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Processo n.º 752/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Na presente ação, pendente no Tribunal de Trabalho de Lisboa, que A., B., C., D., E., F., G. e H. intentaram contra a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), o Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP), o Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola (INGA), o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, e o Estado Português, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, da sentença proferida em 6 de junho de 2012, em que se decidiu, inter alia, “não aplicar o n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, na parte em que condiciona a transmissão das relações laborais às necessidades de pessoal do ente público para o qual são transferidas”.
2. O recurso foi admitido.
3. O recorrente extraiu das suas alegações, o seguinte remate conclusivo:
«A definição do regime jurídico de caducidade do contrato de trabalho na função pública – incluindo a cabal definição do regime aplicável no caso de extinção de um determinado ente público – é matéria situada no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República (alíneas b) e t) do nº 1 do artigo 165º da Constituição), não podendo, consequentemente, sobre ela dispor, em termos inovatórios, o decreto-lei, desprovido de credencial parlamentar, que proceda à extinção de certo e determinado instituto público.
Não coincidindo os critérios normativos subjacentes aos artigos 16º e 17º da Lei nº 23/04 – que, no caso de extinção de pessoa coletiva, determina a transmissão dos contratos de trabalho do pessoal que estava afeto ao núcleo de atribuições objeto de “transferência” ou “sucessão” para o outro ente público – e no artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 231/05 – que, face à extinção da ACACSA, prevê a possibilidade de transmissão para as entidades que sucedem às respetivas atribuições apenas “na medida das necessidades destas entidades” – é organicamente inconstitucional esta última norma, por inovar em matéria sujeita a credencial parlamentar.
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade, formulado pela decisão recorrida.»
4. Por seu turno, os recorridos apresentaram contra-alegações, as quais concluíram da seguinte forma:
«O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público da sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal do Trabalho de Lisboa que julgou inconstitucional a norma do art.º 3º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 231/05, de 29 de dezembro por a considerar inovatória em relação ao regime jurídico da transmissão dos contratos de trabalho dos trabalhadores ao serviço da ACACSA, entidade essa que foi extinta por ocasião da entrada em vigor do mesmo diploma.
É que, a invocada caducidade dos trabalhadores da ACACSA foi fundamentada no art.º 2º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, segundo o qual os vínculos laborais constituídos só se transmitem em função das alegadas “necessidades” das entidades que sucederam nas atribuições da supramencionada ACACSA, ou seja, mais concretamente a ASAE e o IFAP.
Sucede, porém, como bem se refere na douta sentença e no Parecer do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, o regime jurídico da transmissão de estabelecimento aprovado pela Lei n.º 23/04 determina que a caducidade dos vínculos só opera quando não se verifique sucessão das atribuições.
Ora, no caso em apreço essa sucessão existe, sem qualquer margem para dúvidas, tanto mais que é o próprio diploma em causa que alude à sucessão por parte dos então IFADAP e INGA (atualmente ambos designados por IFAP) e da ASAE.
Desta forma, o que o Dec. Lei n.º 231/05 previu foi um alargamento dos pressupostos da declaração de caducidade dos vínculos laborais, revogando desta forma os art.º 16º e 17º da Lei n.º 23/04, uma vez que o critério a ter conta deixava de ser a sucessão de atribuições para passar a ser as necessidades dos serviços.
Deste modo, ao estabelecer uma causa restritiva do conceito de caducidade previsto nos artºs 16º e 17º da Lei n.º 23/2004, o Dec. Lei n.º 231/05 está, sem sombra de dúvidas, a estabelecer um novo regime jurídico, revogando, ainda que parcialmente, a supra mencionada Lei n.º 23/2004.
Sempre se acrescentará que, como também se afigura inquestionável, a previsão de novos pressupostos para a verificação da caducidade dos vínculos laborais é, claramente, matéria que contende com os direitos fundamentais dos trabalhadores e, muito em particular, com o disposto no art.º 53º da CRP,
Uma vez que o seu objeto é a existência de uma nova forma de justa causa objetiva, ou seja, a caducidade dos vínculos sempre que, em caso de sucessão das atribuições, os serviços não necessitem dos trabalhadores.
Sucede que, a matéria respeitante à extinção das relações laborais (como se verifica ser o caso, atento o facto de o diploma ora em análise estabelecer uma nova forma de caducidade dos vínculos constituídos, isto é, aqueles que se não encaixem no que quer que se entenda por necessidades destas entidades) é reserva de competência relativa da Assembleia da República,
Sendo certo que o Dec. Lei n.º 231/05 não foi sequer previamente aprovado sob uma lei de autorização legislativa, pelo que se verifica inconstitucionalidade orgânica, ao não ser objeto de credencial parlamentar.
Na prática, o critério estabelecido para a transmissão dos vínculos na Lei n.º 23/2004 é o da sucessão das atribuições,
Ao passo que no âmbito do Dec. Lei n.º 231/05 tal critério passou a ser o da necessidade dos serviços para onde se transmitem as atribuições.
Em suma: O Governo era incompetente para legislar sobre matéria respeitante a aspetos fundamentais e essenciais (como é o caso, atento o facto de estar em causa a motivação para a cessação) dos contratos de trabalho,
Mas, para além disso, o certo é também que tal diploma sempre padeceria de inconstitucionalidade material porque contrário ao disposto no art.º 53º da CRP.
Na verdade, tal preceito constitucional permite que os vínculos laborais cessem mas por justas causas objetivas, sendo certo que, tal como está prevista no nosso ordenamento jurídico, a caducidade não opera sempre que se verifique a já aludida à saciedade sucessão nas atribuições, verbi gratia por força do mecanismo da transmissão de estabelecimento, regulada pelos art.ºs 16º e 17º da Lei n.º 23/2004 e o art.º 318º do Código do Trabalho.
Portanto, existiria razão para a declaração da caducidade dos vínculos se, por ventura, não tivessem existido sucessão nas atribuições,
Sucedendo exatamente o oposto no caso ora em apreço, uma vez que tal sucessão é expressamente confessada no próprio Dec. Lei n.º 231/05, sendo que parte dos trabalhadores afetos à ACACSA transitaram efetivamente para o IFADAP, o INGA e a ASAE,
E os outros, in casu os aqui Recorridos, não,
Violando-se também nesta sede o princípio da igualdade, uma vez que os critérios usados para selecionar uns e outros não foram objetivos.»
II. Fundamentação
5. Antes de mais, importa considerar a divergência entre a norma desaplicada e mencionada no segmento da sentença recorrida supra transcrito, e aquela cuja conformidade constitucional vem colocada pelo recorrente à apreciação do Tribunal Constitucional. Na verdade, a sentença recorrida alude ao n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 231/85, de 29 de dezembro, quando o recorrente invoca o disposto no n.º 2 do mesmo preceito.
Estamos, porém, perante distonia apenas aparente, porquanto é manifesta a ocorrência de lapso de escrita na decisão recorrida, na referência feita à norma constante do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro.
Com efeito, da leitura da fundamentação da sentença, designadamente do seu ponto III, C), resulta evidente que, embora o julgador tenha concluído, quer na fundamentação de direito, quer na parte decisória, pela não aplicação do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, a norma que pretendia efetivamente desaplicar era a constante do n.º 2 do artigo 3.º do referido Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, por ser esta - e não a contida no n.º 3 - que condiciona a transmissão das relações laborais às necessidades de pessoal do ente público para o qual são transferidas. Aliás, foi assim que a decisão recorrida foi entendida pelas partes, como emerge das peças processuais apresentadas no âmbito do recurso de constitucionalidade.
Haverá, assim, que entender a declaração tal como foi querida, em termos de conformar a recusa de aplicação do disposto no n.º 2 – e não do n.º 3 - do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, permitindo afirmar a concordância entre o sentido normativo impugnado e aquele desaplicado pelo Tribunal a quo, pressuposto do recurso interposto, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC .
6. A questão de constitucionalidade que é objeto do presente recurso foi já decidida por este Tribunal, no Acórdão n.º 302/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), abundantemente referido na decisão recorrida, e em que se conclui pela inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e t), da norma do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, no segmento em que condiciona a transmissão das relações laborais às necessidades de pessoal do ente público para o qual são transferidas.
Encontram-se, nesse aresto, os seguintes fundamentos:
«A norma em crise insere-se no Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, que extinguiu a Agência de Controlo das Ajudas Comunitárias ao Setor do Azeite (ACACSA), a qual havia sido criada pelo Decreto-Lei n.º 259/87, de 26 de junho, na sequência do Regulamento (CEE) n.º 2262/84, do Conselho, que impôs aos Estados membros da então Comunidade Económica Europeia a “criação de um serviço específico ao qual seriam cometidos os controlos e atividades no âmbito do regime de ajuda à produção do azeite”.
No entanto, como se encontra justificado no texto preambular do Decreto-Lei n.º 231/2005, “a reforma da Politica Agrícola Comum (PAC) veio alterar as bases para as ajudas diretas à produção, concedidas aos agricultores ou às associações de produtores, eliminando-as progressivamente e dissociando-as da produção, tendo o Regulamento (CE) n.º 856/2004, do Conselho, de 29 de abril, formalizado o desligamento das ajudas à produção, no âmbito da organização comum de mercado (OCM) no setor do azeite”, tornando-se, assim, “desnecessária a manutenção daquela estrutura específica”.
Por esse motivo, foi extinta a ACACSA, passando o “acompanhamento do pagamento único por exploração e ajuda à manutenção do olival” a ser realizado pelos organismos nacionais já existentes com atribuições ao nível da execução dos apoios outorgados ao setor agrícola, tal como resulta do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 231/2005 no qual se dispõe que “as atribuições da ACACSA relativas ao regime específico dos apoios comunitários ao setor do azeite passam a ser prosseguidas pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP) e pelo Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola (INGA), segundo a competência dos respetivos órgãos” (n.º 1), ao passo que “as atribuições de fiscalização dos lagares de azeite, bem como do destino do azeite obtido da azeitona laborada e seus subprodutos, passam a ser prosseguidas pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE)” (n.º2).
Nesse contexto, o legislador dispôs no artigo 3.º, n.º 2, do mesmo diploma, que:
“Nos termos dos artigos 16.º e 17.º do regime jurídico do contrato individual de trabalho na Administração Pública, aprovado pela Lei n.º 23/2004, de 22 de junho, a extinção da ACACSA determina a caducidade dos contratos de trabalho por esta celebrados, com exceção dos contratos afetos às atribuições transferidas para o IFADAP, INGA e ASAE, os quais se poderão transmitir, na medida das necessidades destas entidades, mediante acordo com os trabalhadores”.
É esta a norma cuja inconstitucionalidade importa sindicar, atenta a recusa de aplicação – e respetivos fundamentos – por banda do tribunal recorrido.
Cumprindo essa exigência, importará começar por cuidar da inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 231/2005, tendo por referência o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e t), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Como é consabido, a matéria da segurança no emprego surge constitucionalmente edificada, desde a primeira revisão constitucional, no artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa, como integrante dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, encontrando-se, como tal, sujeita à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, daí resultando que o Governo apenas poderá legislar sobre tal matéria desde que provido de credencial parlamentar que para tal o autorize (artigos 165.º, n.º 1, alínea b) e 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
Relativamente ao preceito do artigo 53.º da CRP, considerou-se no Acórdão n.º 285/92 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), com pertinência para o caso sub judicio, que:
“(...) Da sua inserção sistemática resulta, desde logo, que, quanto ao parâmetro constitucional invocado, estamos perante um direito, liberdade e garantia sujeito ao especial regime jurídico constante do artigo 18.º da Constituição.
O preceito do artigo 53.º da Constituição, no que ora nos interessa, tem sido objeto de uma progressiva sedimentação quanta ao seu âmbito e alcance normativos, quer por parte do legislador quer pela justiça constitucional.
Desse percurso resulta que no seu âmbito de previsão normativa devem ter-se por incluídos os trabalhadores da Administração Pública, que, assim, no plano da segurança no emprego, beneficiam do mesmo tipo de garantia constitucional de que usufruem os trabalhadores submetidos a contrato individual de trabalho (cfr. Acórdão n.º 154/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º Vol., Tomo I, pp. 185 e segs.).
A uma tal conclusão, com efeito, não obsta, numa primeira análise, a especial relação estatutária que envolve os trabalhadores da Administração Pública. Na realidade, não se pode ignorar que a relação de emprego pública se reveste de especificidades e comporta, por isso, diversas projeções no plano subjetivo, decorrentes da natureza da atividade e das finalidades a prosseguir pela Administração. O estatuto funcional destes trabalhadores (cfr. artigo 269.º da Constituição) compreende, pois, um conjunto próprio de direitos, regalias, deveres e responsabilidades que lhe emprestam um figurino especial face à relação laboral de matriz jusprivatista.
Mas esse estatuto, concebido em função da isenção e imparcialidade da Administração e da exclusiva subordinação dos funcionários ao interesse geral por ela prosseguido, não legitima, no plano constitucional, a compressão do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos à generalidade dos trabalhadores, os quais, nessa medida, se aplicam também aos funcionários públicos. A especial relação estatutária em causa antes exige uma permanente procura da concordância prática entre as restrições de direitos decorrentes dos especiais ditames das finalidades específicas da Administração e a salvaguarda dos direitos fundamentais dos funcionários públicos.
Neste contexto, é insofismável que a garantia constitucional da segurança no emprego abrange, também, os funcionários públicos, pelo que o Estado não pode dispensar livremente os seus funcionários, tal como a extinção ou reformulação dos seus serviços ou organismos não pode constituir, por si só, razão suficiente que leve à livre e total disponibilidade dos funcionários em causa. Pelo que a reorganização da Administração sempre terá que atender aos princípios e regras constitucionais que consagram e garantem os direitos dos funcionários públicos.
Assim sendo, importa reconhecer que, num primeiro momento, o princípio da segurança no emprego compreende o direito dos trabalhadores à manutenção do seu emprego. Mas, com este alcance, e invocando o paralelismo com a relação laboral de direito privado, podem efetivamente ocorrer situações onde a extinção ou reorganização dos serviços e organismos da Administração determinem a impossibilidade de manutenção, por parte do funcionário, do concreto lugar que desempenha. A resolução de tais situações poderá compreender, em tese geral, a necessidade de adotar soluções que determinem alteração das condições de desempenho profissional dos funcionários públicos.
Ora, importa deixar claro, pelas razões já aduzidas, que as alterações estatutárias que o legislador entenda dever introduzir no ordenamento em nome do interesse geral prosseguido pela Administração e que afetem as aludidas condições de desempenho profissional dos funcionários públicos, porque se podem traduzir na compressão de direitos desses funcionários, deverão estar inelutavelmente subordinadas aos limites que a Constituição postula para as restrições aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.”
Ora, não se olvidando que no núcleo consubstanciante do referido princípio constitucional se encontra, como pacificamente se aceita, a matéria relativa à extinção da relação laboral, resulta da interseção argumentativa das proposições tecidas a montante que o regime da cessação ou extinção da relação de trabalho na função pública está abrangido pela reserva relativa de competência da Assembleia da República nos termos tipificados na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Por outro lado, a Constituição reserva, também, à Assembleia da República, nos termos constantes do seu artigo 165.º, n.º 1, alínea t), competência para legislar sobre as “bases do regime e âmbito da função pública”.
Relativamente a esta matéria, a Comissão Constitucional, ainda na vigência do primitivo texto constitucional, logo evidenciou que a referida norma apenas se dirigia ao “estatuto geral” da função pública, abraçando o que “é comum e geral a todos os funcionários e agentes”, tal como “a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, de complexo de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, favorecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado”, cabendo, por seu turno, na competência legislativa do Governo a “concretização” desse estatuto geral, a sua “complementação, execução e particularização” (cf. pareceres nºs 22/79 e 12/82, Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 9º, p. 48, e 19º, p. 119, respetivamente), tendo este Tribunal mantido idêntica posição em arestos posteriores (cf. Acórdão n.º 142/85, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6.º vol.).
Seguindo, aqui, igual critério, também o regime relativo à extinção das relações laborais no seio da administração pública há de ter-se por abrangido pela referida injunção constitucional por contender, como se compreende, com uma dimensão essencial do regime da função pública, que não pode ser subtraído às bases gerais que o mandato constitucional confere ao legislador parlamentar no seio do regime emergente do artigo 165.º, n.º 1, da CRP.
Com o que se pretende dizer que, na ótica do exercício da competência legislativa do Governo ex vi a disposição do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP, a concretização – o desenvolvimento, a execução ou a complementação – desse regime terá forçosamente de fazer-se de harmonia com os princípios e critérios vertidos na definição legal das bases do regime disciplinador das relações contratuais na função pública, o que, por seu turno, posterga a definição, por via de Decreto-Lei não autorizado, de critérios inovadores relativos aos aspetos “fundamentais ou estruturais” do regime laboral no seio da função pública, e, bem assim, a alteração do regime definido no parlamento quanto a essas matérias.
No caso sub judicio, como se referiu, o artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 231/2005, estabeleceu que “nos termos dos artigos 16.º e 17.º do regime jurídico do contrato individual de trabalho na Administração Pública, aprovado pela Lei n.º 23/2004, de 22 de junho, a extinção da ACACSA determina a caducidade dos contratos de trabalho por esta celebrados, com exceção dos contratos afetos às atribuições transferidas para o IFADAP, INGA e ASAE, os quais se poderão transmitir, na medida das necessidades destas entidades, mediante acordo com os trabalhadores”.
Com essa disposição, ao estabelecer a caducidade dos contratos de trabalho por força da extinção da pessoa coletiva pública empregadora e a definição das circunstâncias em que aquele efeito jurídico se produz, regulamentou-se um aspeto que não apenas concerne à matéria da segurança no emprego, como também importa do âmago do regime laboral da função pública na medida em que aí se definem as exatas circunstâncias em que ocorre a caducidade dos contratos de trabalho.
É certo, como de resto não foi obnubilado pela decisão recorrida, que a Lei n.º 23/2004, de 22 de junho – que aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho da Administração Pública –, pela qual se regiam à data os vínculos laborais atingidos pela norma em crise, estabelecia sobre a matéria circunstancialmente em causa que “a extinção da pessoa coletiva a que o trabalhador pertence determina a caducidade dos contratos de trabalho (...)”, mas ressalvava os casos em que ocorresse a transferência de atribuições da pessoa coletiva extinta para outras entidades nos quais se transmitiriam os contratos aos sujeitos que venham a prosseguir as respetivas atribuições (artigos 16.º, n.º 1, e 17.º), precisando ainda que “no caso de transferência ou delegação de parte das atribuições da pessoa coletiva pública para outras entidades, apenas se transmitem os contratos de trabalho afetos às atividades respetivas”.
Como se constata, a norma sindicanda erige, em comparação com o regime da Lei n.º 23/2004, um critério diferenciado quanto às condições em que tem lugar a transmissão do contrato de trabalho, o que vale, também, por dizer, mutatis mutandis, que regula em termos desconformes com o diploma parlamentar a tipificação da hipótese em que ocorre a caducidade.
De facto, ao passo que nos termos decorrentes do regime constante dos artigos 16.º e 17.º da referida Lei, havendo transferência de atribuições, serão transmitidos os contratos afetos às atividades respetivas, já o Decreto-Lei n.º 231/2005 condiciona, por interposição legislativa da norma sindicanda, essa transmissão às necessidades de pessoal do ente público para o qual são transferidas as atribuições da entidade extinta.
Ora, ao estabelecer que os contratos de trabalho se transmitem na medida das necessidades das entidades que passam a prosseguir as atribuições da ACACSA, o legislador estabeleceu um regime inovador, alterando o critério legalmente previsto quanto à caducidade dos contratos de trabalho, na medida em que passou a sujeitar ex novo a transmissão dos contratos à verificação de uma fattispecie não prevista nem contida no diploma parlamentar.
Nestes termos, não tendo existindo a necessária autorização parlamentar para a criação da norma sindicanda, tal como determinado pelos artigos 165.º, n.º 1, alíneas b) e t), e 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, resta confirmar o juízo de inconstitucionalidade orgânica lavrado na decisão recorrida.»
7. Esta doutrina mostra-se inteiramente transponível para a situação em apreço, pelo que se impõe decidir em conformidade.
III. Decisão
8. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e t) da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 231/2005, de 29 de dezembro, quando condiciona a transmissão das relações laborais às necessidades de pessoal do ente público para o qual são transferidas; e
b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida no que respeita ao juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro