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Proc. n.º 658/01 Acórdão nº 69/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 303 e seguintes, não se tomou conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por I..., S.A.. É a seguinte a fundamentação da referida decisão sumária:
“[...] A recorrente pede, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, a apreciação da conformidade constitucional das normas das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, no segmento de interpretação segundo o qual o ónus da prova compete ao empregador. Relativamente à norma da mencionada alínea a) é, todavia, patente que se não pode conhecer do objecto do presente recurso. Não só por tal norma não ter sido aplicada na decisão recorrida, mas também por não ter sido, no processo, suscitada a questão da inconstitucionalidade dessa norma. Na verdade, a decisão recorrida tratou apenas da questão de saber se, no caso do disposto no artigo 13º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, o ónus da prova compete ao trabalhador ou ao empregador, bem como da questão da possibilidade de condenação no que se liquidasse em execução de sentença relativamente às deduções previstas nessa mesma alínea b). Por outro lado, a recorrente, nas alegações que produziu perante o tribunal recorrido (a peça processual que, aliás, menciona no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal), suscitou apenas a questão da inconstitucionalidade da norma dessa alínea b). Como tal, e no que diz respeito à norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, por não estarem reunidos dois dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (aquele que foi interposto pela recorrente): a aplicação, na decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional é questionada; a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade dessa norma. Relativamente à norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º
64-A/89, de 27 de Fevereiro, entende-se que a apreciação do objecto do recurso, tal como a recorrente o delimita, nenhuma repercussão teria no sentido da decisão recorrida, pelo que redundaria numa apreciação inútil. Repare-se que a recorrente pede apenas que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da mencionada norma, na interpretação segundo a qual o ónus da prova compete ao empregador (o ónus da prova, entenda-se, da existência de rendimentos de trabalho auferidos pelo trabalhador em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento). E, como é óbvio, o Tribunal Constitucional não pode alargar o objecto do recurso que foi indicado pela recorrente. Ora, mesmo que o Tribunal Constitucional se pronunciasse no sentido da desconformidade constitucional de tal repartição do ónus da prova, subsistiria inalterável a decisão recorrida, na parte em que concluiu pela existência de um
ónus de alegação da existência de tais rendimentos na acção declarativa que deu origem ao presente recurso, bem como sobre um ónus de formulação, nessa acção declarativa, de um pedido de que, na condenação da ré, fossem tidas em conta as quantias auferidas pela autora após o despedimento, sob pena de se não poder condenar no que se liquidasse em execução de sentença. Em suma, a decisão recorrida seria a mesma, fosse qual fosse a decisão que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre o problema da repartição do ónus da prova, dado que subsistiriam os problemas prévios – certamente relacionados com aquele, mas que nem por isso perdem autonomia – do não cumprimento, pela recorrente, do ónus de alegação dos factos sujeitos a prova (no caso, dos rendimentos de trabalho auferidos pelo trabalhador em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento), bem como do ónus de formulação de um pedido tendente a deduzir, na condenação da ré, as quantias equivalentes a tais rendimentos. E subsistindo tais problemas prévios, subsistiria a decisão de que se «não podia condenar no que se liquidasse em execução de sentença relativamente às deduções previstas na alínea b) do n.º 2 do art. 13º do DL n.º
64-A/89, de 27.02 porque dos autos não constavam quaisquer factos respeitantes a essa matéria» (fls. 201). Não podendo a apreciação do objecto do presente recurso ter, nesta parte, qualquer repercussão no sentido da decisão recorrida, conclui-se que se não encontra preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (aquele que foi interposto pela recorrente): justamente, o interesse processual ou interesse em agir. A jurisprudência do Tribunal Constitucional que admite a necessidade de preenchimento deste pressuposto processual é muito vasta, citando-se, meramente a título de exemplo, o acórdão n.º 556/98, de 29/9 (Proc. n.º 811/96, da 2ª Secção, inédito). Como tal, não pode conhecer-se do objecto do presente recurso.
[...].”
2. Da decisão sumária de fls. 303 e seguintes reclama agora I..., S.A. para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional [na reclamação referem-se os artigos 69º da Lei do Tribunal Constitucional e 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil]. É o seguinte, em síntese, o teor da reclamação (fls. 317 e seguintes):
a) Se fosse considerado inconstitucional o segmento de interpretação da alínea b) do n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, segundo o qual o ónus da prova compete ao empregador, a decisão recorrida não poderia manter-se inalterada, pois que a recorrente não poderia ser condenada no pagamento dos salários e subsídios até à decisão final; b) O objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, tal como emerge do pedido da recorrente, abrange o ónus da prova e o da alegação; c) Se se entender que o ónus da prova pertence ao trabalhador, a recorrente, nessa matéria, nada teria a provar e, consequentemente, nada teria a alegar; d) A adopção da tese da inconstitucionalidade levaria a que sobre a recorrida impendesse a alegação e prova de que não exerceu actividade remunerada por conta de terceiro, para assim ficar investida no direito de exigir as remunerações salariais como se estivesse ao serviço da ré, entre a data do despedimento e o dia em que foi proferida a sentença em 1ª instância; a adopção da tese contrária levaria a que sobre a recorrente impendesse o ónus de alegar e provar (ou, pelo menos, alegar) que a autora exerceu actividade remunerada por conta de terceiro; e) Não seria exigível à recorrente ter alegado, na acção declarativa, que não sabia se a autora tinha realizado a prestação de trabalho com início após o despedimento, porque essa alegação apenas teria sentido se o facto fosse alegado pela recorrida e apenas como meio de defesa; f) É sobre o trabalhador que impende o ónus de prova e alegação “dos factos relativos a não ter recebido as importâncias referidas na alínea b) do n.º 2 do artigo 13º do Dec.Lei n.º 64-A/89, de harmonia com o disposto no artigo
342º, n.º 1, do Código Civil”; g) É sobre o trabalhador que impende o ónus da prova, atendendo à impossibilidade ou, pelo menos, extrema dificuldade do empregador conhecer factos sobre essa matéria; h) Como a recorrida não cumpriu o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito na acção declarativa, a recorrente nunca poderia ser condenada a pagar um valor que competia à recorrida alegar e provar ser-lhe devido; i) Ao contrário do que é afirmado na decisão reclamada, o problema da exigência do pedido não é prévio ao problema do ónus da prova, mas ulterior, e perde sentido se for decidido que o ónus da prova compete ao trabalhador.
3. Notificada para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, a recorrida não respondeu. Cumpre apreciar.
II
4. Resulta do teor da presente reclamação que, quanto à norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, a reclamante se conformou com o sentido da decisão sumária, que foi o de não conhecimento do objecto do recurso, por falta de aplicação, na decisão recorrida, dessa norma, e por falta de invocação, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade dessa norma.
Na verdade, toda a argumentação da reclamante é dirigida apenas contra a parte da decisão sumária que se pronunciou acerca do pedido de apreciação da conformidade constitucional da norma da alínea b) desse preceito.
Assim sendo, cabe apenas analisar se procede a argumentação da reclamante quanto
à parte da decisão sumária que concluiu não poder conhecer-se do objecto do recurso relativamente à norma daquela alínea b), por tal apreciação nenhuma repercussão poder ter no sentido da decisão recorrida e ser, portanto, inútil.
5. Alguns dos argumentos usados pela reclamante não têm manifestamente relevância para a apreciação da questão de saber se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso por falta de interesse processual deve ou não manter-se: a única questão que cabe analisar.
É o caso do argumento segundo o qual é sobre o trabalhador que impende o ónus de prova e alegação “dos factos relativos a não ter recebido as importâncias referidas na alínea b) do n.º 2 do artigo 13º do Dec.Lei n.º 64-A/89, de harmonia com o disposto no artigo 342º, n.º 1, do Código Civil” (supra, 2., f)).
É, de igual modo, o caso do argumento segundo o qual é sobre o trabalhador que impende o ónus da prova, atendendo à impossibilidade ou, pelo menos, extrema dificuldade do empregador conhecer factos sobre essa matéria (supra, 2., g)). É, finalmente, o caso do argumento segundo o qual não seria exigível à recorrente ter alegado, na acção declarativa, que não sabia se a autora tinha realizado a prestação de trabalho com início após o despedimento, porque essa alegação apenas teria sentido se o facto fosse alegado pela recorrida e apenas como meio de defesa (supra, 2., e)).
Tais argumentos em nada colidem com a fundamentação da decisão sumária, já que nesta não se tratou, nem se podia tratar, de tais problemas de interpretação de direito infra-constitucional. É que ao Tribunal Constitucional não compete determinar se das regras de distribuição do ónus da prova constantes do artigo
342º do Código Civil, ou do invocado princípio da “extrema dificuldade do empregador”, resulta que sobre o trabalhador impende o ónus da prova de que não exerceu actividade remunerada por conta de terceiro. Nem lhe compete determinar como se reparte o ónus de alegação e, já agora, que tipo de defesa a reclamante utilizaria ao alegar certo facto. A competência do Tribunal Constitucional está, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, cingida a questões de constitucionalidade normativa.
6. Outro dos argumentos da reclamante não encontra no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, por si formulado, o mínimo de suporte.
É o caso do argumento segundo o qual o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, tal como emerge do pedido da recorrente, abrange o ónus da prova e o da alegação (supra, 2., b)). Basta ler o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal para verificar que se questiona a inconstitucionalidade material de determinadas normas legais, “no segmento de interpretação segundo o qual o ónus da prova compete ao empregador” (fls. 206). Sendo certo que o ónus da prova e o ónus da alegação são coisas diversas, apesar de um normalmente acompanhar o outro, não é possível compreender na referência ao ónus da prova, constante do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, o próprio ónus da alegação. Assim sendo, nunca poderia o Tribunal Constitucional considerar compreendido no objecto do recurso, tal como delimitado pela ora reclamante, “o segmento de interpretação segundo o qual o
ónus de alegação compete ao empregador”, para usar as suas palavras.
Portanto, na decisão sumária cabia apenas analisar se se podia conhecer do objecto do recurso, “no segmento de interpretação segundo o qual o ónus da prova compete ao empregador”.
7. O argumento segundo o qual se fosse considerado inconstitucional o segmento de interpretação da alínea b) do n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º
64-A/89, de 27 de Fevereiro – o de que o ónus da prova compete ao empregador –, a decisão recorrida não poderia manter-se inalterada, pois que a recorrente não poderia ser condenada no pagamento dos salários e subsídios até à decisão final
(supra, 2., a)), esquece que a decisão a ter em conta, para efeitos de apreciação da utilidade do pedido formulado a este Tribunal pela recorrente, não
é a decisão de condenação no pagamento dos salários e subsídios até à decisão final, mas a decisão sobre o desconto, na condenação da ré (ora reclamante), das quantias equivalentes a rendimentos de trabalho auferidos pelo trabalhador em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento.
E, quanto a esta última decisão, qualquer pronúncia do Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso interposto pela ora reclamante se revelaria inútil, pela mera circunstância de não ter sido formulado nenhum pedido de que, na condenação da ré (ora reclamante), fossem tidas em conta as quantias auferidas pela autora após o despedimento, e, consequentemente, nenhuma decisão poder ser proferida a propósito.
As considerações anteriores aplicam-se ao argumento segundo o qual como a recorrida não cumpriu o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito na acção declarativa, a recorrente nunca poderia ser condenada a pagar um valor que competia à recorrida alegar e provar ser-lhe devido (supra, 2., h)). Tal argumento, além de pressupor a (manifestamente inexistente) competência do Tribunal Constitucional para a qualificação de um facto como constitutivo de um direito e para a concomitante repartição do ónus de alegação e prova, esquece que, para a apreciação da utilidade do presente recurso, há que ter em conta, não aquela condenação, mas a decisão sobre o desconto, na condenação da ré (ora reclamante), das quantias equivalentes a rendimentos de trabalho auferidos pelo trabalhador em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento.
8. O argumento segundo o qual se se entender que o ónus da prova pertence ao trabalhador, a recorrente, nessa matéria, nada teria a provar e, consequentemente, nada teria a alegar, repercutindo-se portanto a decisão de inconstitucionalidade no plano do ónus de alegação (supra, 2., c) e d)), em nada releva para a apreciação da questão da utilidade de conhecimento do objecto do recurso interposto pela ora reclamante, na medida em que é a própria decisão recorrida a considerar que sobre a ora reclamante impendia também um ónus de alegação e um ónus de formulação de um pedido.
Assim, a consideração da reclamante de que a decisão do Tribunal Constitucional sobre a repartição desse ónus da prova necessariamente se repercutiria na decisão do tribunal recorrido, além de esquecer que subsistia ainda a questão da não formulação de um pedido por parte da reclamante, mais não representa do que uma interpretação da decisão recorrida acerca da coincidência entre o ónus da prova e o ónus da alegação, sem apoio no seu texto, bem como uma tentativa de alargamento do objecto do recurso para o Tribunal Constitucional à apreciação de matérias para as quais este não tem competência (como seria, manifestamente, a matéria da correspondência entre o ónus da prova e o ónus da alegação).
9. Por último, o argumento segundo o qual, ao contrário do que é afirmado na decisão reclamada, o problema da exigência do pedido não é prévio ao problema do ónus da prova, mas ulterior, e perde sentido se for decidido que o
ónus da prova compete ao trabalhador (supra, 2., i)), esquece que o Tribunal Constitucional não tem competência para, contrariamente ao que decidiu o tribunal recorrido, considerar que a ora reclamante estava dispensada de formular um pedido de desconto das quantias auferidas pelo trabalho prestado a outra entidade na pendência da acção, no caso de o ónus de alegação e o ónus de prova competirem à recorrida. Não tendo o Tribunal Constitucional tal competência, é óbvio que qualquer decisão de fundo que viesse a tomar sobre o objecto do recurso seria inútil, por subsistir o problema da inexistência de tal pedido.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada, que concluiu no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida