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Proc. nº 564.01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 276 foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1. A., veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, nos seguintes termos:
'I.
Em primeiro lugar, pretende-se que seja apreciada a constitucionalidade da norma do art. 690º-A do CPC, porquanto se entende que, interpretando essa norma no sentido de que a impugnação, por via de recurso, da matéria de facto, está condicionada, em processo laboral, à prévia reclamação nos termos do artº 67º, nº 1, do Cód. Proc. Trab. (CPT) e/ou do artº 653º, nº 4 do CPC, como o fez o acórdão recorrido, se viola a norma, o princípio e a garantia constitucional do artº 20º, nº 1, da CRP.
Esta questão não foi suscitada anteriormente, porque apenas em face da fundamentação do próprio acórdão recorrido se revelou como necessária. Aliás, trata-se de um dos primeiros acórdãos versando um recurso sobre a decisão de facto e não era previsível uma tomada de posição deste teor, que não cabe, manifestamente, na previsão legal do artº 690º-A do CPC (ou em qualquer outro sobre o assunto) nem no contexto histórico dessa norma). II.
Em segundo lugar, pretende-se que seja apreciada a constitucionalidade da norma do artº 428º do CC [conjugada com a norma do artº
21º, nº 1, alínea c), da LCT, invocada no acórdão], porquanto se entende que, interpretando essas normas no sentido de que o trabalhador age justificadamente se se recusar a obedecer a uma ordem da entidade patronal, correspondente à sua categoria profissional, no caso de ela não lhe pagar o prémio (parte da remuneração) correspondente às funções a exercer (ou, por outras palavras, no sentido de que o trabalhador pode fazer depender a prestação de trabalho, do pagamento de parte da sua remuneração constituída por um prémio), por se tratar de uma reacção legítima à tentativa violação do seu direito à não diminuição da retribuição, como se considerou no acórdão recorrido, se viola a norma do artigo
59º da CRP e se ultrapassa a protecção constitucional do salário e dos trabalhadores.
Esta questão foi suscitada na alegação do recurso de apelação, no corpo e nas conclusões 19º a 22º'.
O recurso foi admitido por despacho (de fls. 273) que não vincula o Tribunal Constitucional (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82)..
2. Importa antes de mais descrever sinteticamente o litígio que se encontra na origem do presente recurso.
Tendo sido despedido da A., o ora recorrido, B impugnou o despedimento perante o Tribunal de Trabalho de Oliveira de Azeméis, que, por sentença de 15 de Setembro de 2000, para além de ter anulado uma sanção disciplinar anteriormente aplicada, declarou ilícito o despedimento e condenou a Ré a reintegrar o Autor, bem como a pagar-lhe '5.870$00 (parte proporcional do subsídio de Natal de 1998 – art. 32 dos factos provados) e as retribuições que se venceram desde 29.1.1999 até hoje, com dedução dos valores que tem vindo a receber – 70.000$00 mensais, desde Janeiro de 2000 – (...)', para além dos juros devidos.
A. recorreu então da sentença para o Tribunal da Relação do Porto, pretendendo, para além do mais que ora não releva, a alteração da matéria de facto dada como provada sob o nº 33, de modo a dela passar a constar a quantia de 80.000$00, em lugar de 70.000$00, e a consequente alteração da parte decisória da sentença; que o Tribunal da Relação do Porto reconhecesse que 'a R. não tinha alternativa que não fosse pôr termo a um incumprimento relapso e não corrigido, suspendendo-o e despedindo-o (...), pois que era impossível a subsistência do seu contrato de trabalho nestas condições – artº 9º, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e d) da LCCT', designadamente porque o autor se recusara efectuar a prestação de trabalho enquanto não lhe fosse pago o bónus a que afirmava ter direito. Ora, para a A., o trabalhador não podia recusar-se a prestar o seu trabalho, nem sequer através da excepção do não cumprimento do contrato (art. 428º do Código Civil), por este instituto não ser aplicável ao contrato de trabalho, e por a ré não estar em mora, nem ter salários em atraso. Por outro lado, a interpretação desta norma 'que fosse além dos entendimentos expendidos na conclusão anterior seria inconstitucional, por ultrapassar a protecção que a CRP (e a Lei nº 17/86) atribuiu ao salário e aos trabalhadores, no art. 59º'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 14 de Maio de 2001 (de fls. 257), e relativamente à visada alteração da matéria de facto, decidiu do seguinte modo:
'Colhidos os vistos legais, há que fixar a matéria de facto, nos termos do art.
712º do Cód. Proc. Civil.
Para tanto, improcede a alteração pretendida pela ré – apelante em relação ao facto provado nº 33, em face da respectiva fundamentação deixada pelo Exmo. Sr. Juiz, na acta de fls. 192 e do ofício da GNR; em ambos consta o vencimento mensal de 70.000$00. Estes elementos fornecidos pelo processo já contêm a informação colhida pelo juiz através do declarado pelo Autor, em conjunto com a restante prova, cuja apreciação livre o levou à convicção expressa no facto nº 33 – e se mantém, nos termos do nº 1 al a) e b) do CPC – art. 712º.
Acresce que consta da acta de fls. 193, que nem qualquer representante da ré, nem o seu mandatário, estiveram presentes na sessão de 13 de Julho de 2000, em que se fez a leitura da matéria de facto julgada provada, à qual se seguiu a fase de reclamações, tanto por falta ou insuficiência de especificação dos fundamentos decisórios para a convicção do julgador, conforme ao disposto no art. 67º nº 1 do CPT, como por deficiência, obscuridade ou contradição da decisão, ao abrigo do art. 653º nº 4 do CPC. Aí era o momento de reclamar.
Por isso se dá por fixada a factualidade provada na 1ª instância, constante de fls. 189, 190 e 191, dados por reproduzidos'.
Relativamente à questão do despedimento, o Tribunal da Relação do Porto decidiu nos seguintes termos:
'O litígio centra-se na decisão de despedimento, datada de 4.11.98, e respectiva nota de culpa, a fls. 23 e 24, respeitante aos factos ocorridos em
23, 27 e 31 de Julho de 1998, apenas. Tratando-se, pois, de uma Acção de Impugnação de Despedimento, cabia à ré-apelante o ónus da prova dos factos incluídos na nota de culpa e apenas lhe é consentido invocar factos constantes das ditas notas de culpa e decisão disciplinar; art. 12º n.º 4 do Dec.-Lei n.º 64-A/89, de 27/2. Ora, na nota de culpa, a fls. 24, é mencionado apenas o antecedente de ter sido castigado com 3 dias de suspensão, que cumpriu; e na decisão disciplinar já se menciona mais outra suspensão de 5 dias, em Novembro de 1997, 'por ameaça física a insultos a uma colega', tendo na origem fazer reparações de corte, que recusara. Esta 2ª sanção foi considerada infundada, por falta de prova dos factos respectivos – apenas o Tribunal manteve a 1ª sanção. Porém, apesar de a decisão lhe ser favorável, a ré-apelante utiliza-a em sede de nulidades e recurso, o que temos por não consentido pelos artºs 668º e 678º do Código de Processo Civil; e desprovido de fundamento legal, em violação do princípio 'ne bis in idem'. É que, uma apreciação da culpa, em conformidade com o n.º 1 do art. 9º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/2, ter-se-á apenas em conta o comportamento concreto resultante dos factos directamente imputados na nota de culpa; factos já sancionados pela entidade empregadora não podem ser integrados na aplicação de outras infracções (art. 27º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 49408, de 24.11.69). O legislador estabeleceu que a graduação das sanções disciplinares se faz atendendo apenas à gravidade da infracção e a culpabilidade do infractor; não previu os antecedentes do arguido ou a reincidência, próprias do processo penal. Certo é que, no n.º 5 do art. 12º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/2, determinou que, para apreciação da justa causa, o Tribunal deve atender ao grau de lesão dos interesses da empregadora, ao carácter das relações entre as partes, e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes. Ora, tendo o Autor sido admitido pela ré em 1988, constata-se que as sanções disciplinares começam a ser aplicadas só após ter sido eleito delegado sindical, o que a ré conheceu em 18.11.97, tendo cumprido a 1ª sanção em 24-28 do mesmo mês (cfr. factos n.º 14, 21 e 23). Certo é que também se provou, no n.º 31, que a prática da empresa, era até aí, que as falhas técnicas no trabalho não tinham servido para a ré instaurar processos disciplinares. As alegações da ré-apelante extravasam o âmbito da factualidade provada nomeadamente sob os n.ºs 5, 8, 9, donde resulta que o prémio de produtividade era atribuído ao Autor, mensal e regularmente, em função do aproveitamento no corte de pele: aí se diz que o Autor produzia muito e bem, e que cortava habitualmente peles; no n.º 11, que o prémio é superior, na secção de peles. E por isso se mostra correcta a consideração de que, como cortador especializado de peles, o Autor reagiu justificadamente perante a tentativa de violação do seu direito à não diminuição da retribuição (art. 21º n.º 1 c) da LCT) e de que se não verificou a prova da justa causa invocada para o despedimento, por falta de culpa e de consequências graves, nos termos do art. 9º n.º 1 do citado DL.'
3. É deste acórdão do Tribunal da Relação do Porto que vem interposto o presente recurso, relativamente ao qual há que verificar se estão reunidas as necessárias condições de admissibilidade. No que toca à primeira das questões de constitucionalidade suscitadas, a recorrente afirma que o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou o artigo
690º-A do Código de Processo Civil 'no sentido de que a impugnação, por via de recurso, da matéria de facto, está condicionada, em processo laboral, à prévia reclamação nos termos do artº 67º, nº 1, do Cód. Proc. de Trab. (CPT) e/ou do artº 653º, nº 4 do CPC'.
Ora a verdade é que o acórdão recorrido, na parte que agora releva, começou por proceder à fixação da matéria de facto, 'nos termos do artigo 712º do Cód. Proc. Civil'. Para o efeito, procedeu à análise dos elementos probatórios constantes do processo; e foi essa análise que o levou a manter como provado o facto nº 33.
É certo que o acórdão acrescentou que não estiveram presentes, nem qualquer representante da ré, nem o seu mandatário, na sessão em que se fez a leitura da matéria de facto julgada provada, na sequência da qual 'se seguiu a fase de reclamações, tanto por falta ou insuficiência de especificação dos fundamentos decisórios para a convicção do julgador, conforme o disposto no artigo 67º, nº 1 do CPT, como por deficiência, obscuridade ou contradição da decisão, ao abrigo do art. 653º nº 4 do CPC', afirmando: 'aí era o momento de reclamar'. Não é, todavia, seguro que seja possível extrair desse trecho a conclusão de que o artigo 690º-A foi interpretado no sentido referido pela recorrente. Com efeito, a circunstância de o Tribunal da Relação ter procedido, nos termos do artigo 712º do Código de Processo Civil, à análise dos elementos probatórios que sustentam o julgamento do facto nº 33, vem, pelo menos, abalar essa conclusão. Indiscutível é que, mesmo que porventura pudesse admitir-se que o Tribunal da Relação do Porto aceitou tal entendimento, sempre teria que se conceder que não foi ele a ratio decidendi da manutenção como provado do facto nº 33, e antes a apreciação da matéria de facto a que procedeu. Esta última afirmação resiste facilmente à contraprova que consiste em saber se, na hipótese de a norma impugnada vir a ser julgada inconstitucional, o Tribunal a quo teria necessidade de a alterar: a resposta negativa é evidente, com base na fundamentação do citado acórdão. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele seja efectuado na decisão recorrida (ver, por exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de de 22 de Novembro de 1994).
Deste modo, não chega a ser necessário apreciar a questão da possibilidade de dispensa do ónus de suscitar durante o processo a questão de constitucionalidade.
Conclui-se, pois, no sentido de que não pode conhecer-se da primeira das questões de constitucionalidade suscitadas pela recorrente, por inutilidade do recurso quanto a esta parte.
4. A segunda das questões de constitucionalidade suscitadas pela recorrente reside na alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 428º do Código Civil, conjugada com a alínea c) do nº 1 do artigo 21º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 49.408, de 24 de Novembro de 1969, interpretada 'no sentido de que o trabalhador age justificadamente se se recusar a obedecer a uma ordem da entidade patronal, correspondente à sua categoria profissional, no caso de ela não lhe pagar o prémio (parte da remuneração) correspondente às funções a exercer (ou por outras palavras, no sentido de que o trabalhador pode fazer depender a prestação de trabalho, do pagamento de parte da remuneração constituída por um prémio), por se tratar de uma reacção legítima à tentativa de violação do seu direito à não diminuição da retribuição'. Através de tal entendimento, violar-se-ia 'a norma do artigo 59º da CRP' e ultrapassar-se-ia 'a protecção constitucional do salário e dos trabalhadores'.
A apontada questão de constitucionalidade é manifestamente infundada. Com efeito, nada no teor do artigo 59º da Constituição, cuja epígrafe
é 'direitos dos trabalhadores', permite ancorar a alegada inconstitucionalidade da norma impugnada. Com efeito, o nº 1 da citada disposição constitucional estabelece um conjunto de direitos dos trabalhadores, incluindo o 'direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna'
(al. a). O nº 2 determina um conjunto de deveres que cabem ao Estado em ordem a
'assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito'. Por último, o nº 3 estabelece que 'os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei'.
Do exposto resulta com evidência que não pode retirar-se do artigo
59º qualquer argumento no sentido de construir uma questão de inconstitucionalidade da norma impugnada. Como é natural, este artigo não pretende estabelecer uma lista exaustiva, mediante um sistema de tipicidade fechada, dos direitos dos trabalhadores. E até se poderia retirar do nº 3 um argumento particular no sentido da não inconstitucionalidade. Acresce que, não estando em causa nesta sede a questão se saber se a interpretação aceite na decisão recorrida é a mais adequada ao sistema jurídico-laboral vigente entre nós, também não se vislumbra que tal interpretação ofenda qualquer outra norma ou princípio constitucional.
5. Encontram-se, assim, reunidas as condições para a emissão de uma decisão sumária, nos termos do nº1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Assim, pelos fundamentos expostos, decide-se: a. Não conhecer do recurso na parte relativa à norma constante do artigo
690º-A do Código de Processo Civil; b. Negar provimento ao recurso, por ser manifestamente infundado, na parte relativa à norma do artigo 428º do Código Civil, conjugada com a alínea c) do nº
1 do artigo 21º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 49.408, de 24 de Novembro de 1969. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.'
2. Inconformada, a recorrente veio reclamar para a conferência, pelo requerimento de fls. 288. Não indicou, porém, nenhum fundamento para sustentar a reclamação, limitando-se a manifestar a vontade de reclamar. Na sua resposta, o reclamado veio observar que esta falta de motivação deve levar ao imediato indeferimento da reclamação. Acrescentou, todavia, que a reclamação tinha como único objectivo 'protelar o trânsito em julgado da decisão e a consequente reintegração do recorrido na empresa', concluindo que a reclamante está a litigar de má fé e que, consequentemente, deve ser condenada em multa e no pagamento de uma indemnização, em montante a liquidar em execução de sentença 'porque no momento não é possível o montante dos prejuízos causados ao recorrido'.
3. Não se encontra, porém, qualquer razão que possa justificar a revogação da decisão reclamada; nem a reclamante, aliás, a indica. Não pode o Tribunal Constitucional, todavia, condenar a reclamante por litigância de má fé porque não dispõe de nenhum elemento – para além da apresentação de uma reclamação não fundamentada – que lhe permita formular qualquer juízo sobre se a conduta processual da reclamante deve ou não ser qualificada como tal. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmado-se a decisão reclamada. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 12 de Dezembro de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida