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Processo n.º 295/01
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Não se conformando com a coima de Esc. 500.000$00, que lhe foi aplicada por falta de liquidação e entrega de IVA com a declaração periódica, contra-ordenação punida pelo artigo 29º, n.ºs 2 e 9 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), D..., Ldª recorreu para o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, que negou provimento ao recurso por sentença de 6 de Outubro de 2000. Ainda inconformada, recorreu dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, pedindo a revogação da sentença, e dizendo nas alegações, no que ora interessa, que
'(...) O requerido pagamento excepcional veio a ser deferido por despacho de 24.02.97, do Senhor Chefe da Repartição de Finanças, e igualmente por comunicação datada de 17.06.98, foi comunicado à arguida que ‘é com agrado que, segundo os elementos disponíveis, verificamos que V.Exª (essa entidade) tem cumprido com as obrigações decorrentes do plano de regularização autorizado ao abrigo do Dec-Lei n.° 124/96 de 10 Agosto’. Ao permitir uma regularização excepcional para a entrega da prestação em falta, o citado diploma legal, veio retirar do âmbito da tipificação prevista no artigo
29° RJIFNA, a situação dos autos, ao permitir o pagamento em prazo excepcional, superior ao previsto nas disposições conjugadas do artigos 26° e 40° do CIVA. O DL n.° 124/96 de 10.08, veio alargar o prazo máximo de entrega de determinadas prestações tributárias, excepcionando-as do disposto do artigo 29° RJIFNA. O DL n.° 124/96 de 10.08, prevê um tratamento mais favorável ao contribuinte fiscal, que tem de ser necessariamente entendido, também, como um alargamento excepcional do prazo de entrega das prestações tributárias abrangidas. A Lei n.° 51-A/96 de 9.12, veio no artigo 2° n.°1, suspender o processo criminal
‘se o agente obtiver da administração fiscal, nos termos legais, autorização para efectuar o pagamento dos impostos e respectivos acréscimos legais em regime prescricional ...’. E, o n.° 3 do mesmo diploma legal veio extinguir a responsabilidade criminal dos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais que tenham dado origem às dividas abrangidas pelo disposto, nomeadamente, no Decreto-Lei, 124/96, de 10 Agosto. Ora igual regra de extinção do procedimento da responsabilidade por contraordenações deve ser aplicável à previsão do artigo 29° RJIFNA. De outro modo, entre dois arguidos que recorreram ao DL n.° 124/96 de 10.08, estaríamos a penalizar o agente que agiu por mera negligência e a premiar o agente que praticou uma fraude fiscal ou o abuso de confiança fiscal ou uma frustração de créditos fiscais. Se assim fosse, estaríamos perante uma séria violação ao principio de igualdade de tratamento do cidadão pelo Estado, violando o principio constitucionalmente consagrado da igualdade perante a lei previsto no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.
(...) f) Também a Lei n.° 51-A/96 de 9.12, veio no artigo 2° n.° 1, suspender o processo criminal ‘se o agente obtiver da administração fiscal, nos termos legais, autorização para efectuar o pagamento dos impostos e respectivos acréscimos legais em regime prescricional...’ g) O n.° 3 do mesmo diploma legal veio extinguir a responsabilidade criminal dos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais que tenham dado origem às dividas abrangidas pelo disposto, nomeadamente, no Decreto-Lei, 124/96, de 10 Agosto. h) Igual regra de extinção do procedimento da responsabilidade por contraordenações deve ser aplicável à previsão do artigo 29° RJIFNA. i) De outra forma estaríamos perante de uma séria violação ao principio de igualdade de tratamento do cidadão pelo Estado. j) A arguida não cometeu assim a infracção que lhe foi imputada a fls., ou subsidiariamente, deve-se julgar extinta a responsabilidade pela mesma. k) A sentença recorrida viola o principio constitucionalmente consagrado da igualdade perante a lei previsto no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.' Por Acórdão de 21 de Fevereiro de 2001, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, considerando:
'(...) A única questão que vem colocada no presente recurso respeita à aplicabilidade da lei 51-A/96 às infracções contra-ordenacionais nos casos em que foi requerido o regime do DL 124/96. Prescreve o artigo 1º daquele diploma legal que o mesmo é aplicável aos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais que tenham dado origem às dívidas abrangidas pelo disposto nos DL 225/94 e 124/96. Para esses casos de adesão ao regime de incentivos para cobrança fiscal vem aquele DL 51-A/96, nos termos do seu artigo 2º, suspender os processos de averiguações e o processo penal fiscal enquanto se mantiver o pagamento pontual das prestações. Não obstante aquele artigo 1º estabelecer expressamente qual o âmbito de aplicação do diploma, que como aí se vê respeita apenas aos crimes, entende a recorrente que não faria sentido a aplicação a infracções mais graves deixando de fora outras menos graves, o que violaria o princípio da igualdade. (...) Ora a interpretação propugnada não vem fundada em alicerce bastante, gramatical, racional, sistemático ou histórico, como expressamente se tem dito em vários acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo (...), acórdãos esses que entendem, tal como o tem feito o Tribunal Constitucional em inúmeros acórdãos, que só viola o princípio da igualdade a aplicação a situações idênticas de tratamento diferente, mas não a consideração de modo diverso de situações diferentes. No caso vertente as infracções criminais e contra-ordenacionais são de natureza diferentes pelo que não ocorre violação de tal princípio se o legislador as trata de modo diverso.' Deste Acórdão foi interposto pela recorrente o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, 'pretendendo-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, n.º 1, Lei n.º 51-A/96 de 9.12, e do artigo 1º DL n.º
124/96 de 10.08, na interpretação e aplicação efectuada no douto acórdão recorrido, porquanto viola o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa'. O recorrente concluiu as suas alegações dizendo, designadamente:
'(...) k) Refere-se no Acórdão recorrido que ‘o legislador não ignorava que existiam crimes e contra-ordenações pelo que, se apenas se referiu aos primeiros não cabe ao intérprete substituir-se-lhe estendendo a lei a casos que ela não contempla’. l) Ora este entendimento viola gravemente o princípio da igualdade consagrado pelo artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. m) É inadmissível que o mesmo legislador que extingue a responsabilidade criminal dos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais, não o faça relativamente às contraordenações, que são ilícitos de mera ordenação social, cuja incursão consubstancia claramente um ilícito menor. n) O direito contra-ordenacional corresponde a uma degradação de anteriores ilícitos de menor gravidade, desde as antigas contravenções a outros diversos actos que estariam situados numa zona cinzenta entre o ilícito penal típico e o ilícito de menos censurável, passível de aplicação de meras sanções pecuniárias pelas autoridades administrativas, relativamente às quais se justifica um regime mais flexível que o previsto pelo Código Penal, permitindo um mais justo sancionamento, já que a coima visa sancionar um mau comportamento social, em nada comparável a um crime.
(...) s) Torna-se incompreensível que, entre dois arguidos que recorreram ao DL 124/96 de 10.08, penalizemos o agente que agiu por mera negligência e premiemos o agente que praticou uma fraude fiscal ou o abuso de confiança fiscal ou uma frustração de créditos fiscais. t) Este entendimento viola seriamente o princípio de igualdade de tratamento do cidadão pelo Estado, o princípio constitucionalmente consagrado da igualdade dos cidadãos perante a lei previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. u) Urge tratar quem age com um grau de ilicitude menor de igual forma como se trata quem age com um grau de ilicitude bastante maior e só nesta medida se infere a dimensão democrática, social e liberal da Lei. v) De outra forma estaríamos perante uma séria violação do princípio de igualdade de tratamento do cidadão pelo Estado.
w) A arguida não cometeu assim a infracção que lhe foi imputada a fls., ou subsidiariamente, deve-se julgar extinta a responsabilidade pela mesma. x) O acórdão recorrido viola o princípio constitucionalmente consagrado da igualdade perante a lei previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 51-A/96 de 9 de Dezembro, e do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto. A norma contida no artigo 2º, n.º 1, da Lei nº 51-A/96, de 9 de Dezembro (diploma que alterou o RJIFNA, prevendo a suspensão do processo e a extinção da responsabilidade criminal no quadro da regularização de dívidas abrangidas pelo disposto no Decreto-Lei n.º 225/94, de 5 de Setembro, e no Decreto-Lei n.º
124/96, de 10 de Agosto), dispõe o seguinte:
'Artigo 2.º Suspensão do processo e da prescrição
1 – Se o agente obtiver da administração fiscal, nos termos legais, autorização para efectuar o pagamento dos impostos e respectivos acréscimos legais em regime prestacional, o processo de averiguações será suspenso enquanto se mantiver o pagamento pontual das prestações. Por sua vez, a norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto dispõe:
'Artigo 1.º Objecto
1 – O presente diploma visa regular as condições em que, sem prejuízo dos regimes previstos no Código de Processo Tributário e nos diplomas relativos aos vários impostos e contribuições para a segurança social, os créditos por dívidas de natureza fiscal ou à segurança social cujo prazo de cobrança voluntária tenha terminado até 31 de Julho de 1996, adiante designados como créditos, podem ser objecto de medidas excepcionais de diferimento de pagamento, de redução de valor, de conversão em capital das entidades devedoras ou de alienação.
2 – O presente diploma é igualmente aplicável à cobrança de créditos por: a) Dívidas relativas a quotizações devidas ao extinto Fundo de Desemprego; b) Dívidas à segurança social em que tenha havido transferência de créditos para a titularidade do Tesouro.
3 – Serão abrangidas todas as dívidas, com a natureza referida nos n.ºs 1 e 2, que sejam declaradas pelo devedor no requerimento que solicite a aplicação das medidas, ainda que desconhecidas da administração fiscal, ou das instituições de previdência e de segurança social.
4 – Das dívidas referidas no número anterior serão pagas em primeiro lugar as respeitantes a impostos e contribuições retidos na fonte ou legalmente repercutidos a terceiros, seguindo-se as dívidas por capital de outros impostos e contribuições, ambas com os respectivos juros de mora vencidos, e as dívidas por juros de mora vincendos, devendo ser pagas primeiramente, de entre as dívidas da mesma natureza, as mais antigas.' A recorrente defende a extinção do processo contraordenacional que lhe foi imposto, pela prática do ilícito previsto no artigo 29º, n.ºs 1 e 2 do RJIFNA
(falta de entrega da prestação tributária), alegando que violaria o princípio da igualdade uma interpretação das normas sob recurso que abrangesse apenas a responsabilidade criminal, comparando a aplicação da Lei n.º 51-A/96 aos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais, com a sua não aplicação à responsabilidade contraordenacional. Tal inconstitucionalidade, reportada às disposições em causa, foi suscitada perante o tribunal a quo. Por outro lado – podendo embora questionar-se se a norma da qual, segundo a lógica da recorrente, deveria resultar a extinção do procedimento contraordenacional, não seria, antes, a do artigo 3º daquela Lei n.º 51-A/96
(segundo a qual 'o pagamento integral dos impostos e acréscimos legais extingue a responsabilidade criminal') –, é certo que tal questão de constitucionalidade normativa, reportada às referidas normas do artigos 2º, n.º 1, da Lei n.º
51-A/96, e 1º do Decreto-Lei n.º 124/96, foi apreciada na decisão recorrida, que entendeu não existir inconstitucionalidade, podendo entender-se que o tribunal a quo terá aplicado tais normas, excluindo consequentemente a extinção de responsabilidade criminal. Há, pois, que tomar conhecimento do recurso, tendo por objecto as normas do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 51-A/96 de 9 de Dezembro, e do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, na interpretação segundo a qual delas não resulta igualmente a suspensão e a extinção da responsabilidade pelo ilícito contra-ordenacional previsto no artigo 29º, n.ºs 1 e 2 do RJIFNA. Convém recordar que no artigo 1º da Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro se definiu como âmbito de aplicação objectivo daquele diploma os crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais que resultem das condutas ilícitas que tenham dado origem às dívidas abrangidas pelo disposto no Decreto-Lei n.º 225/94, de 5 de Setembro, e no Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto. Aquele Decreto-Lei nº 225/94 viera, a título excepcional, permitir a regularização das dívidas fiscais em prestações, relativamente às obrigações cujo prazo de cobrança tenha terminado até 31 de Dezembro de 1993. Este Decreto-Lei nº 124/96, por sua vez, veio definir as condições em que se podem realizar as operações de recuperação de créditos fiscais e da segurança social previstas no artigo 59.º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, consagrando,
'relativamente à generalidade dos devedores, um regime geral de pagamento em prestações mensais, até um máximo de 150' e, por outro lado, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido por aquele artigo 59.º um 'regime extraordinário de mobilização de activos e de recuperação de créditos' com vista ao diferimento de pagamento, de redução de valor, de conversão em capital das entidades devedoras ou de alienação, dos créditos por dívidas de natureza fiscal (ou à segurança social) cujo prazo de cobrança tivesse terminado até 31 de Julho de
1996. Por outro lado, resulta do artigo 29º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro), que é considerada contra-ordenação fiscal a falta de entrega, total ou parcialmente, pelo período até 90 dias, ao credor tributário da prestação tributária deduzida nos termos da lei. Se tal conduta for imputável a título de negligência é aplicável 'coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido' (n.º 2). Por outro lado, os crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais estão tipificados nos artigos 23º, 24º, e 25º do referido RJIFNA, respectivamente como:
· 'as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias' (fraude fiscal), sendo tais condutas a ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável, a ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração fiscal, ou a celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas;
· a apropriação 'total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário' (abuso de confiança fiscal);
· a conduta de 'quem, sabendo que tem de pagar imposto já liquidado ou em processo de liquidação, alienar, danificar ou ocultar, fizer desaparecer ou onerar o seu património com intenção de, por essa forma, frustrar total ou parcialmente o crédito de imposto' (frustração de créditos fiscais). Para a recorrente, seria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a previsão de um regime de regularização de dívidas do qual resultasse a extinção de responsabilidade criminal, por tais crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais, mas não já pela contra-ordenação referida. Assim configurada, a questão de constitucionalidade substancialmente idêntica à trazida pelo presente recurso à apreciação deste Tribunal foi já decidida por este. Foi-o, primeiro (embora com referência ao artigo 3º da Lei n.º 51-A/96), no Acórdão n.º 245/00 (publicado no Diário da República, II série, de 3 de Novembro de 2000), que confrontou o ilícito contra-ordenacional em questão com o crime de abuso de confiança fiscal, em termos que são, porém, com as devidas adaptações, transponíveis para o presente recurso. Nesse aresto, depois de comparar as previsões do ilícito contra-ordenacional de falta de entrega de prestação tributária e do crime de abuso de confiança fiscal, e de se concluir pela sua diferença quanto ao elemento subjectivo do tipo, confrontou-se também com o princípio da igualdade a solução normativa consistente no diferente tratamento do ilícito criminal e do ilícito contra-ordenacional, em questão. Disse-se então:
'(…) Trata-se, pois, de diferentes normas, previsoras de ilícitos de diferente natureza, sendo asado realçar aqui que não procede a óptica da impugnante, a qual parece apontar no sentido de que a responsabilidade contra-ordenacional se enquadra no âmbito da responsabilidade criminal, pois que nem aquela se subsume a esta, nem esta é o género de que aquela é a espécie. Efectivamente, como diz Eduardo Correia (in Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIX – 1973, págs. 279/280) tendo em consideração a responsabilidade contra-ordenacional, ‘o respectivo ilícito não pertence ao direito criminal, na medida em que as respectivas sanções estão desligadas do pathos que as caracteriza e não desqualificam o agente a quem são impostas com a mácula de uma reprovação ético – jurídica’. Neste domínio, veja-se também a distinção efectuada por Costa Andrade (Contributo para o conceito de contra-ordenação (A experiência alemã) na Revista de Direito e Economia, anos VI/VII – 1980/1981, págs. 81 e segs., 117 e 118), onde se pode ler:
‘(...) a categorização de uma infracção como crime ou contra-ordenação ou a sua conversão recíproca dependem sempre da mediação criadora do legislador.
(...) Trata-se de uma decisão necessariamente política e pragmática que, sem ser arbitrária, comporta, apesar de tudo, um coeficiente irredutível de indeterminação e discricionaridade. Ela ocorre, com efeito, sob o desenvolvimento de um conjunto de normas e princípios constitucionais que estabelecem orientações e corporizam, por assim dizer, um programa de política criminal imposto ao legislador ordinário. Reportamo-nos não só, nem principalmente aos preceitos de natureza orgânico-formal que condicionam a produção legislativa nesta matéria, v. g., a eventual exigência da forma de lei ou a reserva de competência da assembleia legislativa. Reportamo-nos, para além disso e sobretudo, aos preceitos de índole material ou substancial através dos quais se recorta a Menschenbild e a Weltanschauung que a Constituição propõe ao legislador e pelas quais este deve alinhar em matéria de criminalização, descriminalização ou imposição de coimas. É, por exemplo, a partir de princípios como o do respeito da dignidade humana, da liberdade (maxime de crença ou de religião), da igualdade e do Estado de Direito, que a doutrina alemã tem vindo recentemente a fundamentar os programas de descriminalização. Tem sido, v. g., em nome da dignidade humana que se tem sentido a necessidade de restringir o recurso ao gravame da pena criminal a certas lesões de bens jurídicos de reconhecida importância ético-social. (págs. 117/118).
(...)’ Assinalam também Figueiredo Dias (O Movimento da Discriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, in Jornadas de Direito Criminal, o Novo Código Penal Português e Legislação Complementar. C.E.J., 327) e Germano Marques da Silva
(Direito Penal Português, 1997, Parte Geral, I, 140 e 141) que propõem para a distinção entre os ilícitos criminal e o de mera ordenação social o critério da relevância ou irrelevância ética das condutas, ou seja, um critério repousante em características materiais ou qualitativas, não sendo, pois, um critério meramente formal.
3. Neste contexto, ser-se-á levado a concluir desde logo que, do ponto de vista de congruência, não existe qualquer vício lógico quando uma norma ou um seu determinado sentido interpretativo conduzam a que a extinção da responsabilidade criminal por ela ditada não implique necessariamente a extinção da responsabilidade contra-ordenacional. Afirma, porém, a recorrente que uma interpretação em tal sentido seria violadora dos ‘princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, entre outros, aflorados no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição’.
(...)
3.1. Poderia, contudo, dizer-se que as referências doutrinais e jurisprudenciais que a recorrente faz, nomeadamente, ao princípio da igualdade, não se reportavam ao contido no artigo 266º, nº 2, da Constituição, mas a esse mesmo princípio enquanto corporizado no seu artigo 13º. Ainda que assim fosse, não se lobriga que este preceito consagrador de um princípio geral dos direitos e deveres fundamentais seja beliscado pela norma em questão. Efectivamente, tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é ‘sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental -,ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)' (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o 'princípio da igualdade
(...) impõe se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional’ (verbi gratia, Acórdão n.º 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de 13 de Fevereiro de 1997). Pois bem. Tendo em conta o que acima se referiu, seja na caracterização diferencial entre o ilícito criminal e o ilícito contra-ordenacional, seja no que tange à dissemelhança entre os elementos subjectivos de um e de outro dos ilícitos que aqui se enfocaram, ser-se-á levado a concluir que se trata de realidades muito diversas, pelo que, em face dessa diversidade, o Diploma Básico não imporia ao legislador (ou ao intérprete aplicador da norma ínsita no artº 3º da Lei nº
51-A/96) que viesse a adoptar a mesma solução para um e outro quando decidisse regular os efeitos advenientes de um pagamento voluntário da obrigação tributária. Aliás, se se atentar em que, numa situação na qual o legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a devida prestação, aquele o não fez num período muito dilatado no tempo, isso pode constituir um primeiro indício da plausibilidade de instauração de um auto de notícia com vista a averiguar se o crime de abuso de confiança fiscal se desenha, é explicável que, perante o espontâneo pagamento da dívida ou perante uma manifestação de vontade de onde se extraia a intenção do tributado em vir a proceder a esse pagamento, aquele primeiro indício fique sobremaneira abalado em termos de se não justificar a abertura do auto de notícia ou de prosseguir nas averiguações, justamente pela circunstância de o pagamento ou a manifestação da intenção de pagar, ao menos em sede de primeira aparência, se não apresentar como compatível com a intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial (cfr., o artº 26º do RJNIFA, cujo âmbito de aplicação não abrange o ilícito contra-ordenacional de falta de entrega de prestação tributária, o que se compreende porque, impondo-se o pagamento atempado da obrigação tributária, o intuito da previsão desse ilícito
é, precisamente, o de punir com coima quem adoptou um comportamento que conduziu
à falta de cumprimento pontual daquela obrigação, sem, no entanto, a respectiva vontade ser iluminada pelo desiderato de obtenção de uma vantagem patrimonial própria ou alheia).' Concluiu-se, assim, pela inexistência de violação do princípio da igualdade pela solução normativa em questão, ao prever apenas a extinção da responsabilidade criminal, e não já pelo ilícito contra-ordenacional. E mais recentemente, no Acórdão n.º 383/01, ainda inédito, o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª secção, decidiu também 'não julgar inconstitucional a norma do artigo 1º da Lei nº 51-A/96, interpretada no sentido deste diploma se não aplicar às infracções contra-ordenacionais' Ora, estas considerações, reportadas à comparação entre o crime de abuso de confiança fiscal e o ilícito contra-ordenacional previsto no artigo 29º, n.ºs 1 e 2, do RJIFNA, são aplicáveis ao presente recurso, desde logo, enquanto está também em parte em causa a comparação com aquele crime. Tais considerações são, além disso, também aplicáveis, com adaptações, aos crimes de fraude fiscal e de frustração de créditos fiscais. Também aqui, é claro que se trata de normas previsoras de ilícitos de diferente natureza, desde logo, porque, no crime de fraude fiscal, hão-de estar em causa determinadas condutas previstas na lei – a ocultação ou alteração de factos ou valores ou a celebração de negócio simulado – com a finalidade da não entrega do imposto, e na frustração de créditos fiscais, o que é punido é a alienação, danificação, ocultação, dissipação ou oneração do património por quem sabe que tem de pagar imposto já liquidado ou em processo de liquidação, 'com intenção de, por essa forma, frustrar total ou parcialmente o crédito de imposto'. Isto, enquanto no ilícito contra-ordenacional imputado à recorrente o que releva é a pura e simples falta de entrega da prestação tributária. Aliás, também no presente recurso é cabido sublinhar que, pelo menos atendendo aos tipos de ilícitos ora em causa, não pode ser considerada procedente, para dela se extrair uma conclusão de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, uma perspectiva segundo a qual responsabilidade contra-ordenacional é de enquadrar, como minus, no âmbito da responsabilidade criminal. Como se disse no Acórdão n.º 245/00, 'nem aquela se subsume a esta, nem esta é o género de que aquela é a espécie.' Recorde-se que, como a este respeito se disse no citado Acórdão 383/01:
'(...) se a actividade fiscal do Estado assume importância crucial na distribuição da riqueza e do rendimento, associada à realização da justiça social enquanto concretização do estado de direito democrático, a que correlativamente corresponde por parte dos cidadãos o ‘dever fundamental de pagar impostos’, não será de estranhar que em domínio tão sensível o legislador delimite clara, restrita e precisamente as situações em que pode haver lugar à extinção da responsabilidade criminal e à extinção da responsabilidade contra-ordenacional.
É que, como é sabido, o direito penal obedece ao princípio da necessidade e da intervenção subsidiária, só podendo intervir quando se verifiquem lesões insuportáveis da convivência humana em sociedade, o que inibe a sua intervenção quando as condutas não violam bens jurídicos individualizáveis e, mesmo aí, só pode intervir quando as sanções dos outros ramos do direito se revelem manifestamente ineficazes para tutela do bem jurídico em presença, o que serve por dizer que o direito penal se há-de configurar como a ultima ratio da política social. Se assim é, bem se compreende a existência de ilícitos diferentes (v.g., contra-ordenação, ilícito disciplinar, ilícito administrativo) ainda que a conduta não mereça tutela penal, se encontre descriminalizada ou extinta (e até prescrita) a respectiva responsabilidade penal. Ora, como bem acentua[va] o Exm.º Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, a solução legislativa de extinguir a responsabilidade criminal desde que pagos os impostos devidos, sem que se extinga a responsabilidade contra-ordenacional ‘pode inclusivamente encontrar suporte no princípio constitucional da estrita necessidade e proporcionalidade do direito criminal, radicando na desnecessidade da punição – com uma pena eventualmente privativa de liberdade – o arguido que acaba por satisfazer os interesses patrimoniais do Estado’, já não se impondo, à luz de princípios que constitucionalmente não são próprios do direito sancionatório contra-ordenacional, a extinção da inerente responsabilidade contra-ordenacional. Nada tem, assim, de arbítrio legislativo ou de ofensivo do princípio do Estado de direito democrático uma norma interpretada no sentido de excluir a responsabilidade contra-ordenacional do âmbito de aplicação de um diploma que, entre outras medidas, extingue a responsabilidade criminal verificado determinado condicionalismo (o pagamento dos impostos em dívida).' Pode, pois, concluir-se não existir violação do princípio da igualdade na previsão apenas da suspensão do processo e da extinção da responsabilidade pelo ilícito criminal, e já não pelo ilícito contra-ordenacional em questão. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional as normas do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º
51-A/96 de 9 de Dezembro, e do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, na interpretação segundo a qual delas não resulta igualmente a suspensão e a extinção da responsabilidade pelo ilícito contra-ordenacional previsto no artigo 29º, n.ºs 1 e 2 do RJIFNA; b. Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita. c. Condenar a recorrente em custas, com 15 ( quinze ) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 24 de Abril de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa