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Processo nº 58/02 Plenário Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
(Guilherme da Fonseca)
Acordam, no Plenário
do Tribunal Constitucional:
I – Relatório:
1. O Presidente da República, nos termos do disposto no artigo 278°, nºs 1 e 3 da Constituição e nos artigos 51º, n° 1 e 57°, n° 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer ao Tribunal Constitucional a “apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, 4°, 5° e 6° do Decreto do Governo registado na Presidência do Conselho de Ministros com o n°
475/2001-MS, recebido na Presidência da República no passado dia 16 de Janeiro para ser promulgado como decreto-lei”, por “eventual violação da norma constitucional consagrada no artigo 186º, nº 5, da Constituição”. Em síntese, o Presidente da República coloca a dúvida de saber se cabe na competência constitucionalmente definida para um Governo demitido a aprovação de alterações que, independentemente do mérito que se lhes atribua, considera significativas quanto à “forma de designação dos órgãos de direcção técnica dos estabelecimentos hospitalares e dos centros de saúde”, à “composição dos conselhos técnicos dos hospitais” e ao regime aplicável à “contratação de bens e serviços pelos hospitais”. Refere ainda que não está em causa valorar as “razões políticas de peso” apontadas pelo Governo para justificar tal aprovação, mas tão somente determinar se pode qualificar-se a mesma como “um acto estritamente necessário para assegurar a gestão dos negócios públicos”.
Juntou ao requerimento o texto do Decreto.
2. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54º da Lei nº
28/82, o Primeiro Ministro veio responder, afirmando, em resumo, o seguinte:
2.1. O nº 5 do artigo 186º da Constituição, ao restringir a competência do Governo à “prática dos actos estritamente necessários à gestão dos negócios públicos”, não a limita em função da natureza daqueles actos, não vedando, nomeadamente, a aprovação de actos legislativos. Estabelece, sim, um critério cujo cumprimento só casuisticamente se pode avaliar, através da verificação de dois índices: o da importância significativa do acto e o da sua inadiabilidade. Passando à demonstração de que, no caso, foi respeitada a limitação constitucional, o Primeiro Ministro procede à descrição do conteúdo das normas abrangidas pelo pedido de fiscalização da constitucionalidade:
– O artigo 1º – cuja entrada em vigor não faz cessar os mandatos em curso, conforme resulta do artigo 2º – determina que “a designação do director clínico e do enfermeiro director do serviço de enfermagem dos hospitais se passe a fazer por nomeação do Ministro da Saúde, sob proposta do director do hospital, e já não apenas de entre os dois elementos mais votados por corpos eleitorais dos respectivos colegas” e que aos dirigentes assim nomeados se aplica o “regime de incompatibilidades próprio dos dirigentes do sector público, mantendo para os médicos a possibilidade de exercer medicina, pública ou privada, no interior do hospital”;
– O artigo 4º estabelece que a designação dos membros da direcção técnica dos Centros de Saúde, “um médico e um enfermeiro que são também vogais não executivos do conselho de administração (...) passe do actual sistema de eleição pelos pares (...) a nomeação pelo Ministro da Saúde, sob proposta do presidente do conselho de administração”;
– O artigo 5º substitui, na composição do Conselho Técnico dos Hospitais, os
“directores de departamentos e ou de serviços de acção médica, no máximo de quatro” e os “enfermeiros-supervisores, no máximo de dois”, actualmente
“designados pelos pares das categorias mais elevadas (...), por um representante dos médicos e um representante dos enfermeiros, eleitos pelos respectivos grupos profissionais, à semelhança do que acontecia e continua a acontecer com o administrador hospitalar”;
– Por fim, o artigo 6º prevê que a contratação de bens e serviços pelos hospitais passe a reger-se pelas regras de direito privado.
2.2. Ora, sustenta o Governo, nenhuma destas alterações excede os poderes de um Governo demitido, pelas seguintes razões:
– Não se traduzem em inovações fundamentais, pois incluem apenas medidas de
“agilização da gestão dos hospitais (...), usando regras já experimentadas, no passado, ou em experiências em curso”, querendo aqui referir-se a três hospitais onde presentemente se aplicam (Hospitais de Santa Maria da Feira, de Matosinhos e do Barlavento Algarvio), quer o regime de nomeação contido no artigo 1º, quer o regime de contratação de bens e serviços a que se refere o artigo 6º;
– Não “limitam os poderes de decisão política do futuro Governo”, não lhe sendo difícil, se assim o entender, “voltar atrás”;
– Devem considerar-se “estritamente necessári[a]s para assegurar a gestão dos negócios públicos (...), já que sem o essencial delas é impossível ao Governo cumprir, no domínio da saúde, quer o Orçamento de Estado, quer o que consta do Programa de Estabilidade e Crescimento para 2002-2005 (...) apresentado à União Europeia em Dezembro de 2001”. Neste Programa, aliás, indica-se expressamente,
“como um dos instrumentos fundamentais da estratégia de consolidação das finanças públicas, ‘a reforma em curso do sistema de saúde, cujas medidas de carácter estrutural propostas permitirão melhorar substancialmente a qualidade da despesa e reduzir o desperdício (...)’ ”, referindo, entre essas medidas, a unificação, “pelo critério da nomeação, [d]a responsabilidade gestionária dos conselhos de administração”. No que toca em particular ao Orçamento de Estado para 2002, o Governo lembra que foi elaborado na convicção de que as medidas em causa seriam aprovadas; e que, aliás, anunciou, no debate na generalidade do referido Orçamento de Estado e das Grandes Opções do Plano, que, entre os meios que utilizaria “para controlar a despesa e o nível do défice”, figurava “a alteração da forma de designação em relação aos membros eleitos dos conselhos de administração”. Ainda para justificar a estrita necessidade das alterações aprovadas, o Governo refere o peso do financiamento dos hospitais, no quadro do Serviço Nacional de Saúde (“cerca de 50% dos gastos totais”) e o tempo previsível em que haverá um governo de gestão (acrescendo ao tempo em que o actual se manterá nesse regime aquele que decorrerá até que o seguinte veja o seu programa apreciado pela Assembleia da República).
2.3. Procurando demonstrar, por um lado, a adequação das medidas aprovadas aos objectivos propostos, por permitirem “importantes ganhos no que diz respeito ao desperdício de recursos e à concentração das administrações no real serviço dos utentes” e, por outro, o seu carácter inadiável, o Governo aponta, seguidamente, as graves consequências que o regime actualmente em vigor quanto à designação do director clínico e do enfermeiro director do serviço de enfermagem provocou do ponto de vista da “qualidade do desempenho gestionário e [d]o nível de desperdício”. Essas consequências advêm, segundo observa, da “dupla lógica” de designação dos elementos dos conselhos de administração, em parte nomeados (o administrador e o administrador-delegado) e em parte eleitos, como se viu, o que gera “conflitos de legitimidade e de interesse”. Diz ainda o Governo ter a convicção de “que há uma correlação directa entre a passagem de nomeação a eleição dos responsáveis hospitalares em causa e o descontrolo das despesas; com efeito, desde que a nomeação foi substituída pela eleição, os estabelecimentos passaram a acumular défices enormes e muitas vezes inexplicáveis, a despender cada vez mais recursos em medicamentos (a factura farmacêutica duplicou em poucos anos) e a realizar, sem submissão ao planeamento, obras dispendiosas, por vezes de prioridade discutível, mas consideradas indispensáveis para os equilíbrios internos de poder, com obras muitas vezes pagas pelo orçamento corrente, e ficando frequentemente por despender recursos do PIDDAC e até do Quadro Comunitário de Apoio”; e acompanha estas afirmações de vários exemplos e de quadros destinados a suportá-las. Entende o Governo que estes inconvenientes poderão ser ultrapassados com o novo regime – já aplicado “no passado, com melhores resultados do que [o] actual”, e presentemente vigente nos hospitais atrás identificados, “com bons resultados” –
, que permite que os conselhos de administração sejam equipas homogéneas e responsáveis perante o Governo, “que, pela legitimidade democrática que lhe assiste, (...) representa o conjunto dos utentes”. Insistindo na urgência da sua aplicação, e nos prejuízos irreversíveis que o seu adiamento provocará, o Governo chama a atenção para o termo iminente de vários mandatos agora em curso, e para a vantagem de não permitir que novos mandatos se iniciem segundo o regime actual, uma vez que entende que deve ser respeitado o respectivo período de duração.
2.4. Quanto aos Centros de Saúde, o Governo afirma que, embora “numa escala diferente”, valem as mesmas observações e, portanto, as mesmas razões para a mudança do regime de nomeação dos elementos da sua direcção técnica.
2.5. No que toca “à composição dos conselhos técnicos dos hospitais”, o Governo justifica a medida que propõe por razões de “coerência e oportunidade globais do conjunto” e da vantagem “de se aproveitar a designação electiva entre médicos e enfermeiros para a composição de órgãos de direcção técnica”.
2.6. Finalmente, quanto ao regime aprovado relativo à contratação de bens e serviços, o Governo afirma que pretende generalizar as experiências em curso nos três hospitais atrás referidos, que têm permitido alcançar bons resultados no que toca à “redução drástica de desperdícios (...), controlo de gastos e assim cumprimento dos orçamentos”, sendo urgente a sua aplicação generalizada, pois que o seu adiamento comporta o “risco de graves prejuízos”.
Conclui, assim, no sentido de que o Tribunal Constitucional se deve pronunciar no sentido da não inconstitucionalidade das normas cuja apreciação lhe é requerida.
Com a resposta foram juntas uma cópia do ofício datado de 14 de Janeiro de 2002, do Primeiro Ministro, que acompanhou o envio do Decreto em causa para o Presidente da República, com a respectiva justificação, e uma cópia do Programa de Estabilidade e Crescimento – Actualização para o Período de 2002-2005, datado de Dezembro de 2001.
3. Apresentado memorando, nos termos previstos no nº 2 do artigo 58º da Lei nº
28/82, foi o mesmo discutido em plenário, tendo havido substituição do relator, por vencimento, de acordo com o que resulta do nº 3 do artigo 59º da mesma Lei.
II - Fundamentação
4. O Decreto do Governo em apreciação, aprovado em Conselho de Ministros de 10 de Janeiro de 2002, foi editado no “desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 48/90, de 24 de Agosto, e nos termos das alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 198º da Constituição”, havendo sido “observados os procedimentos decorrentes da Lei nº 23/98, de 26 de Maio” (relativa ao regime de negociação colectiva e à participação dos trabalhadores da Administração Pública em regime de direito público), como consta do respectivo preâmbulo. Neste mesmo preâmbulo figura a justificação das alterações propostas. Em síntese, o Governo explica que se inserem num conjunto de medidas destinadas a introduzir “um regime de gestão empresarial” dos estabelecimentos hospitalares, cuja adopção será resultado de um processo legislativo “necessariamente moroso”. Por isso, torna-se necessário proceder à urgente “agilização” da respectiva gestão, eliminando os “constrangimentos existentes que dificultam o referido objectivo, designadamente (...)os resultantes do actual regime de designação dos directores clínicos e dos enfermeiros directores”, o que implica a alteração do
“regime instituído pelo Decreto-Lei nº 135/96, de 13 de Agosto”. A mesma razão conduz a que se altere a “forma de designação da direcção técnica dos Centros de Saúde constante do Decreto-Lei nº 157/99 de 10 de Maio”. A necessidade da referida eliminação dos “constrangimentos” justifica, ainda, a opção pela aplicação do regime de direito privado à contratação de bens e serviços pelos hospitais, sem quebra da devida observância “das directivas comunitárias que sobre a matéria incidem, bem como [d]o Acordo sobre Mercados Públicos celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio”. Trata-se, aliás, de uma medida já testada com êxito, acrescenta. Finalmente, explica-se a alteração da composição dos conselhos técnicos dos hospitais pela conveniência de neles fazer participar “representantes directos dos médicos e enfermeiros”.
5. As normas questionadas têm o seguinte teor: Artigo 1º
Órgãos de direcção técnica dos estabelecimentos hospitalares
1. A nomeação do director clínico é feita por despacho do Ministro da Saúde mediante proposta do director do hospital, de entre médicos de reconhecido mérito, experiência profissional relevante e perfil adequados às respectivas funções, pertencentes aos quadros da carreira hospitalar, com o grau de consultor, no caso de hospitais centrais, ou que possuam pelo menos a categoria de assistente hospitalar há mais de quatro anos, nos restantes hospitais.
2. A nomeação do enfermeiro director do serviço de enfermagem é feita por despacho do Ministro da Saúde, mediante proposta do director do hospital, de entre enfermeiros de reconhecido mérito, experiência profissional relevante e perfil adequados às respectivas funções, com categorias integradas pelo menos no nível 2 e que possuam uma das habilitações mencionadas no nº 5 ou na alínea c) do nº 4 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 437/91, de 8 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 412/98, de 30 de Dezembro.
3. Ao provimento destes cargos é aplicável o disposto nos artigos 18º, 19º, 20º e 21º da Lei nº 49/99, de 22 de Junho.
4. O exercício das funções de director clínico e enfermeiro director é incompatível com o exercício de quaisquer outras funções públicas ou privadas para além das previstas no Decreto Regulamentar n.º 18/94, de 12 de Agosto, e na Lei nº 12/96, de 18 de Abril.
Artigo 4º Direcção técnica dos centros de saúde O artigo 24º do Decreto-Lei nº 157/99, de 10 de Maio, passa a ter a seguinte redacção: Artigo 24º Direcção técnica
1. (...)
2. Os elementos da direcção técnica são nomeados por despacho do Ministro da Saúde, sob proposta do presidente do conselho de administração.
3. (Actual nº 4).
Artigo 5º Conselho Técnico dos Hospitais O artigo 17º do Decreto Regulamentar nº 3/88, de 22 de Janeiro, passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 17º
Composição e modo de funcionamento do conselho técnico
1. O conselho técnico é presidido pelo director e tem a seguinte composição: a) (...) b) (...) c) (...) d) (...) e) Um representante dos médicos; f) Um representante dos enfermeiros; g) (...) h) (...)
i) (...)
2. O membro constante da alínea d) do nº 1 é designado pelo respectivo sector profissional.
3. Os membros constantes das alíneas e) e f) do nº 1 são eleitos pelos respectivos grupos profissionais, aplicando-se ao procedimento eleitoral, com as necessárias adaptações, o previsto para a eleição dos representantes dos grupos profissionais a que se refere a alínea g), do nº 1, do artigo 25º, representados no conselho geral dos hospitais.
4. (Actual nº 3).
5. (Actual nº 4).
Artigo 6º Contratação de bens e serviços
1. A contratação de bens e serviços, pelos estabelecimentos hospitalares, rege-se pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação das directivas comunitárias e do Acordo sobre Mercados Públicos, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio.
2. O regulamento interno dos hospitais, elaborado de acordo com orientações emanadas do Ministério da Saúde, deve garantir o cumprimento do disposto no número 1, bem como, e em qualquer caso, os princípios da publicidade, da livre concorrência e da não discriminação, da qualidade e da economicidade, de modo a alcançar a melhor gestão dos meios ao seu dispor.
6. A dúvida colocada decorre da circunstância de, pelo Decreto do Presidente da República nº 60-A/2001, de 17 de Dezembro, publicado no 2º Suplemento ao Diário da República nº 290, Série I-A, da mesma data, ter sido “demitido o Governo, por efeito da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro”; e prende-se, naturalmente, com a questão da definição constitucional dos poderes de um governo demitido.
7. Com os limites impostos pela escassez do tempo disponível, cumpre começar pela análise das alterações que o Governo pretende introduzir com a aprovação do decreto que enviou para promulgação, passo indispensável para ser possível determinar se foram ou não respeitadas as limitações constitucionalmente impostas para aqueles poderes.
Deixando de lado os pontos em que não há alteração de regime, verifica-se que pelos nºs 1 e 2 do seu artigo 1º se pretende alterar a forma de designação do director clínico e do enfermeiro director do serviço de enfermagem nos estabelecimentos hospitalares, cujos conselhos de administração integram, que passam a ser nomeados pelo Ministro da Saúde, sob proposta do director do hospital. Segundo as regras actualmente em vigor, introduzidas pelo Decreto-Lei nº 135/96, de 13 de Agosto (cfr. artigos 2º e 3º), aquela proposta só pode incidir sobre os dois médicos ou os dois enfermeiros “mais votados” pelos colégios eleitorais determinados, respectivamente, pelo nº 3 do artigo 2º e pelo nº 3 do artigo 3º, e constituídos, exclusivamente e para cada uma das profissões, por médicos ou enfermeiros do hospital. Estas regras, por seu turno, tinham substituído as que foram definidas pelo Decreto Regulamentar nº 3/88, de 22 de Janeiro, aprovado ao abrigo do disposto no artigo 20º do Decreto-Lei nº 19/88, de 21 de Janeiro, e que previam a nomeação pelo Ministro da Saúde sob proposta do director, com a audição aí prevista, sem prévia realização de nenhum acto eleitoral (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 12º e nº 1 do artigo 14º, este último alterado pelo Decreto-Lei nº
401/89, de 10 de Novembro, também revogado pelo Decreto-Lei nº 135/96), pondo termo ao regime constante então do Decreto Regulamentar nº 30/77, de 20 de Maio, assente no sistema da nomeação de um médico e de um enfermeiro “proposto pela respectiva assembleia de sector” para o então designado conselho de gerência
(cfr. artigo 8º). Interessa saber que, segundo o disposto no artigo 3º do Decreto Regulamentar nº
3/88, de 21 de Janeiro, o director clínico e o enfermeiro director do serviço de enfermagem integram o conselho de administração, juntamente com o director do hospital, que preside, e o administrador-delegado. O Conselho de Administração é
órgão responsável pelo funcionamento do hospital (cfr. artigo 4º). Ao director clínico cabe “coordenar toda a assistência prestada aos doentes, assegurar o funcionamento harmónico dos serviços de assistência, garantir a correcção e prontidão dos cuidados de saúde e, em especial, dirigir a acção médica” (art. 13º, nº 1). Ao enfermeiro director do serviço de enfermagem cabe a direcção dos serviços de enfermagem (cfr. artigo 15º).
Pelo artigo 4º, introduz-se a mesma alteração no que respeita à forma de nomeação dos “elementos da direcção técnica” dos Centros de Saúde. De acordo com o regime vigente, constante do artigo 24º do Decreto-Lei nº
157/99, de 10 de Maio, constituem a direcção técnica – à qual compete, nos termos do artigo 25º, “assegurar a organização, a prestação e a qualidade dos cuidados de saúde” –, um médico e um enfermeiro (nº 1). Segundo o nº 2 do mesmo artigo 24º, “são nomeados por despacho do Ministro da Saúde, sob proposta do presidente do conselho de administração, na sequência de eleição conjunta (...) por escrutíneo secreto por um colégio constituído pelos médicos e enfermeiros do quadro de pessoal do centro de saúde (...)”.
Pelo artigo 5º, altera-se a composição e o modo de designação de certos membros do conselho técnico dos estabelecimentos hospitalares. Trata-se de um dos órgãos de apoio técnico dos hospitais, com competência fundamentalmente consultiva, a quem cabe, por entre o mais, apresentar ao conselho de administração, anualmente, um relatório sobre os serviços, propor medidas diversas e dar os pareceres que lhe são solicitados (artigos 17º e 18º do Decreto Regulamentar nº
3/88). Do decreto aprovado agora pelo Governo decorre que são alteradas as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 17º, que estabeleciam, respectivamente, que pertenciam ao conselho “Directores de departamento e ou de serviços de acção médica, no máximo de quatro” e “Enfermeiros-supervisores, no máximo de dois”. São nomeados, os primeiros, pela comissão médica (que é composta pelo director clínico, pelos seus adjuntos e pelo director de cada serviço de acção médica ou pelo médico que desempenhar essas funções) e, os segundos, pela comissão de enfermagem
(integrada pelo enfermeiro director do serviço de enfermagem, pelos seus adjuntos e pelos enfermeiros-supervisores e enfermeiros-chefes do quadro permanente). Segundo o regime agora aprovado, passam a pertencer ao conselho “um representante dos médicos” e “um representante dos enfermeiros”, que são
“eleitos pelos respectivos grupos profissionais”.
Finalmente, o artigo 6º, ressalvando a necessária observância das “directivas comunitárias e do Acordo sobre Mercados Públicos, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio”, afasta a aplicação nos hospitais das normas vigentes, em geral, na Administração Pública para a “contratação de bens e serviços”, estabelecendo que passam a valer “as normas de direito privado”. Isto significa que se deixa de aplicar o regime actualmente previsto no Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho; as directivas relevantes são a Directiva
92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho (contratos públicos de serviços), a Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho (contratos públicos de fornecimento) e a Directiva 97/52/CEE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro (que altera as anteriores), publicadas, respectivamente, no JO nº L
209, de 24.7.1992, p. 1 e segs., no JO nº L 199, de 9.8.1993, p. 1 e segs., e no JO nº L 328, de 28.11.1997, p. 1 e segs ..
8. Verificadas as alterações, há que averiguar se cabe nos poderes constitucionalmente definidos para um Governo demitido a respectiva aprovação. O Tribunal Constitucional já por diversas vezes foi chamado a pronunciar-se sobre a questão da limitação dos poderes dos governos demitidos, naturalmente a propósito de diferentes actos aprovados nessas condições. Ausente do seu texto originário, figura na Constituição, desde a revisão de
1982, uma definição do âmbito da competência de um governo demitido, constante do nº 5 do (actual) artigo 186º: “(...) o Governo limitar-se-á à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”.
É, pois, à luz deste critério que será dada a resposta à dúvida colocada pelo Presidente da República.
9. Está indiscutivelmente em causa um acto legislativo, na forma e no conteúdo; e trata-se de um acto legislativo que introduz uma inovação significativa no regime jurídico hoje aplicável à gestão dos hospitais e dos centros de saúde. Na verdade, pese embora a afirmação, constante da resposta do Governo, de que não está em causa uma “inovação fundamental”, seja porque contém, no caso das regras definidas para a forma de designação do director clínico e do enfermeiro director do serviço de enfermagem, um regime que já vigorou, seja porque esse regime (e aqui também abrangendo o artigo 6º) se aplica hoje em alguns estabelecimentos hospitalares (cfr. os Decretos-Leis nºs 151/98, de 5 de Junho,
207/99, de 9 de Junho, e 76/2001, de 27 de Fevereiro, relativos aos Hospitais, respectivamente, de Santa Maria da Feira, de Matosinhos e do Barlavento Algarvio), a verdade é que, do confronto com a lei actual, detectam-se alterações consideráveis a aplicar à generalidade dos hospitais e dos centros de saúde. Assim sendo, torna-se indispensável saber se a competência dos governos demitidos abrange a prática de actos de natureza legislativa que introduzam na ordem jurídica portuguesa alterações significativas.
10. Já por mais de uma vez o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de que da definição constitucional do âmbito dos poderes de um Governo demitido não resulta nenhuma limitação em função da natureza dos actos admissíveis, frisando que o critério decisivo para o efeito é antes o da estrita necessidade da sua prática. Assim, o acórdão nº 56/84 (Diário da República, II Série, de 9 de Agosto de
1984), concluiu, na sequência da análise dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1982, que “de qualquer modo, com a sua adopção ficou claro que o governo demitido não está limitado em função da natureza, da forma ou do conteúdo dos actos (pode, efectivamente, praticar quaisquer actos nos domínios político, legislativo e administrativo, excepto aqueles que por essência sejam incompatíveis com a situação institucionalmente patológica, sob a qual desenvolve a sua acção: por exemplo, não poderá solicitar à Assembleia da República a aprovação de um voto de confiança nos termos do artigo 196º da Constituição)”. E a mesma orientação foi seguida nos acórdãos nºs 142/85, 427/87, 2/88 e 111/88, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 7 de Setembro de 1985, de 5 de Janeiro de 1988, de 12 de Março de 1988 e de 1 de Setembro de
1988. O Tribunal reitera aqui tal orientação, pois continua a entender que ela corresponde à correcta interpretação do texto e da razão de ser do preceito constitucional. Desde logo, foi incontestavelmente com esse sentido que o nº 5 do actual artigo
186º foi aprovado, como já se referiu, na revisão constitucional de 1982. Para o verificar, basta recorrer aos debates havidos, quer na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (cfr. Diário da Assembleia da República, II, 2º suplemento ao nº 39, de 15 de Janeiro de 1982, p. 49 e segs.), quer no Plenário
(cfr. Diário da Assembleia da República, I, nº 123, de 21 de Julho de 1982, p.
5138 e segs.), em especial quanto à discussão e votação de propostas apresentadas no sentido de reduzir o âmbito possível dos actos aos chamados actos de gestão corrente.
É certo que o nº 5 do (actual) artigo 186º utiliza o termo gestão para definir a competência do governo demitido. E poderia pretender-se dar relevo decisivo à escolha desse termo, considerando que, não obstante o sentido historicamente pretendido pelo legislador constitucional de 1982, a Constituição restringiria objectivamente tal competência à prática de actos de gestão corrente. Não há, todavia, razões que levem à conclusão de que é com esse sentido restritivo que a expressão gestão dos negócios públicos (também utilizada, por exemplo, no nº 2 do artigo 48º da Constituição) deve valer. Com efeito, tal interpretação conduziria ao resultado absurdo de que os actos de gestão corrente – no sentido de actos de administração ordinária, ou de actos de manutenção do funcionamento, ou de conservação, onde se não incluem actos de particular relevância, como a nomeação de um director-geral ou de um gestor público – só poderiam ser praticados quando fossem estritamente necessários. Uma limitação destas provocaria, seguramente, a paralisação da Administração Pública, inutilizando a obrigação constitucionalmente imposta ao governo demitido de se manter em funções até à sua substituição. E também não é aceitável que se entendesse o preceito no sentido de que os
“actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” seriam, justamente, os actos de gestão corrente.
Na verdade, o interesse público pode reclamar a prática inadiável, por exemplo, de actos legislativos; limitar a competência do governo demitido à prática de actos de gestão corrente, sabendo-se, além do mais, que a existência de governos com competência diminuída se pode arrastar no tempo, seria, pois, altamente inconveniente. Reafirma-se, assim, a conclusão de que a competência de um Governo demitido não está constitucionalmente limitada em função da natureza dos actos.
11. Não sendo relevante para a delimitação da competência de um Governo demitido a natureza do acto a praticar, cabe então analisar o significado do critério decisivo, e que é o da sua estrita necessidade, conceito que o Tribunal Constitucional tem feito corresponder essencialmente ao da inadiabilidade ou urgência. Assim, no acórdão nº 56/84, já citado, fazendo uma síntese entre as posições manifestadas no âmbito da Revisão Constitucional de 1982, respectivamente, por Costa Andrade (cfr. Diário da Assembleia da República, I, nº 123, já citado, p.
5141) e por Jorge Miranda (cfr. Diário da Assembleia da República, II, 2º suplemento ao nº 39, também já citado, p. 852-(61) e 852-(62)), de que “a componente dominante seria a da inadiabilidade” ou a da “proporcionalidade, implicitamente consagrada no nº 5 do [então] artigo 189º da Constituição”, veio afirmar que “o pressuposto de actuação de um governo demitido (...) comporta uma dupla referência: uma, de ordem temporal: perante certa situação dos negócios públicos, o Governo terá naquela altura de dar um acto de resposta
(inadiabilidade); outra, de ordem material: o acto de resposta terá de estar em relação directa com a situação a resolver (proporcionalidade)”. Nos acórdãos nºs 427/87, 2/88 e 111/88, já citados, o Tribunal Constitucional utilizou, também para explicitar o conceito de estrita necessidade e citando a Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, dois índices, nestes termos: “O preceito [o nº 5 do então artigo 189º] não estabelece nenhum limite quanto à natureza dos actos, podendo, portanto, ser praticados actos de qualquer tipo, sem excluir os de natureza legislativa, e não apenas os de ‘gestão corrente’. Ponto é que, qualquer que seja a sua natureza, eles sejam ‘estritamente necessários’. O conceito de estrita necessidade comporta uma margem de relativa incerteza, pelo que a sua definição pode demarcar-se a partir de dois índices: a importância significativa dos interesses em causa, em termos tais que a omissão do acto afectasse de forma relevante a gestão dos negócios públicos; a inadiabilidade, isto é, a impossibilidade de, sem grave prejuízo, deixar a resolução do assunto para o novo governo ou para momento ulterior à apreciação do seu programa” (acórdão nº 2/88). As duas formulações, na prática, são equivalentes; e o Tribunal Constitucional não vê razão para afastar o critério que as informa.
12. Ora os actos que o Governo demitido pratique – daqui em diante considerar-se-ão apenas os actos legislativos – estão, naturalmente, sujeitos a controlo pelas instâncias competentes; e esse controlo há-de abranger a verificação do preenchimento deste requisito constitucional da estrita necessidade, quer se trate de um controlo político – que incumbe ao Presidente da República, não interessando agora considerar a hipótese de controlo pela Assembleia da República, e que se exprime na possibilidade do veto por razões políticas –, quer se trate de um controlo jurídico (cfr. acórdãos nºs 56/84 e
142/85, citados), no âmbito do qual se situa a intervenção do Tribunal Constitucional. Torna-se, pois, exigível que o Governo fundamente a estrita necessidade dos actos legislativos que aprove, sob pena de correr o risco de se tornar impossível considerar verificado tal requisito do exercício da competência correspondente. Segundo as palavras de Luís Nunes de Almeida, retiradas do já citado debate realizado no âmbito da revisão constitucional de 1982 (cfr. cit. Diário da Assembleia da República, II, 2º suplemento ao nº 39, p. 852-(63)),
“relativamente aos actos políticos propriamente ditos [referira antes os actos administrativos e a exigência da sua fundamentação] ou aos actos legislativos, suponho que será um ónus do governo fundamentá-los, sob pena de amanhã os ver anulados por não ter fundamentado essa necessidade estrita de os praticar”. E, em rigor, quer essa fundamentação, quer o posterior controlo devem situar-se, em via máxima, em dois níveis: em primeiro lugar, no do objectivo último afirmado pelo Governo para justificar a prática do acto, relativamente ao qual assume particular importância a verificação da urgência (é a referência temporal, na terminologia utilizada no citado acórdão nº 56/84). Em segundo lugar, no da própria medida que é aprovada para alcançar aquele objectivo. E, aqui, a fundamentação – e o seu posterior controlo – hão-de incidir, em especial, na adequação (é, agora, a referência de ordem material, na expressão usada no mesmo aresto).
13. Relembrado que o controlo a cargo do Tribunal Constitucional, no caso, efectuado dentro do mecanismo da fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas aprovadas pelo Governo, é um controlo jurídico, cumpre precisar o que abrange. Por outras palavras, há que averiguar qual é o âmbito da competência do Tribunal Constitucional na averiguação do preenchimento do conceito significativamente indeterminado da estrita necessidade. No acórdão 142/85, já citado, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre este ponto nos seguintes termos: “Estabelece-se neste preceito [o nº 5 do então artigo 189º] que, ‘após a sua demissão, o governo limitar-se-á à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos’. Importa, no entanto, ponderar, antes de mais, que, se tudo converge no sentido de dever atribuir-se carácter jurídico-vinculativo (e não meramente político) aos limites assim estabelecidos aos poderes dos chamados ‘governos de gestão’
(este mesmo Tribunal assim o entendeu no Ac. 56/84, DR, 1ª, de 9-8-84), todavia a amplitude da sindicabilidade contenciosa da observância de tais limites não será tão ampla quanto o teor da disposição constitucional porventura sugerirá. Se tal sindicabilidade contenciosa não oferece dúvidas, forçoso será, no entanto, reconhecer que o juízo que, em sede de controle da decisão governamental, compete aos tribunais – no ‘preenchimento’ da cláusula do art.
189º, nº 5 da Constituição – não pode revestir-se nem pode pretender assumir a mesma completude que o correspondente juízo do Governo. Ou seja, e por outras palavras, que são de uma conhecida distinção de Forsthoff: é forçoso reconhecer que neste preceito constitucional se contém primariamente uma ‘norma-função’ e só em menor medida uma ‘norma de controle’”. Com efeito, a circunstância de o Governo ter a sua competência legislativa diminuída não tem a virtualidade de fazer deslocar a competência do Tribunal Constitucional para o domínio do controlo das opções políticas. Esta observação tanto é exacta para o controlo do objectivo último, atrás referido, como para o controlo da escolha da medida adequada a prossegui-lo. Ou seja: o Tribunal Constitucional não pode ir além, quanto ao primeiro, da apreciação de uma eventual incongruência ou clara falta de procedência da fundamentação apresentada para a justificação da urgência – aferida de um ponto de vista objectivo e não, apenas, do ponto de vista das políticas definidas pelo governo demitido, designadamente no seu programa – e, quanto ao segundo, da manifesta desadequação entre o fim anunciado e a medida proposta. Não pode, por exemplo, salvo erro manifesto, rejeitar o juízo feito pelo legislador no que toca à probabilidade de alcançar o fim pretendido, nomeadamente quando essa apreciação implique juízos de índole acentuadamente técnica. Caso contrário, o Tribunal Constitucional invadiria o domínio reservado ao legislador – no caso, o Governo –, entrando na área da censura das escolhas políticas. Nada disto exclui que, nos casos em que haja vinculação jurídica a um objectivo ou a um meio, esses passos da fundamentação governamental possam ser controlados pelo tribunal como matéria da sua competência judicativa própria.
14. Não se levantando dúvidas de que todas as normas aprovadas cabem no âmbito da competência legislativa normal do Governo, resta verificar se, para além disso, era estritamente necessária a sua aprovação após a demissão. E a verdade é que nenhuma razão aponta para uma resposta negativa. Desde logo, está suficientemente fundamentada pelo Governo a urgência relativa ao objectivo último que pretende prosseguir. Como se dá nota, quer na resposta apresentada neste processo, quer no ofício junto como anexo 1, naquela largamente reproduzido, as medidas que, no preâmbulo do Decreto, se apresentam como uma “agilização da gestão dos hospitais, e [um]a eliminação dos constrangimentos existentes que dificultam” que neles se alcance
“um regime de gestão empresarial”, e como permitindo uma melhor gestão dos centros de saúde, representam a execução de um compromisso assumido “em nome da consolidação de médio prazo das finanças públicas”, encontrando-se identificadas
“entre as medidas necessárias e urgentes” para o efeito no Programa de Estabilidade e Crescimento para 2002-2005, apresentado à União Europeia em Dezembro de 2001. Na verdade, na secção VI desse Programa (Reforma da Saúde), inclui-se, “como um dos instrumentos fundamentais da estratégia de consolidação das finanças públicas, ‘a reforma em curso do sistema de saúde, cujas medidas de carácter estrutural propostas permitirão melhorar substancialmente a qualidade da despesa e reduzir o desperdício, para além de ampliar os ganhos em saúde dos portugueses e de promover a modernização administrativa do Ministério da Saúde e da gestão do Serviço Nacional de Saúde’, referindo-se adiante, expressamente, ‘devolver legitimidade pública completa aos executivos hospitalares, transferindo os representantes profissionais eleitos para órgãos de natureza técnica e unificando, pelo critério de nomeação, a responsabilidade gestionária dos conselhos de administração’ ” (ponto 24º da resposta do Governo). Esse mesmo objectivo explica ainda as demais alterações aprovadas. Finalmente, o Governo afirma que o Orçamento do Estado foi elaborado no pressuposto de que estas medidas eram aprovadas, observando que se tornará muito difícil, quer ao actual Governo enquanto se mantiver em funções, quer ao futuro Governo, cumprir os limites orçamentais se elas não foram executadas (artigos
25º e seguintes da resposta).
15. A inscrição destas medidas no Programa de Estabilidade e Crescimento para
2002-2005 implica, com efeito, um compromisso assumido pelo Estado Português perante a União Europeia. Resulta do disposto no (actual) artigo 104º do Tratado da União Europeia que
“os Governos devem evitar défices orçamentais excessivos” (nº 1), tendo sido fixados pelo Protocolo relativo ao procedimento aplicável em caso de défice excessivo, conforme previsto no nº 2 do mesmo artigo 104º, os valores de referência relevantes. Por um lado para evitar que os Estados membros atinjam esses valores, por outro para permitir a rápida correcção em caso de não se ter conseguido evitar a sua ultrapassagem, a Resolução do Conselho Europeu de Amsterdão de 17 de Junho de
1997 (JO nº C 236, de 2/8/1997, ps. 1 e 2 ) adoptou o chamado Programa de Estabilidade e Crescimento para 2001-2004, que é constituído por três instrumentos juridicamente vinculantes: a referida resolução e dois Regulamentos, o Regulamento (CE) nº 1466/97 do Conselho, de 7 de Julho de 1997, relativo ao reforço da supervisão das situações orçamentais e à supervisão e coordenação das políticas económicas e o Regulamento (CE) nº 1467/97 do Conselho, da mesma data, relativo à aceleração e clarificação da aplicação do procedimento relativo aos défices excessivos (ambos publicados no JO nº L 209, de 2/8/1997). O documento junto pelo Governo à sua resposta como anexo 2 corresponde à actualização do Programa de Estabilidade e Crescimento para o período de
2002-2005, no qual o Governo português “reafirma (... o objectivo central de atingir o equilíbrio orçamental de 2004”. Entre os instrumentos fundamentais indicados pelo Governo para o alcançar, figura efectivamente “ a reforma em curso do sistema de saúde, cujas medidas permitirão melhorar substancialmente a qualidade da despesa e reduzir o desperdício, para além de ampliar os ganhos em saúde dos portugueses e de promover a modernização administrativa do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde (SNS)” (Ponto I, Enquadramento e objectivos da política económica). No ponto VII.2., especificamente relativo à Reforma da Saúde, entre as “medidas de racionalidade financeira” encontram-se as “Reformas institucionais para racionalizar a decisão”, onde figura “devolver legitimidade pública completa aos executivos hospitalares, transferindo os representantes profissionais eleitos para órgãos de natureza técnica e unificando pelo critério de nomeação a responsabilidade gestionária dos conselhos de administração”. Igualmente se encontra entre as mesmas o aprofundamento das experiências realizadas nos últimos anos no desenvolvimento de “modelos de gestão empresarial”, designadamente nos hospitais de Santa Maria da Feira e de Matosinhos, salientando, entre as “virtualidades financeiras do processo”, a
“mutação do tipo de relação do estado com as entidades prestadoras. O Estado passará de financiador a comprador...”. Não restam dúvidas, nem da vinculação internacional do Estado Português à adopção de medidas destinadas a reduzir o défice orçamental no domínio da Saúde, nem do peso que as medidas projectadas, agora em apreciação, tiveram na elaboração do Orçamento do Estado para 2002 (veja-se, a propósito, o relatório apresentado na Assembleia da República juntamente com a proposta de lei respectiva e a intervenção do Ministro da Saúde no debate na generalidade, no Diário da Assembleia da República, I, nº 21, de 9 de Novembro de 2001, pág.
794). Assim, o Tribunal Constitucional considera preenchido o requisito constitucional da estrita necessidade quanto ao objectivo último que o Governo se propôs atingir com o Decreto que aprovou: a contenção das despesas no âmbito dos estabelecimentos hospitalares e dos centros de saúde, dado o seu peso no conjunto das despesas públicas. E, do mesmo modo, considera demonstrado o carácter urgente ou inadiável dessa necessidade, na medida em que a execução orçamental nos meses que decorrem até à apreciação parlamentar do programa do Governo nomeado após as eleições a realizar em 17 de Março condiciona decisivamente os resultados a apurar no final do ano, em termos susceptíveis de comprometer irremediavelmente os objectivos pretendidos.
16. Resta determinar se a estrita necessidade patente nos objectivos do diploma, tal como foram abstractamente considerados no número anterior, vale igualmente para legitimar a aprovação das normas que, em concreto, integram o decreto sob apreciação. Isto equivale a perguntar se essas normas se mostram adequadas à realização dos objectivos invocados. Na sua resposta, o Governo justifica as soluções do diploma dizendo que existe uma relação de causalidade entre a alteração da forma de nomeação do director clínico e do enfermeiro director do serviço de enfermagem dos estabelecimentos hospitalares, operada pelo Decreto-Lei nº 135/96, e o descontrolo da despesa e do défice acumulado dos hospitais, do aumento substancial dos gastos excessivos e do desperdício. Acrescenta que os hospitais representam à volta de 50% dos gastos do Serviço Nacional de Saúde e que o regime agora aprovado, como o demonstra também a sua presente aplicação em três hospitais, permite reduzir de forma apreciável os desperdícios, tendo em conta a homogeneidade que se alcança nos conselhos de administração, responsáveis perante o Governo. Afirma, depois, que as mesmas razões valem para a gestão dos centros de saúde, embora em escala diferente, e que a alteração introduzida nos conselhos técnicos dos hospitais integra o sistema que pretende definir. E observa, finalmente, quanto ao artigo
6º, que a experiência da sua aplicação nos Hospitais de Santa Maria da Feira, de Matosinhos e do Barlavento Algarvio está a revelar-se comprovadamente eficaz para o controlo dos gastos e a diminuição dos desperdícios. Dentro dos limites em que se deve conter a apreciação do Tribunal Constitucional, no que diz respeito ao controlo dos motivos determinantes dos actos dos governos demitidos, parece seguro concluir que a justificação apresentada pelo Governo, além de não revelar incongruências ou obscuridades de fundamentação, não permite sustentar a existência de qualquer manifesta inadequação entre as medidas aprovadas e o fim pretendido. O Tribunal não pode afirmar que as medidas legislativas aprovadas pelo Governo não são as mais apropriadas. Deve apenas verificar se elas se contêm dentro dos parâmetros mínimos ditados por um requisito geral de adequação e proporcionalidade. Ora não se vêem razões para duvidar de que as medidas em questão se conformam com tais parâmetros. O Tribunal Constitucional não pode, assim, concluir pela violação da exigência constitucional de que a sua aprovação seja estritamente necessária, nos termos do disposto no nº 5 do artigo 186º da Constituição.
III - Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, 4°, 5° e 6° do Decreto do Governo registado na Presidência do Conselho de Ministros com o n°
475/2001-MS.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta) Maria Fernanda Palma (Vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido, pois pronunciar-me-ia pela inconstitucionalidade das normas do Decreto do Governo registado na Presidência do Conselho de Ministros com o nº
475/2001-MS (doravante simplesmente Decreto), por violação do artigo 186º, nº 5, da Constituição.
Tendo sido o primeiro Relator neste processo, apresentei ao Plenário um Memorando, a apontar para aquela pronúncia de inconstitucionalidade, que não obteve , porém, a maioria dos votos dos juízes. Vou aqui em todo o caso segui-lo nas suas linhas gerais, não deixando de assinalar os “defeitos” que, em meu entender, inquinam o acórdão (aceitando, no essencial as posições nele tomadas quanto à natureza da “inovação significativa no regime jurídico hoje aplicável à gestão dos hospitais e dos centros de saúde “ e quanto à linha jurisprudencial sobre a competência de um governo demitido e o “critério decisivo” correspondente “essencialmente ao da inadiabilidade ou urgência”).
2. Desde logo, o primeiro “defeito” que ressalta do acórdão está na preocupação que nele perpassa de se definirem restritamente os poderes de controlo ou os poderes de cognição do Tribunal Constitucional nesta matéria de apreciação da conduta do órgão legislativo que é o autor do Decreto, mais parecendo que é com este ponto de partida – o do “âmbito da competência do Tribunal Constitucional na averiguação do preenchimento do conceito significativamente indeterminado da estrita necessidade.” - que se vai procurar, no termo do discurso adoptado, a todo o transe, dar a “benção” ao autor (e essa preocupação – devo confessá-lo – não a tive, porque me pareceu sempre claro que o Tribunal Constitucional deve controlar casuisticamente a liberdade de conformação legislativa, de modo alargado ou ampliado, não parecendo haver obstáculos à apreciação do mérito intrínseco das medidas vertidas no Decreto, sob qualquer aspecto).
Aliás, a posição que se está a definir com este acórdão, e que não se revê na anterior jurisprudência (mesmo com o citado acórdão nº 142/85), desvirtua o sentido nobre e essencial das funções do Tribunal Constitucional – ser o juiz do legislador – e “rebaixa-se” ao nível do STA, quando se quer controlar apenas as situações de erro manifesto, manifesta desadequação ou manifesta incongruência, perante as justificações dadas pelo Governo – no fundo, sobre se elas são ou não absurdas – e isto é o que faz o STA nos casos de utilização de discricionariedade técnica ou uso de conceitos indeterminados por parte de
órgãos administrativos, ao tomarem as medidas administrativas.
E também abre a porta futuramente a todas as medidas que um governo de gestão queira tomar, mesmo de carácter inovador, bastando que haja cuidado em apresentar justificações minimamente acertadas, adequadas e congruentes, isto é, justificações que não sejam absurdas (o que vai contra o sentido restrito do nº
5 do artigo 186º).
Portanto, girando o eixo da solução nos limites dos poderes de controlo do Tribunal Constitucional, deixa de ter interesse a aplicação do critério de inadiabilidade ou urgência que não pode deixar de se ligar à necessidade – e aceito que seja o único critério relevante - , porque o Tribunal Constitucional vai ter de dizer, sempre que haja uma boa resposta do Governo, que o acto é inadiável, pois tem que ser aferido o critério pela resposta.
3. Ora, na linha do memorando, o ponto fundamental a tratar consiste em saber se, à luz dos indicadores apontados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, convergindo no tal “critério decisivo” de que se fala no acórdão, em aplicação do nº 5 do artigo 186º da Constituição – e não se vê razão para dela divergir –, tem de se dar como justificada a “estrita necessidade” de, no mencionado contexto legislativo vigente, o Governo emitir a regulamentação constante do Decreto em causa, mesmo tendo em conta a exposição de motivos que decorre do preâmbulo do Decreto, que é o momento relevante da justificação da actividade legislativa..
São fundamentalmente dois os pólos da discussão que não pode deixar de fazer-se:
_ um que se relaciona com a estrutura organizatória e de funcionamento dos estabelecimentos hospitalares em geral e dos centros de saúde,
_ outro que se prende com a regra de “contratação de bens e serviços, pelos estabelecimentos hospitalares”
Começando pelo primeiro polo, pode desde já adiantar-se que nem a importância dos interesses em causa, nem a inadiabilidade, podem justificar as alterações legislativas pretendidas levar a cabo pelo Governo com o Decreto (e elas são, na linguagem do acórdão, “alterações consideráveis, a aplicar à generalidade dos hospitais e dos centros de saúde”, significando o regresso subversivo ao modelo de 1988, com a supressão até da audição da “comissão médica” e da “comissão de enfermagem”, prevista nos artigos 12º, nº 1, e 14º, nº 1, do Decreto Regulamentar nº 3/88).
Na verdade, atendo-nos àquela exposição de motivos, vê-se que a invocada
“urgência na agilização da gestão dos hospitais, e na eliminação dos constrangimentos existentes que dificultam o referido objectivo, designadamente dos resultantes do actual regime de designação dos directores clínicos e dos enfermeiros directores”, nem assume uma importância significativa, nem se revela inadiável.
É que, a actual estrutura organizatória e de funcionamento dos estabelecimentos hospitalares em geral e dos centros de saúde é regida por normas sedimentadas há vários anos, correspondendo, aliás, a um objectivo constitucionalmente definido de participação dos profissionais de saúde nos interesses que lhes dizem respeito, que se extrai, v.g., dos artigos 2º, 9º, c), 48º e 64º, nº 4, e indo ao encontro do Programa do XIII Governo Constitucional, no qual, no capítulo da política de saúde, se previa a revisão do estatuto dos hospitais e centros de saúde, “com vista a uma maior autonomia de gestão, abrangendo o modelo organizacional (...)” – cfr. Diário da Assembleia da República, II Série A – nº
2, de 8 de Novembro de 1995 (cfr. ainda Revista da Ordem dos Médicos, Janeiro e Fevereiro de 1996).
Não é, assim, indispensável, nem inadiável, um acto legislativo que iria fazer regressar o modelo basicamente à fórmula anteriormente em vigor, contida nos artigos 12º e 14º do citado Decreto Regulamentar nº 3/88, de 22 de Janeiro, ao arrepio daquela participação dos profissionais de saúde (deixa de prever-se a audição do conselho médico e do conselho de enfermagem) e um novo governo constitucional, em plenitude de funções, pode querer reapreciar a matéria até noutros termos diferente do Decreto, sendo certo que se reconhece estarem em curso “trabalhos preparatórios conducentes à alteração das normas de gestão hospitalar”. Não pode, pois, concluir-se que a emissão de tal acto venha afectar de forma relevante a gestão dos negócios públicos, no domínio da saúde ora em causa, sendo, pelo contrário, conveniente deixar a resolução do assunto para o novo governo, aproveitando aqueles “trabalhos preparatórios” (dizer-se como se lê na resposta do Primeiro Ministro, que “não se limitam os poderes de decisão política do futuro Governo”, pois “este bem pode, em todos os domínios, regressar ao regime anterior, se o entender”, é reconhecer que este “jogo do empurra”, este “arrepiar caminho” no processo legislativo só pode desestabilizar uma situação que se vem mantendo nestes últimos anos).
Mas também dessa resposta, apesar do esforço argumentativo que se usa, não se colhe diferente perspectiva sobre a importância significativa dos interesses em causa, nem sobre a referida inadiabilidade.
Efectivamente, a resposta inscreve-se na linha da exposição de motivos constante do preâmbulo do Decreto, acentuando-se que “é no domínio da racionalidade da gestão que se situa a homogeneização das administrações dos serviços de saúde, bem como a simplificação e também nalguma medida homogeneização dos conselhos técnicos dos hospitais” e centrando a atenção, no essencial, na demonstração de que é “impossível ao Governo cumprir, no domínio da saúde, quer o Orçamento do Estado, quer o que consta do Programa de Estabilidade e Crescimento para
2002-2005 (...) apresentado à União Europeia em Dezembro de 2001” e de que é
“absolutamente urgente lançar mão de mecanismos destinados a resolver as dificuldades financeiras que o sector público da saúde enfrenta e que permitam pôr cobro aos desperdícios que se verificam” (segue-se a demonstração, incluindo quadros que “dão conta da elevada expressão do financiamento dos hospitais no interior do Serviço Nacional de Saúde” e que o “crescimento do défice dos hospitais tem sido exponencial desde 1996, apesar das fortíssimas operações de regularização da dívida empreendidas em 1999 (277 milhões de contos) e 2001 (290 milhões de contos)”, além de quadros sobre a evolução dos gastos com medicamentos nos hospitais (1996-2001) e sobre o investimento hospitalar financiado pelo Orçamento Ordinário).
Tudo isto para suportar duas afirmações essenciais:
_ a de que os “membros nomeados respondem directamente perante quem os nomeia, em última análise o Governo, a quem cabe a definição do interesse público na gestão dos assuntos da saúde; os membros eleitos, embora possam e devam assumir o interesse público, são sempre, pela própria lógica da sua designação, mais ou menos vulneráveis aos interesses directos ou indirectos de quem os elege, interesses não poucas vezes contraditórios com o interesse público e dificilmente a sua escolha terá algo a ver com razões de modernização e inovação gestionária”,
_ a de que “há uma correlação directa entre a passagem de nomeação a eleição dos responsáveis hospitalares em causa e o descontrolo das despesas; com efeito, desde que a nomeação foi substituída pela eleição, os estabelecimentos passaram a acumular défices enormes e muitas vezes inexplicáveis, a despender cada vez mais recursos em medicamentos ( a factura farmacêutica duplicou em poucos anos) e a realizarem, sem submissão ao planeamento, obras dispendiosas, por vezes de prioridade discutível, mas consideradas indispensáveis para os equilíbrios internos de poder, com obras muitas vezes pagas pelo orçamento corrente, e ficando frequentemente por despender recursos do PIDAC e até do Quadro Comunitário de Apoio”.
O eixo fundamental de toda essa argumentação radica “no puro domínio da gestão e da sua racionalização, com fortíssima incidência orçamental, ao nível da redução drástica de desperdícios”, pretendendo relacionar-se isso com a conclusão de que
“a alteração de designação aprovada tem virtualidades de contribuir decisivamente para modificar os dados”.
Todavia, e dando mesmo de barato o acerto das demonstrações feitas pelo respondente, o certo é que é virtual o resultado, na óptica económico-financeira, da “experiência” que se pretende levar a cabo com mais esta alteração do quadro da organização e do funcionamento dos estabelecimentos hospitalares em geral e dos centros de saúde (“É uma experiência realizada no passado, com melhores resultados do que a actual, e é uma experiência actual nos três hospitais já referidos [Hospital de S. Sebastião, a unidade de Saúde Local de Matosinhos, que integra o Hospital de Pedro Hispano e o Hospital do Barlavento Algarvio], com bons resultados que se pretende generalizar” – lê-se na resposta). E, portanto, nem a omissão das soluções legislativas propostas no Decreto, na conjuntura actual, afecta de forma relevante a gestão dos negócios públicos, por que há soluções em vigor – ainda que possam parecer menos rentáveis – e aplicadas no dia a dia, nem é impossível, sem grave prejuízo, deixar a resolução do assunto para o novo governo (a tese do acórdão sobre a “relação de causalidade” entre a alteração legislativa operada em 1996 e
“o descontrolo da despesa e do défice acumulado dos hospitais, do aumento substancial dos gastos excessivos e do desperdício”, além de significar um labéu para os profissionais de saúde, é desacompanhada de qualquer tipo de demonstração, aceitando-se como boa a resposta do Governo).
Aliás, se se reconhece na resposta que “logo no debate na generalidade sobre o Orçamento de Estado e as Grandes Opções do Plano para 2002, o Ministro da Saúde, em discurso proferido no dia 8 de Novembro de 2001 na Assembleia da República, enunciou, entre outras medidas de que lançaria mão para controlar a despesa e o nível do défice, a alteração da forma de designação em relação aos membros eleitos dos conselhos de administração (Diário da Assembleia, nº 21, de 9 de Novembro de 2001, pág. 794)”, então o Governo dispôs de tempo suficiente para lançar mão dessas medidas, antes de consumada a sua demissão, se era assim tão urgente lançá-las.
Por último, o apelo ao citado Programa de Estabilidade e Crescimento para
2002-2005 não é de modo algum decisivo, pois trata-se de um Programa, com o cariz de mero compromisso político, e nem sequer é realçada nele a urgência das medidas a tomar na área da Saúde, ainda que medidas prioritárias, no âmbito de
“compromisso assumido em nome da consolidação de médio prazo das finanças públicas, tal a sua relevância financeira para conter gastos” (sublinhado nosso).
Resta, por fim, o segundo pólo, tendo a ver com a flexibilidade do regime de contratação de bens e serviços, aproximando-o do regime de direito privado.
Aqui avulta decisivamente a vertente económica-financeira, com o objectivo do cumprimento dos orçamentos, mas a resposta não pode ser diferente da apontada relativamente ao primeiro pólo.
Valem, pois, as mesmas razões que já se adiantaram, não ocorrendo aqui também os mesmos indicadores em que se apoia a jurisprudência constitucional.
A exposição de motivos que consta do preâmbulo do Decreto e a resposta do Primeiro Ministro assentam essencialmente na afirmação dos “resultados positivos” desse regime nos três hospitais atrás identificados, mas avançando só com a “experiência colhida do Hospital de São Sebastião” (e o quadro apresentado pretende ilustrar os “custos totais, de produtos farmacêuticos e de material de consumo diário, por doente tratado, no H. S. Sebastião e demais H. Distritais” e nem todos estes). E de novo no acórdão aceita-se como boa “a justificação apresentada pelo Governo” e acolhe-se de forma acrítica aquela experiência, sempre dentro “dos limites em que se deve conter a apreciação do Tribunal Constitucional”.
Ora, nem é “urgente generalizar o tipo de mecanismos utilizado pelo Hospital de São Sebastião”, como se ele fosse um modelo óptimo, nem “a medida é comprovadamente importante para os resultados que se pretendem”, como se lê na resposta. Assim, e contrariamente ao afirmado nessa resposta, não é o “decreto ora em causa (...) adequado e importante para o importante fim a atingir”, nem
“se apresenta agora como inadiável, sob risco de grandes prejuízos”.
Tanto mais que, se assim fosse, uma solução do tipo do artigo 6º do Decreto podia ter sido perfeitamente incluída no Orçamento de Estado para 2002, dado o seu carácter eminentemente económico-financeiro, e tal não aconteceu.
Tudo somado, e sob todos os aspectos em causa, não se adequam as medidas legislativas aos poderes limitados de um governo de gestão, como é o Governo agora demitido (um governo carecido já de legitimidade política e democrática, com capacidade substancialmente diminuída).
Na linguagem impressiva do acórdão nº 407/89, publicado no Diário da República, II Série, nº 212, de 14 de Setembro de 1989, terá de se concluir no sentido da violação da norma do artigo 186º, nº 5, da Constituição, “por não se observarem, ou ao menos não serem visíveis no plano dos sucessos da vida pública, razões imperiosas de ordem temporal e material” que de todo em todo tornem inadiável a emissão pelo Governo agora demitido de normas como as do questionado Decreto.. Guilherme da Fonseca
Declaração de voto
Votei vencida por não poder aceitar que numa matéria em que estão em causa opções políticas relacionadas com a participação dos médicos e enfermeiros na gestão de hospitais e centros de saúde bem como com a adopção de procedimentos excepcionais de gestão privada - e não meras opções técnicas politicamente neutras - se considerem como demonstradas (ainda para mais ex ante) relações de causalidade entre tais opções e os resultados de interesse público pretendidos.
Assim, o Acórdão assenta num equívoco: por um lado, admite como suficientemente demonstrado que há uma relação de causalidade entre as medidas legislativas em análise e os resultados orçamentais pretendidos - o que implica aceitar, obviamente, que estas medidas são condição sem a qual (conditio sine qua non) os resultados não se obterão (ou até mais estritamente causa adequada dos mesmos) e não haverá consequentemente alternativas (não serão medidas fungíveis) - e, por outro lado, afirma que o carácter estritamente necessário das medidas nada mais é, do ponto de vista do juiz constitucional, do que a sua não manifesta inadequação - o que significa colocar-se num plano de probabilidade ou de possibilidade, que já nada tem a ver com a causalidade e que comporta alternativas.
A estrita necessidade é, pois, entendida, por um lado, como causalidade (a causalidade que se considera demonstrada pelo Governo) e, por outro lado, como não manifesta inadequação, ou seja, possibilidade. E ambas são sustentadas por algumas experiências anteriores tidas como positivas e por argumentos do tipo de que os directores clínicos eleitos tendem a permitir o desperdício porque se orientam por uma motivação de satisfação de clientelas e de reeleição e não pelo interesse público (argumentos cuja racionalidade, a ser incontestada, provariam contra a própria democracia em geral).
Ora, nem a causalidade se pode considerar demonstrada a partir deste tipo de argumentos (que, aliás, privilegiam a forma de gestão sobre a legitimação do seu conteúdo e limites), nem se divisa que uma tal “causalidade” tenha demorado tantos anos a ser descoberta, nem a manifesta não inadequação significa, para a linguagem comum, para a linguagem das ciências ou para a linguagem do Direito, estrita necessidade.
O Tribunal, ao seguir este rumo, minimizou os seus poderes de controlo de constitucionalidade com o argumento de não se poder substituir em matéria de opções políticas ao Governo deslegitimado pela demissão, mas ao fazê-lo permitiu, também, que o conceito de estrita necessidade seja controlado pelo que considera coerência interna do discurso do Governo e pelas respectivas opções políticas e não por critérios objectivos - ampliando, assim, os poderes constitucionais do Governo demitido.
Diferentemente, a única forma de o Tribunal exercer os poderes de controlo que lhe são cometidos (e não de opção política que não possui), próprios da sua competência e decorrentes do próprio artigo 168º, nº 5, da Constituição, é a utilização de um conceito de estrita necessidade não condicionado por opções políticas prévias, independente e objectivo. Tal só pode acontecer, exigindo-se que sejam demonstradas pelo Governo (ónus da prova do Governo) - numa demonstração com validade não meramente dentro de um discurso, mas com validade objectiva - a estrita necessidade e a urgência. Que assim deva ser, é imposto pelo facto de o Governo demitido não ser já objecto de controlo parlamentar e de a sua legitimação democrática estar enfraquecida, como, aliás, o Tribunal entendeu no Acórdão nº 36/2002, de 30 de Janeiro.
De resto, haverá uma certa inconsistência e falta de sentido das proporções, no facto de se ter seguido um critério rigoroso quanto ao momento de caducidade das propostas do Governo aprovadas pela Assembleia, remetendo-o para a data do acto de aceitação da demissão pelo Presidente da República (e não para a da publicação do Decreto de aceitação), por razões de “deslegitimação do Governo demitido”, e simultaneamente admitir-se um controlo minimalista das medidas legislativas do mesmo Governo demitido. A exigência de uma renovação das propostas já aprovadas pela Assembleia, após a aceitação da demissão do Governo, mas antes da publicação do referido Decreto de aceitação da demissão, torna-se, assim, uma exigência formal e burocrática porque o crivo a que serão submetidas tais medidas é excessivamente amplo. De qualquer modo, e para além da objecção de princípio que enunciei, não me parece sequer que, mesmo numa lógica de congruência e coerência interna do discurso, tenha sido demonstrada cabalmente a estrita necessidade, por várias razões:
1ª. Na sua resposta, o Governo considera simultaneamente inadiáveis as medidas legislativas em questão e não comprometedoras da alternância democrática, por não impossibilitarem uma alteração das mesmas pelo Governo resultante de próximas eleições (o que é incongruente, já que uma mudança de modelos de gestão no espaço de meses seria profundamente perturbadora);
2ª. O Governo considera a medida inadiável temporalmente, mas não a impõe imediatamente nos casos em que estejam ainda em curso mandatos (como, aliás, o não fez, antes, logo após a aprovação do Orçamento);
3ª. O Governo não faz acompanhar a medida de critérios materiais de gestão, limitadores do desperdício e de má gestão, o que torna plausível a persistência do problema (má gestão e desperdícios) com outros actores e outros métodos.
Em suma:
1º. As medidas legislativas agora submetidas ao controlo prévio de constitu- cionalidade deste Tribunal são passíveis de censura porque implicam uma opção política - boa ou má - mas sempre confrontável com alternativas, como o próprio Governo reconhece, referindo-se a futuros governos, em matéria de gestão hospitalar;
2º. Tais medidas não constituem, por isso mesmo, um passo obrigatório que seria dado por qualquer governo, independentemente do seu programa e opções em matéria de política de saúde (o que, de resto, se demonstra, empiricamente, pela consulta do programa do próprio Governo);
3º. As referidas medidas justificam-se, verdadeiramente, num plano de uma certa racionalidade financeira, mas não de estrita necessidade, faltando demonstrar que são as únicas susceptíveis de reduzir o déficite na área da saúde
- até porque são apenas medidas formais, relativas a quem gere e ao modo de gestão e não aos conteúdos da mesma.
4º. O Tribunal Constitucional comprime os seus próprios poderes ao entender que basta um discurso de verosimilhança do Governo para que se considere demonstrada a estrita necessidade das medidas;
5º. Simultaneamente, o Tribunal Constitucional amplia os poderes de um Governo demitido, ao sustentar aquela tese da suficiência da verosimilhança da necessidade das medidas e ao dispensar o “ónus da prova”, isentando o autor das medidas de demonstração objectiva (e situada acima da opção política) da sua estrita necessidade;
6º. É pouco congruente com os fundamentos do Acórdão nº 36/2002, a tese em que assenta este Acórdão, na medida em que o estabelecimento de uma fronteira rígida para a validade das leis aprovadas por uma Assembleia em funcionamento, após a data de aceitação da demissão do Governo, mas ainda antes da publicação do Decreto de aceitação da demissão, se justifica por uma ideia forte de enfraquecimento da legitimidade democrática do Governo, cujas propostas caducam mesmo sendo aprovadas pela Assembleia antes da publicação do Decreto de aceitação da demissão, e se admite, simultaneamente, que o Governo demitido e já sem qualquer funcionamento da Assembleia introduza alterações legislativas dependentes de opção política a partir de uma lógica interna de discurso sobre a estrita necessidade.
7º. Todas estas afirmações não significam, obviamente, qualquer apreciação sobre a bondade da opção política espelhada nas medidas legislativas sujeitas ao controlo prévio de fiscalização de constitucionalidade normativa nem o Tribunal estaria a fazer tal apreciação ao declarar, como deveria ter feito, a inconstitucionalidade do diploma em apreciação.
Finalmente, resta-me acrescentar que estas críticas não me levam a ter de concluir que um governo demitido seja um governo de pura gestão, num sentido corrente do Direito e sobretudo do Direito Privado. A estrita necessidade que a Constituição prevê ultrapassa esse sentido e abre-se não só a uma ideia de gestão própria destas situações excepcionais e transitórias como ainda à aceitação da legitimidade da adopção de medidas legislativas de fundo, em casos de objectiva demonstração da estrita necessidade, logicamente excepcionais ou de decisão absolutamente consensual.
Maria Fernanda Palma