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Processo nº 502/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - P..., Lda., intentou, no Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Gaia, acção declarativa de condenação, com a forma ordinária, contra C..., Lda. e P..., Lda., todos identificados nos autos, pedindo a condenação destas últimas a pagar-lhe determinada importância, acrescida de juros de mora, a partir da citação.
A acção foi contestada pelas rés, culminando, na 1ª instância, pela sentença de fls. 290 e segs., de 4 de Novembro de 1998, que julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, do pedido absolveu as rés.
A autora recorreu, de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de fls. 313 e segs., de 13 de Abril de 1999, julgou improcedente a apelação, confirmando integramente a decisão da 1ª instância.
Mantendo-se inconformada, a autora recorreu, agora de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de fls. 343 e segs., de 25 de Novembro de 1999, a negou.
Pedida aclaração, foi a mesma objecto de indeferimento, por acórdão, de 10 de Fevereiro de 2000.
Veio, então, a autora e recorrente arguir nulidade do aresto, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, ou seja, por se verificar oposição entre os fundamentos e a decisão.
E, nesta peça processual, como questão prévia, suscita um problema de constitucionalidade: no seu entendimento, a apreciação da nulidade arguida não deve ser levada a efeito pelos mesmos Juízes Conselheiros que intervieram no acórdão onde ela, alegadamente, se verifica. É certo – reconhece – que tal resulta do disposto no nº 3 do artigo 668º e do artigo 716º do mesmo Código, aplicáveis por força do consignado no artigo 732º desse diploma legal. No entanto, submetendo-se a apreciação das nulidades ao poder cognitivo dos mesmos julgadores que proferiram a decisão impugnada viola-se o disposto no artigo 202º, nº 2, da Constituição da República.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de fls. 381 e segs., de 15 de Junho de 2000, indeferiu a arguição de nulidade deduzida.
Aí, no tocante à matéria de constitucionalidade suscitada, escreveu-se:
“I. A inconstitucionalidade dos arts. 668º, nº 3, 716º e 732º do CPC.
«São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição» - artº 277º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Na óptica da reclamante, a norma afrontada pelas normas em causa seria o artº
202º, nº 2, deste diploma. Isto, porque, permitindo que a nulidade do acórdão seja arguida no mesmo tribunal e decidida pelos mesmos juízes, «anulam a defesa de direitos e interesses protegidos aos arguentes, uma vez que, salvo situações de lapso manifesto, invariavelmente não acontece a arguição colher deferimento». Com efeito, acrescenta: «decidindo-se em consciência, como se decide, após análise avisada (salvo o lapso manifesto, repete-se) não haverá argumentos capazes de inverter o sentido de um raciocínio ou conclusão a quem usa a prudência e tem a experiência e o saber acumulado no exercício de tão elevada função pública». Não tem razão. O preceito, numa clara referência à justiça administrativa, criminal e cível, limita-se a ensaiar uma definição da função jurisdicional, aliás, controvertida, ao dizer que «na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos interesses públicos e privados». Ora, não se vê em que é que o conhecimento da nulidade do acórdão pelos juízes intervenientes na sua prolação possa contender com isto. Daí que seja de arredar a invocada inconstitucionalidade. De qualquer forma, o Relator do acórdão já não faz parte deste Tribunal, por se ter jubilado, o que, pelo menos em parte, afastaria os perigos que se querem lobrigar na solução consagrada nas normas indicadas. Saliente-se, por outro lado, que na arguição da nulidade não está em causa o mérito da decisão, o error in judicando, mas tão só um vício na sua construção consubstanciado na violação da lei processual, ou seja, o error procedendo. Não se trata, assim, de alterar ou modificar aquela decisão, pelo que nenhuma razão existe para serem outros os juízes a conhecer da nulidade.”
2. - Do assim decidido interpôs a autora recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Pretende ver “declarada” a inconstitucionalidade das normas constantes do nº 3 do artigo 668º e dos artigos 716º e 732º, todos do Código de Processo Civil, por violarem o disposto no nº 2 do artigo 202ºda Constituição – nos termos do qual, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
3. - Notificadas as partes para alegarem, só a recorrente o fez, concluindo do seguinte modo:
“1. O edifício jurídico português tem como regra geral devolver às instâncias superiores a decisão sobre nulidades, como se extrai, nomeadamente, do artº 668º
-3, 722º – 3 e 754º - 3, do C.P. Civil.
2. O caso presente contempla-se na excepção a essa regra. Onde, inexistindo possibilidade de recurso ordinário, e estando-se na última instância, o mesmo nº
3 do artº 668º determina que a questão da nulidade seja apreciada pelos mesmos juízes que eventualmente nela incorreram.
3. Decidindo em consciência, como decidem, e firmados em raciocínio apoiado em rigor analítico e interpretativo, esses mesmos juízes, sendo profissionais competentes e inteligentes, como o são, fora as circunstâncias de mero lapso, o deferimento da nulidade torna-se, na prática, inviável.
4. Tal deferimento corresponderia, também na prática, um reconhecimento de uma análise menos aprofundada, sem alcançar todos os ângulos de problema, o que, a nível de consciente e subconsciente, se torna inadmissível à natureza humana, mesmo dos mais dotados.
5. Colocando-se a decisão das nulidades, ainda que por via excepcional, nos mesmos julgadores que proferiram a decisão onde elas são arguidas, violou-se o princípio consignado no nº 2 do artº 202º da Constituição da República Portuguesa.
6. O nº 3 do artº 668º, na parte em que prescreve esse regime excepcional do julgamento da nulidade pelos mesmos juízes que proferiram a decisão que a enferma, e os artºs. 716º e 732º, que determinam a aplicabilidade daquele regime excepcional, são inconstitucionais.”
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - A questão de inconstitucionalidade, tal como delimitada se encontra no ponto I-2, foi pela primeira vez suscitada no requerimento de arguição de nulidades do acórdão de 25 de Novembro de 1999.
O Tribunal Constitucional, em jurisprudência reiterada, uniforme e impressiva, entende que, uma vez esgotado o poder jurisdicional com a prolação da sentença ou do acórdão e uma vez que não constitui erro material a eventual aplicação de norma inconstitucional, nem sendo causa de nulidade da decisão judicial, nem a tornando obscura ou ambígua, por via de regra a aclaração de decisão judicial ou a arguição da sua nulidade não constituem, já, momentos idóneos e atempados para suscitar questões de constitucionalidade.
Só assim não será naqueles casos em que não houve oportunidade processual para uma oportuna suscitação, de modo a permitir que o tribunal recorrido conheça da questão e sobre ela se pronuncie, o que sucederá se a interpretação dos preceitos acolhidos na decisão for surpreendente, de modo a não se justificar a exigência de um juízo de prognose sobre a matéria. Em casos como estes, cessam os ónus que recaem sobre os recorrentes de tomarem em consideração as várias possibilidades interpretativas das normas susceptíveis de serem aplicadas no processo como rationes decidendi e de adoptarem uma estratégia processual adequada a prevenir essa possibilidade.
Neste sentido, entre tantos outros, citem-se os acórdãos nºs. 153/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs.
667 e segs., 61/92, 152/93, 261/94, 370/94, 164/95, 1124/96, 560/98 e 374/2000, estes publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992, 16 de Março de 1993, 26 de Julho de 1994, 7 de Setembro de 1994, 29 de Dezembro de
1995, 6 de Fevereiro de 1997, 15 de Março de 1999 e 12 de Dezembro de 2000, respectivamente.
A esta luz, se a questão de constitucionalidade incidir sobre problemática susceptível de ser conhecida após a “decisão final” ter sido proferida, nomeadamente quando se trate de normas processuais relativas ao regime de nulidades da decisão, pode a questão ser suscitada no momento da respectiva arguição, não sendo de exigir que a prognose chegue ao extremo de exigir, antes daquela decisão, a suscitação de vício de inconstitucionalidade decorrente de eventual nulidade de julgamento (assim, o já citado acórdão nº
374/2000 ou o acórdão nº 366/96, publicado no jornal oficial referido, II Série, de 10 de Maio de 1996).
No concreto caso, considera-se tempestiva a suscitação da questão de constitucionalidade, porquanto só com a arguição da nulidade do acórdão inicial é que passou a ser exigível suscitar o problema em apreço, o que a interessada fez, de resto, prevenidamente, ao equacioná-lo como questão prévia ao conhecimento da nulidade arguida.
2.1 - Os casos de nulidade da sentença são elencados no nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, figurando entre eles o da oposição dos fundamentos com a decisão [alínea c)]
De acordo com o nº 3 deste preceito, a nulidade mencionada, admitindo a decisão proferida recurso ordinário, pode servir de fundamento a recurso, justificando-se este regime no propósito de, assim, se evitarem arguições circunscritas ao objectivo de se retardar o andamento do processo ou de se protelar o trânsito da decisão (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág.
692). O alcance da inovação introduzida em 1961 relativamente ao regime de arguição de nulidades anteriormente vigente, dependente de arguição directa ao tribunal que proferir a decisão, configurava-se como um fácil meio dilatório que se pretendeu impedir – como se reconhece no preâmbulo do Decreto-Lei nº 44 129, de 28 de Dezembro de 1961 (ponto 17) –, sendo certo que, a existir um fundamento sério, não seria o facto de o interessado ser desatendido que, normalmente, impediria a interposição do recurso (cfr. o acórdão deste Tribunal nº 311/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de
2001).
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, ao aditar ao artigo 668º o seu (actual) nº 4, veio permitir o suprimento, no tribunal a quo, de qualquer das nulidades da sentença, arguida no
âmbito do recurso dela interposto, possibilitando ao juiz a sua reparação quando, face o teor das alegações perante si produzidas, se convença da sua verificação (cfr. Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pág. 443).
Ora, a questão de constitucionalidade em apreço coloca-se, essencialmente, quanto a esse nº 3 do artigo 668º, pois que as demais normas invocadas são-no em função da aplicabilidade desta última ao caso sub judice, como tal seguindo o destino a dar-lhe: enquanto o artigo 716º, no seu nº
1, manda aplicar à 2ª instância o que se acha disposto nos artigos 666º a 670º do Código de Processo Civil, o artigo 732º, por seu turno, dispõe ser aplicável o regime do artigo 716º ao acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
2.2. - Assim, relevantemente, interessa apurar da conformidade constitucional do nº 3 do artigo 668º, aplicado com o sentido de que a apreciação de nulidades invocadas quanto ao acórdão que se pretende anular é feita pelos juízes que nele intervieram.
Será esta uma interpretação inconstitucional, designadamente por ofensa ao convocado artigo 202º, nº 2, da Lei Fundamental?
3. - O regime vigente relativo ao conhecimento das nulidades da sentença – e, mais concretamente, o pertinente à nulidade, tendo em causa a oposição dos fundamentos com a decisão – projecta-se no plano da constitucionalidade, na medida em que esteja em risco a dimensão garantística que o texto constitucional reserva à função jurisdicional e ao modo como a justiça se administra.
Na tese do recorrente, o nº 2 do artigo 202ºda Constituição – que ensaia uma definição da função jurisdicional, o que é doutrinariamente controvertido (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 792) –
é desrespeitado sempre que os mesmos juízes “anulam a defesa dos direitos e interesses protegidos aos arguentes”, ao serem chamados a pronunciarem-se sobre as arguidas nulidades, pressupondo-se que se moverão, perante um qualquer argumento eventualmente brandido, com o prejuízo subentendido “pelo uso da prudência e da experiência e saber acumulado do exercício da função judicial”.
Por outras palavras, pondo de lado a argumentação eufemística de que se lançou mão, o julgamento da matéria pertinente à alegada nulidade processual, susceptível de se repercutir nos ulteriores termos de causa, deveria caber a terceiros, e não aos subcritores da decisão, por estarem em jogo as garantias de independência e objectividade.
Convém observar, no entanto, que o legislador goza de liberdade de conformação na ampliação ou restrição das formas impugnatórias das decisões e na adopção de outras medidas – como, relativamente ao direito ao recurso, o Tribunal Constitucional se tem pronunciado, nomeadamente no tocante à existência de um direito a duplo grau de jurisdição, excluída a hipótese de recurso em matéria penal (cfr., por todos, os acórdãos nºs. 287/90, 305/94,
239/97 e 479/98, publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991, 27 de Agosto de 1994, 15 de Maio de 1997 e 24 de Novembro de 199, respectivamente).
Por sua vez, e como se observou no acórdão nº 485/2000, publicado no citado Diário, II Série, de 4 de Janeiro de 2001, ao ter presente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais para tutela dos interesses legalmente protegidos, consagrada no nº 1 do artigo 20º da Constituição, o exercício da censura constitucional terá lugar quando o modelo processualmente estatuído restrinja ou trunque a materialização dessa dimensão garantística.
Ora – sem questionar o modo como foi apreciada a matéria de facto pela decisão judicial, em si mesma considerada, o que se subtrai aos poderes de cognição do Tribunal Constitucional –, não é razoável que, em tese geral, se proceda ao “desaforamento” do processo, colocando sob “suspeição “ a independência e a objectividade do julgador, quando este seja chamado a pronunciar-se sobre alegada nulidade processual.
Como se observou noutro aresto deste Tribunal – o nº
135/88, publicado no jornal oficial referido, II Série, de 8 de Outubro de 1988
– a independência dos juízes, considerada não apenas como um dever ético-social mais ainda como o dever de “dizer o direito”, de modo a manter-se o julgador alheio a influências exteriores, assume-se como responsabilidade que terá a dimensão e a densidade “da fortaleza de ânimo, de carácter e da personalidade moral de cada juiz”, de modo a que se pode dizer não se encontrar o juiz em condições de “administrar justiça” quando a sua imparcialidade ou a confiança do público se ponham justificadamente em causa, pois não estarão, nessa medida, reunidas condições mínimas que assegurem a objectividade da jurisdição.
Se se compreende que a anulação do julgamento, em consequência de vícios intrínsecos e essenciais da própria decisão de mérito, seja susceptível de abalar a confiança na imparcialidade e na objectividade que ao julgador devem assistir, revelar-se-ia de todo injustificada a generalização de semelhante “suspeição”, de modo a impedir-se que o mesmo tribunal, composto pelos mesmos juízes, aprecie uma alegada nulidade, do naipe das enunciadas no artigo 668º (para mais, a decisão sobre a arguição não permite ao Tribunal reapreciar a decisão que emitiu mas apenas corrigir vícios formais da mesma; e essa nova decisão passa, em princípio, a fazer parte integrante da sentença proferida).
De resto, não só essa é a solução corrente e incontroversa no processamento dos recursos como, de outro modo, estaria capciosamente aberta a via para um novo grau de jurisdição, porventura ilimitadamente renovado, enquanto não aceite a tese do arguente.
O que seria, afinal, contrariar o processamento concebido para evitar manobras dilatórias na tramitação processual.
A norma do nº 2 do artigo 202º da Constituição da República não é, por conseguinte “tocada”.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) unidades de conta. Lisboa,26 de Fevereiro de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida