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Processo n.º 409/12
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Um grupo de nove deputados à Assembleia Legislativa Regional dos Açores submeteu ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização abstrata sucessiva, para apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º, todos da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, que «Aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica» (doravante Lei n.º 22/2012).
2. O pedido apresenta a seguinte fundamentação:
«(…) 3. A matéria objeto da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, constitui matéria da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, conforme resulta da alínea n) do artigo 164º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
4. No entanto, esta reserva de competência cinge-se apenas ao regime (critérios) de criação, extinção ou modificação do território das autarquias locais, pelo que não poderá entender-se como extensível aos atos de criação, extinção ou modificação do território duma determinada autarquia, mormente, se se tratar de uma autarquia situada nas Regiões Autónomas, sendo que neste caso a competência concreta (decisão) para a criação, extinção ou modificação do território duma determinada autarquia é, exclusivamente, das respetivas Assembleias Legislativas, como resulta do disposto na alínea l) do nº 1 do artigo 227º, revestindo a forma de ato legislativo próprio, isto é, de decreto legislativo regional, como dispõe o nº 1 do artigo 232.º da CRP, conjugado com o nº 4 do artigo 112º da CRP.
5. Por sua vez, reiterando o preceito constitucional supra elencado, o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) estabelece que a criação e extinção de autarquias locais, bem como a modificação da respetiva área e elevação de populações à categoria de vilas ou cidades constitui uma matéria de competência legislativa própria, no âmbito da organização política e administrativa da Região, conforme consta na alínea e) do n° 3 do artigo 49º.
6. Concomitantemente, o artigo 7° do EPARAA, que elenca os Direitos da Região Autónoma dos Açores, estabelece o direito ao reconhecimento da realidade específica de ilha na organização municipal (cf. alínea d) do nº 1), devendo, por isso, a administração do Estado na Região [ser] organizada de forma a combater as consequências negativas da insularidade e ultraperiferia do arquipélago e [tendo] em conta as especificidades regionais, como resulta do disposto do n.º 1 do artigo 132º do EPARAA.
7. Assim sendo, atento o quadro legal acima invocado, pode-se, com total segurança, afirmar que qualquer decisão quanto à concreta criação, extinção ou modificação do território duma determinada autarquia situada no território da Região Autónoma dos Açores constitui uma competência de livre exercício pela Região Autónoma dos Açores, por meio de ato legislativo próprio, pelo que as normas constantes do n.º 2 do artigo 1.º, da alínea d) do artigo 3º e do artigo 18.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, são materialmente inconstitucionais por violação da alínea l) do nº 1 do artigo 227º da CRP e ilegais por violação da alínea e) do nº 3 do artigo 49º do EPARAA.
8. Ademais, refira-se que serão igualmente inconstitucionais as normas que imponham uma redução (cf. pode resultar da interpretação à contrario do artigo 10.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio) na participação no Fundo de Financiamento das Freguesias (FFF) situadas na Região Autónoma dos Açores, em resultado da não modificação da sua área territorial ou da sua agregação, por ausência de ato legislativo regional (Decreto Legislativo Regional) que o determine e, consequentemente, por violação do princípio da autonomia legislativa consagrado no artigo 228º da CRP.
9. Nestes termos, reitera-se que o direito ao reconhecimento da realidade específica de ilha na organização municipal (cf. alínea d) do n° 1 do artigo 7º do EPARAA) impõe ao Estado, no âmbito de qualquer processo de reorganização administrativa territorial autárquica, o dever de salvaguarda da realidade específica da Região Autónoma dos Açores, o que não se verifica na presente Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, que faz aplicar a todo o território nacional os mesmo critérios para a designada agregação de freguesias, pelo que o direito tipificado no artigo 7.º do EPARAA não é minimamente atendido.
10. Acresce que o direito ao reconhecimento da diferenciação imposta pela realidade ilha e arquipelágica é um princípio estruturante dos fundamentos constitucionais do regime autonómico.
11. Daí que as leis autárquicas, ao longo do tempo, têm reconhecido e dado acolhimento legislativo à diferença que a condição insular impõe, adotando diversas soluções legislativas adequadas à realidade das Regiões Autónomas, como por exemplo na Lei de Finanças Locais, quanto aos critérios de financiamento, ou ainda quanto ao regime de criação de freguesias na Região Autónoma dos Açores, constante de diploma próprio - Lei n° 60/99, de 30 de junho.
12. Por outro lado, importa ainda referir que a Região Autónoma dos Açores terá eleições legislativas regionais, previsivelmente, em outubro de 2012, o que poderá colidir com um eventual processo de reorganização do território das freguesias dos Açores, uma vez que os referidos órgãos autárquicos de freguesia estarão em fase preparatória dos processos administrativo-eleitorais da respetiva área geográfica da freguesia.
13. Como forma de obstar à mencionada sobreposição, impõe-se salientar o disposto no artigo 11º da Lei n° 60/99, de 30 de junho, que, de modo expresso, dispõe não ser permitida a criação de freguesias durante o período de cinco meses que imediatamente antecede a data para realização de quaisquer eleições a nível nacional ou regional.
14. Assim, o prazo de 90 dias (cf. artigos 11.º e 12.º) estabelecido na Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, para efeitos da apresentação pelas Assembleias Municipais ao órgão legislativo (Assembleia da República ou Assembleias Legislativas) das suas pronúncias quanto à reorganização do território das freguesias, seguramente, conflituará com o processo administrativo eleitoral em curso referente às eleições legislativas regionais de outubro de 2012, violando dessa forma o disposto no artigo 11.º da Lei 60/99, de 30 de junho.
15.Atendendo ao enquadramento acima descrito, conclui-se que o disposto nos artigos 1.º [n.º 2], 3.º [alínea d)] e 18.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, consubstancia, simultaneamente, uma inconstitucionalidade material, por violação da alínea l) do n° 1 do artigo 227º da CRP, e uma ilegalidade, por violação da alínea e) do n° 3 do artigo 49.º do EPARAA.
III
Nestes termos e pelo exposto, requer-se a declaração da inconstitucionalidade e da ilegalidade, com força obrigatória geral, do disposto nos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio - Aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, por violação da alínea l) do nº 1 do artigo 227º da CRP e da alínea e) do nº 3 do artigo 49.º do EPARAA.»
3. Notificada para se pronunciar quanto ao pedido, a Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos.
4. Apresentado o memorando a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar acórdão nos termos do n.º 2 da mesma norma.
II – Fundamentação
A) Da legitimidade processual dos requerentes
5. Nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa (CRP), tem legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade, entre outros, um décimo dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas quando o pedido se fundar, respetivamente, em violação dos direitos das regiões autónomas e em violação do respetivo estatuto.
O requerimento dirigido ao Tribunal Constitucional encontra-se subscrito por nove deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (ALRAA), ou seja, mais de um décimo dos cinquenta e sete deputados da referida Assembleia, pelo que tal número de deputados tem legitimidade para requerer a este Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade.
Está, assim, verificada a legitimidade dos requerentes.
B) Da delimitação do objeto do pedido
6. Quanto às normas objeto do pedido, os requerentes concluem o respetivo requerimento (cfr. III) pedindo a este Tribunal a declaração da inconstitucionalidade e da ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012.
Assim, embora mencionados ao longo do requerimento (cfr. II, n.ºs 8 e 14), os artigos 10.º, 11.º e 12.º da referida Lei não se incluem no objeto do presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.
7. Quanto ao pedido, conjuntamente com o pedido de declaração de inconstitucionalidade subscrito pelos requerentes – das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012, por violação da alínea l) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP – vem pedida a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, das citadas normas da Lei n.º 22/2012, com fundamento na violação do artigo 49.º, n.º 3, alínea e), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA).
O artigo 49.º, n.º 3, alínea e), do EPARAA, segundo o qual compete à ALRAA legislar, em matéria da organização administrativa da Região, sobre a «A criação e extinção de autarquias locais, bem como modificação da respetiva área, e elevação de populações (sic) à categoria de vilas ou cidades» limita-se a reproduzir o que a este respeito estipula a Constituição, nas alíneas l) e n) do n.º 1 do artigo 227.º.
Uma vez que o parâmetro invocado para sustentar a ilegalidade não é mais do que a reprodução do parâmetro constitucional a questão de ilegalidade fica consumida pela questão de inconstitucionalidade (cfr., no mesmo sentido, o Acórdão n.º 613/2011 disponível, tal como os que adiante se citam, em http://tribunalconstitucional.pt).
C) Do mérito
8. Delimitado o objeto do pedido de fiscalização abstrata sucessiva à inconstitucionalidade das normas dos artigos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012, cumpre apreciar do mérito.
As normas da Lei n.º 22/2012 ora questionadas, cuja declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral é pedida a este Tribunal, têm o seguinte teor:
«CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Objeto
1 — (...).
2 — A presente lei consagra a obrigatoriedade da reorganização administrativa do território das freguesias e regula e incentiva a reorganização administrativa do território dos municípios.
(…)
Artigo 3.º
Princípios
A reorganização administrativa territorial autárquica obedece aos seguintes princípios:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) Obrigatoriedade da reorganização administrativa do território das freguesias;
e) (…);
f) (…).
(…)
CAPÍTULO IV
Disposições finais
Artigo 18.º
Regiões Autónomas
1 — A presente lei aplica -se em todo o território nacional.
2 — Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, as pronúncias e os projetos previstos nos artigos 11.º e 15.º são entregues às respetivas assembleias legislativas regionais.»
9. Consideram os requerentes que as normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012, contendem com a competência da ALRAA para, por meio de ato legislativo próprio (decreto legislativo regional), decidir quanto à concreta criação, extinção ou modificação do território duma determinada autarquia situada no território da Região Autónoma dos Açores, e, por isso, violam o artigo 227.º, n.º 1, alínea l), da CRP.
9.1 A questão que o Tribunal Constitucional é chamado a decidir é, assim, a da delimitação de competências entre a reserva absoluta da Assembleia da República para legislar sobre a «[C]riação, extinção e modificação de autarquias locais e respetivo regime, sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas» (artigo 164.º, alínea n), da CRP) e os poderes das regiões autónomas para «[C]riar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respetiva área, nos termos da lei» (artigo 227.º, n.º 1, alínea l), da CRP).
Em geral, pode dizer-se que o regime de criação, extinção e modificação de autarquias locais é exclusivo da Assembleia da República e traduzido em lei de valor reforçado (artigos 164.º, alínea n), e 112.º, n.º 3), mas a competência para a decisão em concreto sobre a criação ou extinção de municípios ou freguesias ou sobre a modificação da respetiva área é repartida entre a Assembleia da República, quanto às autarquias locais do Continente, e as Assembleias Legislativas regionais, quanto às autarquias das ilhas (artigos 227.º, n.º 1, alínea l), e 232.º, n.º 1, da CRP) – v., neste sentido, J.J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª ed. revista, Coimbra, 2010, 315; Jorge Miranda, Anotação ao Artigo 164.º in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, II, Coimbra, 2006, 521.
Em texto doutrinário anterior à revisão constitucional de 1997, António Cândido de Oliveira escreveu: «O direito de autonomia das autarquias locais não garante o direito à existência de cada uma delas (…).
Assim, nada impede a criação de novas autarquias locais nem a modificação e extinção das atualmente existentes. O que está impedido é a alteração do atual mapa territorial das autarquias locais sem observância de algumas regras constitucionalmente estabelecidas. Desde logo, o regime relativo a esta matéria é da exclusiva competência da AR, sob a forma de reserva absoluta (…). Por outro lado, a criação, modificação ou extinção em concreto das autarquias locais, no que toca aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, é da competência das respetivas regiões autónomas, embora com respeito, como é óbvio, pelo regime legal estabelecido pela AR» (Direito das Autarquias Locais, Coimbra, 1993, 261).
O regime constitucional vigente deriva das alterações ao texto constitucional introduzidas pela revisão de 1997, passando a própria criação, extinção e modificação das autarquias locais a integrar a matéria da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República e não apenas o respetivo regime de criação, extinção e modificação. Contudo, e como decorre da própria formulação constitucional (atual artigo 164.º, alínea n), da Constituição), a competência exclusiva da Assembleia da República é consagrada sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas, mantendo-se, assim, intocado o poder de as Assembleias Legislativas das regiões autónomas legislarem sobre a criação e extinção das autarquias locais, bem como sobre a modificação da respetiva área, no território insular correspondente (artigo 227.º, n.º 1, alínea l), CRP) – tal é o sentido do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 22/2012, confirmado pelo art.º 9.º, n.º 4, da Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro, sobre Reorganização Administrativa do Território das Freguesias, que expressamente exclui do âmbito de aplicação da Lei o disposto naquele n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio.
Pode ler-se, a este propósito, no Acórdão n.º 134/2010: «Com a Revisão de 1997, o legislador constituinte estendeu a reserva de competência absoluta da Assembleia da República à criação concreta, assim como à extinção ou modificação de autarquias locais, que, desse modo, passou a ficar vedada ao Governo – salvaguardando os poderes das regiões autónomas sobre a matéria, para os efeitos do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea 1), que confere a estas entidades o poder de “criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respetiva área, nos termos da lei” (…)» (cfr. n.º 6.3).
Cumpre não obstante acentuar, como fazem Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, que a “ressalva dos poderes regionais não abrange, todavia, o regime jurídico nos termos do qual se procederá a essa criação, extinção ou modificação, matéria em que os órgãos de governo próprio [das regiões autónomas] não têm quaisquer poderes” (Cfr. Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores Anotado, Lisboa, 1997, 89).
Entende-se que o regime que a alínea n) do artigo 164.º reserva à competência exclusiva da Assembleia da República consubstancia uma lei-quadro ou lei de enquadramento, que vincula as leis que lhe dão execução (assim J.J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 315 e 677; e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, V, 4.ª ed., Coimbra, 2010, 388). Essa natureza de lei com valor reforçado foi reconhecida, pelo Acórdão n.º 134/2010, à Lei n.º 142/85, de 18 de novembro, designada “Lei-quadro da criação de municípios”, conferindo-lhe valor paramétrico para julgar ilegal uma norma da Lei n.º 83/98, de 14 de dezembro, que criou o município da Trofa. Com efeito, como se afirma naquele Acórdão «Prevendo a Constituição a existência de uma lei destinada a definir, em abstrato, o regime que outras leis deverão observar quando, em concreto, procederem à criação de cada autarquia local, não pode deixar de reconhecer-se que ela tem em vista a existência, neste domínio, de uma lei com valor paramétrico, ou seja, dotada de valor reforçado em relação às leis que concretizem o exercício dessa competência.» (cfr. n.º 6.3).
Como escreve Mário Aroso de Almeida a propósito da Lei n.º 142/85, esta «enuncia um conjunto de requisitos de que depende a criação de novos municípios e impõe exigências a observar no procedimento de elaboração das leis que venham a determinar tal criação» (“Regime Jurídico da criação de municípios e recurso para o Tribunal Constitucional no âmbito das ações de responsabilidade do Estado por ilícito legislativo: a propósito do Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 134/2010” in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. II, Coimbra, 2012, 756).
Na verdade, as leis de enquadramento ou leis-quadro não se limitam a estabelecer as bases do respetivo regime jurídico, mas estabelecem «os parâmetros (e por vezes os procedimentos) dos ulteriores atos de execução legislativa» (cfr. J.J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 65-66; e, no mesmo sentido, Acórdão n.º 192/2003, que se debruçou sobre a repartição de competências entre a Assembleia da República e o Governo, em matéria de reprivatizações).
Por isso, o poder atribuído às Assembleias Legislativas regionais, pela alínea l) do n.º 1 do artigo 227.º, traduz-se numa competência legislativa “condicionada”, porque dependente de lei de enquadramento que dispõe sobre as condições do exercício do poder atribuído às regiões através das Assembleias Legislativas (Jorge Miranda, “A autonomia legislativa das regiões autónomas após a revisão constitucional de 2004”, Scientia Iuridica, T. LIV, N.º 302, abril/junho 2005, 201-216, 205).
9.2 Além do Acórdão referido no ponto anterior (Acórdão n.º 134/2010), em dois casos o Tribunal Constitucional se ocupou diretamente da questão da delimitação da competência reservada da Assembleia da República em matéria de criação, extinção e modificação de autarquias locais.
No primeiro caso, a delimitação de competências operou também por referência à competência legislativa das regiões autónomas na matéria. Pelo Acórdão n.º 496/97, foi declarado inconstitucional um conjunto de normas contidas no Decreto da Assembleia Legislativa Regional n.º 13/97, relativo à “Adaptação à Região Autónoma dos Açores da Lei n.º 8/93, de 5 de março - Regime jurídico de criação de freguesias”, aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores em 28 de maio de 1997. Lê-se neste aresto: «(…) a Assembleia da República não pode delegar no legislador regional toda ou parte de uma reserva de competência legislativa que é sua e só sua (ou seja, exclusiva). Se a autonomia regional implica uma conceção descentralizada do Estado, como é a que está presente na Constituição, e, em certo sentido, há aí uma policracia ou pluralidade de centros de poder, a verdade é que esse quadro não briga com uma reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (não há em tais casos uma contração dos poderes da Assembleia da República)» (n.º 5). Entendeu-se, assim, que as normas da Lei n.º 8/93 (entretanto revogada pelo artigo 21.º da Lei n.º 22/2012) não podiam ser “adaptadas”, como foram, pelo legislador regional, visto aquela lei ser o produto de uma competência legislativa reservada em absoluto à Assembleia da República (estabelecida, à data, no artigo 167.º, alínea n), da Constituição).
No processo em que foi proferido o Acórdão n.º 587/2000, estava em causa a demarcação da fronteira entre duas freguesias, discutindo-se, nas instâncias, se a competência para essa demarcação cabia aos tribunais ou à Assembleia da República. Com efeito, «o Supremo Tribunal Administrativo, considerando não ser, sequer, possível um conflito de direitos em matéria de fronteiras autárquicas, a resolver pelos tribunais, interpretou e aplicou a norma contida no artigo 1º da Lei nº 11/82 no sentido de atribuir competência à Assembleia da República para delimitar autarquias, definindo – teoricamente – as respetivas fronteiras, mesmo na hipótese de serem duvidosos – teoricamente – os limites» (Acórdão n.º 587/2000, n.º 5).
Este aresto julgou inconstitucional a norma do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 11/82, de 2 de junho (regime de criação e extinção das autarquias locais, entretanto revogado pelo artigo 21.º da Lei n.º 22/2012), na interpretação segundo a qual cabe à Assembleia da República a competência para proceder à demarcação da fronteira de duas freguesias. Ou seja, entendeu-se que essa competência não se incluía entre aquelas que a Constituição atribui à Assembleia da República, resultantes da conjugação dos então artigos 110.º, n.º 2, e 161.º a 163.º (correspondentes, hoje, aos artigos 113.º, n.º 2, e 164.º a 166.º).
Extrai-se desta jurisprudência que, por um lado, a parte do regime de criação de freguesias reservado, pela Constituição, à Assembleia da República, não pode ser objeto de “adaptação” pelo legislador regional; e, por outro, que questões como a demarcação da fronteira entre duas freguesias não se incluem na citada reserva da Assembleia da República.
10. Assim enunciada a delimitação constitucional das competências da Assembleia da República e das Regiões Autónomas, a respeito da criação, extinção e modificação de autarquias locais, importa agora apurar se o conteúdo normativo das normas sob fiscalização interfere com essa delimitação. Ou seja, há que saber se, no plano constitucional, estamos perante normas que se incluem na competência reservada da Assembleia da República ou, pelo contrário, normas que invadem a esfera de poderes que a Constituição reserva às regiões autónomas nesta matéria.
10.1 Até à publicação da Lei n.º 22/2012, o regime legal de criação, extinção e modificação de autarquias locais constava essencialmente de três diplomas legais: a Lei n.º 11/82, de 2 de junho, que estabelecia o regime de criação e extinção das autarquias locais e de designação e determinação da categoria das povoações; a Lei n.º 142/85, de 18 de novembro, intitulada Lei- quadro da criação de municípios; e a Lei n.º 8/93, de 5 de março, que estabelecia o regime jurídico de criação de freguesias.
10.2 A Lei n.º 22/2012 veio revogar, no seu artigo 21.º, a primeira e a terceira leis acima identificadas, mantendo em vigor, apenas, a citada Lei-quadro da criação de municípios (Lei n.º 142/85, alterada pelas Leis n.ºs 124/97, de 27 de novembro, 32/98, de 18 de julho e 48/99, de 16 de junho).
A Lei n.º 22/2012 aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica e afirma ser seu objeto estabelecer «os objetivos, os princípios e os parâmetros da reorganização administrativa territorial autárquica» e definir e enquadrar «os termos da participação das autarquias locais na concretização desse processo» (artigo 1.º, n.º 1). A reorganização administrativa do território é consagrada com caráter obrigatório, para as freguesias, e não obrigatório, para os municípios (artigos 1.º, n.º 2, e 3.º, alíneas d) e e)).
No seu Capítulo I, intitulado “Disposições Gerais”, estipulam-se, ainda, os “objetivos da reorganização administrativa territorial autárquica (artigo 2.º) e os “princípios” a que deve obedecer tal reorganização (artigo 3.º).
No Capítulo II, estabelecem-se as regras relativas à “reorganização administrativa do território das freguesias”, entre as quais os denominados “níveis de enquadramento” (artigo 4.º), ou seja, a classificação dos municípios de acordo com parâmetros de agregação diferenciados em função do número de habitantes e da densidade populacional de cada município; classificação de freguesias situadas em lugar urbano (artigo 5.º); os parâmetros de agregação que devem ser alcançados através da reorganização do território das freguesias (artigo 6.º); os efeitos da agregação de freguesias – criação de freguesias que constituem uma nova pessoa coletiva territorial (artigo 9.º); as pronúncias a apresentar pelas assembleias municipais e assembleias de freguesia (artigo 11.º) e as consequências da desconformidade de tais pronúncias (artigo 15.º).
No Capítulo III, trata-se a “reorganização administrativa do território dos municípios”, concretamente, os processos de “fusão” e de “redefinição de circunscrições territoriais” (artigos 16.º e 17.º).
Finalmente, no Capítulo IV, reservado para as “Disposições finais”, para além da norma revogatória acima referida (artigo 21.º), inclui-se o artigo 18.º, aqui questionado do ponto de vista da sua constitucionalidade, que manda aplicar a lei a todo o território nacional e estabelece que, nas regiões autónomas, as pronúncias e projetos referidos nos artigos 11.º e 15.º da lei são entregues às respetivas assembleias legislativas regionais.
No Anexo I à Lei n.º 22/2012 consta a lista de classificação dos municípios por níveis e, no Anexo II, a lista de lugares urbanos por município, a que se referem, respetivamente, os artigos 4.º e 5.º da Lei.
10.3 As normas aqui questionadas – artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012 – determinam, na parte mais relevante, a obrigatoriedade da reorganização administrativa do território das freguesias (artigo 1.º, n.º 2, primeira parte, e alínea d) do artigo 3.º); estabelecem a aplicação da Lei n.º 22/2012 a todo o território nacional (n.º 1 do artigo 18.º); e determinam que as pronúncias e os projetos previstos nos citados artigos 11.º e 15.º sejam entregues às respetivas assembleias legislativas regionais (n.º 2 do artigo 18.º).
Considerando o parâmetro constitucional invocado, o que se questiona é a admissibilidade de uma lei do Estado determinar uma obrigatoriedade de reorganização administrativa do território das freguesias situadas nas regiões autónomas, sendo certo que essa reorganização está balizada pela necessidade de cumprir determinados parâmetros de agregação (elencados no artigo 6.º), que resultam parcialmente de uma classificação dos municípios em três níveis e de uma lista de lugares urbanos por município, já pré-determinadas na Lei n.º 22/2012.
Ao assim dispor, a Lei n.º 22/2012, enquanto “lei de enquadramento”, vai além das suas antecessoras, na medida em que obriga à reorganização administrativa do território das freguesias e define os parâmetros de agregação que devem ser alcançados, através de uma redução global do número de freguesias, bem como o procedimento e os prazos a que essa reorganização deve obedecer.
No entanto, mesmo tendo isso em conta, daí não resulta qualquer ofensa para o poder autonómico reconhecido na alínea l) do nº 1 artigo 227.º da CRP, poder apenas exercitável “nos termos da lei” – justamente, neste caso, a Lei n.º 22/2012, de onde constam as normas impugnadas. E não se vê que estas normas, ao fixarem a referida obrigatoriedade de reorganização, bem como a necessidade de cumprir certos parâmetros de agregação, invadam a esfera de competência própria das regiões autónomas, pois dessas normas não é inferível a obrigatoriedade de, em concreto, extinguir ou modificar esta ou aquela freguesia. O regime geral previamente estabelecido não põe em causa a competência do órgão legislativo da região autónoma para, por ato próprio, criar, extinguir ou modificar o território de uma concreta autarquia local, deixando margem de decisão, quanto ao modo de, em concreto, proceder à reorganização do território das freguesias - à semelhança do que acontece em todo o território nacional.
É certo que o obrigatório cumprimento dos parâmetros estabelecidos na lei de enquadramento não permite liberdade de decisão quanto ao se da extinção ou modificação das freguesias. Mas, traduzindo-se o poder conferido às regiões autónomas, pela alínea l) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, numa competência legislativa condicionada pelo disposto na lei de enquadramento, cabe ainda dentro da eficácia condicionante desta lei o estabelecimento de índices a que a organização do território das freguesias tenha que obedecer, com a consequente obrigatoriedade dos reajustamentos necessários à sua observância. Como acentuam J.J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira (ob. cit., 721), o regime geral da lei de enquadramento pode estabelecer pressupostos objetivos que vinculem os atos legislativos concretos de criação, modificação ou extinção das autarquias locais, tais como, entre outros, índices geográficos, demográficos e sociais.
10.4 A obrigatoriedade de reorganizar o território das freguesias situadas na Região Autónoma dos Açores, à luz dos parâmetros fixados na Lei n.º 22/2012, em paralelo com a obrigatoriedade de reorganização das freguesias localizadas no continente, não deixa de decorrer da unidade do sistema autárquico para o território nacional – mesmo que a unidade do sistema comporte especialidades decorrentes da realidade regional cuja medida não cumpre equacionar (cfr. Ac. n.º 496/97, n.º 6).
O artigo 6.º da Constituição, sob a epígrafe «Estado unitário», dispõe, no seu número 1, que «O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública». Ao princípio constitucional geral da unidade do Estado são associados princípios de âmbito específico, designadamente os princípios da autonomia regional e da autonomia local, “que qualificam aquele sem o contrariarem” (como escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed. revista, Coimbra, 2007, 232). Tão importantes um quanto os outros, todos integram os limites materiais de revisão constitucional (artigo 288.º, alíneas a) in fine, n) e o), CRP).
Para Gomes Canotilho, a autonomia das autarquias locais é mesmo configurada na Constituição “como dimensão da organização do Estado unitário” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, 361).
Sendo o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais pessoas coletivas territoriais, pode concluir-se que “o ordenamento constitucional português compreende, portanto, três níveis territoriais: o nacional, o das regiões autónomas e os das autarquias locais” (assim, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, 2010, 146).
Nos termos do n.º 1 do artigo 235.º da Constituição, a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais, garantindo-se e impondo-se a existência de autarquias locais em todo o país, o que se traduz na obrigatoriedade de todas as parcelas do território, continental e insular, estarem cobertas por municípios e freguesias, as principais (e atualmente vigentes) categorias de autarquias locais (artigo 236.º, n.ºs 1 e 2, CRP).
Do conceito de autarquia local proposto por José de Melo Alexandrino – «a forma específica de organização territorial, na qual uma comunidade de residentes numa circunscrição territorial juridicamente delimitada dentro do território do Estado prossegue interesses locais, através do exercício de poderes públicos autónomos» (Direito das Autarquias Locais – Introdução, princípios e regime comum in Paulo Otero/Pedro Gonçalves (coord.) Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. IV, Coimbra, 2010, 111), faz o Autor decorrer alguns aspetos a assinalar, relevando os dois primeiros: «(i) Em primeiro lugar, a ideia de que há (e houve) outras formas de organização territorial (como as regiões autónomas, as áreas metropolitanas (…) ou as organizações de moradores); (ii) Em segundo lugar, também a ideia de que a especificidade dessa organização se traduz desde logo no facto de a mesma constituir ‘um imperativo constitucional’ (ou do Estado constitucional), seja ela objeto de receção histórica, de reconhecimento explícito ou produto de criação legal» (ob. cit., loc. cit.).
Com efeito, e como se viu a partir da leitura dos números 1 e 2 do artigo 236.º, este imperativo constitucional opera à escala nacional: a Constituição faz coincidir as categorias de autarquias locais imperativamente existentes no território continental e insular, municípios (nível concelhio) e freguesias (nível infraconcelhio ou paroquial).
Deverá ter-se presente, a este respeito, que «as regiões autónomas, enquanto entes públicos territoriais específicos, não “compreendem freguesias e municípios”, visto que estes não são entes integrados naquelas; o que se quer dizer é que nas regiões autónomas (i. é, no seu território) as autarquias são apenas as freguesias e os municípios» (cfr. J.J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 720).
Deste modo, não pode deixar de se reiterar uma ideia que já foi expressivamente afirmada na jurisprudência constitucional, acentuando a unidade do sistema autárquico para o território nacional a par do respeito pelo regime autonómico insular como componentes fundamentais da organização do Estado português, e ilustrada na seguinte passagem do Acórdão n.º 4/2000: «na Constituição, convivem, assim, a autonomia regional e o sistema autárquico, unitário para todo o território nacional, sendo ambos, indiscutivelmente, elementos essenciais da organização do Estado».
10.5 Conclui-se, assim, que as normas questionadas não versam sobre a criação, extinção ou modificação, em concreto, de autarquias locais, não configurando o exercício dos poderes atribuídos, pela alínea l) do nº 1 artigo 227.º, às regiões autónomas; antes versam sobre matéria incluída na reserva de lei estadual – concretamente, sobre o regime de criação, extinção e modificação de autarquias locais, incluído na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (alínea n) do artigo 164.º) – a qual decorre do princípio geral da unidade do Estado (artigo 6.º).
Não está, pois, verificada a invocada inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012.
III – DECISÃO
11. Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer do pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral;
b) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d), e 18.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio.
Lisboa, 5 de fevereiro de 2013. – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração quanto aos fundamentos) – José Cunha Barbosa –Catarina Sarmento e Castro – Carlos Fernandes Cadilha (votei o acórdão sem prejuízo de considerar que “não conhecimento do pedido de declaração de ilegalidade por consumpção com a questão da inconstitucionalidade caracteriza uma situação de ilegitimidade dos requerentes, pelas razões expostas na declaração de voto anexa ao acórdão n.º 187/2012) – Maria João Antunes (sem prejuízo da declaração de voto aposta ao acórdão n.º 187/2012) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. A Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, veio estabelecer «os objetivos, os princípios e os parâmetros da reorganização administrativa territorial autárquica» (artigo 1.º, n.º 1), e consagra a «obrigatoriedade da reorganização administrativa do território das freguesias e regula e incentiva a reorganização administrativa do território dos municípios» (artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2012). A «reorganização administrativa do território das freguesias» é obrigatória (artigo 3.º, alínea d), da Lei n.º 22/2012) e «implica a agregação de freguesias» (artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2012).
O regime assim previsto, incluindo a obrigatoriedade de agregação de freguesias, os respetivos parâmetros de agregação e os prazos, aplica-se à totalidade do território nacional – incluindo as regiões autónomas (artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 22/2012). A única adaptação prevista é que «as pronúncias e os projetos previstos nos artigos 11.º e 15.º são entregues às respetivas assembleias legislativas regionais [sic]» (artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2012). Este último preceito, foi excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro, que veio dar cumprimento à obrigação de reorganização administrativa do território das freguesias constante da Lei n.º 22/2012 (artigo 9.º, n.º 4, da Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro).
A aplicação integral da Lei n.º 22/2012 às Regiões Autónomas, incluindo dos preceitos relativos às competências da Unidade Técnica para a Reorganização Administrativa do Território, que funciona junto da Assembleia da República, que parece decorrer da letra da lei é constitucionalmente inaceitável pois implica o condicionamento inadmissível da atividade das Assembleias Legislativas das Regiões. Note-se que não só não se consegue retirar da letra da lei que a Unidade Técnica tem competências relativas apenas ao território do continente, como a referência a «projetos […] previstos no artigo 15.º» (artigo 18.º, n.º 2) parece reforçar esse entendimento.
É, pois, necessário um esforço de interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa (CRP) da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, para podermos afastar a sua aplicação na totalidade e sem mais às Regiões Autónomas, nomeadamente das competências da Unidade Técnica.
Acompanha-se, assim, o resultado final expresso no acórdão, mas considera-se que este apenas é alcançado através de uma interpretação conforme à CRP da Lei em causa.
2. A Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, se interpretada enquanto lei de enquadramento da criação, extinção e modificação de limites das autarquias, pode estabelecer os parâmetros e os procedimentos aplicáveis nesse âmbito. Devendo a competência das Assembleias Legislativas das Regiões necessariamente ser exercida «nos termos da lei» (artigo 227.º, n.º 1, alínea l), da CRP) é constitucionalmente admissível este enquadramento. No entanto, os parâmetros previstos não podem ser de molde a abolir totalmente a discricionariedade regional relativamente ao exercício destes poderes reduzindo-os a uma mera formalidade. As autarquias locais das Regiões Autónomas têm um enquadramento, desde logo geográfico, distinto das autarquias do continente que deve ser tido em conta. No entanto, cremos que os parâmetros previstos na Lei n.º 22/2012, apesar de mais estritos do que os constantes da legislação que esta veio revogar, ainda asseguram uma margem de discricionariedade que permite que a última palavra permaneça na Região.
Até aqui acompanha-se a fundamentação do acórdão. No entanto, a Lei n.º 22/2012 vem estabelecer, para além de parâmetros de extinção de freguesias por agregação, também a obrigatoriedade deste procedimento e prazos para a sua realização. Não se trata, portanto, de condicionar as Regiões Autónomas quanto ao se (na terminologia do acórdão), mas quanto ao quando.
Quando o artigo 227.º, n.º 1, alínea l), da CRP atribui às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas o poder de «criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respetiva área», também atribui o poder negativo de não atuar neste domínio. Ora, na medida em que a Lei n.º 22/2012 obriga as Regiões Autónomas a proceder à extinção de freguesias por agregação estabelecendo um determinado calendário para tal, procede a um condicionamento da autonomia regional.
A questão será, portanto, se este condicionamento é constitucionalmente admissível, tendo em conta os valores em presença – neste caso, a autonomia regional, por um lado, e a uniformidade do sistema autárquico em todo o território nacional e a necessidade de racionalização da administração local, por outro –, à luz do princípio da proporcionalidade. Assim, tendo em conta a importância da garantia de uniformidade do sistema autárquico (apesar das especificidades regionais, nomeadamente ao nível das ilhas), o facto de o condicionamento da autonomia regional ser parcelar, por não se prever um prazo específico para a atuação das Assembleias Legislativas em si, e a necessária interpretação conforme à CRP da Lei n.º 22/2012, já referida, pode-se concluir que a medida não se afigura excessiva ou desproporcionada.
Por este fundamento acompanhei a não declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, alínea d) e 18.º da Lei 22/2012.
Maria de Fátima Mata-Mouros