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Processo n.º 776/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrida B., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 23 de fevereiro de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 604/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem, para o que agora releva, a seguinte fundamentação:
«Constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, entre outros, a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente e a suscitação prévia e de forma adequada da questão de inconstitucionalidade posta no requerimento de interposição.
1. O recorrente pretende a apreciação das normas do «n.º 1 do art.º 1817, do CC, ex vi do art.º 1873 do mesmo Código, bem como dos art.ºs 12, nº 1 e 13, nº 1, do CC, no sentido em que se considera (…) por um lado e no período posterior à prolação pelo TC do douto Acórdão nº 23/06, que a norma do n.º 1 do art.º 1817 do CC permite o exercício do direito de investigação à paternidade mesmo nas situações em que, ao abrigo da redação dessa mesma norma anterior à prolação do sobredito douto Acórdão, se havia já esgotado o prazo de caducidade então previsto para o efeito, isto é, a situações já consolidadas ao abrigo da regulamentação legal então vigente».
Sucede, porém, que para decidir como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou esta norma, devendo dizer-se, desde logo, que o teor verbal daqueles preceitos legais nem sequer suporta aquele enunciado. Com efeito, a norma aplicada pelo tribunal recorrido, como razão de decidir, foi o artigo 282.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Na falta de um dos requisitos do recurso interposto, não pode tomar-se conhecimento do mesmo, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
(…)
3. O recorrente pretende ainda a apreciação da constitucionalidade das normas do «nº 1 e 2 do art.º 519 do CPC e art.ºs 344º nº 2 e 257º nº 2 do CC, no sentido em que se considera que a recusa do investigando em realizar exames hematológicos de pesquisa de ADN – designadamente participando na recolha do seu material biológico – e não estando requerida a produção de qualquer outro meio de prova ou de realização desse exame tendo em vista a denominada prova direta importa – sem prejuízo das questões relativas à culpa na recusa – [tem] como consequência automática a inversão do ónus da prova».
Sucede, porém, que, durante o processo, o recorrente não questionou a conformidade constitucional desta norma. Não o fez quando alegou no recurso subordinado por si interposto, nem tão-pouco quando contra-alegou na revista interposta pela recorrida. Neste momento processual limitou-se a argumentar contra a inconstitucionalidade normativa alegada pela autora no recurso de revista, a qual tinha a ver com a não inversão do ónus da prova, face ao que havia sido decidido pelo Tribunal da Relação do Porto.
Na falta de um dos requisitos do recurso interposto, não pode tomar-se conhecimento do mesmo, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1- A Exmª Senhora Juíza Relatora decidiu pela não admissão do recurso interposto para este Venerando Tribunal, considerando-o inadmissível porquanto:
a. Quanto ao invocado no ponto I do recurso, pela afirmada circunstância do STJ não ter aplicado as normas dos art.ºs 1817 nº l do CC e dos art.ºs 1 2º e 13º do CC, no sentido em que no período posterior à prolação pelo TC do douto Acórdão nº 23/06, a norma do n.º l do art.º 1817 do CC permite o exercício do direito de investigação à paternidade mesmo nas situações em que, ao abrigo da redação dessa mesma norma anterior à prolação do sobredito douto Acórdão, se havia já esgotado o prazo de caducidade então previsto para o efeito, isto é, a situações já consolidadas ao abrigo da regulamentação legal então vigente;
b. Quanto ao ponto II do recurso interposto - inconstitucionalidade das normas dos nº 1 e 2 do art.º 519 do CPC e art.ºs 344º nº 2 e 257º nº 2 do CC, no sentido em que se considera que a recusa do investigando em realizar exames hematológicos de pesquisa de ADN – designadamente participando na recolha do seu material biológico – e não estando requerida a produção de qualquer outro meio de prova ou de realização desse exame tendo em vista a denominada prova direta importa – sem prejuízo das questões relativas à culpa na recusa – como consequência automática a inversão do ónus da prova – pela circunstância do recorrido não ter suscitado durante o processo a constitucionalidade dessas normas, mas apenas aflorado tais questões a título argumentativo na contra-alegação ao recurso interposto pela Autora perante o STJ.
2 - Decisões, doutas, com as quais o recorrente não se conforma e, por isso, delas reclama pela presente.
3 - No que tange ao indeferimento do recurso respeitante ao seu ponto II, descrito na alínea b) supra, crê o reclamante resultar dos autos que não se limitou ele a, apenas, aflorar tal questão na contra-alegação apresentada em Juízo em resposta às que a Autora produziu no recurso de Revista que interpôs.
4 – Efetivamente a Autora da ação suscitou no recurso de Revista que interpôs, entre outras, a questão de que as instância deveriam – em face de ter sido dada como assente a ocorrência do Réu e ora recorrente se ter recusado a comparecer e em realizar os exames hematológicos ordenados - ter julgado imediata e automaticamente invertido o ónus da prova que, na sua tese, importaria a irremediável procedência da ação.
5 - Para além das questões relativas à necessidade de demonstração da culpa para poder ser alcançada a inversão do ónus da prova que a Autora propugnava - e que se suscitaram nas páginas 41 a 43 da contra alegação a tal recurso -, a verdade é que na resposta e contra-alegação ao recurso de Revista interposto pela Autora, o recorrente expressamente alegou que, in casu, mesmo a demonstrar-se a existência de recusa culposa e ilegítima do Réu na submissão ao referido exame, não se poderia considerar invertido o ónus da prova sem que estivesse demonstrado que dessa recusa adviesse a impossibilitação da realização, pela autora, da prova direta da filiação.
6 - Tal como alegou e invocou, expressamente, nas páginas 44 a 54 da contra-alegação a esse recurso que existindo, como existem, outros meios de obtenção da prova direta da filiação – através de exames hematológicos – que não pressupõem a colaboração do Réu e investigado, a inversão do ónus da prova apenas fundada na recusa em comparecer e efetuar ao exame, equiparando e fazendo equivaler à recusa a demonstração da impossibilitação da prova direta, viola e fere diretamente os princípios de ordem pública que subjazem quer à norma do art.º 344º do CC, quer às normas legais e constitucionais que sufragam o primado da verdade biológica – art.ºs 26 e 36º da CRP - cfr. pag. 45 da contra-alegação do recurso.
7 - Daí que afirmou que a interpretação e entendimento sufragado pelo STJ nos Acs. de 23/10/2007 e 2/2/2010 citados a pags 46 da contra-alegação de recurso – no sentido de considerar que a recusa à submissão aos exames deveria ser, tão só, livremente apreciada pelo tribunal era o conforme à lei e aos princípios constitucionais que impõe e determinam que a paternidade se estabeleça de acordo com a filiação biológica – cfr. Pag. 46 da contra-alegação.
8 - Entendimento e questão que reiterou a fls 61 e 62 das contra-alegações em resposta à inconstitucionalidade que a Autora invocara ferir o entendimento das instâncias em relação às normas dos art.ºs 519 do CPC 344º do CC.
9 - Pois, aí, mais uma vez, expressamente alegou que esse entendimento das referidas disposições – que a autora sufragava, e veio a ser sufragado pelo STJ – violava diretamente as disposições do art.º 26º da CRP.
10 – Ora, a verdade é que, até à prolação do douto Acórdão do STJ objeto de recurso para este Tribunal, nenhuma das decisões judiciais anteriormente proferidas pelas instâncias havia subscrito tal entendimento, já que nem a 1ª Instância, nem a Relação do Porto haviam decidido que a não comparência e/ou recuso do recorrente em comparecer ao exame em apreço importava, sem mais, e especialmente, sem demonstração de por isso ter ficado impossibilitada a prova à autora, a inversão do ónus da prova.
11 - Pelo contrário, o que tais instâncias decidiram foi que tal recusa deveria ser, como foi, livremente apreciada, pelo Tribunal. Por
12 - Por tal razão, até à prolação do douto Acórdão do STJ, não teve o Recorrente razão, fundamento ou oportunidade para suscitar judicialmente a sindicação do entendimento ora em causa.
13 – Não obstante, o recorrente, por cautela de patrocínio, e prevenindo a hipótese do STJ não confirmar o entendimento das instâncias, suscitou expressamente a questão da inconstitucionalidade do entendimento das referidas normas que acabou por ter vencimento nesse Supremo Tribunal. 14 - Questão que, assim, foi expressamente colocada pelo Recorrente ao STJ, pela única forma processualmente admitida e possível, isto é, na contra-alegação do recurso de revista interposto pela Autora.
15 - Pois repisa-se, não havia, nem houve durante a tramitação do processo, qualquer decisão tomada no sentido que acabou por ter vencimento no STJ da qual o recorrente pudesse, ainda que subordinadamente, ter recorrido por forma a, nessa peça, ter suscitado a questão em via de recurso por si interposto.
16 - Circunstância que não invalida, nem implica, data vénia, que a questão da inconstitucionalidade do entendimento das normas dos art.ºs 519º do CPC, 344º nº 2 e 257 nº 2 do CC não tivesse sido colocada perante o STJ por forma a que este Tribunal as conhecesse, como, de resto, acabou por conhecer ao decidir, na definição do direito aplicável – art.º 730º nº 1 do CPC –, estarem na hipótese dos autos reunidos todos os pressupostos (fazendo equivaler a recusa à demonstração da impossibilitação da prova) para ocorrer a inversão do ónus da prova, com exceção do caráter culposo da conduta do Réu – fls 13 do douto Ac. do STJ objeto de recurso.
17 - Desta forma, não foi acertada a decisão tomada pela Exmª Senhora Juiz Relatora ao não admitir, neste segmento, o recurso interposto.
18 – De resto, este Venerando Tribunal, no seu douto Acórdão de 22-11-1994, publicado em www.dgsi.pt, pronunciou-se no sentido de que “o pressuposto da admissibilidade do recurso previsto no artigo 70, n. 1, b), da Lei do Tribunal Constitucional, consistente em a inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o processo”, deve ser tomado “não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade) ”, mas num “sentido funcional”, tal que “essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal “a quo” ainda pudesse conhecer da questão”.Ou
19 – Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade respeita e, por isso, há de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são lá, em principio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade.
20 - Sendo certo que, nesse douto Acórdão, se sustenta que a referida orientação sofre restrições em situações excecionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final.
21 – E, ainda no mesmo douto Acórdão, expressamente se refere e admite que o recorrente dispôs de oportunidade processual, pelo menos nas contra-alegações ao recurso interposto pelo Ministério Público para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de maio de 1991, para suscitar a questão de inconstitucionalidade.
22 - Assim admitindo este Venerando Tribunal que a suscitação da questão da inconstitucionalidade em sede de contra-alegações é bastante para se ter por verificado o requisito de admissibilidade ínsito nos art.ºs 70º e 75-A da LTC.
23 - De resto, e a acrescer, também no douto Acórdão deste Tribunal de 03-03-1993, publicado em www.dgsi.pt, se decidiu que independentemente da formulação verbal utilizada, tendo sido questionada a conformidade constitucional da interpretação de uma norma na sua aplicação ao caso concreto na decisão recorrida, esta questão tem sido entendida como questão de constitucionalidade da competência do Tribunal Constitucional e daí que se considere verificado o pressuposto do recurso de constitucionalidade de suscitação da inconstitucionalidade de uma norma jurídica, na interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido.
24 - Tudo o que, com o devido respeito, que é muito, concorre e determina a revogação da douta decisão liminar proferida e, em consequência, ser admitido o recurso interposto neste segmento.
25 - No que respeita à decisão tomada quanto ao ponto I do recurso, crê também, com o devido respeito, não ter sido acertada a decisão tomada pela Exmª Senhora Juiz Relatora.
26 - Na verdade, a questão que o Recorrente introduziu em juízo desde a contestação apresentada, passando pelo recurso de apelação interposto e finalizando no recurso de revista subordinado, foi a da desconformidade da desaplicação (por inconstitucionalidade) da norma do art.º 1817º nº 1 do CC nas situações que se haviam já consolidado na ordem jurídica aquando da prolação do Ac. 23/06 do TC.
27 - Efetivamente, alegou o Recorrente no recurso de Revista subordinado que interpôs que a ação contra si intentada era intempestiva, interposta fora de prazo e, consequentemente, caduca, porquanto, à data da sua propositura, designadamente em 30 de janeiro de 2006, já haviam decorrido oito anos após a maioridade e seis anos após o decurso do prazo legal para o exercício do seu direito de investigar a paternidade.
28 - Sustentando nesse recurso de Revista, subordinado, tal como já efetuara na contestação e no recurso de Apelação que interpusera da decisão proferida no Despacho Saneador, que a norma do nº 1 do art.º 1817º do CC que prescrevia o prazo de dois anos para a intentação das ações visando o estabelecimento da paternidade, deveria ser aplicada e considerada na hipótese dos autos.
29 - Isto porque, em momento muito anterior à intentação da ação e à prolação do douto Acórdão deste Tribunal nº 23/2006, que decretou a inconstitucionalidade dessa norma com força obrigatória geral, já se havia completado e esgotado o prazo previsto nessa norma para o efeito e, consequentemente, já se havia extinto o direito da autora a essa investigação.
30 - Invocando o recorrente que o decurso completo desse prazo de caducidade no domínio da vigência da norma do nº 1 art.º 1.817º do CC definiu e consolidou essa relação e direito, tornando-a incontrovertível e imutável, em duas perspetivas:
- uma respeitante à autora, determinando a extinção definitiva e irremediável do direito à investigação da sua paternidade;
- outra respeitante ao Recorrente, no sentido de não poder mais ser demandado, obtendo assim a garantia de estabilidade, firmeza, solidez da paz e harmonia da família conjugal por si constituída, valores que o ordenamento jurídico constitucional igualmente acolhe, preza e protege como direitos fundamentais.
31 - Sustentando, assim, o Recorrente que o decurso completo e sem interrupções do prazo de dois anos fixado pelo artigo 1817º do CC antes da publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional 23/06 produziu uma dupla consolidação na situação jurídica sub judice e, como tal, haveria que ser aplicada essa norma do nº 1 do art.º 1817º do CC para efeito de se ter por certa a caducidade do direito exercido pela Autora.
32 – Pois, conforme alegou o Recorrente no recurso de Revista subordinado, tal entendimento era imposto, sobre o mais, pelas disposições e princípios contidos nas disposições dos art.ºs 12º e 13º do CC.
33 – Alegando, ainda, expressamente, o Recorrente que a não aplicação dessas normas – dos art.ºs 1817º nº 1, 12º e 13º do CC – e a sufragação do entendimento de que o Acórdão nº 23/2006 apenas ressalvou do âmbito da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral as situações cobertas por caso julgado, violava as disposições e os princípios contidos no art.º 282º da CRP nº s 1 e 3, 2º (proteção da confiança), 26 e 36 da CRP.
34 - Sentido e entendimento que foram, efetivamente, sufragados e tomados na decisão proferida pelo STJ e objeto de recurso, porquanto ao decidir-se que apenas ficaram ressalvados do âmbito do Ac. 23/2006 os casos julgados, o STJ desaplicou e desconsiderou a norma do nº 1 do art.º 1817º do CC e as disposições dos art.ºs 12º e 13º do CC, e, como tal, decidiu-se pela não caducidade do direito de ação da autora, bem como pela não verificação da consolidação dessa situação invocada pelo arguido.
35 - Entendimento, acolhido nessa decisão, que o Recorrente expressamente invocara ser desconforme aos sobreditos preceitos e princípios Constitucionais.
36 - Sendo certo que a decisão tomada pelo STJ e objeto de recurso foi a de desaplicação das regras dos art.ºs 12º, 13º e nº 1 do art.º 1817º do CC, mas, de acordo com a posição sustentada pelo recorrente, em desconformidade com a norma do art.º 282º nº 3 da CRP e, também, com as normas e princípios contidos nos art.ºs 26 e 36 da CRP».
4. Notificada da reclamação, a recorrida respondeu, concluindo pela manutenção da decisão reclamada.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, na parte relativa à apreciação das normas do «n.º 1 do art.º 1817, do CC, ex vi do art.º 1873 do mesmo Código, bem como dos art.ºs 12, nº 1 e 13, nº 1, do CC, no sentido em que se considera (…) por um lado e no período posterior à prolação pelo TC do douto Acórdão nº 23/06, que a norma do n.º 1 do art.º 1817 do CC permite o exercício do direito de investigação à paternidade mesmo nas situações em que, ao abrigo da redação dessa mesma norma anterior à prolação do sobredito douto Acórdão, se havia já esgotado o prazo de caducidade então previsto para o efeito, isto é, a situações já consolidadas ao abrigo da regulamentação legal então vigente». Entendeu-se que não se podia dar como verificado o requisito da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de tal norma. A norma aplicada pelo tribunal recorrido, como razão de decidir, foi a do artigo 282.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, além de que o teor verbal dos preceitos legais convocados não suportava sequer aquele enunciado.
Para contrariar o decidido, o reclamante sustenta, fundamentalmente, que foi defendendo, durante o processo, a aplicação ao caso do disposto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação anterior à vigente, uma vez que já se havia completado e esgotado o prazo de dois anos aí previsto quando a norma foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral (Acórdão n.º 23/2006). Defendendo, concretamente, que «a não aplicação dessas normas – dos art.ºs 1817.º n.º 1, 12.º e 13.º do CC – e a sufragação do entendimento de que o Acórdão n.º 23/2006 apenas ressalvou do âmbito da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral as situações cobertas por caso julgado, violava as disposições e os princípios contidos no art.º 282.º da CRP nº s 1 e 3, 2.º (proteção da confiança), 26 e 36 da CRP» (itálico aditado).
Esta argumentação é demonstrativa de que a questão que pretendia colocar não se reporta a uma qualquer interpretação dos artigos 1817.º, n.º 1, e 12.º e 13.º do Código Civil (estes últimos regulam a aplicação da lei no tempo), insurgindo-se até por o primeiro, na redação anterior à vigente, não ter sido afinal aplicado. Reporta-se, antes, aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, «da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante» (Acórdão n.º 23/2006), face ao disposto no artigo 282.º, n.º 3, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa. Esta sim, a norma que o tribunal recorrido aplicou para decidir no sentido de ainda não ter decorrido o prazo para a proposição da ação de investigação de paternidade, tendo em conta a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão n.º 23/2006. Sobre a questão então posta pelo recorrente, lê-se o seguinte no acórdão recorrido:
«7 Pretende o recorrente que a declaração de inconstitucionalidade, aqui do prazo de caducidade do direito de ação, tem de respeitar, não só os casos julgados anteriores, como também as situações jurídicas que se tenham consolidado anteriormente, como era o caso dos autos, uma vez que o prazo de caducidade de dois anos para a ação ocorrera há mais de seis anos, antes daquela declaração.
Esta conceção vai contra norma expressa da Constituição o seu art.º 282 nº 3, que refere que ficam ressalvados da declaração de inconstitucionalidade os casos julgados, mais referindo, expressamente, as exceções a tal regra, as quais não se situam no campo do direito civil.
E acresce ainda que o nº 4 do mesmo preceito constitucional refere que o entendimento mais restrito dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade tem de ser objeto de decisão do próprio TC, que fixará, então, o alcance da declaração. Fora desta decisão não podem existir, pois, limites aos feitos da declaração de inconstitucionalidade.
Assim, apenas os casos julgados estão a salvo da declaração de inconstitucionalidade».
Em suma, é de concluir que a norma cuja apreciação foi requerida não foi aplicada pelo tribunal recorrido como ratio decidendi. Pelo que importa confirmar, nesta parte, a decisão que é objeto da presente reclamação.
2. Na decisão reclamada decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso, no que diz respeito às normas do «n.º 1 e 2 do art.º 519 do CPC e art.ºs 344.º n.º 2 e 257.º n.º 2 do CC, no sentido em que se considera que a recusa do investigando em realizar exames hematológicos de pesquisa de ADN – designadamente participando na recolha do seu material biológico – e não estando requerida a produção de qualquer outro meio de prova ou de realização desse exame tendo em vista a denominada prova direta importa – sem prejuízo das questões relativas à culpa na recusa – como consequência automática a inversão do ónus da prova». Entendeu-se que não se podia dar como verificado o requisito da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade colocada (alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC), considerando quer as alegações do recurso subordinado por si interposto quer as contra-alegações produzidas no recurso de revista interposto pela recorrida.
O reclamante argumenta que invocou expressamente que «a inversão do ónus da prova apenas fundada na recusa em comparecer e efetuar ao exame, equiparando e fazendo equivaler à recusa a demonstração da impossibilitação da prova direta, viola e fere diretamente os princípios de ordem pública que subjazem quer à norma do art.º 344.º do CC, quer às normas legais e constitucionais que sufragam o primado da verdade biológica – art.ºs 26.º e 36.º da CRP - cfr. pag. 45 da contra-alegação do recurso». Esta alegação não permite, porém, concluir que foi cumprido o ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade. Na passagem que identifica (e na peça processual globalmente considerada) não é acusada qualquer norma de inconstitucionalidade por referência aos artigos 519.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 344.º, n.º 2, e 257.º, n.º 2, do Código Civil. Na página mencionada sustenta-se que «o recurso à inversão do ónus da prova…» (itálico aditado) viola normas constitucionais que sufragam o primado da verdade biológica – artigos 26.º e 36.º da Constituição. Por outro lado, a alegação de que «o recurso à inversão do ónus da prova…» também viola e fere diretamente os princípios de ordem pública que subjazem à norma do artigo 344.º do Código Civil, confirma que o agora reclamante não colocou, afinal, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, por referência, entre outros, a este preceito legal. Situou a questão na violação do artigo 344.º do Código Civil.
Para contrariar o decidido, o reclamante socorre-se também das fls. 61 e 62 das contra-alegações, argumentando que alegou expressamente que o entendimento da autora em relação às normas dos artigos 519.º do Código de Processo Civil e 344.º do Código Civil, sufragado depois pelo Supremo Tribunal de Justiça, violava diretamente as disposições do artigo 26.º da Constituição. A passagem identificada, sob a epígrafe “Quanto à inconstitucionalidade”, foi a considerada na decisão reclamada, na qual se conclui que o ora reclamante se limitou então a argumentar contra a inconstitucionalidade normativa alegada pela autora no recurso de revista, a qual tinha a ver com a não inversão do ónus da prova.
Mais precisamente: a então recorrente alegou que «a interpretação dos art.ºs do C. P. Civil e 344.º n.º 2 do C. Civil, segundo a qual a ilícita recusa do investigando em fornecer material genético não lhe traz qualquer consequência negativa, atenta contra o princípio constitucional do direito à historicidade pessoal do art.º 26.º da Constituição»; e o então recorrido, ora reclamante, contra-alegou que «o entendimento que a Recorrente sufraga – de automatismo da inversão na hipótese de recusa – é que, ele sim, viola esse mesmo direito à historicidade pessoal do art.º 26.º da CRP».
Ora, o que acaba de se transcrever não permite concluir que foi suscitada previamente a constitucionalidade da norma cuja apreciação foi requerida – os n.ºs 1 e 2 do artigo 519.º do Código de Processo Civil e artigos 344.º, n.º 2, e 257.º, n.º 2, do Código Civil, no sentido em que se considera que a recusa do investigando em realizar exames hematológicos de pesquisa de ADN – designadamente participando na recolha do seu material biológico – e não estando requerida a produção de qualquer outro meio de prova ou de realização desse exame tendo em vista a denominada prova direta – sem prejuízo das questões relativas à culpa na recusa – importa como consequência automática a inversão do ónus da prova. E é assim, ainda que fosse admissível a forma de suscitação defendida pelo reclamante: suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa por remissão para o “entendimento” que a autora sufraga de determinados preceitos legais. Desde logo, porque o enunciado da norma cuja apreciação é pedida a este Tribunal é delimitado também em função de não ser requerida a produção de qualquer outro meio de prova ou de realização desse exame tendo em vista a denominada prova direta. Além de não haver qualquer menção ao artigo 257.º, n.º 2, do Código Civil na passagem das contra-alegações agora especificada pelo reclamante.
A argumentação no sentido de que a contra-alegação do recurso de revista interposto pela autora era a única forma processualmente admitida e possível para cumprir o ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade em nada abala o decidido. O fundamento da decisão reclamada foi apenas o incumprimento deste ónus.
Há que confirmar, pois, a decisão sumária objeto de reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 6 de fevereiro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.