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Processo nº 819/98 Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1. - O Provedor de Justiça vem requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 2, alínea d), da Constituição da República e do artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida na alínea a) do nº 1 do artigo 22º do Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril – recte, da norma contida na alínea a) do nº 1 do artigo 22º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário (doravante Estatuto), aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril – por entender que essa norma viola os artigos 13º, 18º, nº 2, 47º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea b), do texto constitucional.
2. - O Decreto-Lei nº 139-A/90 foi editado pelo Governo, sob a invocação da alínea c) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), aplicando-se o Estatuto por ele aprovado aos docentes em exercício efectivo de funções nos estabelecimentos de educação ou de ensino públicos, entre outros (cfr. o seu artigo 1º).
O diploma enuncia, no seu artigo 2º, o que se entende, para efeitos do Estatuto, por pessoal docente e no artigo 3º afirma que a actividade desse pessoal desenvolve-se de acordo com os princípios fundamentais constitucionalmente consagrados e, bem assim, no quadro dos princípios gerais e específicos constantes dos artigos 2º e 3º da Lei de Bases do Sistema Educativo, após o que lhe garante os direitos estabelecidos para os funcionários e agentes do Estado em geral e os direitos profissionais especificamente decorrentes do Estatuto – artigo 4º – vinculando-o, por outro lado, ao cumprimento dos deveres estabelecidos para os funcionários e agentes do Estado em geral e aos deveres profissionais decorrentes do seu texto – artigo 10º.
Avultam, entre aqueles direitos, o direito de participação no processo educativo (artigo 5º), o direito à formação e informação para o exercício da função educativa (artigo 6º), o direito ao apoio técnico, material e documental (artigo 7º), o direito à segurança na actividade profissional (artigo 8º) e, enfim, o direito à negociação colectiva (artigo 9º).
No elenco dos deveres funcionais específicos dos educadores de infância e dos professores do ensino básico e secundário, salientam-se:
- contribuir para a formação e realização integral dos alunos, promovendo o desenvolvimento das suas capacidades, estimulando a sua autonomia e criatividade, incentivando a formação de cidadãos civicamente responsáveis e democraticamente intervenientes na vida da comunidade [artigo
10º, nº 2, alínea a)];
- reconhecer e respeitar as diferenças culturais e pessoais dos alunos e demais membros da comunidade educativa, valorizando os diferentes saberes e culturas e combatendo processos de exclusão e discriminação
[artigo 10º, nº 2, alínea b)];
- colaborar com todos os intervenientes no processo educativo, favorecendo a criação e o desenvolvimento de relações de respeito mútuo, em especial entre docentes, alunos, encarregados de educação e pessoal não docente [artigo 10º, nº 2, alínea c)];
- participar na organização e assegurar a realização das actividades educativas [artigo 10º, nº 2, alínea d)];
- gerir o processo de ensino-aprendizagem, no âmbito dos programas definidos, procurando adoptar mecanismos de diferenciação pedagógica susceptíveis de responder às necessidades individuais dos alunos [artigo 10º, nº
2, alínea e)];
- contribuir para a reflexão sobre o trabalho realizado individual e colectivamente [artigo 10º, nº 2, alínea g)];
- enriquecer e partilhar os recursos educativos, bem como utilizar novos meios de ensino que lhe sejam propostos, numa perspectiva de abertura à inovação e de reforço da qualidade da educação e ensino [artigo 10º, nº 2, alínea h)];
- actualizar e aperfeiçoar os seus conhecimentos, capacidades e competências, numa perspectiva de desenvolvimento pessoal e profissional [artigo 10º, nº 2, alínea j)];
- empenhar-se nas e concluir as acções de formação em que participar [artigo 10º, nº 2, alínea l)];
- assegurar a realização, na educação pré-escolar e no ensino básico, de actividades educativas de acompanhamento de alunos, destinadas a suprir a ausência imprevista e de curta duração do respectivo docente [artigo
10º, nº 2, alínea m)];
- cooperar com os restantes intervenientes no processo educativo na detecção da existência de casos de crianças ou jovens com necessidades educativas especiais [artigo 10º, nº 2, alínea n)].
3.1. - O preceito questionado insere-se no Capítulo IV do referido Estatuto, epigrafado 'Recrutamento e selecção', e dispõe na parte que interessa, relativa aos requisitos gerais e específicos:
'1. São requisitos gerais de admissão a concurso de provimento: a) Ter nacionalidade portuguesa ou ser nacional de país que, por força de acto normativo da Comunidade Económica Europeia, convenção internacional ou lei especial, tenha acesso ao exercício de funções públicas em Portugal;
(...).'
3.2. - Sendo esta a norma objecto do pedido e que, assim, o delimita, a entidade requerente fundamenta-o com a seguinte ordem de argumentos:
a) a norma em causa afasta da docência todos os nacionais de países terceiros aos quais nenhum acto de direito internacional, comunitário ou legislativo interno confira expressamente a possibilidade de acesso à função pública portuguesa, deste modo não observando o princípio da equiparação de direitos e deveres entre nacionais e estrangeiros constante do nº
1 do artigo 15º da Constituição;
b) o exercício de funções docentes de educador de infância e de professor dos ensinos básico e secundário respeita a uma função predominantemente técnica, onde o carácter técnico da função prevalece sobre a componente de autoridade do cargo, pelo que não se verifica, sequer, uma situação enquadrável na excepção prevista no nº 2 daquele artigo 15º, relativa ao exercício de funções públicas destituídas de carácter predominantemente técnico;
c) se é certo que a parte final do nº 2 do artigo 15º permite que o legislador ordinário intervenha no sentido de restringir a equiparação de direitos entre nacionais e estrangeiros, não menos exacto é que o direito de acesso à função pública, como um dos 'direitos, liberdades e garantias', beneficia do regime específico de protecção constante do nº 2 do artigo 18º da Constituição;
d) a norma em questão, ao excluir da admissão à carreira docente os estrangeiros e apátridas que não beneficiem de acto normativo comunitário, convenção internacional ou lei especial, restringe o universo daqueles que poderiam, sem a sua existência, concorrer às vagas em concurso, assim diminuindo o âmbito subjectivo do direito fundamental consagrado;
e) se, no caso concreto, pode afirmar-se encontrar-se prevista, no nº 1 do artigo 47º da Constituição, uma autorização para restringir, já que o acesso à função pública deve enquadrar-se no plano mais amplo da liberdade de acesso à profissão, a restrição a operar há-de obedecer aos requisitos da proporcionalidade, necessidade e adequação, o que implica averiguar se existem razões de interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade dos cidadãos afastados que a justifiquem;
f) ora, não pode acolher-se como justificação razoável a salvaguarda dos valores da soberania e da independência nacionais, uma vez que estes já são acautelados através da subtracção ao princípio da equiparação das funções públicas em que o exercício de autoridade se sobrepõe ao aspecto técnico, o que não é o caso, não se vislumbrando outro interesse colectivo legítimo que se possa querer salvaguardar em função da nacionalidade;
g) por seu lado, e no tocante à perspectiva da
'capacidade' dos estrangeiros para o exercício das funções em causa, a questão, desde logo, não pode pôr-se em sede de quantidade e qualidade de conhecimentos e aptidão pedagógica. A sua apreciação será sempre feita pela Administração face aos critérios legais, nomeadamente aos que regem sobre a equivalência e reconhecimento de habilitações adquiridas no país de origem, sendo de considerar que, relativamente às eventuais dificuldades de comunicação entre os docentes estrangeiros e os alunos portugueses, é obrigatória, para os candidatos às funções de docência, a realização de uma prova de conhecimento da língua portuguesa (cfr. o nº 6 do artigo 22º do Estatuto);
h) na verdade, a norma em questão consagra uma restrição ao direito de acesso à função pública não só desproporcionada e inadequada como desnecessária, com violação consequente dos artigos 18º, nº 2, e 47º, nº 2, da Constituição;
i) além disso, não sendo a diferenciação de tratamento entre nacionais e estrangeiros, no caso, razoavelmente fundada, mas sendo antes
'discriminatória', verifica-se igualmente uma situação injustificada de desigualdade, o que afronta o princípio acolhido pelo artigo 13º da Constituição;
j) finalmente, qualquer restrição aos direitos, liberdades e garantias deve ser realizada através de lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado. No concreto caso, em que inexistia autorização legislativa (pelo menos não foi invocada), ocorre uma inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea b) do nº 1 do artigo 165º da lei fundamental, ou, de todo o modo, uma inconstitucionalidade formal, por falta de invocação da lei de autorização, como o exige o nº 3 do artigo 198º da Constituição (e não 199º, como, por evidente lapso, refere o Provedor de Justiça).
4. - Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro respondeu oportunamente.
Em síntese, alegou:
a) resulta do nº 2 do artigo 15º da Constituição que, para além dos casos contemplados directamente noutros específicos preceitos constitucionais, a reserva de funções públicas a cidadãos nacionais é logo aí estabelecida para aquelas funções que não tenham carácter predominantemente técnico e pode sê-lo por lei para aquelas que o têm. Ou seja, quanto às primeiras, o legislador não pode permitir esse acesso a estrangeiros; e, quanto
às segundas, poderá proibi-lo. O que significa que as funções em causa, na situação em apreço, ou não têm carácter predominantemente técnico – hipótese em que estarão logo vedadas a estrangeiros – ou, se o têm, poderá a proibição do exercício delas por estrangeiros ser estabelecida por lei, 'se se verificarem os parâmetros constitucionais';
b) sustenta-se, a este propósito, o entendimento segundo o qual, naquela referência constitucional, não está em causa o grau de tecnicidade de certas funções, mas a prevalência das componentes de autoridade ou de tecnicidade do cargo, do que resultará desde logo não ficarem vedadas a estrangeiros as carreiras de educadores de infância e de professores dos ensinos básico e secundário, se bem que, independentemente de assim se concluir, sempre a proibição poderá ser estabelecida por lei ordinária, desde que 'não viole regras constitucionais';
c) se bem que o Provedor de Justiça considere que a referência a 'todos os cidadãos', contida no nº 2 do artigo 47º da Constituição, abrange nacionais e estrangeiros, pelo que, no caso, se estaria perante uma restrição do acesso dos estrangeiros à função pública, deverá, antes, entender-se a referência a cidadãos como circunscrita aos cidadãos portugueses – no seguimento da tradição portuguesa que reserva em princípio a nacionais o exercício de funções públicas –, resultando o tratamento dos não nacionais, no respeitante ao acesso à função pública, não daquele artigo 47º, nº 2, mas sim da
'intermediação' do artigo 15º, e que, de resto, coloca idêntica questão: a de saber se a exclusão da generalidade dos estrangeiros e dos apátridas do acesso
às carreiras docentes em causa consubstancia ou não uma restrição de direitos
(por via do nº 2 do artigo 47º ou do nº 1 do artigo 15º) limitada 'ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos';
d) a proibição, em princípio, do acesso de estrangeiros e apátridas ao exercício das funções docentes em referência, configura-se como uma simples aplicação da proibição, em princípio, do acesso dos estrangeiros e apátridas ao exercício de funções públicas, estabelecida, na altura da publicação do Decreto-Lei nº 139-A/90, pela alínea a) do artigo 22º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, entretanto modificado pelo Decreto-Lei nº 215/95, de 22 de Agosto, que não alterou aquela alínea a), e revogado pelo Decreto-Lei nº 204/98, de 11 de Julho, cuja alínea a) do nº 2 do artigo 29º determina constituir requisito geral de admissão a concurso e provimento em funções públicas 'ter a nacionalidade portuguesa, salvo nos casos exceptuados por lei especial ou convenção internacional';
e) sendo a proibição do exercício de funções públicas por cidadãos não portugueses formulada como regra no nº 2 do artigo 15º, os educadores de infância e os professores dos ensinos básico e secundário, que são funcionários públicos, com os requisitos da sua admissão a concurso decalcados dos exigidos para a generalidade dos funcionários, participam do mesmo envolvimento do conjunto de todos estes nas tarefas próprias da Administração Pública, bem como na titularidade de direitos e na sujeição a deveres especiais.
É, assim, justificável que o legislador estabeleça, para o conjunto dos funcionários públicos e também para os aqui em causa, a exigência que se trate, em princípio, de portugueses, identificados com os objectivos da Administração Pública portuguesa, 'regulada por exigências e regras decorrentes da estrita prossecução do interesse público a que está vinculada';
f) no caso particular dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário, existem ainda razões especiais que justificam a restrição de princípio a naturais portugueses. Ainda que não participando propriamente do exercício de autoridade pública, eles são, na fase mais precoce do ensino, agentes privilegiados, a par com a família, da integração social e comunitária da criança e do jovem e da transmissão dos valores, comportamentos e princípios nacionais; e deve reconhecer-se-lhes um sentido de autoridade, mais evidente relativamente aos alunos mais novos, inerente à própria imagem deles decorrente, 'de alguma forma suplente da autoridade paterna/materna que lhes confiou', sendo, por fim, ainda certo que os docentes exercem necessariamente, embora não predominantemente, funções com conteúdo de autoridade pública, como são o poder de avaliar e o poder disciplinar sobre os alunos.
Todos estes factores justificam a exigência da nacionalidade portuguesa: 'dado o interesse público prosseguido, as necessidades educativas das crianças e dos jovens e os poderes de autoridade dos docentes, é razoável que se exclua, nos graus de ensino e nos estabelecimentos em causa, os que não são portugueses';
g) acresce, por último, não existir qualquer irregularidade sob o ponto de vista formal e orgânico: a norma em apreço não introduz nenhuma novidade, limitando-se a reproduzir, para os docentes, a exigência geral que, na altura, constava da alínea a) [por lapso, indica-se alínea c)] do artigo 22º do Decreto-Lei nº 498/88, emitido sob autorização legislativa.
5. - Apresentado memorando pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, foi o mesmo discutido e, uma vez definido o sentido maioritário da decisão e distribuído o processo, cumpre elaborar acórdão.
II
1.1. - Considera o Provedor de Justiça que a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 22º do Decreto-Lei nº 139-A/90 viola, segundo uma perspectiva substancial, o disposto nos artigos 13º, 18º, nº 2, e 47º, nº 2, da Constituição.
Na verdade, a norma cuja declaração de inconstitucionalidade se pretende é a da alínea a) do nº 1 do artigo 22º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril, como já houve ocasião de considerar.
Ora, nem o princípio geral da igualdade, consagrado nesse artigo 13º, nem a garantia genérica de uma igual possibilidade de acesso ao exercício da função pública, que o nº 2 daquele artigo 47º reconhece a 'todos os cidadãos', têm, aqui, que ser directamente tidos em conta: tais preceitos e princípios subjacentes são, no caso, 'consumidos' pelos princípios acolhidos no artigo 15º do texto constitucional, mormente nos seus nºs. 1 e 2, onde se consigna o módulo constitucional específico da igualdade de direitos entre os cidadãos portugueses e os demais.
Assim, será no quadro deste artigo 15º e em articulação com os princípios nele albergados que se vai apreciar o pedido e, eventualmente, apelar aos critérios e exigências contidos no nº 2 do artigo 18º da lei fundamental.
1.2. - Estabelecidos os parâmetros constitucionais directamente relevantes, importa observar que a situação em apreço diz respeito à possibilidade de exercício de determinadas funções públicas por parte de cidadãos não portugueses, o que é especificamente tratado no nº 2 do artigo 15º.
Com esta reserva adicional: não há que considerar o caso
à luz da cláusula de exclusão desses cidadãos de direitos políticos, contida no nº 2 do próprio artigo 15º, ainda que, porventura, o direito ao exercício de funções públicas pudesse continuar a receber tal qualificação, não obstante a indicação em contrário que, ao menos prima facie, pela sua não inserção no Capítulo II do Título II da Parte I, resulta da ordenação do texto constitucional, dedicado, nessa parte, aos direitos, liberdades e garantias de participação política.
Consequentemente, no nº 2 do artigo 15º, relevarão essencialmente o clausulado quanto ao exercício de funções públicas e o segmento final do preceito, ao viabilizar a intervenção do legislador ordinário na matéria.
A abordagem mais lógica e acabada do problema postulará, assim, que se comece pela consideração do caso na perspectiva da primeira dessas cláusulas constitucionais – a específica para o exercício de funções públicas –, sendo a segunda objecto de posterior ponderação.
2.1. - Na jurisprudência constitucional portuguesa têm sido vários os arestos que, a mais de um título, se debruçaram sobre a temática dos direitos dos estrangeiros.
Desde logo, na Comissão Constitucional, o parecer nº
30/79 abordou, essencialmente, o problema das limitações estabelecidas a cidadãos nacionais não originários, mas não deixou de, nesse contexto, encarar o sentido da norma do artigo 15º do texto constitucional, partindo do princípio de equiparação que o mesmo comporta, daí resultando a necessidade de explicitar as excepções, quer as imediatamente decorrentes da lei fundamental, quer as decretadas por lei ordinária mediante autorização constitucional. Entendeu-se, então, que nada se prevendo para 'os estrangeiros que são os naturalizados lato sensu', a falta de disposição paralela para estes, a subtrair-lhes ou a restringir-lhes certos direitos, aponta no sentido de a lei ordinária estar impedida de o fazer (cfr. o citado parecer in Pareceres da Comissão Constitucional, 10º volume, 1980, pág. 51). Pouco depois, no parecer nº 36/79, a Comissão Constitucional precisou estar subtraída à Administração a possibilidade de qualquer valoração própria ou de definição de critérios nesta matéria do acesso de estrangeiros a funções públicas com carácter predominantemente técnico, pois que se trata de matéria de reserva de lei formal (cfr., ob.cit., pág. 170).
Sem embargo, reconhece-se que, encontrando-se reservada constitucionalmente a titularidade de certos direitos exclusivamente aos cidadãos portugueses, não pode, no entanto, conceber-se que essa reserva se processe de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, 'sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas aos cidadãos portugueses', como se frisa no acórdão nº 54/87, publicado no Diário da República, I Série, de 17 de Março de 1987. Idêntica leitura se retira do acórdão nº 338/95 – publicado no citado Diário, II Série, de 1 de Agosto de
1995 – quando se reconhece, face ao nº 2 do artigo 15º, poder a lei estabelecer excepções à regra de equiparação aos nacionais dos estrangeiros e apátridas, no que aos direitos e deveres respeita, sendo certo, no entanto, que a lei não é livre no estabelecimento de outras exclusões de direitos aos estrangeiros (para além das constitucionalmente previstas), uma vez que tais excepções só podem ser determinadas através de lei formal da Assembleia da República, ela mesmo heteronomamente vinculada aos princípios consagrados naquele artigo 15º (e, em abono dessa tese, citam-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 135).
Será, ainda, pertinente mencionar o acórdão nº 354/97 – publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., 1997, págs. 931 e segs. – que, ao pronunciar-se sobre a vertente constitucional do direito à pensão de reforma de ex-funcionários ultramarinos, na sequência de cuja doutrina outros arestos se prolataram, reitera um discurso argumentativo semelhante.
Colhe-se, na verdade, do substracto universalista inerente ao texto constitucional e ao princípio da equiparação, seu corolário, que os estrangeiros e apátridas gozam dos mesmos direitos consignados no texto constitucional aos cidadãos nacionais, regra que não deixa de sofrer desvios, na própria lei básica acolhidos, como são os direitos políticos, o exercício de funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.
Simplesmente, como observa Jorge Miranda, se é certo que resulta imediatamente da Constituição, por via do princípio geral da equiparação entre portugueses e estrangeiros e apátridas, poderem quaisquer estrangeiros residentes em Portugal aceder às funções públicas, em geral, observados os condicionalismos legais, para além da delimitação do que se entende por funções com carácter predominantemente técnico, há que ter presente a norma do nº 2 do artigo 15º, que não lhes garante automaticamente esse acesso contra a lei, podendo vir a reservar algumas dessas funções a cidadãos portugueses. Só que, como escreve esse autor, isso terá de ser feito por lei formal e não por acto de Administração; tem de ser o legislador a estipular quais as funções públicas fechadas a estrangeiros, e não a Administração; tão pouco pode a lei remeter para a Administração a concessão de autorização para o exercício ou não de qualquer função pública, em princípio aberta a estrangeiros, sob pena de se agredir o sentido da reserva de lei (cfr. Manual de Direito Constitucional, tomo III, 4ª ed., Coimbra, 1998, págs. 150-151).
Nesta perspectiva, nada impede que – ao menos para alguns ou, então, se se preferir, em inicial tópico de abordagem metodológica à questão subjacente – se acompanhe de perto a linha de orientação adoptada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no seu parecer nº 23/81, publicado in Pareceres da Procuradoria-Geral da República, vol. I, págs. 309 e segs.
Verifica-se, com efeito, que o Conselho Consultivo adoptou uma orientação primeira, radicada ainda no texto constitucional anterior, nos termos da qual a referência a funções de 'carácter predominantemente técnico' reconduzia-se à ideia de 'funções técnicas de tipo bastante especializado', relativamente a cujo desempenho não existissem cidadãos nacionais qualificados. Semelhante critério, que se surpreende no parecer nº
24/72 (publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Setembro de 1972), entronca no critério da 'conveniência ou necessidade por parte de Portugal'.
O parecer nº 260/77, de 21 de Dezembro de 1977 (no mesmo Diário, II Série, de 17 de Outubro de 1978), relativo a enfermeiros de saúde pública, segue essa orientação, ao considerar que não se encontra aí preenchido o requisito constitucional, numa linha de entendimento retomada, agora com expressão maioritária, no parecer nº 258/77, de 16 de Fevereiro de 1978,
(publicado no citado jornal oficial, II Série, de 5 de Fevereiro de 1980), onde se versa justamente o problema do exercício por estrangeiros de funções docentes nos ensinos básico e secundário.
Considerou-se então, fundamentalmente, que, proibindo o nº 2 do artigo 15º da Constituição o exercício de funções públicas de carácter não predominantemente técnico aos estrangeiros, qualquer que seja a forma de provimento, só lhes sendo reconhecido o exercício em Portugal de funções públicas de carácter predominantemente técnico – ou seja, funções que exijam habilitação muito especial, desde que não existam, em princípio, cidadãos portugueses com semelhantes aptidões –, as funções docentes nos ensino básico e secundário, não sendo, em regra, de carácter predominantemente técnico, não podem, nessa medida, ser exercidas por estrangeiros.
No entanto, a partir do parecer nº 23/81 dá-se uma viragem nesta concepção, já com eco nos votos de vencido expressos no parecer nº
258/77, adoptando-se o critério da prevalência de 'autoridade' ou de
'tecnicidade'.
A esta luz, a expressão 'exercício de funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico' passou a ser entendida de acordo com a prevalência dos critérios de autoridade ou de tecnicidade do cargo
– como tal se revestindo a função exercida por uma professora do ensino secundário.
Consoante, então, se escreveu, 'nas funções docentes, a técnica de instrução e de educação prevalece sobre a parcela de autoridade que encerram, significando que, no seu exercício, assiste a predominância técnica em detrimento do conteúdo político'.
Ou seja, na lógica deste posicionamento, em que, como se ponderou na ocasião, a dicotomia interesse imediato (logo, pragmático) da Administração – interesse geral, deve ser confrontada, por um lado, com o princípio da independência nacional, e, por outro, com os princípios de universalidade e de equiparação, e pese embora 'a sensibilidade predisposta para a aceitação do princípio de efectividade dos direitos fundamentais na sua interpretação «optimizante» ou «maximalizante» [...]', não deve uma equiparação universal no acesso à função pública e seu exercício alhear-se da projecção de autoridade pública, nela inerente, de modo que nem o jus ad officium nem o jus in officio sejam de tal (generoso) modo admitidos, que ponham em crise os valores defendidos pela soberania nacional.
Neste fio discursivo, impõe-se que a natureza técnica da respectiva função se sobreponha ao exercício de autoridade pública, que essa mesma função implica.
De acordo com o entendimento exposto, a tecnicidade subjacente ao exercício do cargo, que assiste às funções docentes que a previsão legal questionada integra, prevalece relativamente à inerente componente de autoridade.
2.2. - No entanto, e até pelo recorte negativo que o critério encerra, o intérprete não fica dispensado do ónus de uma contextualização casuística para, daí, retirar as naturais consequências.
A idêntica solução poderá chegar-se se, na esteira do critério que tem vindo a ser adoptado pela jurisprudência comunitária, se articular a tecnicidade da função exercida com a natureza do serviço prestado.
Com efeito, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tem-se debruçado sobre o preceito do Tratado relativo à livre circulação dos trabalhadores, dela excluindo os 'empregos na administração pública' – nº 4 do artigo 39º, no texto alterado pelo Tratado de Amesterdão, a que correspondia anteriormente o artigo 48º.
Ora, na caracterização dessa excepção considera esse Tribunal que aí se contemplam casos que subentendem o exercício do poder político. Nestes casos, há que ponderar a salvaguarda dos interesses gerais do Estado e das demais entidades públicas, mas a medida de excepção já não se representa relativamente aos empregos que, não obstante dependerem do Estado ou de outros organismos públicos, não implicam participação nas actividades que competem à Administração Pública, propriamente dita.
A esta luz, a função educativa, desde que o factor técnico predomine em detrimento do relativo à autoridade inerente ao exercício da função, é predominantemente técnica e, como tal, em princípio, pode ser exercida por cidadãos estrangeiros em idênticas condições às dos nacionais.
Com esse perfil apresentam-se as funções docentes nos ensinos básico e secundário, bem como as de educadores de infância.
Utilizando este critério, o acervo jurisprudencial na matéria vem considerando que, como sucede nos sectores públicos da investigação, do ensino, da saúde, dos transportes terrestres, dos correios e telecomunicações e nos serviços de água e electricidade, deve limitar-se a exigência de nacionalidade no acesso aos empregos de funcionários e agentes que implicam uma participação, directa ou indirecta, no exercício da actividade pública e nas funções que têm por objectivo a salvaguarda dos interesses gerais do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas.
Com efeito, quando a generalidade dos empregos nesses sectores está longe das actividades específicas da administração pública, o facto de determinados empregos nesses mesmos sectores poderem eventualmente ser abrangidos pelo nº 4 do artigo 48º do Tratado não pode justificar que um Estado-Membro sujeite, de modo geral, a totalidade desses empregos a uma condição de nacionalidade.
Concretamente, no sector do ensino, a exclusão dos nacionais de outros Estados-Membros da totalidade dos empregos neste sector não pode ser justificada por considerações respeitantes à salvaguarda da identidade nacional, porque esse interesse, cuja protecção é legítima – como o reconhece o artigo 6º, nº 3, do Tratado da União Europeia, na versão ora em vigor – pode ser eficazmente salvaguardado por outros meios que não a exclusão geral e porque os nacionais dos outros Estados-Membros devem, de qualquer modo, tal como os cidadãos nacionais desses Estados, preencher todas as condições exigidas para o recrutamento, nomeadamente as respeitantes à formação, experiência e conhecimentos linguísticos.
Neste sentido, e paradigmaticamente, citem-se os acórdãos desse Tribunal, todos de 2 de Julho de 1996, relativos aos casos Comissão das Comunidades Europeias contra Grão-Ducado do Luxemburgo, contra Reino da Bélgica e contra República Helénica – publicados na Colectânea de Jurisprudência I – 3207, 3265 e 3285, respectivamente.
3. - No entendimento segundo o qual o artigo 15º da Constituição, na primeira parte do seu nº 2, não permite ao legislador ordinário o estabelecimento de quaisquer condicionamentos relativamente a cidadãos estrangeiros no desempenho de funções públicas de carácter predominantemente técnico, a questão de constitucionalidade da norma em sindicância ficaria, desde logo, resolvida.
Porém, para quem considere que a segunda parte daquele nº 2 ainda o permitiria estabelecer – questão que se deixa em aberto – o certo é que, no caso vertente, um tal condicionamento seria, como se verá, desproporcionado. Nesta última perspectiva, o critério de fiscalização da constitucionalidade da norma em sindicância há-de aferir-se em função dos princípios norteadores do sistema de ensino que, nomeadamente nas fases iniciais do processo educativo, prestam atenção particular a uma formação que assegure o quadro dos valores tidos por preponderantes na identidade nacional.
Não compete ao Tribunal Constitucional, como é evidente, cuidar de saber se, em regra, os docentes dos ensinos pré-escolar, básico e secundário, que sejam de nacionalidade portuguesa, se encontram melhor preparados e qualificados, relativamente aos docentes estrangeiros, para assim conseguirem alcançar os objectivos pedagógicos propostos por diplomas como a Lei de Bases do Sistema Educativo.
Aquela objecção, cabível em parâmetros de razoabilidade, não deve, no entanto, ser levada tão longe que possibilite configurar situações que venham a revelar-se incongruentes com o sistema vigente. Desde logo, se é verdade que, à partida, os cidadãos estrangeiros sentem, ou podem sentir, dificuldades mais sensíveis na sua identificação com a especificidade do modelo cultural português, não menos certo é que esse reconhecimento, a relevar, conduziria, no limite, a excluir da docência os cidadãos estrangeiros naturalizados portugueses (e – sempre se perguntaria – até que ponto seria defensável argumentar com o facto de a naturalização depender do preenchimento de determinados requisitos legais demonstrativos de uma ligação efectiva ao Estado Português e do consequente acto de concessão, da competência do Executivo). Depois, porque a própria norma abre-se a estrangeiros, como da segunda parte decorre, por razões em grande parte ontologicamente estranhas a preocupações de congruência com um certo paradigma.
Obviamente, o estatuto constitucional do estrangeiro admite excepções ao princípio da equiparação, como resulta inequivocamente da leitura da norma constitucional.
Não obstante, esses desvios constituem restrições a tal princípio e, nessa medida – o que é um aspecto fundamental do regime dos direitos, liberdades e garantias – encontram-se as mesmas submetidas ao regime do nº 2 do artigo 18º da Constituição, sendo, como tal, limitadas ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Na verdade, o princípio da proporcionalidade que aqui se surpreende exige – como se retira do longo acervo da jurisprudência constitucional nesta matéria – que as medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, ou seja, para a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessários para alcançar esses fins, que não poderiam ser atingidos com meios menos gravosos, mais se exigindo que os meios restritivos e os fins obtidos se situem numa 'justa medida'.
Esta 'medida' proporcional, aferida por estalões de necessidade e adequação, que não deve tocar no núcleo essencial de protecção máxima, como este Plenário já entendeu (cfr. acórdão nº 364/91, publicado no Diário da República, I Série A, de 23 de Agosto de 1991), não se tem por observada na norma em análise.
Seja porque a tecnicidade da função docente adquira proeminência de expressão e intensidade quando contraposta à dimensão de autoridade pública que lhe é inerente, seja porque (ou também porque) uma actividade como a do ensino, assim genericamente entendida, não afecta, por natureza, aquele núcleo essencial de soberania nacional – e, como também já se escreveu, a realização óptima de cada um dos valores em jogo não é subsumível a termos matemáticos –, tem-se por desproporcionada e desrazoável uma norma, como a sindicanda, que exclui da admissão ao concurso de provimento para pessoal docente previsto no Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 139-A/90 – ao qual se garante o estatuto da função pública, nos termos dos direitos e deveres profissionais nesse Estatuto previstos – quem não tiver nacionalidade portuguesa ou não se enquadrar em qualquer das situações descritas na parte final da norma.
3. - Atingida esta decisão, torna-se desnecessário abordar o problema de eventual inconstitucionalidade orgânica ou formal da norma.
III
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
- declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida na alínea a) do nº 1 do artigo 22º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril, por violação do disposto nos nºs. 1 e 2 do artigo 15º da Constituição da República. Lisboa, 11 de Julho de 2002 Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida