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Processo n.º 237/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Mediante decisão proferida em 20 de junho de 2011, o Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente a impugnação judicial do ato tributário de liquidação com o n.º 2007 8310015242, referente ao exercício de 2003, consubstanciado na demonstração de acerto de contas com o n.º 2007 1078962, na demonstração de liquidação de IRC com o n.º 2007 00003997929 e na demonstração de liquidação de juros com os n.ºs 2007 00001143274 e 2007 00001143275, deduzida por A., SGPS, S.A.
A impugnante interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul que, por acórdão de 31 de janeiro de 2012, negou provimento ao recurso.
A impugnante recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«A., SGPS, S.A., melhor identificada nos autos, notificada, na sua qualidade de Recorrente, do douto Acórdão que negou provimento ao Recurso interposto de decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, vem, ao abrigo dos artigos 6º, 70º, n.ºs 1, alínea b), e 2, 71º, n.º 1, 72º, n.ºs l, alínea b) e 2, 75º, n.º 1, 75º-A, n.ºs 1 e 2, e 76º, n.º 1, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional), dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que o mesmo aplicou uma norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei aludida).
A norma em causa é o n.º 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária, o qual foi interpretado e aplicado no Acórdão recorrido num sentido inconstitucional, conforme seguidamente se concretiza.
Em primeiro lugar, a norma em causa foi aplicada com o sentido de que se trata de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma espécie de aplicação analógica das normas tributárias (na medida em que admite que administração fiscal, desconsiderando, para efeitos fiscais, a personalidade jurídica de uma sociedade sedeada na Zona Franca da Madeira, a cuja constituição o contribuinte foi expressamente incentivado pela lei, possa tributar como juros aquilo que reconhece expressamente serem lucros, no plano jurídico-civil); ora, interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola o Princípio Constitucional da Legalidade Fiscal, previsto nos artigos 103º, n.º 2, 104º e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa.
Em segundo lugar, a norma do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, foi também aplicada com o sentido de que se trata de uma norma que admite apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico prosseguido pelo contribuinte, que é a fiscalmente mais onerosa (e, por conseguinte, restringe ou suprime a liberdade de utilização de direitos e prerrogativas de natureza fiscal conferidos pela ordem jurídica); interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola o Princípio Constitucional da Liberdade Económica, previsto no artigo 61º da Constituição da República Portuguesa.
As duas referidas inconstitucionalidades foram oportunamente suscitadas pela ora Recorrente em sede de Recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, nas alegações que apresentou, nomeadamente a págs. 25, 26, 27 e 43 e na conclusão 24.ª, a págs. 49, nas quais claramente invocou que o artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária não deve ser interpretado e aplicado como uma espécie de tipo tributário geral de sobreposição que unicamente admite como via fisca1mente aceitável para cada objetivo económico-jurídico a que for fiscalmente mais onerosa, e que, com essa interpretação, o referido preceito é inconstitucional por infringir de modo flagrante os mencionados Princípios da Legalidade Fiscal e da Liberdade Económica.
Em terceiro lugar, a norma do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária foi ainda interpretada com o sentido de que é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes se integrem numa “cadeia de atos” em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente; interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Esta última inconstitucionalidade foi invocada pela Recorrente seja na impugnação judicial, sob os arts. 66.º e seguintes, seja nas alegações que apresentou no Recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, nomeadamente a págs. 22 e na conclusão 14.ª, a págs. 46 e 47.»
As partes apresentaram alegações e, tendo os autos sido redistribuídos, foi a Recorrente notificada para se pronunciar sobre a possibilidade de o recurso não ser conhecido com fundamento em que as questões colocadas respeitam a interpretações normativas que não integram a ratio decidendi da decisão recorrida, nem foram adequadamente suscitadas perante o tribunal recorrido.
A Recorrente pronunciou-se no sentido do conhecimento de todas as questões de constitucionalidade por si colocadas ao Tribunal Constitucional.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputadas a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A suscitação processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade implica, desde logo, que o recorrente tenha cumprido o ónus de a colocar ao tribunal recorrido, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível, em ato processual e segundo os requisitos de forma que criam para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta. Acresce que, no caso de pretender questionar apenas certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou “arco normativo” que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Neste sentido, escreveu-se no acórdão n.º 269/94 (acessível na Internet, tal como os restantes acórdãos que a seguir se referem sem outra menção, em www.tribunalconstitucional.pt):
“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que - como já se disse - tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos.”
Além destes requisitos, cuja verificação é imprescindível para que se proceda ao conhecimento do recurso de constitucionalidade, há que ter presente que o objeto deste recurso é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Na verdade, tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Ora, no seu requerimento de interposição de recurso a Recorrente, identificou as seguintes três interpretações normativas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada:
- a interpretação normativa do artigo 38º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, no sentido de que se trata de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma espécie de aplicação analógica das normas tributárias (na medida em que admite que a administração fiscal, desconsiderando, para efeitos fiscais, a personalidade jurídica de uma sociedade sedeada na Zona Franca da Madeira, a cuja constituição o contribuinte foi expressamente incentivado pela lei, possa tributar como juros aquilo que reconhece expressamente serem lucros, no plano jurídico-civil);
- a interpretação normativa do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, com o sentido de que se trata de uma norma que admite apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico prosseguido pelo contribuinte, que é a fiscalmente mais onerosa (e, por conseguinte, restringe ou suprime a liberdade de utilização de direitos e prerrogativas de natureza fiscal conferidos pela ordem jurídica);
- a norma do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, interpretada com o sentido de que é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes se integrem numa “cadeia de atos” em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente.
Assim, importa apreciar se, em relação a cada uma destas questões, se mostram preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, acima enunciados.
Relativamente às duas primeiras questões, constata-se que as mesmas não foram adequadamente suscitadas perante o tribunal recorrido, em termos que este estivesse obrigado a delas conhecer.
Com efeito, se atentarmos nas alegações da recorrente no recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo Sul e, concretamente, nas respetivas conclusões, aí apenas se refere, na conclusão 24.ª, que a recorrente entende que «(…) a Sentença proferida pelo Tribunal a quo incorre num flagrante vício de fundamentação e erra no julgamento e interpretação do Direito aplicável – nomeadamente, do nº 2 do artigo 38º da LGT e do artigo 63º do CPPT –, chegando mesmo a pôr em causa, de um modo flagrante, princípios de dignidade constitucional, como sejam o princípio da legalidade fiscal e o princípio da liberdade económica».
Ora, esta referência contida nas conclusões não pode ser entendida como um modo adequado de suscitar as referidas questões de constitucionalidade, uma vez que a mesmas não estão aí minimamente enunciadas, de forma clara e precisa.
Por outro lado, é certo que a Recorrente, numa parte que integra a motivação do seu recurso intitulada «Sentido e limites da previsão contida no n° 2 do artigo 38° da LGT, à luz da sua literalidade e dos juízos que sobre ela faz a mais relevante doutrina» colocou em causa a forma como a referida norma foi interpretada pelo Tribunal Tributário de Lisboa, tecendo diversas considerações e apresentado vários argumentos a propósito dessa interpretação.
Refere-se aí, designadamente, o seguinte:
«Representando a CGAA uma compressão do princípio da tipicidade fiscal, de que decorre a proibição da analogia, conforme atrás se lembrou, ela só será compatível com a CRP se tiver como pressuposto um juízo de valor negativo – e um juízo referente ao plano normativo do sistema jurídico global, em face do qual se reprovam os meios utilizados concretamente por um contribuinte para obter uma situação fiscal mais vantajosa. Só um tal juízo de valor, com efeito, poderá suportar a ideia de que, ao aplicar a um certo negócio real as normas que tipicamente correspondem a outro, a Administração fiscal está ainda a atuar o espírito ou a ratio destas últimas.
O que é determinante, assim, no espírito normativo da CGAA, não é a censura dos efeitos pretendidos – a “redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos” -, mas antes a reprovação dos meios utilizados: os atos ou negócios que possam ser qualificados como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”. Por isso, ao contrário do que, por vezes, parece pensar a Administração fiscal, não existe apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico – o n° 2 do artigo 38° da LGT não configura uma espécie de tipo tributário geral de sobreposição que, diretamente contra a Constituição, impõe sempre aos contribuintes a escolha do caminho fiscalmente mais oneroso”. (cfr. págs. 25 e 26 das alegações de recurso interposto para o TCA).
E, mais adiante, refere-se ainda:
«No entanto, para que um tal instrumento possa ser utilizado sem esvaziar por completo os princípios constitucionais da liberdade económica e da legalidade fiscal, é mister que, quanto a certas formas concretamente realizadas, se possa fazer um juízo de valor negativo, em nome do seu caráter inusitado, anómalo, artificioso, no sentido de se poder dizer que elas, ao serviço de um intuito exclusiva ou predominantemente fiscal, fazem dos atos ou negócios jurídicos uma utilização distorcida e apreciavelmente distinta daquela que o legislador configurou como típica ou adequada – um aproveitamento extra legem, no fundo.
Isto é: em todos os ordenamentos jurídicos – e especialmente no nosso, em que, no plano constitucional, o primado da legalidade fiscal está tão densamente regulado –, a aplicação de normas como a do n° 2 do artigo 32° da LGT obriga o agente administrativo a atuar no plano da normatividade, não lhe facultando um poder não vinculado para atuar uma espécie de prevalência geral do negócio fiscalmente mais oneroso.» (cfr. págs. 26 e 27 das alegações de recurso interposto para o TCA)
Estas referências constantes da motivação do recurso traduzem-se na explanação de diversos argumentos, entre os quais se inclui a convocação genérica de princípios constitucionais, por forma a sustentar a tese preconizada pela recorrente no que respeita aos critérios a ter em conta na interpretação da referida disposição legal e no juízo de subsunção dos factos à previsão nela contida. Não se pode, no entanto, considerar que desta forma a Recorrente tenha enunciado perante o tribunal a quo as questões de constitucionalidade que veio posteriormente a indicar como objeto do recurso, identificando, perante tal tribunal, de forma expressa, clara e precisa, as interpretações normativas do referido preceito legal que reputava de inconstitucionais.
Ora, uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre a Recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.
Sintomático desta omissão é o facto de no acórdão recorrido não se fazer referência a estas questões de constitucionalidade. E tal deve-se, justamente, à não suscitação adequada das mesmas pela Recorrente.
Mas, ainda que se considerasse que tais questões haviam sido adequadamente suscitadas, seria também impeditiva do seu conhecimento a circunstância de o tribunal a quo não ter adotado as referidas interpretações normativas e, consequentemente, não ter chegado efetivamente a aplicá-las como fundamento da decisão recorrida (ratio decidendi).
Com efeito, se atentarmos na leitura da decisão recorrida, dela não resulta que os preceitos em causa tenham sido entendidos e aplicados, explícita ou implicitamente, como «(…) uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma espécie de aplicação analógica das normas tributárias» ou «com o sentido de que se trata de uma norma que admite apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico prosseguido pelo contribuinte, que é a fiscalmente mais onerosa (e, por conseguinte, restringe ou suprime a liberdade de utilização de direitos e prerrogativas de natureza fiscal conferidos pela ordem jurídica)». Esta foi, é certa, a leitura crítica que a Recorrente entendeu fazer da forma como o Tribunal Tributário de Lisboa e, em recurso, o Tribunal Central Administrativo Sul, aplicaram ao caso concreto o disposto no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, mas a verdade é que, conforme se disse, tais alegadas interpretações normativas não têm qualquer correspondência no texto da decisão recorrida, nem é possível adivinhá-las como pressupostos implícitos da fundamentação explanada.
E o mesmo acontece com a terceira das questões de constitucionalidade enunciadas pela recorrente, ou seja, a questão respeitante à interpretação normativa do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, no sentido de que «é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes se integrem numa “cadeia de atos” em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente».
Além de tal questão também não ter sido suscitada nos mesmos termos em que agora é colocada ao Tribunal Constitucional, o critério anunciado não coincide com os fundamentos do acórdão recorrido.
O Tribunal recorrido considerou improcedente a conclusão 14.ª das alegações de recurso da Recorrente, onde a questão se encontrava suscitada, com a seguinte fundamentação:
«[…]
- No que concerne à caducidade do direito à utilização do procedimento previsto no art.º 63.°, do CPPT, nos termos do seu n.º 3, sustenta a recorrente que o mesmo se verificou na medida em que, em seu entender, os factos que balizam o respetivo “dies a quo”, apenas podem ser «[…] a “interposição” da B. e a celebração de contratos entre esta última e a C. […]», factos estes que tiveram lugar mais de três anos antes do início do processo de inspeção.
- Ora, tal como o refere a decisão recorrida, no caso que aqui nos ocupa, o abuso de formas com vista à obtenção de vantagem fiscal indevida, não se consubstancia num único ato mas antes numa cadeia de atos, que, no mínimo, se iniciam com a utilização da «B.», usufruindo da circunstância de estar sedeada na Zona Franca da Madeira, e que culminam na obtenção, por via abusiva, dos rendimentos decorrentes dos empréstimos efetuados à C.» «[…] devendo por isso a operação ser tratada como um todo, aplicando-se a disposição antiabuso ao momento decisivo e final que é representado pela receção de acréscimos patrimoniais como dividendos dedutíveis […]».
- Assim, sendo «a noção de ata jurídico […], na linguagem da norma, propositadamente ampla, visando toda e qualquer ação ou conduta humana à qual sejam atribuídos efeitos jurídicos […] a delimitação do objeto sobre a qual vai funcionar a CGAA, retira-se […], quer do apuramento de facto dos atos ou negócios praticados pelo contribuinte, quer pela relação de interdependência que entre eles se estabeleça, comprovando os laços que os ligam de um ponto de vista lógico e finalístico.
- Ora, estribando a recorrente a caducidade naquela linha argumentativa de que os factos adequados ao balizar do despoletar do prazo de caducidade estatuído no n.º 3, do art.º 63.º do CPPT, eram, apenas, a interposição da B. e celebração dos empréstimos entre esta e a «C.», e não se nos afigurando de sufragar tal doutrina, na medida em que a perceção plena do abuso de formas e da vantagem fiscal indevida e pretendida apenas é possível no final do circuito, quando a mesma é concretizada, forçoso se impõe concluir no sentido em que concluiu a decisão recorrida, ou seja, pela falência da alegada caducidade, nos termos em foi feita.
- E, com o ser assim, naufraga, também, a invoca da aplicação retroativa da lei, nos termos em que se encontra balizada pela conclusão 14.ª, já que, ali, a recorrente a faz depender da dita interposição da «B.» consubstanciar o facto adequado ao despoletar do prazo de caducidade, ou, como melhor se refere na dita conclusão, «[…] Além disso, se a “interposição” da B. é, como cremos e parece indiciar a própria atuação da Administração fiscal e a decisão proferida pelo Tribunal a quo, o marco decisivo para iniciar a contagem do referido prazo, coloca-se ainda um segundo problema: é que, ao tempo do licenciamento e constituição desta sociedade - i.e., em 3/08/1995 e 16/08/1995, respetivamente -, não se encontrava em vigor o nº 2 do artigo 38° da LGT. Nestes termos, pretender aplicar a estes factos a referida disposição legal da LGT significa obviamente incorrer numa aplicação retroativa da lei […]», o que, como acima se referiu, se entende sem aderência à realidade.
[…]»
Ou seja, o Tribunal Central Administrativo Sul julgou improcedente este argumento do recurso por ter considerado, não que a norma constante do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, pudesse ser aplicada retroactivamente a factos anteriores à sua entrada em vigor, mas porque entendeu que, no caso dos autos, o abuso de formas com vista à obtenção de vantagem fiscal indevida não se consubstancia num único ato, mas antes numa cadeia de atos, devendo por isso a operação ser tratada como um todo, assumindo no caso concreto a receção de acréscimos patrimoniais a título de dividendos dedutíveis o momento decisivo que determina a aplicação do disposto no referido preceito legal.
Em suma, não se pode inferir desta decisão que ela tenha aceite como pressuposto genérico que o artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor, desde que estes se integrem numa “cadeia de atos” em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, mas antes que a disposição em causa, se aplica ao caso concreto, porque a receção de acréscimos patrimoniais a título de dividendos dedutíveis, assume-se como o momento decisivo da operação em causa, tendo a mesma ocorrido já na vigência daquele dispositivo.
Assim, não se constatando que o critério normativo enunciado pela recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, integre a ratio decidendi do acórdão recorrido, também não é possível apreciar esta questão de constitucionalidade.
Pelo exposto, não se mostrando satisfeitos os referidos requisitos essenciais do recurso de constitucionalidade sob apreciação, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do seu mérito.
Decisão
Pelo exposto, não se conhece do recurso interpostos para o Tribunal Constitucional por A., SGPS, S.A., do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido nestes autos em 31 de janeiro de 2012.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete (vencido conforme declaração que junto) – Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido: o Tribunal devia ter apreciado o mérito do recurso quanto às três questões de inconstitucionalidade que lhe foram colocadas.
A) Quanto às primeiras duas questões
No que se refere à adequação da suscitação das duas primeiras questões perante o tribunal recorrido – questões essas atinentes, respetivamente, ao princípio da legalidade fiscal (proibição da analogia) e ao princípio da liberdade económica» - verifica-se não apenas ser exato o que é invocado pela recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (referência às pp. 25-27 e 43 e à conclusão 24.ª das alegações relativas ao recurso para a segunda instância), como também que, contrariamente ao afirmado na decisão ora adotada, o acórdão recorrido se pronunciou ex professo sobre as mesmas, considerando-as improcedentes: “de facto, pelas razões acima aduzidas, não se vislumbra em que é que a decisão recorrida, ao decidir como decidiu, tenha violado o princípio da legalidade fiscal, nem tão pouco o direito de liberdade económica […]” (v. fls. 728).
Relativamente ao segundo fundamento de não conhecimento – a não coincidência entre os critérios normativos arguidos de inconstitucionalidade pela recorrente e os critérios normativos em que se fundou o acórdão recorrido –, o acórdão recorrido considera manifesta a existência do abuso formas, atentas as circunstâncias em que foi feita a concessão de empréstimos pela B. à C. e o destino dado às receitas decorrentes desses mesmos empréstimos, já que, podendo estes ser dados diretamente pela A. à C. com o inerente pagamento dos respetivos juros, “o foi, no entanto, feito, como refere a recorrente, pela «interposição» da B., que, por força da sua localização na ZF Madeira, permitiu que a «A.» recebesse os rendimentos equivalentes a esses mesmos juros mas disponibilizados na forma de distribuição de dividendos com um regime fiscal privilegiado relativamente àquele que teria de suportar se tivesse utilizado aquela via direta” (v. fls. 727-728).
E, com referência a esta factualidade, o acórdão recorrido justificou a aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, louvando-se na lição de A. Carlos Santos, com base numa “estreita ligação” da cláusula geral anti-abuso (“CGAA”), consagrada naquele preceito, com o «mecanismo preventivo da elisão fiscal de funcionamento apriorístico», entretanto publicado, “de modo que «(…) o espaço destas cláusulas deve, no fundamental, ser o mesmo do regime do planeamento fiscal abusivo», enquanto «esquema ou atuação que determine, ou se espera que determine, de modo exclusivo ou predominante, a obtenção de uma vantagem fiscal» […]”(v. fls. 728). No caso vertente, prossegue o acórdão recorrido, “ainda que tendo [a atuação da recorrente], simultaneamente, visado atingir objetivos extra-fiscais, a verdade é que não deixa de impressionar que, face à identidade de espaço ocupado pelo dito mecanismo legal preventivo da elisão fiscal, nos termos antes referidos e a CGAA, aquele eleja como elementos indiciadores de condutas/atos/negócios potencialmente abusivos os que impliquem, designadamente, a participação de entidade total ou parcialmente isenta e em que, como refere aquele ilustre autor, seguindo as orientações interpretativas «(…) estão englobadas nesta categoria a situação de constituição ou aquisição de sociedade que beneficie de isenção de rendimentos obtidos no estrangeiro, para a qual sejam canalizadas prestações suplementares a utilizar para financiamentos da mesma empresa no estrangeiro, requalificando assim proveitos (sic) de juros sujeitos a imposto em dividendos dedutíveis na determinação do lucro tributável», o que, ainda que sem uma identidade factual absoluta, não deixa, a nosso ver de constituir um contributo válido à dilucidação do caso que aqui se controverte […]” (v. ibidem).
A admissão de um «tipo legal aberto ou de sobreposição» (primeira questão) e a pressuposição de que existe uma «via fiscal prevalecente» (segunda questão, em parte) parecem incontornáveis.
A) Quanto à terceira questão
Relativamente à terceira questão de inconstitucionalidade (a que tem por objeto o artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, interpretado no sentido de o mesmo ser “aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes integrem numa «cadeia de atos» em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente; interpretada com este sentido a norma é materialmente inconstitucional”), é referido na conclusão 14.ª das alegações para o tribunal ora recorrido que ao tempo do licenciamento e constituição da B. não se encontrava em vigor o n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária, pelo que “pretender aplicar a estes factos a referida disposição legal da LGT significa obviamente incorrer numa aplicação retroativa da lei, em violação manifesta do n.º 3 do artigo 103.º da CRP […]”. A questão de inconstitucionalidade suscitada, no essencial, é, a mesma: a retroatividade – e consequente inconstitucionalidade - do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, em virtude de o mesmo desconsiderar ou tornar ineficazes atos jurídicos praticados anteriormente ao seu início de vigência.
Quanto ao problema da ratio decidendi do acórdão recorrido, este assume expressamente que a previsão do preceito legal em causa é complexa e implica um encadeamento sucessivo de atuações que, pelo seu caráter abusivo lato sensu, permitem a obtenção intencionada de uma vantagem fiscal que, não fora o dito abuso, não teria sido possível alcançar. Na verdade, a aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária exige uma prognose objetiva póstuma e a estatuição desse preceito - a ineficácia jurídica no âmbito tributário – atinge todos os atos que concorreram para a produção do resultado final – a vantagem fiscal ilegítima. Aliás, a neutralização desta vantagem ilegítima – que é o objeto da cláusula geral anti-abuso – só é possível mediante a ineficácia jurídica dos atos que a causaram. Deste modo, sendo embora o resultado final o «detonador» da aplicação da cláusula geral anti-abuso, a aplicação da mesma atinge os factos que produziram tal resultado. In casu o tribunal recorrido, citando a decisão da primeira instância, assumiu isso mesmo: “o abuso de formas com vista à obtenção de vantagem fiscal indevida, não se consubstancia num único ato, mas antes numa cadeia de atos, que, no mínimo, se iniciam com a utilização da «B.», usufruindo da circunstância de estar sedeada na Zona franca da Madeira, e que culminam na obtenção, por via abusiva, dos rendimentos decorrentes dos empréstimos efetuados à «C.»” (v. fls. 726).
E a seguir o mesmo tribunal justifica por que é que, apesar disso, não há retroatividade (“com o ser assim, naufraga, também, a invocada aplicação retroativa da lei, nos termos em que se encontra balizada pela conclusão 14.ª” – v. fls. 726). Porém, essa é uma questão que releva já do mérito do recurso de constitucionalidade, e não da sua admissibilidade.
Por outras palavras, e recordando a lição de Baptista Machado: a obtenção da vantagem fiscal ilegítima define apenas o âmbito de competência (a aplicabilidade) da cláusula geral anti-abuso – tal resultado é o facto determinante da competência da cláusula; mas não há dúvida de que os factos que produzem tal vantagem – e que são necessariamente anteriores - se situam no âmbito de aplicação ou eficácia da mesma cláusula, isto é, encontram-se abrangidos pela respetiva hipótese e, por isso, também são atingidos pelos efeitos constantes da sua estatuição.
Pedro Machete