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Processo n.º 842/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade foi proferida a fls. 1255 e seguintes a Decisão Sumária n.º 1/2013, que não conheceu do recurso de constitucionalidade, com o seguinte teor:
«I. Relatório
1. A. e mulher, B., recorrentes nos presentes autos em que é recorrido o Município de Vila Nova de Gaia, intentaram contra este ação de responsabilidade civil extracontratual alegando violação do dever geral de fiscalização. Por decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto de 30 de setembro de 2010, a ação foi considerada parcialmente procedente tendo o réu sido condenado no pagamento aos autores da quantia global de € 47.288,46, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde 22 de setembro de 2003 até integral pagamento. O réu foi ainda condenado no pagamento das quantias a apurar em sede de liquidação (fls. 1050 e seguintes).
Desta decisão foram interpostos recursos pelo Município de Vila Nova de Gaia, bem como pelos autores e pelo interveniente C., os quais foram admitidos com subida imediata para o Supremo Tribunal Administrativo. Este Tribunal, por acórdão de 9 de outubro de 2012, concedeu provimento ao recurso interposto pelo réu, absolvendo-o do pedido e revogando a sentença proferida em primeira instância (fls. 1203 e seguintes).
2. É desta decisão que vem agora interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), em requerimento que se transcreve:
“(…)
Não podendo conformar-se com a Decisão contida no acórdão notificado com data 12 de outubro de 2012, mas recebido aos 16.10.2012, porque violadora das normas contidas nas alíneas a) e b) do nº1 do artigo 70 da Constituição da República Portuguesa, porquanto ao interpretar como o fez as normas que impõem ao Réu Município o dever de fiscalizar,
designadamente as normas constantes dos artigos 90 e 91 do DL 100/84 de 29/3 (LAL), dos artigos 2, 4 e 6 do DL 48051 de 21/11/1967, dos artigos 6, 24, 51 e 57 do DL 445/91 de 20711, artigos 2, 15 e 16 do RGEU, DL 38382 de 7 de agosto de 1951,
fê-lo com violação das normas constitucionais constantes dos artigos 22 e 271 da Lei Fundamental, como logo foi suscitado na Petição Inicial sob o artigo 78 a 81.
Vem interpor o competente recurso para o Tribunal Constitucional
Ao abrigo do disposto nos artigos 70 e 75 e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional nº 28/82 de 15 de novembro”.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
3. Não obstante o recurso ter sido admitido no Tribunal a quo, tal decisão não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”). Assim, e porque se verifica a ausência de pressuposto essencial ao conhecimento do mérito do mesmo, profere-se decisão sumária ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
4. O recurso vem interposto com fundamento – implicitamente invocado - no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC. Esta norma prevê, em decorrência do disposto no artigo 270.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, o recurso de constitucionalidade das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Realça-se, desde logo, que o objeto destas impugnações será uma norma enquanto critério de decisão judicial. A fiscalização concreta, no nosso sistema, é exclusivamente normativa, apenas cabendo recursos de constitucionalidade que tenham por objeto a inconstitucionalidade de normas ou interpretações normativas aplicadas enquanto fundamento principal da decisão impugnada. Por outro lado, a inconstitucionalidade normativa deve ser suscitada durante o processo, isto é, até que seja proferida, pelo tribunal recorrido, a decisão final. A suscitação da inconstitucionalidade normativa deve ocorrer, portanto, atempadamente, de modo a permitir ao tribunal recorrido aperceber-se de um tal problema, e sobre o mesmo tomar a sua decisão.
5. No caso dos autos constata-se, desde logo, que o requerimento de recurso não identifica, como lhe competia, qual a concreta interpretação normativa que, tendo sido adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo, padece de desconformidade com os parâmetros constitucionais cotejados. Os recorrentes limitam-se a referir que o tribunal a quo terá violado tais parâmetros “ao interpretar como o fez as normas que impõem ao Réu Município o dever fiscalizar”. Esta alusão genérica não basta, no entanto, para que se tenha por devidamente delimitado o objeto do recurso de constitucionalidade, cuja conformação corre por conta exclusiva dos recorrentes. Ainda assim, entende-se que não deve ser proferido despacho tendente à correção desta omissão do requerimento de recurso, uma vez que subsiste a falta de um outro pressuposto – essa já insuprível – que conduz inelutavelmente ao não conhecimento do objeto do recurso.
Na verdade, compulsadas as peças processuais deduzidas pelos recorrentes, designadamente a que vem por si indicada no requerimento de recurso como correspondendo ao momento, durante o processo, em que foi suscitada a questão de constitucionalidade, verifica-se que os mesmos jamais arguiram um qualquer problema de constitucionalidade normativa. O que se limitaram a fazer – e isto apenas em sede de petição inicial uma vez que a questão não foi posteriormente retomada – foi invocar a violação, pelo Município, do dever geral de fiscalização, sustentando que “[a] responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos é consignada no artigo 22 da Constituição como um poder/dever fundamental e pilar de um sistema democrático, em contraponto com os direitos fundamentais e com igual força jurídica, subordinado ao princípio da proteção dos direitos definido no artigo 266 daquela Lei Fundamental” (fls. 17-18). O problema de constitucionalidade não foi, portanto, construído com base na desconformidade de concretos preceitos legais (ou numa sua interpretação) por referência aos parâmetros fundamentais. O que basta para que se conclua, desde já, pela impossibilidade de conhecimento do recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decido não tomar conhecimento do recurso, condenando os recorrentes em 7 (sete) uc.»
2. Notificados desta decisão, os recorrentes deduziram reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), invocando o seguinte:
«A decisão sumária assenta em dois fundamentos que cumpre aqui analisar:
I – Que o recorrente não identifica a concreta interpretação normativa que, tendo sido adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo, padece de desconformidade com os parâmetros constitucionais cotejados.
E acrescenta a Decisão Sumária que esta omissão do requerimento de recurso é suscetível de correção.
II – Que o recorrente jamais arguiu um qualquer problema de constitucionalidade normativa, concretizando a Decisão que o problema de constitucionalidade não foi construído com base na desconformidade de concretos preceitos legais, ou numa sua interpretação, por referência aos parâmetros fundamentais.
E declara que esta omissão é insuprível sendo esta a razão por que se impõe o não conhecimento do objeto do recurso.
O objeto da presente Reclamação.
Ora, considerando-se infundada a decisão sobre este segundo pressuposto, como entende o Recorrente, é de admitir a presente Reclamação, e, por consequência, deferir a admissão do recurso uma vez corrigida ou melhor explicitada a concreta interpretação normativa que foi adotada pelo STA e, bem assim, esclarecida a sua desconformidade com os preceitos constitucionais invocados.
Iniciaremos a presente Reclamação pela análise do segundo pressuposto atendendo à sua essencialidade para a não admissão do presente recurso.
Assim:
A – Ainda segundo a Decisão Sumária, o Recorrente limitou-se, e apenas em sede de petição inicial, a invocar a violação, pelo Município, do dever geral de fiscalização.
Por um lado, o recorrente na sua petição inicial não referiu apenas o que vem escrito na Decisão Sumária e que corresponde à transcrição do alegado sob o artigo 97 da Inicial que se traduz numa asserção conclusiva do alegado ao longo dos artigos 70 a 98 daquele articulado.
Nestes o Recorrente, para além de enunciar os normativos que definem o dever de fiscalização, densifica esta noção no sentido conforme à Constituição.
Quando sob o artigo 78 da Petição se alega “Este dever geral de fiscalização decorre, desde logo, do disposto nos artigos 22 e 271 da Constituição da República”, e quando aí se refere este dever geral de fiscalização reporta-se ao sentido com que o Autor o descreve e define nos artigos anteriores e posteriores a este.
Este sentido do dever de fiscalização conforme à Constituição vem pois concretizado tanto quanto então era possível, designadamente sob os artigos 69, 70, 71,72, 73, 74, 75, 76, 77, 8182, 83, 84, 85, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 9394, 95 e 96.
Disse-se então tudo quanto era possível entender como poderes/deveres que integram o melhor sentido, o constitucionalmente definido, do conceito de Dever de fiscalização a cargo do Município.
Não era exigível ao Autor um juízo de prognose quanto à interpretação que o STA viria a dar deste conceito, que, manifestamente se considera contra os interesses dos cidadãos que o Legislador Constitucional quis efetivamente acautelar e proteger.
Depois da petição inicial, foi correta a interpretação que deste Dever fez a decisão proferida em 1ª instância, que conformou todas as normas positivas em que se concretiza aquele dever – designadamente as constantes dos artigos 90 e 91 do DL 100/84 de 29/3 (LAL),
dos artigos 2, 4 e 6 do DL 48051 de 21/11/1967,
dos artigos 6, 24, 51 e 57 do DL 445/91 de 20711,
dos artigos 2, 15 e 16 do RGEU, DL 38382 de 7 de Agosto de 1951 – ao preceito contido no artigo 22 da Constituição da República.
Assim, nenhuma oportunidade teve o recorrente - que não agora - de vir defender o sentido e extensão constitucionalmente querido para o Dever de Fiscalização a cargo dos entes públicos.
Por isto, e em nosso entender, não procede nem pode proceder a invocada falta de pressuposto insuprível a que alude a Decisão Sumária.
B
As normas que no direito positivo consubstanciam o Dever de fiscalização a cargo do Município, designadamente as constantes
dos artigos 90 e 91 do DL 100/84 de 29/3 (LAL),
dos artigos 2, 4 e 6 do DL 48051 de 21/11/1967,
dos artigos 6, 24, 51 e 57 do DL 445/91 de 20711,
dos artigos 2, 15 e 16 do RGEU, DL 38382 de 7 de Agosto de 1951,
ao serem interpretadas no sentido em que o fez o STA, que considerou ser afastado totalmente aquele Dever de Fiscalização uma vez que a atuação ilícita e culposa que reconhece ao Município se traduziu em não ter sido capaz de evitar a atuação do próprio lesado ( 4º parágrafo de fls 26) através do seus colaboradores (penúltimo parágrafo de fls. 25), violam aqueles preceitos constitucionais.
Esta interpretação redutora daquelas normas que definem o citado Dever não pode aceitar-se porquanto subalterniza aquele Dever instituído no Interesse Público, relativamente à atuação dos técnicos, académicos, mas privados.
Interpretadas neste sentido tais normas ficam feridas de inconstitucionalidade.
Em conclusão, aqueles preceitos constitucionais impõem que se defina o dever de fiscalização num patamar superior, de interesse e ordem pública que não pode ceder perante eventuais responsabilidades de técnicos colaboradores do lesado.
E especificado que fica a concreta interpretação normativa, isto é, o sentido das normas consubstanciadoras do dever de fiscalização a cargo do município, incompatível com a interpretação dada pelo STA que considera que a culpa do particular lesado afasta totalmente a responsabilidade do ente público, e, explicada a impossibilidade para o aqui recorrente de ter defendido esta interpretação para além do que consta do petitório, deve a presente reclamação ser atendida, e, por conseguinte, admitido o recurso, oportunamente interposto».
3. Notificado da reclamação, o recorrido nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. Como os próprios reclamantes reconhecem, a decisão ora reclamada fundamentou-se na falta de suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Com efeito, tendo o presente recurso de constitucionalidade sido interposto com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), o mesmo só seria admissível, caso estivesse em causa uma norma (ou dimensão normativa) cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo e que, não obstante, o tribunal recorrido tivesse aplicado como critério normativo legitimador da concreta decisão recorrida. Porém, não foi isso que aconteceu e o teor da reclamação apenas vem confirmar o fundamento em que se apoiou a decisão ora reclamada.
Desde logo, os reclamantes reconhecem que o trecho da petição inicial transcrito na decisão reclamada é uma síntese – “asserção conclusiva”, na expressão dos reclamantes – do que nessa peça se alega para densificar o «dever (geral) de fiscalização conforme à Constituição a cargo dos municípios».
Em segundo lugar, é igualmente confirmado que somente na petição inicial – e, portanto, apenas perante a primeira instância – é que foi invocada a Constituição, justamente em ordem a densificar o aludido dever de fiscalização que, alegadamente teria sido violado pelo recorrido – daí a ilicitude imputada ao comportamento do ora recorrido. Em especial, nas contra-alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo não são mencionados quaisquer preceitos infraconstitucionais ou interpretações dos mesmos que, a confirmarem-se, ou a não se confirmarem, seriam inconstitucionais (cfr. fls. 1165 e ss.). Compreensivelmente, na decisão recorrida também não se vislumbra o menor vestígio de que exista uma qualquer questão de inconstitucionalidade – e, menos ainda, de uma questão de inconstitucionalidade normativa (cfr. fls. 1203 e ss.).
Na verdade, os recorrentes, ora reclamantes, em vez de indicarem qual o sentido normativo que o tribunal recorrido terá imputado a tal «dever», de modo a cotejá-lo com um qualquer parâmetro constitucional, afirmam na sua reclamação, por um lado, que “foi correta a interpretação que deste dever fez a decisão proferida em 1.ª instância” – a decisão que lhe reconhecera razão parcial; e, por outro lado, no respeitante à decisão da segunda instância, limitam-se a afirmar que “as normas que no direito positivo consubstanciam o Dever de fiscalização a cargo do Município […], ao serem interpretadas no sentido em que o fez o STA, que considerou ser afastado totalmente aquele Dever de Fiscalização uma vez que a atuação ilícita e culposa que reconhece ao Município se traduziu em não ter sido capaz de evitar a atuação do próprio lesado (4º parágrafo de fls 26) através do seus colaboradores (penúltimo parágrafo de fls. 25), violam aqueles preceitos constitucionais”, aliás, não especificados.
No que se refere à decisão do Supremo Tribunal Administrativo – aquela que é relevante para o presente recurso de constitucionalidade, uma vez que configura a decisão de que o mesmo foi interposto –, é, deste modo, evidente que aquilo que os reclamantes pretendem sindicar é direta e imediatamente a própria decisão do seu caso, e não um critério geral e abstrato suscetível de dele se autonomizar. Como se indicou no Acórdão deste Tribunal n.º 138/2006, “[a] distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto”.
No caso vertente os reclamantes nunca – nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, nem agora na reclamação da decisão sumária entretanto proferida - se afastaram das particularidades do seu caso. Daí ser correta, e portanto de confirmar, a conclusão a que se chegou na decisão ora reclamada: “[o] problema de constitucionalidade não foi […] construído com base na desconformidade de concretos preceitos legais (ou numa sua interpretação) por referência aos parâmetros fundamentais. O que basta para que se conclua, desde já, pela impossibilidade de conhecimento do recurso”
Pelo que resta concluir pela improcedência da reclamação apresentada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar os reclamantes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de fevereiro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.