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Proc. nº 647/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por despacho proferido nos autos de inquérito NUIPC 557/93.OTAALM, da 2ª Secção dos serviços do Ministério Público da Comarca de Almada, foi indeferido o requerimento de constituição de assistente formulado por M... (ora recorrente), viúva do queixoso D... (entretanto falecido) e, consequentemente, foi também indeferida a abertura de instrução por ela requerida. É o seguinte, na parte ora relevante, o teor daquele despacho:
“M... veio a fls. 41/41 e 244/246 requer a sua constituição como assistente nos presentes autos. Veio também a fls. 247/252 requerer a abertura da instrução, considerando haver indícios da prática da arguida C... de crimes de falsificação de documentos
(art.s 228º, nº1, al. d) e 233º, nº 1 do Cód. Penal de 1982) e de denegação de justiça (art5. 416º, nº 1).
(...). Do art. 68º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal decorre que podem constituir-se assistentes “os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação...”. Ofendido em processo penal será assim unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo
(cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1984, pág. 505). Segue-se, por conseguinte, um conceito “estrito, imediato ou típico” de ofendido, de harmonia, aliás, com a doutrina que já decorria do art. 11º do Cód. Proc. Penal de 1929 e do art. 4º, nº 2 do Dec. Lei nº 35.007. Há, deste modo, que indagar qual o interesse ou bem jurídico que efectivamente é visado pela esfera de protecção da norma penal respectiva. Ou, analisando as disposições penais acima referidas - art.s 228º, nº1, al. d),
233º, nº 1 e 416º do Cód. Penal de 1982 – fácil é constatar que em todos estes casos estamos perante crimes públicos, natureza que de resto mantém no actual Código de 1995. A legitimidade para promover o processo penal pertence, assim, ao Ministério Público, de acordo com o estatuído no art. 48º do CPP. Concretizando agora relativamente a cada um dos ilícitos: No crime p.p. pelo art. 228º, nº 1, al. d), o bem jurídico protegido é a segurança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal
(...). Por seu turno, no crime previsto no art. 233º, nº 1, visa-se proteger a fé pública contra o perigo dos funcionários públicos, nessa qualidade, falsificarem documentos que fazem prova plena (...). Por fim, no crime previsto no art. 416º, o interesse protegido é a boa administração da justiça. Em suma: em nenhum destes tipos penais relativamente aos quais a requerente se pretende constituir como assistente tem esta, ou melhor dizendo o seu falecido marido, a qualidade de ofendido para efeitos do art. 68º, nº 1, al. a) do CPP. Com efeito, nestes tipos criminais estão em causa interesses exclusivamente públicos, pelo que não se pode conceber um ofendido particular no sentido estrito que vigora em matéria especificamente penal. Como tal, não se poderá deferir o pedido de constituição de assistente formulado pela requerente e, concumitantemente, também não se poderá aceitar o seu pedido de abertura de instrução (...)”.
2. Inconformada com esta decisão a requerente recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, a concluir a sua alegação, formulado as seguintes conclusões:
“1ª - A participação e o requerimento de abertura de instrução abarcam os crimes de desobediência, de dano e de corrupção, pelo que a 1ª instância cometeu erro de julgamento ao restringir a sua análise jurisdicional apenas aos crimes de viciação/falsificação da paginação dos autos e de denegação de justiça.
2º - Os crimes invocados são manifestos no caso dos autos por estarem todos documentados.
3º - Mas o MP ficou inerte perante os referidos crimes, dado o carácter corporativo de que os mesmos se revestem e protegeu a denunciada, na sua qualidade de funcionária pública.
4º - Assim o MP, neste caso, entrou em férias criminais, não perseguindo as infracções e impedindo a queixosa e o tribunal de reprimir a violação da legalidade democrática.
5º - Para tanto, o Tribunal apoiou-se num conceito restritivo, redutor e de conveniência corporativa, dos artigos 48º, 68º/1/a e 287º do CPP para não exercer a sua função jurisdicionalizada, o que briga e afronta os artigos 18º e
205º/2 da Lei Fundamental.
6º - O balanceamento interpretativo de tal norma inconstitucional, neste caso concreto, revela-se arbitrário, desproporcionado e desadequado às circunstâncias concretas das infracções criminais em causa, deixando a queixosa completamente desamparada legal e constitucionalmente.
7º - O despacho recorrido ofendeu a extensão prática do conceito de ofendido e a consequente atribuição ampla e alargada do direito de a queixosa se constituir assistente, pois a própria sociedade tem interesse, por razões de eficácia, de chamar a denunciante a colaborar no perseguimento dos crimes de desobediência, dano e eventual corrupção por favorecimento indevido.
8º - Por isso, a restrição técnica do conceito de ofendido, relativamente a este caso, faz com que essa interpretação limitativa dada aos artigos 48º, 68º/1/a e
287º do CPP viola frontalmente os art.s 18º e 205º, nº 2 da Constituição.
3. Na sua resposta o Ministério defendeu a manutenção do despacho recorrido tendo, nesse sentido, formulado as seguintes conclusões:
“1ª - Tanto no crime de falsificação de documento, como no crime de denegação de justiça, os bens protegidos são de natureza predominantemente pública.
2ª - Ora, de acordo com o disposto nos artigos 113º, nº 1 do C. Penal e 68º, nº
1, al. a) do CPP, apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, ou seja, os ofendidos, se podem constituir assistentes.
3ª - Conforme vem sendo defendido, tanto a nível jurisprudencial como doutrinal, a nossa lei consagrou, para efeitos de intervenção, como assistente, um conceito restritivo de ofendido.
4ª - Ora, não sendo os particulares os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, é óbvio que a recorrente não deve ser admitida a intervir como assistente nos autos.
5ª - A interpretação estrita do conceito de ofendido não viola qualquer norma constitucional, designadamente os art.s 18º e 205º, nº 2 da Constituição”.
4. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Maio de 1998, indeferiu o recurso. Para tanto, escudou-se na seguinte fundametação:
“A questão que verdadeiramente se coloca no presente recurso diz respeito à legitimidade da recorrente para requerer a constituição como assistente nos autos de inquérito (....) instaurados em consequência de participação de D...
(marido da requerente, entretanto falecido) que imputava à arguida C..., a prática dos crimes de falsificação de documento praticada por funcionário de desobediência e de denegação de justiça p.p., respectivamente, pelos art.s 228º, nº1, al. d), 233º, nº 1, 388º e 416º do C. Penal de 1982. Tal questão está clara e indubitavelmente solucionada na nossa lei desde a entrada em vigor do C.P.Penal de 1929. A definição do conceito de ofendido com legitimidade para se constituir assistente surgiu com o art. 11º daquele diploma legal, transitou para o art. 4º, nº 2 do Dec. Lei nº 35.007 de 13/05/45, apareceu consagrada no art. 11º, nº 1 do C. Penal de 1982 e consta agora da alínea a) do nº 1 do art. 68º do C.P.P. de 1987. Assim sendo, é inquestionável que o ofendido com legitimidade para se constituir assistente não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção. Este conceito “estrito, imediato ou típico” de ofendido vem sendo seguido pela doutrina desde antes da entrada em vigor do C.P. Penal de 1929 até aos nossos dias vide Beleza dos Santos, (Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 57, pág. 2 e 70, pág 19 e ss.), Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal I, pág.
126/131), Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, pág. 512/513) e Germano Marques da Silva (Curso de processo Penal I, pág. 307/316). Portanto, o ofendido com legitimidade para se constituir como assistente em processo penal é unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo legal preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo. Não se integram no âmbito do conceito de ofendido os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a constituição como assistente. Como bem se decidiu no douto despacho recorrido, o denunciante do crime de falsificação de documento praticada por funcionário não tem legitimidade para se constituir assistente, porquanto trata-se de um crime contra os fundamentos
ético-sociais da vida social, crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico protegido é a segurança e a confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, pelo que é crime público, cuja perseguição pertence ao MPP (cfr. acórdão do STJ de 25/01/96, proferido no Rec. Nº 48716, no qual também era recorrente a M..., vide CJ (STJ), Ano IV, pág. 187). E, como igualmente bem se decidiu no douto despacho recorrido, o denunciante do crime de denegação de justiça p.p. pelo art. 416º do C. Penal de 1982, também não tem legitimidade para se constituir assistente, uma vez que se trata de crime contra a realização da justiça, ou seja: - o bem jurídico especialmente protegido é o da boa administração da justiça e não o interesse ou interesses meramente privados de quem denuncia a prática de tal crime mesmo que, porventura, tenha sido lesado com a sua perpetração. Cabe também relembrar que o inquérito teve por objecto a averiguação dos denunciados crimes de falsificação de documento praticada por funcionário, de desobediência e de denegação de justiça, não sendo pertinente que, conforme se constata das conclusões do recorrente, se venha agora a referir a prática de hipotéticos crimes de dano e de corrupção.
Quanto aos crimes de desobediência, previstos no art. 388º do C. Penal e noutras disposições legais e, bem assim, aqueles que a lei pune com as penas cominadas para tais crimes, foram os mesmos amnistiados pelo art. 1º, al. n) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, desde que praticados antes de 16 de Março de 1994. Assim sendo e uma vez que o denunciado crime de desobediência teria sido cometido antes daquela data, carece de pertinência a referência ao mesmo nas alegações da recorrente. De qualquer modo, também em relação ao denunciado crime de desobediência, a recorrente carece de legitimidade para se constituir assistente uma vez que o interesse tutelado pela incriminação é exclusivamente público, assentando na defesa da autoridade do Estado (...). Conclui a recorrente que o despacho recorrido faz uma interpretação restritiva dos artigos 48º, 68º/1/a e 287º do CPP, violando frontalmente os art.s 18º e
205º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Tal conclusão é manifestamente improcedente. O douto despacho recorrido fez uma adequada interpretação e aplicação dos citados dispositivos do C. P. Penal sem minimamente beliscar qualquer preceito constitucional. Não se consegue vislumbrar como é que o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido efectivamente contido no art. 68º, nº 1, al. a) do C. P. Penal pode violar o disposto nos art.s 18º e 205º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa”.
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade da
“interpretação restritiva” dada pela decisão recorrida aos artigos 48º, 68º, nº
1, al. a) e 287º do Código de Processo Penal, por alegada violação do disposto nos artigos 18º e 202º, nº 2 da Constituição.
6. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1ª - O acórdão recorrido fez uma interpretação totalitária, burocrática e tecnicista das normas dos art.s 48º, 68º/1/a e 287º/1/b do CPP, restringindo o seu sentido útil e desactivando a participação do cidadão na perseguição do crime público, o que descaracteriza arbitrariamente o conceito de ofendido, de assistente e de requerente da abertura da instrução, e com estes direitos fundamentais denegados foram violadas as normas dos artigos 18º e 202º da CRP.
2ª - Essa sequência redutora e negativa, coloca o MP acima da própria lei penal, pois só existe procedimento criminal quando o MP entende, não sendo controlado pela própria lei, nem por qualquer cidadão vigilante dos direitos fundamentais. Termos em eu deve revogar-se o acórdão em crise, porque ilegal e aplicador de uma interpretação limitativa/redutora e inconstitucional das normas dos art.s
48º, 68º/1/a e 287º/1/b do CPP, por violação do direito fundamental de participação cívica na luta contra o crime público (art.s 18º e 202º da CRP)”.
7. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
8. O artigo 68º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal - preceito de que a decisão recorrida efectivamente extraiu a interpretação normativa que vem questionada pela recorrente - dispõe como segue:
“Artigo 68º
(Assistentes)
1. Podem constituir-se como assistentes no processo penal, além das pessoas a que leis especiais confiram esse direito:
a) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos. b) (...)”.
9. Considerou a decisão recorrida que, para efeitos daquela alínea a), “o ofendido com legitimidade para se constituir assistente não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção”. Dizendo de outra forma, considerou-se ali que: “o ofendido com legitimidade para se constituir como assistente em processo penal é unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo legal preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo”.
Foi dessa forma que a decisão recorrida - depois de demonstrar que a denunciante não era titular do interesse directamente protegido com os crimes de
“falsificação de documento praticada por funcionário”, “denegação de justiça” e de “desobediência” (únicos objecto do inquérito), previstos e punidos respectivamente pelos artigos 228º, nº 1, al. d), 233º, nº 1, 388º e 416º do Código Penal, na redacção então em vigor - se decidiu pelo indeferimento do pedido de constituição como assistente da ora recorrente bem como, logicamente, pela indeferimento do pedido de abertura da instrução.
10. É esta interpretação normativa do artigo 68º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, que a recorrente contesta, designadamente por a considerar violadora do preceituado nos artigos 18º e 202º da Constituição.
Porém, como vai ver-se, sem razão.
A questão, aliás, não é inteiramente nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que teve já oportunidade de decidir no acórdão nº 647/98
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 41º, pp. 423 e ss.) - numa questão em tudo idêntica à dos autos, embora reportada apenas ao crime de
“desobediência” - que a norma em causa não era inconstitucional, quando interpretada em termos de não permitir a constituição como assistente quando está em causa o crime público de desobediência.
Ponderou-se, então, naquele aresto:
“A norma em causa atribui a qualidade de ofendidos aos «titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação», reconhecendo a estes a legitimidade para agir, que é pressuposto processual geral. Não se reconhecem aqui específicos interesses particulares directamente decorrentes da actuação delituosa. Ora, o crime de desobediência visa proteger interesses específicos do Estado, mais concretamente, como refere o Ministério Público nas suas alegações, «no acatamento pelos particulares de certas decisões das autoridades públicas que os vinculam». Assim, é o Estado o ofendido, porque legítimo titular do interesse ofendido pela prática do crime de desobediência. E tal interpretação em nada briga com o disposto no artigo 202º, nº 2, da Constituição – correspondente, na versão, anterior à Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, ao artigo 205º, nº 2 -, que determina que «na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados», norma em que se não descortina qualquer imposição do reconhecimento de legitimidade a particulares para a constituição como assistentes em processo penal, em crimes como o de desobediência, em que o único titular do interesse protegido é o próprio Estado”.
Esta argumentação, que mantém inteira validade, conduz não apenas a que não se considere inconstitucional aquela interpretação do artigo 68º, nº 1, al. a) do CPP, em termos de não permitir a constituição da recorrente como assistente no que se refere ao crime de “desobediência”, mas igualmente a que não se considere inconstitucional a mesma interpretação quando conduz à impossibilidade de constituição como assistente no que se refere aos crimes de “falsificação praticada por funcionário” (previsto e punido, actualmente, pelo artigo 257º do Código Penal, que veio substituir os artigos 228º, nº1, alínea d) e 233º - do Código Penal de 1982) e de “denegação de justiça” (previsto e punido, actualmente, no artigo 369º do Código Penal, que veio substituir o artigo 233º do Código Penal de 1982).
É que, também nestes casos, os bens jurídicos protegidos (a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionado com documentos no primeiro caso e a realização da justiça no segundo caso) tem claramente uma natureza supraindividual, residindo a sua titularidade no Estado.
É certo que, embora os crimes de falsificação praticada por funcionário e de denegação de justiça não visem directamente a protecção ou mesmo a satisfação
(no caso de denegação de justiça) de interesses colectivos, e de não incluírem por consequência como seu pressuposto, a violação de interesses particulares, a verdade é que tais interesses são em muitos caso ofendidos através da sua comissão. Alguns destes casos haverá, porventura, concurso de crimes, como quando a falsificação servir para a prática de burla, caso em que o ofendido se poderá constituir como assistente. E genéricamente, pode dizer-se que tais incriminações visam indirectamente proteger também interesses particulares, como resulta de o tipo subjectivo de ilícito de crime de falsificação do artigo 257º incluir a “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado” e de o crime de denegação de justiça, sempre que a justiça é pedida pelos particulares, ter como consequência necessária a insatisfação do interesse particular nessa administração.
A questão, porém, é a de saber se, em face de disposições constitucionais que não só garantem a administração da justiça, com o artigo 202º, nº 2, como especialmente garantem o direito do ofendido “de intervir no processo nos termos de lei”, nas palavras do nº 7 do artigo 32º, aditado na revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, que delimita a constituição de assistente através do conceito de ofendido, na interpretação que não considera ofendidos os particulares possivelmente afectados pelos crimes de falsificação praticada por funcionário do artigo 257º do Código Penal e de denegação de justiça prevista no artigo 369º do Código Penal, excede o espaço de configuração deixado ao legislador pela Constituição.
A resposta deve ser negativa. A revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece. A constituição de assistente em crimes que não visam directamente proteger interesses privados, mas sim interesses colectivos, em que nem sempre há lesão adicional de interesses privados, e em que a lesão desses interesses não é um elemento constitutivo do tipo de crime – por outras palavras, em crimes em que nem sempre há ofendido – não é certamente uma exigência constitucional,
III – Decisão.
Pelas razões expostas, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido quando ao julgamento da questão de constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida (vencido, por entender que, na medida em que conduz à impossibilidade de constituição como assistente das pessoas cujos interesses foram atingidos pela prática dos crimes de “falsificação” e de “denegação da justiça”, a norma impugnada, na interpretação adoptada, viola o preceituado no artigo 32º, nº 7, da CRP)