Imprimir acórdão
Processo n.º 832/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do despacho, proferido pelo Tribunal Judicial de Braga, que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 27).
2. A reclamação para a conferência assume o seguinte teor:
«(...)
1 - O Tribunal a quo termina a sua apreciação do requerimento de recurso interposto pelo Arguido não o admitindo nos termos do disposto no artigo 76.º, n.º 2 da LTC;
2 - Com o devido respeito não se alcança quais dos fundamentos aí considerados relevaram para a decisão de não admissão;
3 - Pois que aquela norma remete para os requisitos, quer do artigo 75.º-A, quer do artigo 70.º da LTC;
4 – Desconhecendo-se clara e concretamente se a razão da inadmissibilidade se prende com aqueles, se com a decisão, se com a tempestividade ou a legitimidade;
5 - Diz-se que o Recorrente nunca suscitou a questão da constitucionalidade;
6 - Mas não se sabe se o Tribunal a quo não admite o recurso por via daquela omissão;
7 - Para mais que, fazendo-o, era mister que considerasse os fundamentos invocados pelo recorrente e se os considerava ou não;
8 - O que não sucedeu!
9 - Fundamentos que seria estultícia estar a repeti-los;
10 - Acresce que o despacho reclamado refere, ainda, que nada impede, mesmo quando admitidos atos de instrução, se possam vir a desconsiderar em face dos elementos probatórios;
11 - Esta referência é ininteligível à luz do que a jusante o Tribunal refere;
12 - Pois vem dizer que não é o caso dos autos!
13 De modo que se fica sem apreender a razão daquela primeira referência;
14 - Seja como for, uma leitura atenta do Requerimento de Recurso verificaria que o Recorrente aferiu a decisão instrutória de modo adequado, nomeadamente, a parte final de fls. 238;
15 - E em nada contende com tal;
16 - Está em causa, em concreto, a interpretação dos artigos 307.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1 do CPP no sentido de que pode, na decisão instrutória de pronúncia, ser ignorada e sem fundamentação parte de depoimento de testemunha sobre matéria inquirida e indicada em sede de instrução;
17 - E não ser desconsiderada qualquer ato de instrução ou, sequer, o depoimento de uma ou mais testemunhas como se refere no despacho reclamado;
18 - Na verdade - e o Recorrente disse-o - a questão prende-se com a matéria de facto sobre a qual testemunha respondeu;
19 - Sendo que foram inquiridas duas testemunhas em sede instrutória a vários pontos da matéria de facto tendo o Tribunal, apenas, se debruçado quanto a um facto - ponto 63 daquele Requerimento - nada dizendo quanto à sua análise do depoimento de uma das testemunhas indicada e a matéria muito mais ampla;
20 - O que o Tribunal a quo, no despacho recorrido expressa, só confirma a interpretação tida por inconstitucional;
21 - Conquanto ao remeter para a parte final de fls. 238 demonstra ter, apenas, feito apenas uma aferição à luz de um ponto da matéria de facto - o referido 63 - e não aos demais sem qualquer fundamentação.
(...)».
3. O reclamante foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de burla qualificada (artigo 218.º, n.º 1, do Código Penal), tendo na sequência requerido a abertura de instrução. A decisão instrutória confirmou o teor da acusação, daí resultando um despacho de pronúncia. Inconformado, o reclamante interpôs recurso de constitucionalidade, invocando a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal recorrido aos artigos 307.º, n.º 1, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “no sentido de que pode, na decisão instrutória de pronúncia, ser ignorada e sem fundamentação parte de depoimento de testemunha sobre matéria inquirida e indicada em sede de instrução”, por violação dos “princípios do Estado de Direito, de Defesa da Fundamentação e da Tutela Jurisdicional Efetiva.”
O Tribunal Judicial de Braga decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade interposto, argumentando que o “recorrente nunca suscitou a questão de constitucionalidade (o que reconhece com os fundamentos que invoca)”, sendo certo que, “para além do referido, podendo os atos de instrução ser indeferidos, sem possibilidade de recurso (havendo só reclamação), nos termos do artigo 291.º/2 do Código de Processo Penal, nada impede que, mesmo quando admitidos, o juiz, se assim posteriormente o entender, em face dos elementos probatórios constantes do processo, as possa vir a desconsiderar (o que não quer dizer que tenha sido o caso dos autos, e não foi, como se verifica de uma leitura atenta da decisão instrutória, concretamente fls. 238, parte final).”
Seguiu-se a reclamação cujos fundamentos agora se apreciam.
4. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu à reclamação apresentada, pugnando pelo seu indeferimento nos seguintes termos:
«(...)
1. A., interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da decisão instrutória que o pronunciou pela prática de um crime de burla qualificada.
2. Vendo o requerimento de interposição do recurso, ali não vem enunciada uma questão de inconstitucionalidade normativa, a única passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
3. O que o reclamante questiona sob “a capa” de uma “interpretação” dos artigos 307.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, do CPP é a valoração feita pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal da prova produzida no inquérito e na instrução, na qual foram ouvidas duas testemunhas.
4. Por outro lado, referindo-se o reclamante à inconstitucionalidade de não poder, na decisão instrutória de pronúncia, ser ignorada e sem fundamentação parte de depoimento de testemunha, nada, na decisão recorrida, permite tirar essa conclusão.
5. Na verdade, na motivação da decisão, consta uma análise cuidada das razões pelas quais se entendeu haver indícios da prática de crime, não se extraindo do ali afirmado, que não tivessem sido considerados todos os elementos de prova, designadamente os depoimentos das testemunhas inquiridas na instrução.
6. Assim, poderemos dizer que o que o reclamante afirma quando tenta enunciar uma questão de inconstitucionalidade, não tem correspondência no conteúdo e sentido da decisão recorrida.
7. Também com este fundamento, sempre seria de indeferir a reclamação.
(...)»
5. O recorrente/reclamante, notificado daquela resposta, perante a possibilidade de existir novo fundamento, apresentou a seguinte resposta:
«(...)
Ao invés do que o Ministério Público expressa no seu douto parecer o Recorrente nada questiona quanto à valoração da prova produzida;
Muito menos sob qualquer capa;
De resto, o que o Recorrente refere reposta-se à desconsideração sem fundamentação de parte de um depoimento;
Trata-se de um ato negativo ao invés de uma hipotética valoração que o não é;
Se o Tribunal a quo, sequer, fez qualquer valoração (e disse-o anteriormente o Recorrente para além de afirmar a falta àquele da fundamentação devida) fenece a alegada capa invocada no douto parecer;
Quanto ao entendimento de que existe pronúncia ignorando-se parte de depoimento de testemunha e sem fundamentação da decisão recorrida transcorre desta;
Contrariamente ao que evidencia a douta opinião a que ora se responde;
Como se deixou dito a montante está em causa a interpretação dos artigos 307.º, n.1 e 308.º, n.º 1 do CPP;
Interpretação no sentido de que pode, na decisão instrutória de pronúncia, ser ignorada e sem fundamentação parte de depoimento de testemunha sobre matéria inquirida e indicada em sede de instrução;
É claramente uma interpretação normativa;
Que decorre da decisão recorrida;
Claro está que o Tribunal a quo não o afirmou expressamente;
Isto é, não afirmou que desconsiderou parte do depoimento da testemunha e sem fundamentação interpretando aquelas normas no sentido de tal ser possível;
Nem invocou expressis verbis aqueles normativos;
Mas decorre – repete-se – da decisão, bem assim do despacho de não admissão, que o fez;
E não fora possível suscitar essa interpretação em razão de tal e fácil seria todos os dias fazer interpretações normativas inconstitucionais sem que fossem passíveis de sindicância;
Na decisão recorrida não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha considerado – valorando-o seja de que forma seja – o depoimento de uma das testemunhas a matéria indicada para além de um – apenas um – ponto da matéria de facto;
Aliás, o que o Tribunal a quo, no despacho recorrido expressa, só confirma;
Conquanto ao remeter para a parte final de fls. 238 demonstra ter, apenas, feito apenas uma aferição à luz de um ponto da matéria de facto – o referido 63 – e não aos demais sem qualquer fundamentação;
Razão pela qual – disse-o o Recorrente – o Tribunal a quo aceita que pode promanar decisão instrutória de pronúncia nos termos dos artigos 307.º, n.1 e 308.º, n.º 1 do CPP desconsiderando parte de um depoimento a que foi inquirida e indicada em sede de RAI testemunha sem qualquer fundamentação para aquela.
(...)»
II. Fundamentação
6. Sendo o recurso de constitucionalidade vertente interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se verifica que se achem preenchidos uma série de pressupostos processuais – a saber, o esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão, aliado à arguição tempestiva e adequada de uma questão de constitucionalidade incidente sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi da decisão recorrida. Como se pode ler no Acórdão n.º 555/05 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “determinante é a circunstância de a decisão judicial ter aplicado como ratio decidendi a norma ou a interpretação normativa questionada sub specie constitucionis e o reconhecimento de que essa questão foi efetivamente suscitada, pelo recorrente, perante o tribunal que proferiu aquela decisão.”
Ora, tal como sublinha o Ministério Público no seu douto parecer, o reclamante ficciona, a partir da decisão instrutória, uma dada interpretação normativa, quando, no entanto, o que verdadeiramente pretende controverter é a concreta e casuística valoração, pelo Juiz de Instrução Criminal, da prova produzida. Atento o facto de o nosso modelo de justiça não admitir as figuras do recurso de amparo ou da queixa constitucional, verifica-se que, in casu, a questão levantada pelo reclamante não tem, verdadeiramente, objeto normativo, reportando-se o recurso de constitucionalidade “a um momento meramente aplicativo da norma, de casuística precipitação, e não a uma afloração do critério jurídico, genérica e abstratamente concebido, denotativo de uma dada interpretação normativa” (v. o Acórdão n.º 81/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que, mesmo que porventura se reconhecesse caráter normativo à impugnação do reclamante, sempre resultaria do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade não haver coincidência entre a (alegada) interpretação normativa contestada pelo reclamante, por um lado, e o que resulta da decisão instrutória recorrida, por outro. Constata-se, pois, que o Tribunal Judicial de Braga procedeu a uma análise rigorosa da prova, inclusivamente da prova testemunhal produzida na fase instrutória (fls. 15), sendo certo, para além disso, que a factualidade constante da acusação foi dada na decisão instrutória como “suficientemente indiciada” (fls. 16), algo que sempre corroboraria o sentido e orientação vertidos naquela decisão.
Somos, pois, levados a concluir pelo acerto do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente, dado não estarem verificados os pressupostos processuais de que depende a respetiva admissibilidade.
III. Decisão
7. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, proferido pelo Tribunal Judicial de Braga.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 29 de janeiro de 2013.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.