Imprimir acórdão
Processo nº 753/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrente J... e recorrida P..., SA, foi proferida, em 21 de Dezembro de 2001, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
2. - Escreveu-se, então:
“1. - J..., identificado nos autos, intentou uma acção de processo comum, na forma ordinária, emergente de contrato individual de trabalho, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, contra P..., SA., pedindo a condenação desta a pagar-lhe as seguintes quantias:
- 2.915.449$00 por horas gastas no trajecto para Aveiras, espera e regresso; 74.753$00 de diferenças no subsídio de turno; 173.355$00 do prémio de regularidade previsto na cls. 12º al. a) do ACT; 329.134$00 de indemnização por oposição ao gozo de licença especial prevista na cls. 15ª al. a) do ACT; conceder ao A. em cada ano 5 dias de licença especial prevista na cls. 15º, nº
1, do ACT sob a cominação de sanção pecuniária compulsória de 20.000$00 por dia de atraso no cumprimento; reconhecer ao A. o direito que já adquiriu à reforma antecipada por preenchimento dos requisitos da cls. 21 do ACT; a pagar a quantia de 165.000$00 de diferenças de remuneração por aplicação da comunicação nº
474/96, todas as quantias liquidadas até 31.01.99 e vincendas e respectivos juros de mora. Alegou, em síntese, que entrou ao serviço da Ré em 14/8/71, tendo a categoria de especialista qualificado. Ao ser admitido ao serviço da Ré, ambos acordaram que o regime de trabalho do A. seria em 3 turnos rotativos. Tendo o A., trabalhado nesse regime de três turnos rotativos até 1/2/97. Em 10/1/97 a Ré informou-o que seria disponibilizado do seu sector a partir de
1/2/97. E em 19/2/97 a Ré informou o A. de que estava indicado para o provimento de um posto de trabalho de operador “de enchimento de garrafas de GPL” nas instalações da CLC em Aveiras, sendo o trabalho prestado em 2 turnos rotativos das 7 às 16 horas e das 16 h às 24 horas, assegurando a Petrogal o transporte de e para as instalações de Aveiras. Em 29/9797 o A. começou a trabalhar em Aveiras, nas instalações da CLC, em regime de trabalho normal. Essas instalações de Aveiras são provisórias, pelo que o A. se deve considerar como deslocado em serviço. O A. gasta na ida e volta para Aveiras mais 3 horas por dia, do que gastava anteriormente, pelo que as horas devem ser pagas como trabalho extraordinário. Ao deixar de trabalhar em regime de turnos, o A. não mais recebeu o prémio de regularidade e o subsídio de turno. Além disso perdeu o direito à licença especial de 5 dias úteis de descanso e a obter a reforma antecipada.
2. - Os autos prosseguiram seus trâmites, vindo a ser proferida sentença, do 3º Juízo, de 12 de Janeiro de 2000 (fls. 140 e segs.) que julgou a acção apenas em parte provada e procedente, e, em consequência, condenou a ré a reconhecer ao autor o direito que ele já adquiriu à reforma antecipada e que poderá exercer quando quiser, no mais absolvendo a ré dos pedidos. Inconformado, recorreu o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 8 de Novembro de 2000 (fls. 192 e segs.), julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Do assim decidido recorreu, de revista, o autor para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 30 de Outubro de 2001 (fls 277 e segs.), não encontrou censura a fazer ao acórdão recorrido, assim negando a revista.
3. - Mantendo-se inconformado, o autor recorreu para o Tribunal Constitucional deste último aresto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro. Com esse pedido pretende ver apreciada a norma do nº 1 do artigo 24º da Lei do Contrato de Trabalho (doravante, LCT), aprovada pelo artigo 1º do Decreto –Lei nº 49 408, de 24 de Novembro de 1969, na interpretação feita, a qual, em seu entender, permitiu nela abranger a transferência de um trabalhador pela sua entidade empregadora para as instalações de uma terceira empresa, sobre as quais ela – entidade empregadora – não possui qualquer direito de natureza real ou obrigacional.
É que, como então escreveu, ”ao abrigo de um contrato de prestação de serviços que celebrou com essa terceira empresa, permitiu à entidade empregadora para aí deslocar os seus trabalhadores e, fragmentando o seu poder patronal em benefício daquela, atribuir a esta diversos poderes ainda que alguns de ordem fáctica, sobre os trabalhadores, podres estes especificados no contrato da prestação de serviços junto aos autos. Ou seja, tal interpretação permite mascarar uma cedência ocasional dos trabalhadores, prevista em todos os seus itens no art. 26/2 al. b) do Dec. Lei
358/89, de 17.10, em transferência de local de trabalho. E tratou-se de cedência ocasional ilícita, porque feita sem a concordância expressa dos trabalhadores como se exige no art. 28/2 daquele diploma. A qual causou ao trabalhador um prejuízo de 2 horas diárias gastas a mais nos trajectos de ida e volta para as instalações da empresa cessionária em Aveiras. Acórdão recorrido ao interpretar o art. 24/1 da LCT de forma a abranger nele a cedência ocasional, espoliou o trabalhador do direito à indemnização pelo prejuízo da perda daquelas duas horas a mais em cada dia que aquele não consente, interpretação que deve ter-se como violadora do princípio do Estado de direito democrático do artº 2º e do princípio da igualdade do art. 13 da CRP”. Acrescenta, no entanto, que, por outro lado, ao admitir a redução do subsídio de turno e a retirada do prémio de regularidade, o acórdão violou o princípio da irredutibilidade da retribuição, estabelecido no artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República (CR) e no artigo 21º, nº 1, alínea c), da LCT, interpretando, desse modo, “de forma inconstitucional a disposição do nº 4 da cláusula 19º do Acordo Autónomo regulador da relação laboral das partes”. E mais considerou:
“Finalmente o acórdão recorrido, e no que toca à licença especial da clª 16ª/1 do Acordo Autónomo, que o recorrente já havia consumadamente adquirido, preenchidos que haviam sido integralmente os – os respectivos pressupostos – prestação de trabalho em turnos durante 20 anos à data em que saiu de turnos, fez também uma interpretação inconstitucional daquela disposição convencional.
12. Adquirida em definitivo tal regalia pelo trabalhador, integrada plenamente na sua esfera jurídica, dela não poderia em caso algum ser extirpada enquanto vigorasse o contrato de trabalho, continuasse ele ou não a trabalhar em regime de turnos.
13. Com efeito, se já havia trabalhado o número mínimo de anos em turnos para adquirir a licença especial – como trabalhou – nem mais um só dia se lhe poderia exigir que trabalhasse em turnos para a manter, adquirida estava, adquirida ficou para todo o sempre.
14. A interpretação do acórdão que negou o direito à licença especial viola deste modo por forma grosseira e primária o princípio do Estado de direito democrático do art. 2 CRP, bem como o princípio do não retrocesso e ainda o art.
59/1 al. d) da CRP na medida em que a licença especial verdadeiramente são férias, período complementar de férias.
15. As questões de inconstitucionalidade foram suscitadas pelo recorrente na alegação do recurso de revista nºs. 4.1. in fine e 6.2 in fine também, conclusão nº 23.”
O recurso foi admitido – o que, porém, não vincula o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 3 do artigo 76º da citada Lei nº 28/82.
4. - Considera-se ser caso de se proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A do mesmo diploma legal, por não se verificarem os pressupostos de admissibilidade do recurso, impedindo o conhecimento do seu objecto. Poderia, é certo, convidar-se o recorrente a concretizar melhor e mais inequivocamente a interpretação normativa que impugna, mas tem-se por seguro que tal procedimento seria, na verdade, inútil, atendendo a que sempre subsistiria aquele obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso, como se demonstrará.
5. - Na verdade, o recorrente começa por dizer que o recurso “visa apreciar” a inconstitucionalidade da norma do artigo 24º/1 da LTC na interpretação que dela fez o acórdão recorrido”, mas logo a seguir refere que o “acórdão recorrido, ao admitir a redução do subsídio de turno e a retirada do prémio de regularidade violou o princípio da irredutibilidade da retribuição do artº 59/1 a) da CRP e do artigo 21/1 al. c) LCT”; que “interpretou por esse modo de forma inconstitucional a disposição do nº 4 da cl. 19 do Acordo Autónomo regulador da relação laboral das partes”; e que a interpretação que se fez no tocante à licença especial da cláusula 162, nº 1 do Acordo Autónomo, “que o recorrente já havia consumadamente adquirido” viola o princípio do Estado de direito democrático do artigo 2º da Constituição, bem como o princípio do não retrocesso e, ainda, o artigo 59º, nº 1, alínea d), da Constituição. As questões de constitucionalidade – acrescenta o recorrente – foram suscitadas na alegação do recurso de revista nos “nºs. 4.1. in fine e 6.2. in fine e na conclusão nº 23. Não o foram, no entanto, de modo adequado, uma vez que, nas conclusões dessa peça processual – e é a matéria levada às conclusões que delimita o objecto do recurso –, depois de referir o enquadramento jurídico e a interpretação que julga adequada à situação de facto subjacente e de mencionar quais as normas legais e contratuais violadas pelo acórdão recorrido, o recorrente limita-se a afirmar, na referida conclusão 23ª, que “tal interpretação viola ainda os princípios constitucionais dos artigos 2º e 59º, nº 1, alínea a) da CR”, sem dimensionar a questão normativa aplicada que entende ser inconstitucional. E, com efeito, a discordância fundamental do recorrente reside na subsunção jurídica que as decisões sob recurso fizeram da sua situação de facto tal como nos autos ficou provada, quer quanto à mudança do local de trabalho, que foi subsumida à norma do artigo 24º, nº 1, da LCT e que o recorrente entende enquadrar a previsão do artigo 26º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 358/89, de 17 de Outubro, quer quanto aos invocados direitos ao subsídio de turno, prémio de produtividade e licença especial. Ora, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não cuida do acerto lógico-jurídico da subsunção do caso em apreço à norma: ao Tribunal Constitucional não compete julgar o acto decisório recorrido, em si mesmo considerado, envolvendo a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou tão pouco o mesmo, visto como resultado da conjugação da matéria de facto ao critério normativo utilizado, mas sim a constitucionalidade mesma desse critério normativo. Como não foi acolhida pelo legislador nacional uma via de recurso equiparável ao da acção constitucional de defesa dos direitos fundamentais ou ao recurso de amparo, (cfr., entre tantos outros, os acórdãos nºs. 192/94, 178/95, 205/99,
255/99 e 191/01, publicados no Diário da República, II Série, de 14 de Maio de
1994, 21 de Junho de 1995, 21 de Outubro e 5 de Novembro de 1999, respectivamente, sendo o último inédito), e como tal se recorta o caso presente, há que concluir pela impossibilidade de se tomar conhecimento do objecto do recurso, por falta dos respectivos pressupostos de admissibilidade.
6. - Em face do exposto, decide-se, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.”
3. - Notificado, veio o recorrente reclamar para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da citada Lei nº 28/82.
Considera o mesmo que a decisão enferma de uma “certa ambiguidade”, ao afirmar, por um lado, que a questão de constitucionalidade não foi suscitada nas alegações de recurso de revista de forma processualmente adequada e, por outro lado, que o recorrente se limitou a impugnar o “acerto lógico-jurídico da subsunção do caso em apreço à norma”, o que se afastaria do poder cognitivo do Tribunal Constitucional.
Defende, ainda, que a questão foi posta adequadamente na peça de alegações – logo, “durante o processo” – e como tal foi apercebida pelo tribunal a quo que a apreciou quando, abreviada mas expressamente, pondera não se verificar “qualquer ofensa aos princípios constitucionais dos artigos 2º e
59º, nº 1, alínea a), da Constituição”.
De resto, a decisão sumária pressuporia o prévio convite a que se reporta o nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82 – o que terá sido considerado mas não levado a efeito.
Deve, assim, em seu entendimento, ser deferida a reclamação e, em consequência, conhecer-se do objecto do recurso.
A recorrida, por sua vez, conclui pelo indeferimento do pedido, de modo a manter-se a decisão em causa.
4. - Como decorre inequivocamente do nº 5 da decisão sumária
–acima transcrito – as questões de constitucionalidade foram dirigidas à decisão, em si própria considerada, e, como tal, com ela articuladas. A discordância fundamental reside, escreveu-se, na subsunção jurídica que as decisões sob recurso fizeram da situação de facto dada como assente, o que, no entanto, não basta para o recurso de constitucionalidade, pois necessário se torna, ainda, que a parte confronte o tribunal que decide a causa com a validade das normas constitucionais convocáveis – e que se considera não ter sido feito.
Nesta perspectiva – que se tem por certa, até porque a subsunção jurídica questionada assenta na matéria de facto dada como provada e não na interpretação da norma – o “convite” previsto no nº 5 do artigo 75º-A revestir-se-ia de inutilidade: os princípios constitucionais dos artigos 2º e
59º, nº 1, alínea a), da Constituição subentenderiam, para se justificar o apelo a essa medida, controvérsia a respeito da validade constitucional de uma normação impugnada, que se não regista.
Assim sendo, reitera-se a este propósito o que se escreveu na decisão sumária, na sua essencialidade, de modo a confirmar-se o seu julgamento.
5. - Em face do exposto, indefere-se a reclamação deduzida, mantendo-se o anteriormente decidido quanto ao não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa,21 de Fevereiro de 2002 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida