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Processo n.º 709/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Na sequência de acidente de trabalho sofrido em 1993, foi atribuída ao ora recorrente uma incapacidade permanente parcial de 12% e reconhecido o direito à pensão fixada na sentença do Tribunal de Trabalho de Viseu de 17 de março de 1995.
Em incidente de revisão subsequentemente instaurado, por sentença de 17 de julho de 2001, foi reconhecido o agravamento da incapacidade do sinistrado para 15% e determinado o aumento da pensão.
Por requerimento junto em 12 de outubro de 2011, o recorrente comunicou ao Ministério Público a pretensão de ver novamente revista a pensão atribuída em virtude de ter passado a depender de canadianas para se deslocar depois de sofrer um novo acidente em 6 de setembro de 2011 que veio agravar a sua situação.
Considerando que naquele requerimento se aludia a um outro acidente, sofrido pelo sinistrado em 6 de setembro de 2011, o Ministério Público ordenou a notificação do requerente para prestar esclarecimentos adicionais, designadamente a razão pela qual imputava as alterações da sua capacidade para o trabalho ao acidente ocorrido em 1993, e não àquele último acidente, esclarecimentos que o sinistrado fez por requerimento que juntou em 19 de dezembro seguinte.
No exercício do patrocínio oficioso, o Ministério Público instaurou então incidente de revisão da incapacidade do sinistrado, que, apesar da oposição, por extemporaneidade, oferecida pela seguradora requerida, viria a ser mandado prosseguir por decisão do juiz do Tribunal de Trabalho de Viseu que, para tanto, considerou inconstitucional a norma constante do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965.
Desta decisão recorreu a companhia de seguros requerida para o Tribunal da Relação que, por acórdão de 20 de setembro de 2012, decidiu revogar a decisão de 1.ª instância, indeferindo, por extemporaneidade, o incidente de revisão de incapacidade requerido pelo sinistrado, entendendo não violar qualquer princípio constitucional «o entendimento, de que, dez anos decorridos sobre a data da fixação da pensão em incidente de revisão, sem que se tenha registado qualquer evolução justificadora de um novo pedido de revisão, a situação se deve ter por consolidada».
2. É desta decisão que, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC, o Ministério Público, exercendo o patrocínio do sinistrado, interpôs o presente recurso de inconstitucionalidade pretendendo que se aprecie, declare e decida:
“a)que o n.º 2, da Base XXII, da Lei n.° 2127/65, é inconstitucional, por violação da norma decorrente do art.° 59.°, n.° 1, al. f), da Constituição, que estabelece o princípio da justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, se interpretado no sentido de que:
1- o n.° 2, da Base XXII, estabelece um prazo preclusivo de 10 anos para a revisão da pensão, contando-se tal prazo desde a data da fixação da pensão;
2-o n.° 2, da Base XXII, estabelece um prazo preclusivo de 10 anos para a revisão da pensão, contando-se tal prazo desde a data da fixação da pensão no incidente de revisão da pensão mais recente que tenha ocorrido.
b) que o n.° 2, da Base XXII da Lei n.° 2127/65 é inconstitucional por violação do princípios da igualdade de tratamento entre os trabalhadores vítimas de doença profissional e os trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, no que concerne à revisão da pensão, decorrentes dos art.°s 13.°, n.° 1 e 59º, n.° 1, al. f) ambos da Constituição da República Portuguesa;
c) que o n.° 2, da Base XXII, da Lei n.° 2127/1965, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e não discriminação, no que à revisão da pensão concerne, relativamente aos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito da vigência da Lei n.° 2127/1965, quando comparados com os trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito de vigência da Lei n.0 98/2009 (art.°s 13.°, n.° 1 e 59.°, n.° 1, al. f), da Constituição).”
Nas alegações que apresentou neste Tribunal, o Ministério Público, depois de recordar a jurisprudência proferida pelo Tribunal Constitucional na matéria, perfilha a seguinte «solução jurídica a dar ao presente recurso de inconstitucionalidade»:
“o que resulta dos presentes autos é, desde logo, o facto de ter havido lugar, 6 anos depois da fixação da sua incapacidade, a uma reavaliação da situação clínica do sinistrado, que concluiu por um agravamento da sua incapacidade permanente parcial e, consequentemente, por um agravamento da sua capacidade de ganho.
Assim, a incapacidade permanente parcial, de que padecia o sinistrado, não se encontrava consolidada, nessa altura, mas, pelo contrário, tinha-se agravado durante este período, sendo expectável que tal agravamento continuasse a verificar-se no futuro.
Realmente, um pouco mais de 10 anos passados sobre a última fixação da sua incapacidade, o sinistrado veio comunicar, ao Ministério Público, “que desejava a abertura do processo acima indicado em virtude de eu não poder deslocar-me sem canadianas, após outro acidente em 06/09/2011 o qual veio agravar tudo”.
E, realmente, o sinistrado, que entretanto sofrera um outro acidente, havia piorado “gravemente das sequelas resultantes do acidente sofrido”, tinha muita dificuldade em continuar “a exercer as funções próprias da sua profissão de motorista” e tinha “vindo a perder a sua capacidade de mobilidade, sobretudo ao nível da perna esquerda, que neste momento adquiriu uma curvatura que o impede de caminhar e sobretudo de conduzir”.
De tal forma que “em virtude de tal situação, o sinistrado ficou impedido de poder renovar a sua carta de condução de motorista, pelo que igualmente está totalmente impedido de exercer a sua profissão habitual”.
31º
Ora, estamos claramente, aqui, perante uma situação em que a presunção legal deixou de fazer qualquer sentido, uma vez que a situação clínica do sinistrado, longe de estabilizar, piorou significativamente, ao ponto de estar em risco de não voltar, sequer, a trabalhar.
E isto, apesar de “comprovado o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e o agravamento das lesões”, que o Acórdão recorrido não põe em dúvida, não sendo imputável ao sinistrado qualquer culpa por ter deixado passar o prazo de 10 anos em que deveria ter pedido uma reavaliação da sua situação, já que, só no início de setembro de 2011, por força de um outro acidente que igualmente sofreu, é que viu, infelizmente, a sua situação clínica, quanto à perna esquerda afetada pelo primeiro acidente, subitamente definida.
Situação, essa, aliás, que, irremediavelmente, parece comprometer a sua futura capacidade de ganho.
IX. Conclusões
32º
Por todo o exposto, atendendo aos factos constantes dos presentes autos, crê-se que este Tribunal Constitucional deverá considerar inconstitucional a norma constante do nº 2 da Base XXII, da Lei nº 2127, de 3 de agosto de 1965, na interpretação segundo a qual, tendo ocorrido uma revisão da pensão inicialmente fixada, em consequência do agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado, novo pedido de alteração, com o mesmo fundamento, só pode ser requerido no prazo de dez anos contados da data da última revisão, apesar de comprovado o agravamento posterior da situação clínica do sinistrado resultante do acidente que sofreu, por violação da norma do art. 59º, nº 1, alínea f) da Constituição, que estabelece o princípio da justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho.
33º
Em consequência, deverá conceder-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando-se, em conformidade, a revogação do Acórdão recorrido, de 20 de setembro de 2012, do Tribunal da Relação de Coimbra.”
3. Contra-alegou a companhia de seguros recorrida, valendo-se igualmente de vários acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional na matéria, e concluindo que:
“10°-Assim, resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional que a norma constante do n° 2 da Base XXII não seria inconstitucional quando interpretada no sentido de negar a revisão nos casos em que ela é pedida depois de 10 anos sobre a data da decisão do último incidente de revisão, como foi o caso.
11°-Isto porque, o prazo de 10 anos é suficientemente alargado para que um hipotético agravamento de uma lesão possa manifestar-se, podendo e devendo o interessado exercer os seus direitos sem deixar decorrer 10 anos sobre um anterior pedido de revisão.
12°-Se o interessado não exerce tal direito por mais de 10 anos, tal inércia só pode conduzir a uma ideia de estabilidade e consolidação da sua situação clínica.
13°-Ora, efetivamente, no caso dos presentes autos, desde a data da revisão da pensão (e última) - 12 de julho de 2001 — até à data de 18/01/2012 (data do requerimento que deu inicio ao presente incidente), já decorreram mais de 10 anos, sendo certo que, o pedido de revisão interrompe o prazo, não o suspendendo
14°-Assim, e interrompido que foi, o sinistrado apenas poderia requerer a revisão da sua incapacidade, novamente, até 12 de julho de 2011
15°-Sendo que a interpretação do n° 2 da Base XXII, em nada ofende o principio constitucional, aliás inquestionável, do direito à justa reparação dos sinistrados de acidentes de trabalho.
16°-Bem como, o regime de acidentes de trabalho é diferente do regime de doenças profissionais, não se podendo equiparar, para efeitos de eventual violação do princípio da igualdade de tratamento, vítimas de doença profissional e vítimas de acidente de trabalho.
17°-À data do acidente dos autos a Lei que se encontrava em vigor era a Lei 2127, sendo que a Lei 98/2009, de 04 de setembro apenas se aplica aos acidentes ocorridos depois de 01 de janeiro de 2010.
18°-Sendo certo que, se o legislador pretendesse abolir qualquer limite temporal ao direito de revisão das prestações dos acidentes ocorridos anteriormente àquela data, teria seguramente tomado posição expressa, o que não fez.
19°-A diferenciação está justificada em face do regime aplicável no tempo, não podendo afirmar-se que ocorra, por isso, arbítrio ou desigualdade injustificada.
20°-Como observou o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N° 612/2008, ”...os condicionamentos temporais estabelecidos na Lei n° 2127, e mantidos na Lei 100/97, surgiram da verifìcação da experiência médica quotidiana de que os agravamentos como as melhorias têm uma maior incidência nos primeiros tempos (daí afixação dos dois primeiros anos em que é possível requerer mais revisões), decaindo até decorrer um maior lapso de tempo (que o legislador fixou generosamente em dez anos)”.
21°-Assim, por razões materiais, de segurança jurídica e pela referida norma de aplicação no tempo, não pode ser aplicável ao caso a Lei 98/2009, devendo ser, por V. Exas., salvo melhor entendimento em contrário, julgada constitucional a norma do n° 2 da Base XXII, por não violar o princípio da igualdade e não discriminação ou outro, mesmo quando comparando trabalhadores vitimas de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito da vigência da Lei 2127/65 com trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito de vigência da Lei 98/2009.”
4. Na sequência das alegações produzidas foi ordenada a notificação do recorrente e do recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 704.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º da LTC, para, no prazo de 10 (dez) dias se pronunciarem sobre a eventualidade de o recurso não ser objeto de conhecimento pelas seguintes razões:
- falta de correspondência entre a primeira dimensão interpretativa impugnada e a ratio decidendi do acórdão recorrido.
- abandono, nas alegações de recurso, da segunda dimensão interpretativa impugnada.
5. Produzidas estas alegações, cumpre começar por apreciar a questão prévia da cognoscibilidade do recurso.
II – Fundamentação
a) Questão prévia
6. No requerimento de interposição de recurso são identificados dois sentidos interpretativos do preceito contido no n.º 2 da Base XXII, da Lei n.º 2127/65, cuja conformidade constitucional se pretende ver apreciada:
1 – A interpretação do citado preceito legal no sentido de o mesmo estabelecer um prazo preclusivo de 10 anos para a revisão da pensão, contando-se tal prazo desde a data da fixação da pensão;
2 – A interpretação do citado preceito legal no sentido de o mesmo estabelecer um prazo preclusivo de 10 anos para a revisão da pensão, contando-se tal prazo desde a data da fixação da pensão no incidente de revisão da pensão mais recente que tenha ocorrido.
7. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º, n.º 1 da LTC.
Nos termos desta disposição legal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Indispensável é, assim, que a norma, ou o critério normativo cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida.
Lido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, logo se verifica que a decisão recorrida não aplicou a 1.ª norma formulada pelo recorrente como objeto do recurso. O que aquele tribunal aplicou foi o entendimento do preceito legal em referência no sentido «de que, dez anos decorridos sobre a data da fixação da pensão em incidente de revisão, a situação se deva ter por consolidada», concluindo que um tal entendimento «não se reveste de flagrante desrazoabilidade, não violando qualquer preceito constitucional». (sublinhado nosso).
Pretende o recorrente que «a primeira dimensão normativa, elencada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade apresentado pelo Ministério Público, é igualmente contemplado na exposição argumentativa constante do Acórdão recorrido, integrando, pois, a sua ratio decidendi, muito embora se aluda, depois, ao “incidente de revisão”».
Todavia, apenas a 2.ª norma enunciada no requerimento de recurso se refere à contagem do prazo para a revisão da pensão a partir da data da fixação da pensão em incidente de revisão, como aconteceu no caso dos autos, tendo sido apenas esta situação que foi efetivamente considerada na decisão recorrida e, desta forma, integrou a razão do ali decidido.
Sendo assim inevitável concluir que a 1.ª norma enunciada pelo recorrente não logrou aplicação no caso, o que inviabiliza o conhecimento do recurso nessa parte.
8. A segunda norma cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada é, como já referido, a interpretação do n.º 2 da Base XXII, da Lei n.º 2127/65 no sentido de o mesmo estabelecer um prazo preclusivo de 10 anos para a revisão da pensão, contando-se tal prazo desde a data da fixação da pensão no incidente de revisão da pensão mais recente que tenha ocorrido.
Esta norma não seria, porém, retomada nas alegações apresentadas pelo recorrente neste Tribunal.
Na verdade, ao longo das alegações produzidas, o recorrente invoca argumentos tendentes a demonstrar a desconformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) «da norma constante do nº 2 da Base XXII, da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, na interpretação segundo a qual, tendo ocorrido uma revisão da pensão inicialmente fixada, em consequência do agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado, novo pedido de alteração, com o mesmo fundamento, só pode ser requerido no prazo de dez anos contados da data da última revisão, apesar de comprovado o agravamento posterior da situação clínica do sinistrado resultante do acidente que sofreu».
Esta norma não coincide com a enunciada na alínea a), n.º 2 do requerimento de recurso. Ao acrescentar à enunciação da norma inicialmente formulada o segmento «apesar de comprovado o agravamento posterior da situação clínica resultante do acidente que sofreu», o recorrente alterou o seu sentido, condicionado o seu âmbito de aplicação à comprovação do agravamento posterior da situação clínica resultante do acidente sofrido.
Pretende o recorrente que esta formulação não altera o sentido da segunda dimensão normativa apresentada no requerimento de recurso de constitucionalidade, interposto pelo Ministério Público, «antes a completa e explica, adequando-se, particularmente, ao caso dos presentes autos».
Não pode, todavia, considerar-se complemento da norma visada, um enunciado que altera o seu sentido e campo de aplicação. Certo é que toda a argumentação construída ao longo das alegações produzidas assenta no pressuposto da verificação da referida condicionante, nada de específico tendo sido alegado neste Tribunal, em sustentação da desconformidade com a CRP, da norma enunciada na alínea a), n.º 2 do requerimento de interposição de recurso, pelo que não poderá deixar de concluir-se que esta última dimensão normativa foi abandonada pelo recorrente (neste sentido v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 468/04, 383/2008 e 446/2008, entre outros, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)
Em razão do exposto, por abandono da 2.ª questão de constitucionalidade normativa formulada no requerimento de interposição de recurso, não poderá também conhecer-se deste segmento do recurso.
III - Decisão
9. Termos em que se decide não conhecer do objeto do recurso.
Lisboa, 27 de fevereiro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro.