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Processo n.º 880/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, veio A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O recorrente enunciou o objecto do recurso, nos termos seguintes:
“(…) Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 144º, al. a) do Código Penal, na interpretação que foi adotada na decisão sob recurso, no sentido de que a perceção e apreciação dos factos integradores dos conceitos de desfiguração grave e permanente (e demais qualificativos constantes do artigo 144.° do Código Penal) não exige especiais conhecimentos científicos (não estando por isso sujeitos à disciplina do artigo 151º do Código de Processo Penal), devendo tais conclusões serem retiradas pelo julgador.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Analisemos, assim, se tais requisitos se verificam in casu.
(…) Pretendendo o recorrente a apreciação da constitucionalidade de uma interpretação normativa, recai sobre o mesmo o ónus de proceder à sua enunciação, de forma clara e inequívoca, identificando certeiramente o preceito ou conjugação de preceitos, em que tal critério normativo assenta, de forma a que seja reconhecível no mesmo um mínimo de correspondência à literalidade dos preceitos em causa. “Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição” (cfr. Acórdão n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, na presente situação, tendo o recorrente optado por indicar, como base de sustentação da questão de constitucionalidade que enuncia, apenas o artigo 144.º, alínea a), do Código Penal, é notório que não logrou operar a correspondência entre tal questão e a literalidade da disposição legal mencionada, que nada refere sobre meios de prova.
Acresce que, ainda que com benevolência pretendêssemos extrair um sentido normativo útil à questão enunciada pelo recorrente, alargando, desde logo, a referência de suporte a um arco normativo constituído pela conjugação do artigo 144.º, alínea a), do Código Penal e 151.º do Código de Processo Penal, sempre concluiríamos pela falta de coincidência entre tal questão enunciada e o fundamento determinante para a solução encontrada pelo acórdão recorrido, ou seja, sempre concluiríamos pela inadmissibilidade do recurso.
Na verdade, como se pode ler em tal aresto, “[n]o caso dos autos foram realizados exames médicos tendo em vista determinar as lesões sofridas pelo assistente em razão das agressões de que foi vítima levadas a cabo pelos arguidos”, pelo que não é correto referir-se – como resulta da formulação do objeto do recurso feita pelo recorrente - que o Tribunal tenha considerado “que a perceção e apreciação dos factos integradores dos conceitos de desfiguração grave e permanente não exige especiais conhecimentos científicos”.
O que o Tribunal a quo considerou – e que corresponde a algo bem diferente – foi que o juízo subsuntivo determinante para a conclusão sobre a integração das concretas lesões verificadas – percecionadas e apreciadas, na sua caracterização científica, com recurso a meio de prova pericial (cfr. relatórios de perícias constantes de fls. 252 e sgs, 351 e segs e 455 e segs) - na fattispecie do artigo 144.º, alínea a) do Código Penal, especificamente na categoria legal de “desfiguração grave e permanente”, pertence ao julgador, não constituindo um juízo técnico ou científico, nos termos e para os efeitos do artigo 151.º do Código de Processo Penal.
(…) Sempre se dirá que o recorrente não suscitou, previamente, perante o tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade reportada a critério normativo extraível do artigo 144.º, alínea a), do Código Penal, isoladamente ou em conjugação com o artigo 151.º do Código de Processo Penal.
De facto, na motivação do recurso interposto do acórdão condenatório da 1.ª Instância – peça processual em que deveria ter suscitado ou renovado a suscitação de questão de constitucionalidade que pretendesse erigir como objeto de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – o recorrente não enuncia ou problematiza qualquer questão de constitucionalidade normativa relacionável com as disposições legais identificadas.
Assim, sendo certo que a ratio decidendi do acórdão recorrido, quanto a esta matéria, não envolve qualquer critério insólito ou imprevisível, não se encontrava o recorrente desonerado do cumprimento do dever de antecipar e suscitar previamente qualquer questão normativa de desconformidade constitucional que considerasse pertinente.
Pelo exposto, por falta de cumprimento deste ónus, sempre estaria definitivamente prejudicada a admissibilidade de ulterior recurso que o recorrente pretendesse interpor para o Tribunal Constitucional, ainda que, no respetivo requerimento de interposição, tivesse conseguido enunciar uma questão coincidente com o critério normativo utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida, circunstância que – reitera-se – não se verificou.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. Refere o reclamante que - não obstante admitir que o objecto do recurso poderia ter sido exposto de forma mais clara, no respectivo requerimento de interposição - o que pretendia era ver apreciado, à luz da Constituição da República Portuguesa (CRP), o entendimento do tribunal a quo no sentido de ser permitido ao juiz, sem prova pericial que o habilite, decidir se determinadas lesões são permanentes, irreversíveis ou se, pelo contrário, o efeito de tais lesões pode ser removido ou substituído, através de intervenção médica, sendo que tal questão encontra suporte normativo na conjugação dos artigos 144.º, alínea a), do Código Penal e 152.º do Código de Processo Penal.
Recorda o reclamante que, quanto a esse particular aspecto, os relatórios periciais são omissos, pelo que o entendimento do acórdão recorrido é inconstitucional, por violação das garantias de defesa, consagradas nos n.os 1, 2 e 5, do artigo 32.º, da CRP, bem como por violação dos princípios da investigação ou verdade material e do processo equitativo, nos termos do artigo 20.º, n.º 4, do mesmo diploma e ainda artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Sendo tal o objecto do recurso, sustenta o reclamante que, ao contrário do que se refere na decisão reclamada, não existe falta de coincidência entre a questão enunciada e o fundamento determinante para a solução encontrada pelo acórdão recorrido.
No que respeita ao invocado incumprimento do ónus de suscitação prévia da questão, perante o Tribunal a quo, e à circunstância de a mesma não se consubstanciar em critério insólito ou imprevisível, manifesta o reclamante a sua discordância quanto a tal conclusão plasmada na decisão reclamada, referindo que o entendimento questionado era imprevisível e só surgiu no acórdão recorrido.
Pelo exposto, conclui pedindo que o recurso interposto seja admitido e julgado.
5. O Ministério Público, respondendo à reclamação, vem salientar que é com o requerimento de interposição do recurso – e só – que se fixa o respectivo objecto.
Ora, a questão colocada pelo recorrente não poderia ser ancorada exclusivamente no artigo 144.º, alínea a), do Código Penal, devendo integrar os artigos 151.º e 163.º, ambos do Código de Processo Penal.
Por outro lado, a interpretação questionada não coincide integralmente com o fundamento da decisão recorrida, estando ausente do seu enunciado qualquer alusão a circunstâncias consideradas relevantes pelo Tribunal a quo, como a efectiva realização e valoração de exames periciais, cujos dados foram importantes para a conclusão sobre a existência de “desfiguração grave e permanente”.
Acresce que a interpretação acolhida pela decisão recorrida nada tem de insólito ou inesperado, pelo que o recorrente não estava dispensado do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, cuja apreciação pretendesse. Aliás, na motivação do recurso para a Relação, o recorrente abordou a questão em análise, mas apenas invocando argumentos de interpretação do direito ordinário, não aduzindo quaisquer argumentos na perspectiva da violação da Constituição, originando que a decisão recorrida igualmente apenas abordasse a temática no quadro da interpretação das normas infraconstitucionais.
Pelo exposto, conclui o Ministério Público pelo indeferimento da reclamação.
Notificado o recorrido B., nada veio dizer.
II - Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que o reclamante não aduziu argumentos que infirmem a correcção do juízo efectuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, perante a delimitação do objecto do recurso, efectuada no requerimento de interposição respectivo, é notória a falta de coincidência entre a questão enunciada e o fundamento determinante para a solução encontrada pelo acórdão recorrido, como se refere e explicita na decisão reclamada.
Assinale-se, a este propósito, que não pode ser atribuído qualquer efeito útil à tentativa do reclamante de corrigir deficiências ou alterar a definição do objecto do recurso, em sede de reclamação, por forma a obviar à assinalada falta de coincidência.
Relativamente ao ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, que foi erigida como objecto do recurso, mantêm-se, na íntegra, as considerações aduzidas na decisão reclamada.
De facto, o reclamante não enunciou ou problematizou qualquer questão de constitucionalidade normativa, relacionável com os artigos 144.º, alínea a), do Código Penal e 151.º do Código de Processo Penal, na motivação do recurso interposto do acórdão condenatório da 1.ª Instância, sendo certo que era em tal peça processual que deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional.
Não procede a argumentação de que a interpretação questionada corresponde a um critério inesperado.
Aliás, tal como acentua o Ministério Público, o reclamante, na aludida peça processual, problematizou amplamente as questões relativas à obrigatoriedade e abrangência da prova pericial, no plano do direito infraconstitucional – demonstrando a previsibilidade do entendimento que veio a questionar, no requerimento de interposição de recurso - não enunciando, porém, qualquer questão de constitucionalidade, nesta matéria.
Nestes termos, apenas resta reafirmar toda a fundamentação constante da decisão reclamada e, em consequência, concluir pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
7. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada proferida no dia 18 de dezembro de 2012.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 29 de janeiro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral