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Processo n.º 241/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 562/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., SGPS, S.A. e recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso, em 24 de fevereiro de 2012 (fls. 697 a 699), ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pela 2ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em (fls. 676 a 690-verso), para que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas extraídas do n.º 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária (LGT):
a) “com o sentido de que se trata de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma espécie de aplicação analógica das normas tributárias (na medida em que admite que a administração fiscal, desconsiderando, para efeitos fiscais, a personalidade jurídica de uma sociedade sedeada na Zona Franca da Madeira, a cuja constituição o contribuinte foi expressamente incentivado pela lei, possa tributar como juros aquilo que reconhece expressamente serem lucros, no plano jurídico-civil” (fls. 697);
b) “com o sentido de que se trata de uma norma que admite apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico prosseguido pelo contribuinte, que é a fiscalmente mais onerosa (e, por conseguinte, restringe ou suprime a liberdade de utilização de direitos e prerrogativas de natureza fiscal conferidos pela ordem jurídica)” (fls. 698);
c) “com o sentido de que é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes se integrem numa «cadeia de atos» em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente” (fls. 698).
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. O recurso foi admitido por despacho do Relator junto do tribunal “a quo”, proferido em 20 de março de 2012 (fls. 704). Porém, por força do n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que deve começar-se por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Antes de mais, deve notar-se que, tratando-se de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, forçoso seria que a recorrente tivesse suscitado, de modo processualmente adequado, as questões que agora pretende ver conhecidas, conforme lhe impunha o n.º 2 do artigo 72º da LTC. Apesar de afirmar o contrário, não é verdade que a mesma o tenha feito, “nomeadamente a págs. 25, 26, 27 e 43 e na conclusão 24.ª, a págs. 49” (fls. 698) ou “nas alegações que apresentou no Recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, nomeadamente a págs. 22 e na conclusão 14.ª, a págs. 46 e 47” (idem). De tais alegações resulta que:
“Representando a CGAA uma compressão do princípio da tipicidade fiscal, de que decorre a proibição da analogia, conforme atrás se lembrou, ela só será compatível com a CRP se tiver como pressuposto um juízo de valor negativo — e um juízo referente ao plano normativo do sistema jurídico global, em face do qual se reprovam os meios utilizados concretamente por um contribuinte para obter uma situação fiscal mais vantajosa. Só um tal juízo de valor, com efeito, poderá suportar a ideia de que, ao aplicar a um certo negócio real as normas que tipicamente correspondem a outro, a Administração fiscal está ainda a atuar o espírito ou a ratio destas últimas.
O que é determinante, assim, no espírito normativo da CGAA, não é a censura dos efeitos pretendidos — a “redução ou eliminação dos impostos que seriam devido’ — mas antes a reprovação dos meios utilizados: os atos ou negócios que possam ser qualificados como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídica’. Por isso, ao contrário do que, por vezes, parece pensar a Administração fiscal, não existe apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico — o n° 2 do artigo 38° da LGT não configura uma espécie de tipo tributário geral de sobreposição que, diretamente contra a Constituição, impõe sempre aos contribuintes a escolha do caminho fiscalmente mais oneroso.
Na verdade, a prevenção do abuso de direito ou do abuso de formas, no campo da fiscalidade, é o domínio onde com mais premência e propriedade se balanceia, por um lado, a relação entre a evasão e a opção fiscais, e, por outro lado, a harmonização entre a tipicidade do sistema tributário e o respetivo conceito de justiça ou capacidade contributiva. É que as legislações que, como a nossa, dispõem de normas para combater aquele abuso, autorizam as Administrações fiscais a desconsiderarem as formas livremente escolhidas pelos contribuintes e a desaplicarem os tipos tributários que lhes correspondem — apesar de aquelas formas serem indubitavelmente legais à face do sistema jurídico global —, para depois fazerem corresponder àquelas formas tipos que se encontram previstos para outras distintas.
No entanto, para que um tal instrumento possa ser utilizado sem esvaziar por completo os princípios constitucionais da liberdade económica e da legalidade fiscal, é mister que, quanto a certas formas concretamente realizadas, se possa fazer um juízo de valor negativo, em nome do seu caráter inusitado, anómalo, artificioso, no sentido de se poder dizer que elas, ao serviço de um intuito exclusiva ou predominantemente fiscal, fazem dos atos ou negócios jurídicos uma utilização distorcida e apreciavelmente distinta daquela que o legislador configurou como típica ou adequada — um aproveitamento extra legem, no fundo.
Isto é: em todos os ordenamentos jurídicos — e especialmente no nosso, em que, no plano constitucional, o primado da legalidade fiscal está tão densamente regulado —, a aplicação de normas como a do n° 2 do artigo 32° da LGT obriga o agente administrativo a atuar no plano da normatividade, não lhe facultando um poder não vinculado para atuar uma espécie de prevalência geral do negócio fiscalmente mais oneroso.
É isto mesmo que explica o caráter exigente e apertado que encontramos na fórmula definitivamente adotada pelo legislador, onde se cumulam exigências que, inclusivamente, mais parecem próprias de uma norma penal. De acordo com o disposto no n° 2 do artigo 38°, não basta à Administração verificar que um certo negócio ou uma certa série de negócios propiciou a um contribuinte uma vantagem fiscal; nem tão-pouco é suficiente alegar que esse contribuinte dispunha de outras formas jurídicas alternativas, capazes de proporcionarem o atingimento do mesmo objetivo económico, embora com maior onerosidade fiscal. É preciso demonstrar que esse negócio ou essa série de negócios constitui uma utilização de “meios ar4ficiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”.” (pp. 25 a 27 das alegações, a fls. 628 a 630)
E mais referiu que:
“É por tudo isto que a Recorrente entende que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo incorre num erro de fundamentação e num erro no julgamento e interpretação do Direito aplicável — nomeadamente, do n° 2 do artigo 38° da LGT e do artigo 63° do CPPT —, chegando mesmo a pôr de um modo flagrante em causa princípios de dignidade constitucional, como sejam o princípio da legalidade fiscal e o princípio da liberdade económica.” (p. 43, fls. 646)
Da leitura dos referidos excertos resulta evidente que a recorrente nunca colocou em causa, de modo especificado, a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 38º da LGT, tendo-se limitado a tecer considerações de índole infraconstitucional acerca do modo como concebe o mecanismo da “cláusula antiabuso” nele prevista. As referências que foram sendo formuladas limitam-se a contextualizar a sua posição e a reforçar a argumentação desenvolvida. Assim sendo, sempre se concluiria que a recorrente não suscitou, de modo processualmente adequado, as primeira e segunda questões que constituem objeto do presente recurso, pelo que delas não se pode conhecer, em estrita aplicação do artigo 72º, n.º 2, da LTC.
Além disso, é muito duvidoso que as duas primeiras questões colocadas se revistam de uma efetiva dimensão normativa. Pelo contrário, antes correspondem a um juízo, crítico e subjetivizado, que a recorrente entende formular sobre o sentido final da decisão recorrida, que lhe foi desfavorável, pelo que, também por este motivo, delas não pode este Tribunal conhecer, em estrita aplicação do artigo 79º-C da LTC.
4. Quanto à terceira questão colocada no requerimento de interposição de recurso, pode ainda constar-se que foi dito, em sede de alegações recurso perante o Tribunal Central Administrativo Sul:
“Ora, pretender aplicar a estes factos a referida disposição da LGT significa obviamente incorrer numa aplicação retroativa da lei, em violação manifesta do nº 3 do artigo 103º da CRP. Na verdade, a norma que fundamentou a liquidação impugnada não existia ao tempo da constituição da EVA, nem sequer ao tempo do seu licenciamento, nem tão-pouco ao tempo da celebração de todos os negócios com a POLO. Esta ilegalidade foi, aliás, expressamente invocada na impugnação judicial, e a respeito dela o Tribunal a quo não chegou a pronunciar-se diretamente, senão num sentido conclusivo e absolutamente não fundamentado.” (p. 22, a fls. 625)
E mais alegou que:
“14ª Além disso, se a “interposição” da EVA é, como cremos e parece indiciar a própria atuação da Administração fiscal e a decisão proferida pelo Tribunal a quo, o marco decisivo para iniciar a contagem do referido prazo, coloca-se ainda um segundo problema: é que, ao tempo do licenciamento e constituição desta sociedade — i.e., em 3/08/1995 e 16/08/1995, respetivamente —, não se encontrava em vigor o n° 2 do artigo 38° da LGT. Nestes termos, pretender aplicar a estes factos a referida disposição legal da LGT significa obviamente incorrer numa aplicação retroativa da lei, em violação manifesta do n° 3 do artigo 103° da CRP, ilegalidade que a Recorrente expressamente invocou na impugnação judicial e a respeito da qual o Tribunal a quo não chegou a pronunciar-se diretamente, senão num sentido conclusivo e absolutamente não fundamentado.” (pp. 46 e 47 das alegações, a fls. 649 e 650)
É flagrante o desfasamento entre a terceira questão de inconstitucionalidade normativa colocada no âmbito do presente recurso e a invocação de inconstitucionalidade que teve lugar lugar perante o tribunal recorrido. Na presente fase recursiva, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional a norma extraída do n.º 2 do artigo 38º da LGT “com o sentido de que é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes se integrem numa «cadeia de atos» em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente” (com sublinhado nosso). Ora, como resulta evidente dos extratos supra transcritos, a recorrente nunca suscitou a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa que partisse do entendimento de que alguns dos fatos que geraram a situação tributária – que, recorde-se, decorre da distribuição de dividendos e não da receção de juros – ocorreram após a entrada em vigência do artigo 38º, n.º 2, da LGT. Pelo contrário, perante o tribunal recorrido, a recorrente insistiu sempre que os fatos geradores do dever tributário teriam ocorrido na data da constituição, do licenciamento ou da celebração dos contratos que originaram a receção de juros pela sociedade sedeada na Zona Franca da Madeira, EVA, pelo que a cláusula geral antiabuso não lhe podia ter sido aplicada.
Sucede, porém, que a decisão recorrida considerou que o fato relevante para efeitos de fixação do dever tributário foi a distribuição de dividendos, que ocorreu após a entrada em vigor daquele preceito legal. Senão, veja-se:
“Ora, tal como refere a decisão recorrida, (…) o abuso de formas com vista à obtenção de vantagem fiscal indevida não se consubstancia num único ato mas antes numa cadeia de atos, que, no mínimo, se iniciam com a utilização da «EVA», (…) «devendo por isso a operação ser tratada como um todo, aplicando-se a disposição antiabuso ao momento decisivo e final que é representado pela receção de acréscimos patrimoniais como dividendos dedutíveis.
(…)
Ora, estribando a recorrente a caducidade naquela linha argumentativa de que os factos adequados ao balizar do despoletar do prazo de caducidade estatuído no n.º 3 , do art. 63.º, do CPPT, eram apenas, a interposição da EVA e celebração dos empréstimos entre esta e a «POLO», e não se afigurando de sufragar tal doutrina, na medida em que a perceção plena do abuso de formas e da vantagem fiscal indevida e pretendida apenas é possível no final do circuito, quando a mesma é concretizada, forçoso se impõe concluir no sentido em que concluiu a decisão recorrida, ou seja, pela falência da alegada caducidade, nos termos em que foi feita.
E, com o ser assim, naufraga também, a invocada aplicação retroativa da lei, nos termos em que se encontra balizada pela conclusão 14.ª, já que, ali, a recorrente a faz depender da dita interposição da «EVA» consubstanciar o facto adequado ao despoletar do prazo de caducidade (…)” (fls. 687-verso e 688)
Assim sendo, não há como negar que a recorrente não suscitou, de modo processualmente adequado, a terceira questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver agora apreciada. Evidentemente, a referida questão normativa – tal como configurada no requerimento de interposição de recurso – é bem distinta das questões normativas relativas à alegada violação do princípio da irretroatividade fiscal que a recorrente suscitou nas suas alegações de recurso perante o tribunal recorrido. Nunca, nessa sede, colocou a recorrente o problema da inconstitucionalidade de interpretação normativa que julgasse aplicável o n.º 2 do artigo 38º da LGT a fatos que, iniciando-se em data anterior à entrada em vigor daquele diploma legal, apenas se consumaram – com a distribuição de dividendos – em data a ele posterior. E, aliás, nem sequer se pode afirmar que a interpretação adotada pelo tribunal ora recorrido configurasse uma verdadeira “decisão surpresa”, na medida em que o próprio tribunal de primeira instância já havia aderido a Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 15 de fevereiro de 2011 – inclusive transcrevendo-o (fls. 528 a 532) –, tendo sufragado a “step transaction doctrine” e considerado que:
“«(…) Pois bem, quando assim sucede, como se julga ser o caso em análise, a disposição antiabuso pode e deve aplicar-se ao momento decisivo e final que é representado, “in casu”, pela receção de acréscimos patrimoniais como dividendos dedutíveis, em vez de juros, que seria o que aconteceria na ausência da operação compósita evasiva (…).»
Pelo que improcede o alegado pela impugnante quanto à aplicação retroativa do art. 38.º, n.º 2m da LGT, em violação do disposto no art. 103.º, n.º 3, da CRP, e à intempestividade do procedimento por alegado desrespeito do prazo de caducidade previsto no art. 63.º, n.º 3 do CPPT.” (fls. 532)
Daqui decorre que nem pode sequer dizer-se que a interpretação normativa adotada pelo Tribunal Central Administrativo Sul fosse surpreendente ou insólita, na medida em que, à data em que proferiu as suas alegações de recurso, a recorrente já havia sido confrontada com idêntica interpretação, para além de que já existia jurisprudência do próprio tribunal recorrido nesse sentido (supra referido acórdão, proferido em 15 de fevereiro de 2011). Não estava, portanto, dispensada de suscitar a inconstitucionalidade que pretende agora ver apreciada
Tanto basta para concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso interposto.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em em 7 UC´s para o recorrente, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformada com a decisão, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, cujos termos ora se resumem:
«No requerimento de interposição de recurso, a Recorrente alegou que as duas primeiras inconstitucionalidades foram por si suscitadas em sede de recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, nas alegações que apresentou, nomeadamente a págs. 25, 26, 27 e 43 e na conclusão 24.ª, a págs. 49.
Ora, vistas as alegações de recurso, verifica-se que foi efetivamente invocada pela Recorrente a inconstitucionalidade da norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, se interpretada e aplicada com um concreto sentido que a Recorrente também especificou, qual seja o de a referida norma ser tomada como uma espécie de tipo tributário geral de sobreposição que permitiria a tributação de realidades não visadas pela ordem jurídica e que unicamente admitiria como via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico a que fosse fiscalmente mais onerosa. E a Recorrente também indicou os princípios constitucionais que considera violados pela norma se interpretada com o sentido indicado, que são os princípios da legalidade fiscal e da liberdade económica.
Retomemos a passagem da alegação da Recorrente transcrita na Decisão Sumária, a págs. 25 a 27 daquela alegação:
“Representando a CGAA uma compressão do princípio da tipicidade fiscal, de que decorre a proibição da analogia, conforme atrás se lembrou, ela só será compatível com a CRP se tiver como pressuposto um juízo de valor negativo – e um juízo referente ao plano normativo do sistema jurídico global, em face do qual se reprovam os meios utilizados concretamente por um contribuinte para obter uma situação fiscal mais vantajosa. Só um tal juízo de valor, com efeito, poderá suportar a ideia de que, ao aplicar a um certo negócio real as normas que tipicamente correspondem a outro, a Administração fiscal está ainda a atuar o espírito ou a ratio destas últimas.
O que é determinante, assim, no espírito normativo da CGAA, não é a censura dos efeitos pretendidos – a “redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos” –, mas antes a reprovação dos meios utilizados: os atos ou negócios que possam ser qualificados como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”. Por isso, ao contrário do que, por vezes, parece pensar a Administração fiscal, não existe apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico – o nº 2 do artigo 38º da LGT não configura uma espécie de tipo tributário geral de sobreposição que, diretamente contra a Constituição, impõe sempre aos contribuintes a escolha do caminho fiscalmente mais oneroso.
Na verdade, a prevenção do abuso de direito ou do abuso de formas, no campo da fiscalidade, é o domínio onde com mais premência e propriedade se balanceia, por um lado, a relação entre a evasão e a opção fiscais, e, por outro lado, a harmonização entre a tipicidade do sistema tributário e o respetivo conceito de justiça ou capacidade contributiva. É que as legislações que, como a nossa, dispõem de normas para combater aquele abuso, autorizam as Administrações fiscais a desconsiderarem as formas livremente escolhidas pelos contribuintes e a desaplicarem os tipos tributários que lhes correspondem – apesar de aquelas formas serem indubitavelmente legais à face do sistema jurídico global –, para depois fazerem corresponder àquelas formas tipos que se encontram previstos para outras distintas.
No entanto, para que um tal instrumento possa ser utilizado sem esvaziar por completo os princípios constitucionais da liberdade económica e da legalidade fiscal, é mister que, quanto a certas formas concretamente realizadas, se possa fazer um juízo de valor negativo, em nome do seu caráter inusitado, anómalo, artificioso, no sentido de se poder dizer que elas, ao serviço de um intuito exclusiva ou predominantemente fiscal, fazem dos atos ou negócios jurídicos uma utilização distorcida e apreciavelmente distinta daquela que o legislador configurou como típica ou adequada – um aproveitamento extralegem, no fundo.
Isto é: em todos os ordenamentos jurídicos – e especialmente no nosso, em que, no plano constitucional, o primado da legalidade fiscal está tão densamente regulado –, a aplicação de normas como a do nº 2 do artigo 32º da LGT obriga o agente administrativo a atuar no plano da normatividade, não lhe facultando um poder não vinculado para atuar uma espécie de prevalência geral do negócio fiscalmente mais oneroso”. (negritos da Recorrente)
Na passagem transcrita, e em particular nos trechos assinalados, a Recorrente expôs o que considera ser o sentido conforme à Constituição da norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (o de se tratar de uma norma que tem como pressuposto um juízo de valor negativo referente ao plano normativo do sistema jurídico global, em face do qual se reprovam os meios utilizados concretamente por um contribuinte para obter uma situação fiscal mais vantajosa) e, do mesmo passo, alegou que a norma, se interpretada diferentemente, como tipo tributário geral de sobreposição que impõe sempre aos contribuintes a escolha do caminho fiscalmente mais oneroso, seria diretamente contra a Constituição por ofender os princípios constitucionais da liberdade económica e da legalidade fiscal.
Porventura, a Recorrente poderia ter sido mais contundente na afirmação da inconstitucionalidade da norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT na interpretação apontada, que veio a ser acolhida no Acórdão recorrido; porém, a verdade é que a invocação da inconstitucionalidade do preceito, numa dimensão normativa devidamente concretizada, ficou feita nas alegações de recurso, e a identificação dos princípios constitucionais ofendidos também.
(…)
Ora, afigura-se à Recorrente que a alegação da inconstitucionalidade da norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, se aplicada com o sentido acima indicado, foi feita nas suas alegações para o Tribunal Central Administrativo – Sul de forma clara, precisa e fundamentada, seja quanto à norma impugnada seja quanto aos princípios ofendidos e às razões dessa ofensa, e suscetível de ser detetada e conhecida pelos seus destinatários.
(…)
Prova disso mesmo é que o Tribunal Central Administrativo – Sul, no douto Acórdão recorrido, não sentiu dificuldades em detetar a alegação destas questões de constitucionalidade e pronunciou-se efetivamente sobre elas, ainda que se tenha centrado na defesa da constitucionalidade da decisão, na aplicação que nela se fez da cláusula geral antiabuso contida na norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
(…)
Em conformidade com o exposto, não se pode também concordar com as dúvidas expressas na decisão sumária relativamente à dimensão normativa das duas primeiras questões suscitadas pela Recorrente. Como acima se referiu, a Recorrente não se limitou a impugnar a decisão do Tribunal Tributário de Lisboa mas sim a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, com o sentido com que foi aplicada nessa mesma decisão.
Apesar de a formulação adotada na conclusão 24.ª das alegações poder sugerir, numa certa leitura, um mais direto ataque à decisão recorrida, a verdade é que mesmo nessa passagem, e mais ainda se lida à luz do conjunto das alegações, se vê que a Recorrente impugna a constitucionalidade da norma que consagra a cláusula geral antiabuso quando interpretada com o sentido que o Tribunal recorrido lhe deu, de se tratar de uma espécie de tipo tributário geral de sobreposição que permitiria a tributação de realidades não visadas pela ordem jurídica e que unicamente admitiria a via fiscalmente mais onerosa como única aceitável para cada objetivo económico-jurídico.
A censura que a Recorrente dirige na sua alegação ao referido comando legal, quando tomado com tal abrangência, transcende os particularismos da situação sub judice e convoca a apreciação da constitucionalidade da norma, em si mesma considerada, e não da decisão que a aplicou.
(…)
III. A terceira questão
(…)
Sempre ressalvado o devido respeito, não parece que exista a falta de sintonia detetada na Decisão Sumária.
Em primeiro lugar, afigura-se à Recorrente que ela não está, no seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, a alegar questão de inconstitucionalidade distinta da invocada nas alegações de recurso. Num sítio e no outro, o que a Recorrente sustenta é que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT é retroativa se interpretada com o sentido de que se aplica a atos anteriores ao seu início de vigência (no caso, a constituição e licenciamento da Eva e os contratos por esta celebrados com a Polo) pelo facto de alegadamente se integrarem num complexo ou cadeia de atos em que alguns são posteriores à entrada em vigor da norma (na situação em análise, a distribuição de dividendos).
É certo que, na passagem transcrita na Decisão Sumária, da pág. 22 das alegações da Recorrente, se menciona apenas o facto de a norma não existir nem “ao tempo da constituição da EVA, nem sequer ao tempo do seu licenciamento, nem tão-pouco ao tempo da celebração de todos os negócios com a POLO”; porém, não é menos certo que esta afirmação vem na sequência de um raciocínio que a Recorrente explana nos parágrafos anteriores (a págs. 20 e segs.) em que põe em evidência que o sentido com que a norma foi interpretada e aplicada em Primeira Instância, com que a Recorrente não se conforma, foi de que, se estiver em causa um “conjunto complexo de atos sujeitos a uma arquitetura global”, em que vários desses atos foram praticados antes da entrada em vigor da norma, esta será aplicável a todos esses atos desde que algum deles tenha ocorrido no seu domínio de vigência, ainda que este seja a distribuição de dividendos feita em consequência dos contratos anteriormente celebrados.
Ou seja, é o mesmo e único o sentido com que a Recorrente impugna a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT nas alegações e no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que em ambos os lugares a Recorrente se insurge contra esta leitura do preceito com um sentido que permitiria a sua aplicação a factos passados à boleia da pretensa integração desses factos num complexo de atos em que se traduziria a atuação abusiva ou fraudulenta e da sobrevalorização do ato final dessa alegada cadeia elisiva, já praticado no seu domínio de vigência.
Ora, foi com esse mesmo sentido que a norma foi aplicada na sentença do Tribunal Tributário de Lisboa e também no Acórdão recorrido, como claramente decorre da passagem transcrita na Decisão Sumária, em que se defende que “o abuso de formas com vista à obtenção de vantagem fiscal indevida não se consubstancia num único ato mas antes numa cadeia de atos, que, no mínimo, se iniciam com a utilização da «EVA», (…) devendo por isso a operação ser tratada como um todo”, em que a distribuição de dividendos seria o momento final desse circuito, com o qual se concretizaria e se tornaria plenamente percetível o abuso de formas e a vantagem fiscal indevida e pretendida.
Assim, não existe desconformidade entre a invocação de constitucionalidade feita nas alegações e o modo como ela foi retomada no requerimento de recurso, e não se verifica, também, falta de coincidência entre o sentido com que o Tribunal recorrido interpretou e aplicou a norma impugnada e aquele cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela Recorrente.
Pelas razões expostas, afigura-se que todas as três questões de constitucionalidade foram suscitadas nos autos de modo processualmente adequado, pelo que não se verifica a impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso invocada na douta Decisão Sumária.
Refira-se, aliás, que, tendo a Recorrente também interposto recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão do Tribunal Central Administrativo – Sul que, com fundamentos idênticos aos do aqui recorrido, havia negado provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgara improcedente a impugnação judicial da liquidação de IRC da Recorrente relativa ao exercício de 2003, por aplicação da mesma norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, e sendo esse recurso de constitucionalidade interposto nos exatos termos do presente, ele foi admitido por esse Venerando Tribunal, encontrando-se atualmente pendente de decisão.»
3. Notificada para o efeito, a recorrida deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos responder à reclamação deduzida.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A findar a sua reclamação, veio o reclamante aludir à alegada divergência entre a decisão ora reclamada e aquela que teria sido proferida no âmbito do Proc. n.º 237/2012, cujos termos ainda correm. Independentemente da decisão que vier a ser proferida nesses autos, certo é que só após decisões definitivas é que se poderia equacionar a hipótese de reação processual face a uma eventual contradição de julgados e não neste momento.
Assim sendo, impõe-se apenas reiterar que a atuação processual da recorrente nos autos recorridos não logrou satisfazer o pressuposto de prévia e adequada suscitação processual das primeira e segunda questões de inconstitucionalidade normativa que constituem objeto do presente recurso. Conforme já amplamente demonstrado na decisão reclamada, as suas alegações perante o Tribunal Central Administrativo do Sul – alvo de transcrição na reclamação ora em apreço – apenas revelam a convocação genérica de princípios constitucionais em defesa de uma pretendida interpretação normativa do n.º 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária (LGT), sem que, contudo, haja uma correspondência com os termos, mais precisos e minuciosos, em que o objeto do presente recurso de constitucionalidade foi fixado. Nenhum dos argumentos ora esgrimidos logram abalar a justeza da decisão reclamada, visto que se limitam a remeter para a transcrição das alegações de recurso deduzidas perante o tribunal recorrido, que já foram alvo de aturada análise em sede de decisão sumária.
Além disso, a concreta configuração literal que a recorrente entendeu dar às primeira e segunda interpretações normativas não corresponde, de modo algum, ao sentido decisório resultante do acórdão proferido pelo tribunal recorrido. Elas antes expressam o entendimento – sempre subjetivo – da recorrente sobre a interpretação que a mesma entende ter sido adotada mas que, em boa verdade, não encontra essa correspondência na decisão recorrida.
Por último, quanto à terceira questão normativa, mantém-se – na linha do já explanado na decisão reclamada – que a concreta dimensão normativa que a recorrente elegeu para objeto do presente recurso não foi efetivamente suscitada perante o tribunal recorrido, nestes mesmos e exatos termos. Reitera-se também que a aplicação desta terceira interpretação normativa (“in fine”) nem sequer se afigurava surpreendente, visto que o tribunal de primeira instância já havia aderido a acórdão anteriormente proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 15 de fevereiro de 2011 – inclusive transcrevendo-o (fls. 528 a 532) –, que sufragava a “step transaction doctrine”.
Aproveita-se apenas para acrescentar que a terceira interpretação normativa nem sequer goza de qualquer identidade substancial com a interpretação normativa que subjazeu à decisão proferida pelo tribunal recorrido. Com efeito, a decisão recorrida nunca admitiu, por momento algum, que a aplicação do artigo 38º, n.º 2, da LGT, abrangesse factos anteriores à sua entrada em vigor, tendo, ao invés, entendido que aquele comando normativo se aplica à situação em apreço porque o momento decisivo corresponde à data do benefício dos acréscimos patrimoniais auferidos a título de dividendos dedutíveis.
Em suma, mantém-se integralmente o sentido da decisão reclamada.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro