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Processo nº 727/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 379 dos presentes autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
1. C... foi condenado, por acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Valongo, de 16 de Dezembro de 1998 (de fls. 132 e segs.), na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em concurso, de dois crimes de abuso sexual de crianças. Do acórdão condenatório, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 153 e segs.), alegando que em tal acórdão foram dados como provados dois factos
(relativos ao conhecimento da idade do ofendido e às consequências psicológicas que para este resultaram do crime) “que não constavam da acusação”, “não tendo sido comunicada ao Recorrente nenhuma alteração dos factos descritos na acusação, nos termos dos arts. 358º ou 359º CPP”. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Maio de 1999, deu provimento ao recurso e anulou o acórdão condenatório, por entender, quanto a apenas um dos factos em causa – a saber, o de que “para o ofendido resultaram perturbações que, ‘em parte o prejudicaram nos seus estudos, tendo andado num psiquiatra para se recuperar’ ”, e que tinha sido considerado como “circunstância agravante geral” –, que o acórdão da 1ª instância condenou por factos não descritos na acusação, e que tal alteração não substancial de factos não foi comunicada ao arguido, nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal. Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorreu o arguido para o Tribunal Constitucional (por requerimento de 31 de Maio de 1999, de fls. 215-216), visando o julgamento de inconstitucionalidade “das normas dos arts. 379º al. b),
283º nº s 3 al. b) e 5 e 277 nº 3 do Código de Processo Penal”. Este Tribunal, por acórdão de 5 de Julho de 2000 (acórdão nº 355/2000, de fls. 270), negou provimento ao recurso.
2. Regressados os autos ao Tribunal da Comarca de Valongo, o Juiz presidente proferiu, na audiência de julgamento (cuja acta consta de fls. 327 e segs.), um despacho no sentido de que, tendo o Supremo Tribunal de Justiça entendido que havia uma alteração não substancial da factualidade vertida na acusação (por não constar da acusação o facto de o ofendido ter ficado muito perturbado em consequência dos factos praticados pelo arguido, que o prejudicaram nos estudos, frequentando um psiquiatra para se recuperar), tal factualidade apenas poderia ser tomada em consideração “após ser dado cumprimento ao preceituado no artigo
358º do Código de Processo Penal”. Para o efeito, foi comunicada a referida alteração ao arguido, para que este pudesse “requerer tempo para a sua defesa”. O arguido, porém, entendeu que não deveria “haver lugar à produção de qualquer prova, mas tão somente à prolação de novo acórdão desconsiderando os factos proferidos”, e prescindiu do prazo para preparar defesa. O Juiz presidente indeferiu o requerido, por o arguido não ter razão, e passou de imediato à fase das alegações. Realizado o julgamento, o arguido foi condenado, por acórdão de 31 de Janeiro de
2001 (de fls. 308 e segs.), na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão, da qual foi declarado perdoado 1 ano, nos termos do artigo 1º da Lei nº 29/99, de
12 de Maio, sob a condição resolutiva prevista no nº 4 da mesma Lei.
3. Deste acórdão (bem como dos despachos referidos, proferidos no início da audiência) recorreu o arguido novamente para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
334), pretendendo que fosse “declarado nulo todo o processado subsequente à baixa dos autos à 1ª Instância, por forma a que esta” desse cumprimento ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 1999. E acrescentou ainda:
“Sem prescindir:
8 – Os factos não constantes da acusação que não tenham sido comunicados ao arguido nos termos do art. 358º CPP não poderiam ser considerados na primeira decisão da 1ª instância sob pena de tal decisão ser nula (art. 379º nº 1 al. b) CPP).
9 – Assim sendo, a possibilidade de tais factos virem a ser tidos em conta em momento posterior decorre necessariamente (caso a primeira decisão seja anulada apenas com aquele fundamento, como acontece nos presentes autos) da ilegalidade cometida, à qual o Arguido é totalmente alheio, o que viola as garantias de defesa que lhe são asseguradas no art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
10 – Nessa medida, os arts. 358º e 379º nº 1 al. b) CPP e 731º nºs 1 e 2 CPC
(aplicável ex vi art. 4º CPP), com a interpretação que deles é feita nos, aliás, doutos despacho e Acórdão recorridos, são inconstitucionais por violação do disposto no art. 32º nº 1 CRP”.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10 de Outubro de 2001 (de fls. 359 e segs.), julgou improcedentes os recursos interpostos, afirmando designadamente o seguinte:
“Ao anular o acórdão recorrido com o referido fundamento, o sentido dessa decisão do S.T.J. foi necessariamente o da anulação do processado a partir do momento em que deveria ter sido efectuada a comunicação nos termos do art. 358º do CPP, cuja omissão determinara a nulidade do art. 379º, nº 1, al. c), do mesmo Código, fundamento da decisão. Pelo que o cumprimento do acórdão do S.T.J. implicava que, como fez o Tribunal Colectivo de Gondomar, se desse cumprimento ao disposto no art.358º do C.P.P., seguindo-se os demais termos. Assim, o Tribunal não excede ou adulterou o sentido da decisão do S.T.J. nem de qualquer forma violou regras de competência, não se verificando pois a invocada nulidade insanável prevista no art. 119º, al. e), do C.P.P.”.
Pelo que toca à alegada violação das garantias de defesa asseguradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente tal invocação, afirmando:
“No caso concreto é manifesto que só seriam postergadas essas garantias e correspondentes direitos se os factos apurados em audiência não descritos na acusação, envolvendo alteração não substancial, fossem considerados, como sucedeu na primeira decisão, sem que ao arguido fosse assegurado o contraditório e as inerentes possibilidades de defesa nos termos do art. 358º do C.P.P. Foi a superação do efeito violador dos direitos de defesa, decorrente da inobservância dessa norma, que o acórdão do S.T.J. decidiu se reparasse anulando o acórdão recorrido, decisão que foi devidamente observada pelo Tribunal Colectivo de Gondomar que, interpretando correctamente os arts. 358º e 379º, nº
1, al. b), do C.P.P. (não tinha que interpretar, por inaplicável, o art. 731º, nºs 1 e 2, do C.P.C.), garantiu o contraditório e todas as possibilidades de defesa do arguido”.
4. É deste último acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade (por requerimento de fls. 373), ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Pretende o recorrente “ver-se apreciada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 358º e 379º nº 1 al. b) CPP, com a interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida, por forma a permitir que, anulado o primeiro acórdão proferido pela 1ª instância por terem sido considerados factos não constantes da acusação sem que tenha sido comunicada ao Arguido tal alteração, se proceda a essa comunicação após a baixa do processo à 1ª Instância e se considerem tais factos no novo Acórdão”, uma vez que tais normas, “com essa interpretação, violam o disposto no art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa”.
5. O nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal (número que não foi alterado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto) dispõe o seguinte:
“Artigo 358º Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. ...
3. ...”.
Por seu turno, determina a alínea b) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal (a alínea b) do artigo 379º, de acordo com a versão anterior à Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que não sofreu alteração de redacção):
“Artigo 379º Nulidades da sentença
1. É nula a sentença: a)... b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º.
.....
2.....”
Deve notar-se que o recorrente não questiona o regime, previsto no nº 1 do artigo 358º, que consiste em comunicar ao arguido a verificação de uma alteração não substancial dos factos, concedendo-lhe tempo para a preparação da respectiva defesa. Não questiona também a cominação de nulidade da sentença, prescrita pela alínea b) do nº 1 do artigo 379º, para os casos de condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, com inobservância do disposto no nº 1 do artigo 358º. O que o recorrente questiona é, como pode depreender-se do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e da motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, o regime das consequências da nulidade da sentença proferida em violação do disposto no nº 1 do artigo 358º, a que se refere a citada alínea b) do artigo 379º. Entende que tais consequências deveriam consistir na prolação de um novo acórdão, no qual não fossem tomados em conta os novos factos, e não a comunicação ao arguido de tais factos, com a possibilidade de concessão de tempo para a preparação da respectiva defesa.
6. A questão de constitucionalidade suscitada é manifestamente infundada. Note-se, aliás, que o recorrente se limita a imputar ao regime impugnado uma violação das garantias de defesa, sem explicitar qual das garantias é posta em causa. Ora o sentido da alegada inconstitucionalidade residiria, como já se indicou, na circunstância de poder vir a tomar-se em consideração tais factos na nova sentença a proferir, possibilidade que “decorre necessariamente (caso a primeira decisão seja anulada apenas com aquele fundamento, como acontece nos presentes autos) da ilegalidade cometida, à qual o Arguido é totalmente alheio”. Por outras palavras, perante a inobservância do nº 1 do artigo 358º, o recorrente preferiria que não pudesse nunca ocorrer a reparação do vício cometido, o que levaria à impossibilidade de levar em conta, na nova sentença a proferir, os novos factos, ainda que eles tivessem já sido comunicados ao arguido, e que a este tivesse sido dada a oportunidade para se defender relativamente a tais factos. Todavia, o recorrente omite completamente qualquer indicação que permita perceber porque considera que o regime impugnado viola as garantias de defesa do arguido, quando tal regime consiste justamente em reparar a falta de comunicação e de oportunidade para a defesa de uma alteração não substancial de factos, corrigindo desse modo a violação do direito de defesa do arguido relativamente a tais factos.
7. Assim, encontram-se reunidas as condições para que possa ser proferida decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, já que é manifestamente infundada a questão de constitucionalidade suscitada.
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.
2. Inconformado, C... veio reclamar para a conferência, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Afirma o recorrente que “respeitou os requisitos de interposição de recurso referidos nos nºs 1 e 2 do art. 75º-A LTC”, e que “nenhuma norma exige que o Recorrente exponha as suas razões, ou seja, que exponha os argumentos que, no seu entender, conduzem à inconstitucionalidade invocada, aquando da interposição de recurso, já que o momento próprio para o fazer é o das Alegações”. E acrescenta que “não faz, tanto quanto se crê, qualquer sentido dizer que o presente recurso é manifestamente infundado pelo simples facto de o Recorrente não ter indicado, aquando da sua interposição, as razões que justificam o seu entendimento, uma vez que a tal não estava obrigado, já que o momento próprio para o fazer ainda está para vir”.
Pelo que toca à questão de constitucionalidade suscitada veio o recorrente afirmar:
“(...) Ou seja, seguindo a interpretação que o aliás douto acórdão recorrido faz dos arts. 358º e 379º al. b) CPP, caso a lei tivesse sido cumprida pelo Tribunal de 1ª Instância, os factos não constantes da acusação nunca poderiam ser considerados; não a cumprindo, podem.
Ora, admitir que, com base nessa violação da lei por parte do Tribunal, se possa chegar a um resultado que não seria possível sem tal violação
é fazer entrar pela janela o que não cabia pela porta e retirar toda a eficácia
à protecção do Arguido, que o regime dos arts. 368º e 359º al. b) CPP pretende conferir.
É nessa medida que se entende ter sido violado o direito de defesa do Arguido constitucionalmente consagrado no art. 32º nº 1 CRP.”.
3. Notificado para o efeito veio o Ministério Público pronunciar-se nos seguintes termos:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, é evidente que não colide com os princípios constitucionais que regem o processo penal a interpretação normativa que considera que – no caso de alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia – é possível a respectiva consideração na sentença, desde que precedida de adequado contraditório do arguido.
3 – O que – na realidade – este pretende inferir do princípio contido no nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental é uma absoluta “cristalização” da matéria de facto relevante, tal como é descrita na pronúncia, de modo a inviabilizar qualquer alteração – embora não essencial – em função da posterior tramitação da causa.
4 – Sendo evidente que não é possível realizar tal inferência, já que nada na Constituição assegura uma tal absoluta imutabilidade do objecto e da matéria do processo penal.”
4. Afigura-se evidente a improcedência da presente reclamação.
Antes de mais, cabe sublinhar não foi “pelo simples facto de o Recorrente não ter indicado, aquando da sua interposição, as razões que justificam o seu entendimento” que na decisão sumária se julgou o recurso manifestamente infundado. Nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, se o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ser “manifestamente infundada”, profere decisão sumária. Foi justamente a simplicidade da questão, resultante do carácter manifestamente infundado da imputação de inconstitucionalidade em causa, que determinou, nos termos da lei, a sua emissão.
A circunstância de o recorrente não ter indicado qualquer fundamento que apontasse no sentido da inconstitucionalidade, ou, ao menos, qual das garantias de defesa do arguido considerava ter sido posta em causa, apenas veio reforçar a conclusão segundo a qual o regime impugnado em nada contradiz o disposto na Constituição.
5. Como se afirmou na decisão ora reclamada, o regime impugnado consiste em, perante um acórdão no qual foram tomados em consideração factos não constantes da acusação, consistindo numa alteração não substancial, “reparar a falta de comunicação e de oportunidade para a defesa de uma alteração não substancial de factos, corrigindo desse modo a violação do direito de defesa do arguido relativamente a tais factos”. Pode explicitar-se que o regime impugnado visa precisamente dar oportunidade ao arguido de este exercer o seu direito de lhe ser comunicada a alteração não substancial de factos, de modo a que destes se possa defender. Tal regime, ao invés de contrariar qualquer – e novamente não indicada – garantia de defesa, está orientado no sentido de permitir o exercício do direito de defesa do arguido.
Ora não procede afirmar que, tendo a sentença inicial tomado em consideração factos que implicam alteração não substancial da factualidade constante da acusação, deveria a nova sentença ter sido proferida sem consideração de tais factos. Como se afirmou no acórdão nº 410/01 (inédito),
“Não basta, com efeito, acusar uma norma de violar um preceito constitucional para se considerar justificada tal alegação; ora o reclamante continua a não indicar por que motivo a norma em apreciação viola as garantias de defesa do arguido em processo penal”. Isto porque o regime aplicado – o de comunicar a alteração de factos ao arguido, com a concessão de tempo para preparação da defesa – permite igualmente respeitar os direitos da defesa.
6. Pode ainda acrescentar-se que o único argumento de que o recorrente tenta lançar mão para defesa da sua tese é a seguinte afirmação:
“caso a lei tivesse sido cumprida pelo Tribunal de 1ª Instância, os factos constantes da acusação nunca poderiam ser considerados; não a cumprindo, podem”.
A afirmação em causa é também manifestamente equivocada. Se o Tribunal da 1ª Instância tivesse, desde o início, cumprido a lei, teria, oficiosamente, ou a requerimento, comunicado a alteração dos factos ao arguido, concedendo-lhe tempo necessário para a sua defesa, como determina o nº 2 do artigo 358º do Código de Processo Penal. Não importando tais factos qualquer alteração substancial, nada obstaria então à sua consideração na sentença. Como se afirmou no acórdão nº 442/99 (inédito), “(...) se, durante a audiência, surgirem factos novos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam esses direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos ex novo e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição”.
Assim, indefere-se a presente reclamação, e confirma-se a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida