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Proc. nº 74/02 Acórdão nº 68/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Valença, D... interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto da sentença que, com fundamento em caducidade, julgou improcedente a acção para o exercício do direito de preferência sobre determinado prédio, identificado nos autos, em que o mesmo era autor.
Nessa acção, intentada em Dezembro de 1998, o autor alegara que teve conhecimento em Junho de 1998 que J... vendeu, pelo preço de 200.000$00, a M... um prédio que é confinante a norte com o prédio do autor e que o primeiro réu não deu conhecimento da venda, nem dos seus elementos essenciais aos pais do autor, ao autor, aos seus irmãos, ou a qualquer outro dos titulares dos prédios confinantes. O Tribunal Judicial da Comarca de Valença, porém, deu como provado que, tendo a alienação sido realizada através de escritura pública celebrada em Dezembro de 1990, “ao pai do autor foi dado conhecimento da projectada alienação antes dela se realizar, e ainda que este teve conhecimento do preço e da pessoa do comprador”. Aquele tribunal concluiu portanto que, à data em que foi intentada a acção, há muito havia caducado o prazo para o exercício do direito de preferência.
Nas alegações que apresentou perante o Tribunal da Relação do Porto, o recorrente formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
“1) Não foi dado conhecimento ao pai do preferente de todos os elementos essenciais do contrato designadamente, as condições e prazos de pagamento, data da outorga da escritura notarial, encargos do imóvel e tudo o demais que pudesse ter determinado a formação da vontade no sentido de preferir ou não.
2) E, para que a comunicação para a preferência seja válida e eficaz e, em consequência, possa dar origem à caducidade do exercício, desse direito, é necessário que seja dado conhecimento, ao preferente, de todos os elementos essenciais do contrato.
3) Ora, não se provou que alguns dos elementos essenciais tenha sido comunicado aos pais do preferente nem mesmo o preço e a pessoa do comprador.
[...]
16) O direito de preferência tem, obrigatoriamente, de ser oferecido a ambos os cônjuges.
17) Ora, a mãe do A., faleceu em 5/4/1992 (fls. 94 dos autos) e a escritura de compra e venda foi outorgada em 10/12/1990.
18) E, não resulta dos factos dados como provados que, alguém tenha dado conhecimento da venda ou oferecido a preferência à mãe do A., então preferente.
[...]
20) Assim, decidindo julgar procedente a excepção (peremptória) da caducidade invocada pelos RR, a Mma. do tribunal «a quo» violou: o artigo 416º, nºs 1 e 2, do Código Civil, o nº 1, al. d), do artigo 668º e o artigo 1463º, ambos do Código de Processo Civil e o nº 3 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa.
[...].”
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 15 de Novembro de
2001 (fls. 24 a 33 dos presentes autos de reclamação), negou provimento o recurso, confirmando a decisão recorrida.
2. Inconformado, D... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento assim redigido (requerimento de fls. 34 destes autos):
“[...] suscitou nas suas alegações de recurso, uma inconstitucionalidade, a qual não mereceu provimento no douto acórdão proferido por V.as Ex.cias. Assim sendo, nos termos e para os efeitos dos artigos: 69º, 70º nº 1 al. b), 71º e 72º nº 2 da Lei nº 28/82 de 15/11 e o art. 685º nº 1 do C.P.C., vem requerer a admissão de recurso, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, para o Tribunal Constitucional.”
O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação do Porto, por despacho de 13 de Dezembro de 2001 (fls. 35 e 35 vº destes autos), não admitiu o recurso, por considerar que o recorrente não suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa, pois “apenas atacou a decisão recorrida em termos de inconstitucionalidade”.
3. D... reclamou do despacho que não admitiu o recurso (requerimento de fls. 1 e 2), alegando, entre o mais:
“[...]
4º A douta sentença, do Tribunal de 1ª instância, considerou que comunicar os elementos essenciais do negócio unicamente a um dos cônjuges era o suficiente para se cumprir o artigo 1463º do Código de Processo Civil;
5º Esta interpretação do aludido preceito, pela qual a comunicação dos elementos essenciais do negócio ao marido é suficiente para o cumprimento da obrigação legal é, no entender do recorrente para o Tribunal da Relação do Porto e ora reclamante, uma interpretação do referido normativo não só ilegal [...], mas também inconstitucional por violar o nº 3 do artigo 36º da Constituição que protege e defende a igualdade entre os cônjuges, o que alegou e concluiu nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto;
6º Por somente ter tido conhecimento dessa interpretação inconstitucional aquando da douta sentença proferida em 1ª instância, não se vislumbra, como peregrinamente pretende o Venerando Juiz Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, que sobre ela já o recorrente e ora reclamante se tivesse referido na sua petição inicial, pois a previsão do futuro aos astrólogos pertence e o reclamante reconhece, humildemente, não possuir tais atributos mágicos;
7º O certo é que o ora reclamante nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, invoca a violação do artigo 36º, nº 3 da CRP, pelo Tribunal de 1ª instância, sendo igualmente certo que a Veneranda Relação do Porto, dessa alegada violação, pelo então recorrente, da mesma fez «tábua rasa», não se dignando apreciá-la;
[...]
10º [...] a norma não é inconstitucional, atacando-se, isso sim, a interpretação, feita ao arrepio da Constituição, v.g. artigo 36º, nº 3 da C.R.P. e artigo 1463º do Cód. P. Civ., na douta decisão recorrida proferida em 1ª instância, a qual, aliás, é reiterada no douto Acórdão da Relação do Porto;
[...].”
O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação do Porto, manteve o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade (fls. 4 destes autos).
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
4. O Tribunal da Relação do Porto não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante, por considerar que o recorrente não suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa, pois “apenas atacou a decisão recorrida em termos de inconstitucionalidade”.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada no requerimento de interposição do recurso – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que pretende que este Tribunal aprecie e que tais normas sejam aplicadas na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade.
Nos termos do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, o recurso previsto na mencionada alínea b) só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
5. No caso dos autos, o ora reclamante não suscitou “de modo processualmente adequado” qualquer questão de inconstitucionalidade normativa a propósito das normas legais em torno das quais se situava o litígio que o opunha aos demandados na acção de preferência.
Na verdade, nas alegações de recurso apresentadas perante o tribunal recorrido (o Tribunal da Relação do Porto) – a peça processual em que o ora reclamante afirma ter suscitado a questão de constitucionalidade –, o então recorrente exprimiu-se do seguinte modo:
“[...]
20) Assim, decidindo julgar procedente a excepção (peremptória) da caducidade invocada pelos RR, a Mma. do tribunal «a quo» violou: o artigo 416º, nºs 1 e 2, do Código Civil, o nº 1, al. d), do artigo 668º e o artigo 1463º, ambos do Código de Processo Civil e o nº 3 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa.
[...].”
Na expressão utilizada não pode ver-se a invocação de qualquer questão de constitucionalidade reportada à norma que o reclamante agora pretende submeter à apreciação deste Tribunal.
O ora reclamante não suscitou a inconstitucionalidade da norma ou normas que constituem o fundamento da decisão impugnada, antes dirigiu a censura de inconstitucionalidade à própria decisão recorrida.
Por outras palavras, o ora reclamante não pretende submeter a este Tribunal a apreciação da constitucionalidade de qualquer norma convocada para a decisão da matéria objecto do litígio. Através do recurso de constitucionalidade, o ora reclamante pretende afinal obter um novo julgamento da matéria discutida no processo.
Ora, como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
6. Da análise do processo resulta que o ora reclamante apenas reportou a inconstitucionalidade a uma determinada norma – à interpretação atribuída a uma determinada norma (artigo 1463º do Código de Processo Civil) – no requerimento através do qual deduziu reclamação do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 1 e 2 destes autos).
Esse momento não é, manifestamente, o momento adequado para considerar suscitada, “durante o processo”, uma questão de inconstitucionalidade normativa. E não existe, no caso dos autos, qualquer razão para considerar o ora reclamante dispensado do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade
“durante o processo”, sendo certo que o acórdão recorrido confirmou a decisão da
1ª instância. O ora reclamante teve portanto oportunidade de suscitar em momento anterior (concretamente, nas suas alegações perante o Tribunal da Relação do Porto) a questão de inconstitucionalidade, em termos processualmente adequados.
7. Assim, não tendo sido suscitada pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se que não se encontram verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida