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Processo n.º 31/02
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional I. Relatório O Ministério Público veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, interpor o presente recurso do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de Novembro de 2001, 'por no mesmo se ter recusado a aplicação, por inconstitucionalidade, das normas dos arts.º 11º do Dec.-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, 2º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio e 104º do CIRS, por violação do art. 2º da Constituição'. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público concluiu as suas alegações da seguinte forma:
'1º Pelas razões apontadas no Acórdão n.º 160/00 deste Tribunal, são materialmente inconstitucionais as normas constantes do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, interpretados no sentido de que o privilégio mobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca, nos termos do preceituado no artigo 751º do Código Civil.
2º O privilégio imobiliário geral conferido à Fazenda Pública pelo artigo 104º do CIRC – interpretado em termos de conferir àquela um direito real de garantia, dotado de sequela e prevalência, nos termos do artigo 751º do Código Civil, sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora à data da penhora ou acto equivalente, garantindo os créditos de IRS referentes aos três
últimos anos – oponível, independentemente de registo, a quem adquira e registe hipoteca sobre os mesmos bens, viola, em termos intoleráveis, o princípio da confiança, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
3º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa constante da decisão recorrida.' Na verdade, no Acórdão recorrido – proferido em recurso interposto, por um outro credor, da sentença de 1ª instância, de reclamação e graduação de créditos, que graduara em primeiro lugar um crédito exequendo de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e, em segundo lugar, um crédito reclamado pelo Centro Regional de Segurança Social, e, apenas em terceiro lugar, um crédito garantido por hipoteca – foi recusada a aplicação das normas constantes dos artigos 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
(CIRS), invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional nesse sentido, e determinando-se a reformulação da graduação de créditos em harmonia com o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou.
É, efectivamente, às normas referidas que deve entender-se reportado o presente recurso de constitucionalidade (ficando a dever-se a mero lapso material a referência contida no requerimento de recurso aos 'arts.º 11º do Dec.-Lei n.º
512/76, de 3 de Julho, 2º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio'). Há, pois, que tomar conhecimento do recurso, sendo certo, aliás, que a questão a decidir nele já foi objecto de decisão anterior deste Tribunal. II. Fundamentos O objecto do presente recurso é a apreciação da constitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada pelo tribunal recorrido, isto é, do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 104º do CIRS, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil. Começando pelas duas primeiras normas referidas, recordar-se-á que, antes da vigência do actual Código Civil, os créditos por contribuições devidas às caixas sindicais de previdência gozavam do privilégio mobiliário geral que lhes era concedido pelo artigo 167º do Decreto-Lei n.º 45.266, de 23 de Setembro de 1963. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966 (diploma que aprovou o Código Civil), questionou-se a subsistência deste privilégio atribuído por «legislação especial», face ao disposto no artigo 8º deste diploma. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, consagrou e ampliou os privilégios da previdência, estabelecendo no artigo 2º o privilégio imobiliário geral:
'Art. 2º Os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.' O Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, por sua vez, veio a consagrar idêntica disposição no artigo 11º:
'Artigo 11º
(Privilégio imobiliário) Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo
748º do Código Civil.' Por sua vez, segundo o artigo 104º do CIRS (na versão aplicável, anterior à que resultou do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, e correspondente ao actual artigo 111º):
'Artigo 104º
(Privilégios creditórios) Para pagamento do IRS relativo aos últimos três anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.' Importa, ainda, atender ao que dispõem os artigos 735º, 748º, 749º e 751º todos do Código Civil, inseridos na secção relativa ao privilégios creditórios:
'Artigo 735º
(Espécies)
1. São de duas espécies os privilégios creditórios: mobiliários e imobiliários.
2. Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente; são especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis.
3. Os privilégios imobiliários são sempre especiais. Artigo 748º
(Ordem dos outros privilégios imobiliários)
1. Os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte: a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações; b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial. Artigo 749º
(Privilégio geral e direitos de terceiro) O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.
(...) Artigo 751º
(Privilégio imobiliário e direitos de terceiro) Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.' Na verdade, segundo a interpretação em crise das normas dos artigos 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 104º do CIRS, o privilégio imobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca, por lhes ser aplicável o disposto no artigo 751º do Código Civil. Não cumpre no presente processo apreciar se esta interpretação das normas em apreço – correspondente àquela cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida
– é ou não a mais correcta, à luz dos princípios gerais – seja em face da sua letra (sendo certo que, por exemplo, no citado artigo 11º não se refere qualquer oponibilidade a terceiros) e do seu enquadramento sistemático (assim, no artigo
12º do Decreto-Lei n.º 103/80 prevê-se uma hipoteca legal para garantia do pagamento das contribuições à segurança social), seja por, levando à existência de um direito real, mesmo de garantia, sobre todo o património imobiliário, contrariar o princípio da especialidade ou individualização do objecto dos direitos das coisas (v., por todos, Orlando de Carvalho, Direito das coisas, Coimbra, 1977, págs. 220 e segs.). Nota-se, apenas, que tem também sido defendida outra interpretação, segundo a qual aos privilégios imobiliários gerais criados por lei ordinária posteriormente ao Código Civil, como os previstos nas normas em apreço, é de aplicar o artigo 749º daquele código (neste sentido, expressamente, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 825). A constitucionalidade das duas primeiras normas em causa, segundo as quais nos referidos artigos se consagra um privilégio creditório imobiliário geral que prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil, foi já apreciada, por este Tribunal, designadamente, no Acórdão n.º 160/00 (publicado no Diário da República, II série, de 10 de Outubro de 2000), no qual se decidiu que tais normas são inconstitucionais, por violação do 'princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República'. Na verdade, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social, pelo que, como se disse naquele aresto 'o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece'. No presente recurso, remetendo para a fundamentação de tal Acórdão n.º 160/00, há apenas que reiterar o julgamento de inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República. Mais recentemente, este Tribunal pronunciou-se igualmente no sentido da inconstitucionalidade do artigo 104º do CIRS, cuja apreciação é objecto do presente recurso, 'quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do C. Civil'. Fê-lo no Acórdão n.º 109/02, tirado em plenário, concluindo pela inconstitucionalidade, remetendo também para a fundamentação do citado Acórdão n.º 160/00, e acrescentando, quanto às diferenças de regime entre as normas em causa, que:
'(...) as referidas diferenças de regime não são suficientes para afastar esta conclusão.
É exacto, como afirma o Ministério Público nas suas alegações, que o privilégio conferido à Fazenda Pública pela norma agora em apreciação é menos 'agressivo', pois que apenas beneficia os créditos constituídos nos últimos três anos, e só incide sobre os imóveis existentes no património do devedor à data da penhora. Igualmente exacto é que a Fazenda Pública não goza da hipoteca legal que é conferida à Segurança Social, que a pode registar, como se observou no acórdão nº 160/00. Todavia, e em primeiro lugar, não se vê que aquela limitação temporal seja apta a inverter o juízo de inconstitucionalidade, pois que, não tomando em consideração nenhuma relação de valores entre o crédito de imposto e o crédito do exequente, pode conduzir ao mesmo resultado a que levaria a inexistência de limite. Em segundo lugar, não há grande diferença, dentro da tramitação normal da execução, entre o momento da sua instauração e o da penhora; e a que existe não
é relevante para o efeito. Finalmente, não é a circunstância de a lei não ter curado de proteger o crédito de imposto com uma hipoteca legal que há-de justificar o sacrifício dos terceiros nos termos em que a norma em crise os afecta.'
É também este julgamento de inconstitucionalidade que há que reiterar no presente recurso. III. Decisão Com os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional, decide: a. Julgar inconstitucionais, por violação do princípio da confiança,
ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República, os artigos 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil; b. Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 24 de Abril de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa