados de tutela penal. o) A norma do artigo 193° n° 1 do CJM é inconstitucional, enquanto nela se qualifica como crime essencialmente militar o crime de peculato através da distracção e utilização em proveito próprio de dinheiro, pertencente ao Estado e que não se destina à satisfação de interesses socialmente valiosos, que se ligam
à função militar específica de defesa da Pátria, por violação dos artigos 211° e
213° da CRP (versão de 1997 e atento o disposto no artigo 197° da LC n° 1/97). p) Sendo a norma do artigo 193° n° 1 do CJM inconstitucional nos termos sobreditos, o tribunal militar é incompetente para conhecer do crime de que vem acusado o Réu. Termos em que, de acordo com os fundamentos expostos, deve o artigo 193° nº 1 do CJM referido ser julgado inconstitucional, com todas as consequências,
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1° - Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a qualificação do peculato militar, p.p. no artigo 193°, n° 1, do Código de Justiça Militar, como crime essencialmente militar, numa situação em que os valores desviados pelo arguido pertenciam à Administração Militar e estavam, portanto, adstritos à prossecução das finalidades cometidas às F orças Armadas.
2º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
3. O artigo 193º, nº 1, do Código de Justiça Militar, tem a seguinte redacção: Artigo 193º
(Peculato)
1. Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, tendo em seu poder ou
à sua responsabilidade, em razão das suas funções militares, permanentes ou acidentais, dinheiro, valores ou objectos que lhe não pertençam, os distrair de suas legais aplicações em proveito próprio ou alheio, será condenado:
(...)
O recorrente sustenta que o disposto no artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97 significa que os tribunais militares que se mantêm em vigor por força dessa disposição apenas têm competência para julgar os crimes estritamente militares, nos termos do artigo 213º da Constituição.
Ora, tal argumentação assenta num equívoco evidente: o artigo 213º reporta-se a tribunais militares a constituir, quando os actuais forem extintos o que coincidirá com a regulamentação do artigo 211º, nº 3, da Constituição. Enquanto tal não acontecer, mantêm-se em vigor os tribunais militares, não fazendo sentido, naturalmente, a invocação do disposto no artigo 213º da Constituição (como de resto entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º
47/99). O parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma em questão será então o artigo 215º da Constituição (na versão decorrente da Revisão de 1989).
4. O recorrente sustenta que a apropriação do dinheiro pertencente
às Forças Armadas não constituiu uma afectação de um qualquer bem ou valor específico daquela instituição. O recorrente procura fundamentar tal entendimento, invocando as situações de apropriação de dinheiro pertencente a outros serviços do Estado, o que, na sua perspectiva, não consubstanciaria situações substancialmente diferentes do caso dos autos.
A apreciação da questão de constitucionalidade normativa que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade pressupõe a identificação dos elementos de conexão entre uma dada incriminação e os valores da instituição militar, elementos esses necessários para que se possa fundamentar um juízo de constitucionalidade sobre a qualificação de um crime como essencialmente militar. Ora, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, diversas vezes, sobre a conformidade à Constituição da qualificação de determinadas incriminações como crimes essencialmente militares. No Acórdão nº
271/97 (D.R., I Série-A, de 15 de Fevereiro de 1997), o Tribunal Constitucional considerou o seguinte:
'Certo é que nem todos os juízes que compõem este Tribunal estão de acordo com o conceito de 'crimes essencialmente militares' que vai implicado no passo do Acórdão nº. 347/86, acabado de transcrever devido à sua excessiva amplitude. Há, assim, quem entenda que não podem ser 'considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas' e considere necessária, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, a existência de 'uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional' (cf. declarações de voto do conselheiro Luís Nunes de Almeida apostas aos citados Acórdãos nºs.
347/86 e 449/89). Ou ainda quem acentue que 'só serão crimes essencialmente militares os que afectarem bens jurídicos militares - 'direitos interesses' tutelados constitucionalmente conexionados com a preservação e a subsistência das Forças Armadas' (cf. declaração de voto da conselheira Maria Fernanda Palma junta ao mencionado Acórdão no. 680/94). Seja como for, é consensual a ideia de que o punctum saliens dos 'crimes essencialmente militares' se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias, 'tal como sucede com o direito penal Comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico', pelo que 'o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão' (Cf. 'Justiça militar', in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República,
1995, pp. 25 e 26).'
Consequentemente, nesse aresto, foi julgada inconstitucional a norma do artigo 207º, nº 1, alínea b), com referência ao artigo 1º do Código de Justiça Militar, enquanto nele se qualifica como crime essencialmente militar o crime negligente de ofensas corporais cometido por militar em acto de serviço, causado por desrespeito de norma de direito estradal.
Com fundamentação semelhante, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional
(...) as normas do artigo 186° n° 1 alíneas a) e d) e n° 2 do CJM, no Acórdão n°
347/86, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 8° vol., pp. 585 e segs.; e isto concretamente porque as condutas aí puníveis 'têm uma conexão relevante com o dever militar ou, quando menos, com a segurança ou a disciplina das forças armadas. Ou seja: tais condutas afectam inequivocamente interesses de carácter militar, não saindo, por isso, do âmbito estritamente castrense. Elas, na verdade, atingem - para além do bem jurídico da genuinidade documental, em causa nas falsificações punidas pelo Código Penal - outros valores que são essencialmente militares (o dever militar, a segurança e a disciplina militar)'
Por seu turno, no Acórdão nº 432/99, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, na medida em que qualifica como essencialmente militar o crime de furto de objectos pertencentes a militares, quando praticados por outro militar, tendo então afirmado o seguinte: Entre o direito penal geral e o direito penal cujo objecto está associado à actividade militar há, seguramente, uma relação de especialidade, no sentido de este último se referir à tutela de bens jurídicos especiais, inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às Forças Armadas. A diferenciação entre o direito penal e o direito disciplinar é uma das características irrenunciáveis da configuração do Estado de direito como sistema diverso das suas concretas instituições internas. Os fins gerais do Estado de direito não se confundem em absoluto com o bom funcionamento e a auto-reprodução dessas mesmas instituições. É essa capacidade de distinguir o funcionamento do Estado de direito como bem jurídico-penal dos bens jurídicos relativos ao bom funcionamento interno das suas concretas instituições que permite não confundir a desobediência ao superior hierárquico, por si mesma, com a violação do Estado de direito ( o que, em última análise, também explica a estatuição do artigo
271°, n° 3, da Constituição reiterada pelo artigo 36°, n° 2, do Código Penal, segundo a qual 'cessa o dever de obediência quando conduza à prática de um crime'). Deste modo, uma especial configuração dos crimes relacionados com a instituição militar terá que ser justificada, para além dos aspectos conexionados com a qualidade do autor ou com a disciplina das Forças Armadas, pela protecção de bens essenciais à existência, coesão e preservação da sociedade em geral - pois só tais bens têm específica dignidade penal (sobre esta relação entre a tutela penal e a essencialidade dos bens militares para o Estado de direito, cf. Acórdãos nºs. 958/96, D.R., II Série, de 19 de Dezembro de 1996; 329/97, de 17 de Abril de 1997, inédito; 201/98, D.R., II Série, de 24 de Julho de 1998). Não será, tão-só, a mera preservação da disciplina dos militares, como ratio da pena ou de uma sua agravação relativamente ao crime comum, que justificará a natureza essencialmente militar dos tipos criminais. A categoria dos crimes essencialmente militares não poderá ser delimitada formalmente como classe de crimes relacionados com a Instituição Militar por qualquer ponto de conexão, mas apenas como classe de crimes que atentem contra bens jurídicos militares de relevância geral para o Estado de direito democrático.
No Acórdão nº 47/99, o Tribunal Constitucional apreciou uma questão substancialmente idêntica à dos presentes autos. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional procedeu à apreciação da norma do artigo 201º do Código de Justiça Militar, enquanto qualifica a subtracção, praticada por militar, de objectos pertencentes à administração militar como crime essencialmente militar. Nesse aresto, ponderou-se o seguinte:
3.3 - A revisão da legislação penal militar impôs-se, desde logo, com a entrada em vigor da CRP, no mínimo pela delimitação da competência dos tribunais militares que o artigo 218° consagrava. Vigorava, então, o CJM aprovado pelo Dec. n° 11292, de 26 /11/25, que previa no seu artigo 1º factos que constituem 'crimes essencialmente militares' (1°) e factos que 'tomam o carácter de crimes militares (2°), sendo considerados crimes essencialmente militares os previstos no capítulo I do título II do livro I (§
único). Crimes essencialmente militares eram, por definição legal, integrados pelos factos que violavam algum dever militar ou ofendiam a segurança e a disciplina do exército ou da armada; o 'carácter de crimes militares' era dado 'em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou de outras circunstâncias'. Com o CJM aprovado pelo DL n° 141/77, de 9 de Abril, consideram-se 'crimes essencialmente militares' - únicos a que o Código se aplica, por imperativo constitucional - 'os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar'. Verifica-se, assim, que o Código vigente incluiu na definição de 'crimes essencialmente militares' o que já constava do conceito expresso no Código anterior, alargando-a aos factos ofensivos dos interesses militares da defesa nacional, tudo com a limitação formal de os crimes merecerem uma tal qualificação pela lei militar. Curiosamente, a maior parte dos crimes que no Código anterior tinham apenas o carácter de crimes militares - o que de algum modo significava que os factos incriminados não violavam deveres militares ou ofendiam a segurança e a disciplina das forças armadas - passam a ser, no Código vigente 'crimes essencialmente militares' - e é precisamente o caso do crime de furto de objectos pertencentes ao Estado praticado por militares, previsto no artigo 226° do CJM anterior. Deste facto dá nota o Consº Luís Nunes de Almeida, na sua intervenção no Colóquio Parlamentar sobre Justiça Militar (cfr. 'Justiça Militar- Colóquio Parlamentar', 1995, pp. 77), ajuizando que o legislador do CJM utilizara um conceito - o de crime essencialmente militar sedimentado com o sentido de abranger apenas os factos que atingiam bens jurídicos essenciais e específicos da instituição militar, passando ele a compreender situações que nunca como tal haviam sido consideradas. O artigo 215° n° 1 da CRP (revisão de 89) deixa para a lei a definição do conceito de 'crimes essencialmente militares'. A liberdade de conformação que é assim deixada ao legislador ordinário não faz com que o juízo de constitucionalidade se baste com a qualificação de crime essencialmente militar que a lei infra-constitucional dê a determinados factos; e nem sequer o próprio conceito legal de 'crime essencialmente militar' fica subtraído a esse juízo, sem embargo de se aceitar que 'a caracterização típica do conceito de 'crimes essencialmente militares' resultará, acima de tudo, da natureza dos bens jurídicos violados em cada crime, sendo certo que, quando se verifique ofensa de interesses específicos elencados no artigo 1° n° 2 do Código
(...) existirá, em princípio. um crime daquela natureza' (Acórdão n° 680/94 in DR II Série de 25/2/95, com sublinhado nosso). Ora, o que na caracterização do crime essencialmente militar o Tribunal Constitucional deixou dito como consensual foi - recorde-se - 'a ideia de que o punctum saliens dos 'crimes essencialmente militares' se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser naturalmente, bens jurídicos militares.'(cit. Acórdão n° 271/97) .
O Tribunal, depois de afirmar que o bem jurídico tutelado pela norma apreciada não é apenas o património militar, concluiu o seguinte: Mas, no caso do crime de furto de objectos pertencentes à administração militar, praticado por militar, se há um círculo de bens ou interesses violados que se justapõe ao do crime de furto comum, o que dele exorbita é já uma área onde os referidos interesses fundamentais da instituição militar são directamente atingidos; o facto de o agente do crime ser militar funciona aqui com uma carga valorativa própria que permite considerá-lo como elemento essencial de conexão com a instituição militar não como elemento acidental ou acessório como sucedia no crime de homicídio culposo ou de ofensas corporais culposas por desrespeito de normas de direito estradal. Em suma, pois, o crime de furto previsto no artigo 201° n° 1 alínea d) do CJM, enquanto qualificado como crime essencialmente militar por força do artigo 1 o do mesmo Código, seja por nele se tutelar um bem jurídico próprio da instituição castrense, seja por se conexionar estruturalmente com a mesma instituição, não ofende o disposto no artigo 213° da CRP (revisão de 89).
9. Nos presentes autos está em causa a apreciação da conformidade à Constituição da norma que qualifica como crime essencialmente militar o crime de peculato praticado por militares tendo por objecto dinheiro das Forças Armadas.
As considerações constantes do Acórdão nº 47/99 podem ser invocadas no presente processo. Com efeito, os bens apropriados pelo arguido militar pertencem exclusivamente à administração militar, estando directamente adstritos
à prossecução das finalidades cometidas às Forças Armadas. Também aqui se identifica uma área onde os interesses fundamentais da instituição militar são directamente atingidos: trata-se de um militar que desvia ilegitimamente bens pertencentes às forças armadas, aos quais ele tem acesso por força das suas funções de militar. Existe, pois, uma conexão estrutural, essencial com a instituição militar, que faz com que o crime praticado atinja também valores fundamentais inerentes à existência e funcionamento dessa instituição.
A invocação dos casos de apropriação ilegítima de bens afectos a outros serviços públicos não se afigura procedente para sustentar a tese da inconstitucionalidade defendida pelo recorrente. Por um lado, a especificidade do crime de peculato praticado por militares decorre, desde logo, das funções particulares das Forças Armadas, substancialmente diferentes das funções dos outros órgãos do Estado. Por outro lado, o crime de peculato, previsto no artigo
375º do Código Penal, consubstancia um crime específico, em face do crime de abuso de confiança, previsto no artigo 205º do Código Penal. Desse modo, verifica-se que a apropriação ilegítima de bens, quando praticada por funcionários, também merece um tratamento diferenciado relativamente ao mesmo facto quando praticado por não funcionários.
Improcede, portanto, o presente recurso.
III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 193º, n º 1, do Código de Justiça Militar, enquanto qualifica o crime de peculato militar como crime essencialmente militar, uma situação em que os valores desviados pertenciam à Administração Militar, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 24 de Abril de 2002 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa