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Proc. nº 49/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório. A (ora recorrente) deduziu, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, oposição à execução fiscal contra si revertida e instaurada pela Fazenda Pública (ora recorrida), originariamente, contra a sociedade B., de que aquele era gerente, para cobrança de dívidas à Segurança Social, relativa aos meses de Julho de 1991 a Maio de 1992, no montante global de 17.203.228$00.
2. O Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, por decisão de 12 de Fevereiro de 1998, julgou a oposição improcedente.
3. Inconformado com esta decisão o oponente recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo tendo, a concluir as suas alegações, dito, designadamente, o seguinte:
'(...)
13 - A norma do art. 13º do CPT, na parte em que põe a cargo do gerente ou administrador o ónus de provar que não foi por culpa sua que o património da sociedade se tornou insuficiente para pagamento dos créditos exequendos é inconstitucional, por violação do disposto nos art.s 2º, 13º, 18º, nº 2, 107º e
266º, nº 2, da Constituição da República e dos princípios da justiça, da igualdade, da proporcionalidade e da capacidade contributiva neles plasmados.
(...)'.
4. Por acórdão de 18 de Novembro de 1998, o Supremo Tribunal Administrativo declarou-se incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso, por ser para o efeito competente a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo.
5. Aqui remetidos os autos, o Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 21 de Setembro de 1999, decidiu negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida. Sobre a alegada inconstitucionalidade do art.
13º, nº 1, do CPT, ponderou, designadamente, aquele Tribunal:
'(...) Contudo, não se vê como o art. 13º do CPT possa violar os referidos princípios constitucionais. No sentido de que não se verifica a aludida inconstitucionalidade se pronunciaram já, entre outros, os Acs. Do STA de 27/1/96, in Rec. 20782, e deste Tribunal de 16/12/97, in Rec. 69/97. Também o Tribunal Constitucional, no seu Ac. 328/94, de 13/4, se pronunciou no sentido de que a norma constante do art. 13º do DL 103/80, de 9/5, não viola qualquer princípio constitucional, interpretada com o sentido de consagrar a responsabilidade pessoa e solidária dos gerentes e administradores de sociedade de responsabilidade limitada, no caso de a própria sociedade não ter bens penhoráveis, pelo pagamento das dívidas destas por contribuições à segurança social. Acompanhado esta jurisprudência, também nós entendemos não ocorrer qualquer inconstitucionalidade'.
6. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição, a constitucionalidade da norma do nº 1 do art. 13º do Código de Processo Tributário, 'na parte em que se põe a cargo dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada o ónus de provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais' por alegada violação dos princípios da justiça, da igualdade, da proporcionalidade e da capacidade contributiva, consagrados nos artºs 2º, 3º, 18º, nº 2, 107º e 266º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
7. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1ª - O art. 13º do Código de Processo Tributário, ao impor aos gerentes, directores ou administradores das empresas ou sociedades de responsabilidade limitada o ónus da prova negativa da culpa, na insuficiência do património da empresa ou sociedade para a satisfação dos créditos fiscais, transferiu para estes, agravando-as, as dificuldades com que no domínio do Dec.Lei nº 68/87, de
9.2, o Estado se debatia para fazer prova positiva da sua culpa, assim violando os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça consagrados nos artigos 13º, 18º, nº 2 e 266º, nº 2 da CRP.
2ª - do mesmo modo, o art. 13º do CPT viola os citados princípios e normas constitucionais na medida em que, ao contrário do gerente revertido, o Estado pode obviar ou suprir as dificuldades inerentes à prova da culpa pela organização, que só de si depende, dos indispensáveis meios investigatórios e pela adopção de medidas de controlo directo ou indirecto, prévio ou sucessivo da actividade do gerente e da própria empresa ou sociedade.
3ª - Ao transferir para os administradores ou gerentes o ónus de provar a não culpa, tornando a estes muito mais difícil essa prova do que seria ao Estado fazer prova positiva da mesma culpa, em vez de reforçar os meios de que a Administração Fiscal poderia e deveria dispor para cumprir esse ónus, daí resultando muitas vezes a condenação injusta daqueles no pagamento de dívidas das respectivas sociedades, o legislador violou o princípio da justiça plasmado no art. 2º da Constituição da República que enforma os fundamentos do Estado de Direito e, bem assim, no art. 266º, nº 2, do mesmo ordenamento constitucional.
4ª - Ao editar o art. 13º do CPT, o legislador construiu um sistema reforçado de protecção dos seus créditos relativamente ao regime instituído, v.g. no Código das Sociedades Comerciais (v.g. art. 78º) para os credores destas, criando deste modo um privilégio para os seus créditos sem que para tal haja justificação, pese embora a natureza pública das obrigações tributárias, com o que se violou o disposto nos art.s 13º, 18º, nº 2 e 266º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
5ª - Ao não ignorar que a prova de um facto negativo – a não culpa do gerente –
é muito difícil, se não mesmo impossível em determinados e múltiplas circunstâncias, daí resultando que aquele muitas vezes decairá inevitavelmente nessa prova, sendo obrigado a pagar tributos gerados na esfera jurídica de terceiros – a sociedade – operando assim a conversão do responsável subsidiário num verdadeiro «sujeito passivo subsidiário», o legislador violou com o art.
13º, nº 1, o princípio da capacidade contributiva, ínsito no art. 107º da CRP'.
8. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentos
9. Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, em face da delimitação operada pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso, a norma do artigo 13º, nº 1, do Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, e alterado pela Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro), 'na parte em que se põe a cargo dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada o ónus de provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais'. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração deste Tribunal não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que ainda recentemente, no âmbito do Acórdão nº 400/01 (ainda inédito), teve oportunidade de sobre ela se pronunciar, concluindo pela não inconstitucionalidade daquele preceito na interpretação que agora vem questionada pelo recorrente.
Para tanto, escudou-se o Tribunal na seguinte fundamentação:
'O Tribunal Constitucional teve já por várias vezes ocasião de apreciar a conformidade constitucional de normas relativas à responsabilidade dos administradores e gerentes pelo pagamento de impostos e contribuições para a previdência. Assim, no Acórdão n.º 328/84 (publicado na II Série do Diário da República de 9 de Novembro de 1994) não se julgou inconstitucional a norma do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, segundo a qual «pelas contribuições [do regime geral da previdência] e respectivos juros de mora e pelas multas (...) que devem ser pagas por sociedades de responsabilidade limitada, são pessoal e solidariamente responsáveis, pelo período da sua gerência, os respectivos gerentes ou administradores». Tal norma tornava aplicável à falta de pagamento de contribuições do regime geral de previdência o que se prescrevia no artigo
16º do Código de Processo das Contribuições e Impostos – ou seja, a responsabilidade objectiva de administradores e gerentes por tal falta de pagamento. Entendeu-se neste Acórdão n.º 328/94 (e o mesmo julgamento foi repetido no Acórdão n.º 203/98) que a solução normativa em questão não era violadora do princípio da igualdade, por não se afigurar arbitrária ou irrazoável – «pelo contrário, de um ponto de vista lógico, é perfeitamente razoável e justificado que aos gerentes ou administradores que de direito e de facto exerceram funções de gerência ou administração – ou seja, tiveram uma actuação que, ao fim e ao resto, foi aquela que ditou a condução da vida negocial da sociedade – sejam assacados os aspectos positivos e negativos decorrentes dessa condução de vida negocial.» E, da mesma forma, considerou-se não existir violação, nem da liberdade de escolha de profissão e da iniciativa económica privada, nem do direito de propriedade privada do administrador ou gerente, concluindo, aliás, que «o denominado ‘princípio da culpa’ invocado pelo recorrente, não tem, seguramente, afora o domínio criminal e contra-ordenacional e, quiçá, o domínio sancionatório público, uma consagração a se na lei fundamental de sorte a implicar que, para além daqueles domínios, seja constitucionalmente vedada, em casos específicos, a responsabilização pelo cumprimento de obrigações independentemente da prova concreta (ou mesmo impedindo essa prova) de factos de onde se extraia a imputação subjectiva ao responsabilizado.» A norma foi, pois, julgada compatível com a Constituição. No Acórdão n.º 220/98 (embora como obiter dictum) referiu-se que «este Tribunal Constitucional tem admitido que não é inconstitucional a responsabilidade fiscal subsidiária de administradores ou gerentes de empresas ou sociedades de responsabilidade limitada (artigo 13º do Código de Processo Tributário) que justifica a reversão de execuções fiscais contra esses administradores, forçando-os a opor-se à execução para demonstrarem que não são responsáveis pela dívida exequenda». Por sua vez, a norma do artigo 16º do Código de Processo das Contribuições e Impostos foi apreciada e julgada não inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 576/99
(in DR, II série, de 21 de Fevereiro de 2000) e 577/99 (não publicado), remetendo-se, designadamente, para a fundamentação do referido Acórdão n.º
328/94. Aderindo plenamente a esta jurisprudência do Tribunal Constitucional – que conclui pela não inconstitucionalidade de normas que previam a responsabilidade subsidiária objectiva de administradores e gerentes, sem admitir estes a provarem a ausência de culpa no surgimento da insuficiência patrimonial –, apenas haveria que aplicá-la à norma ora em questão (o artigo 13º do Código de Processo Tributário), para concluir igualmente pela inexistência de inconstitucionalidade material desta última. Dir-se-á, mesmo, que tal conclusão se imporia a fortiori, posto que nesta norma apenas se responsabilizam os administradores e gerentes se estes não provarem a falta de culpa no surgimento da insuficiência patrimonial, não se prevendo qualquer responsabilidade objectiva. E assim, a norma do artigo 13º do Código de Processo Tributário, em apreciação no presente recurso, foi já julgada não inconstitucional no Acórdão n.º 681/99, que confirmou a decisão sumária do ora relator em tal sentido. A tal julgamento de não inconstitucionalidade chegará, porém, também quem apenas entenda que o artigo 16º do Código de Processo das Contribuições e Impostos era inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, apenas na medida em que nele se previa a responsabilidade objectiva dos administradores e gerentes. Lê-se, nesta perspectiva, na declaração de voto aposta pelo relator aos referidos Acórdãos n.ºs 576/99 e 577/99:
'é certo que, como se diz no Acórdão, a exigência de culpa para imposição de responsabilidade não é objecto de genérica consagração constitucional. Contudo, como salientou o próprio legislador do Decreto-Lei n.º 68/87, de 9 de Fevereiro, o ‘princípio da culpa é na responsabilidade civil de decisivo relevo para a configuração da esfera jurídica das pessoas, na qual elas se poderão disponivelmente mover’, e ‘pressupõe uma regra de justiça’ (...). O que, sendo obviamente relevante à luz de eventual fim sancionatório do preceito, não pode também deixar de ser considerado na definição dos limites de fins puramente garantísticos do Estado, que levam a fazer impender o dever de responder sobre pessoas diversas do originário devedor fiscal.'
(...) A ofensa ao princípio da igualdade resulta, pois, da inexistência de diferenciação entre administradores e gerentes diligentes e administradores e gerentes negligentes – e não da discriminação entre Estado e outros credores, ou entre administradores sociais e outros devedores, ou, ainda, de uma diferença de tratamento de gerentes de facto e gerentes de direito. O Acórdão n.º 328/94 analisou esta última para o regime (paralelo) da responsabilidade por dívidas à segurança social, incidindo sobretudo aí a sua fundamentação – embora não deixando de pressupor a conformidade constitucional da responsabilidade objectiva, a qual é justificada (nomeadamente considerando a distinção entre gerentes de facto e apenas de direito) porque, diz-se, ou as dificuldades económicas resultaram da actuação da gerência em causa, ou, se esta foi assumida em plena situação de dificuldade, os futuros gerentes sabiam que, estando a empresa em má situação, lhes incumbia uma gestão particularmente exigente, esforçada. Ora – e o ponto é relevante precisamente em sede de preclusão da prova da inexistência de culpa –, pode não ter sido da actuação da gerência que se pretende responsabilizar, porventura exercida de forma diligente e avisada, que resultaram as dificuldades económicas, mas de outras circunstâncias, como a conjuntura económica geral (já para não falar de casos em que os impostos não foram pagos para evitar situações de ‘urgência social’ com salários por pagar). Nestes casos, não pode argumentar-se com o referido conhecimento pelos administradores e gerentes da situação da empresa, e de que lhes incumbe uma gestão exigente e esforçada, e, chegado o momento da efectivação da responsabilidade, vedar-se-lhes a possibilidade de provar justamente esse esforço e diligência, presumindo, juris et de jure, a sua culpa.
(...) Nem é aceitável a objecção de que, com uma presunção juris tantum (como a partir de 1991), a prova de inexistência de culpa se fará em regra, inviabilizando a satisfação das obrigações fiscais. Pelo contrário, considerando a dificuldade de provar a inexistência de culpa depois de demonstrado o não pagamento ou a insuficiência do património social (v. J. J. Teixeira Ribeiro, anotação cit., pág. 50: ‘se era difícil à Fazenda Pública fazer a prova positiva da culpa, ainda é mais difícil aos administradores ou gerentes fazer a sua prova negativa’), excluir em absoluto tal prova será antes, nos casos em que ela, apesar de tudo, se lograria, tendencialmente ‘fechar os olhos’ à diligência comprovável – e, portanto, solução particularmente excessiva.' Também, pois, nesta perspectiva – para a qual a solução da responsabilidade objectiva apenas é violadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade por precludir em absoluto a possibilidade de se provar a inexistência de culpa na insuficiência patrimonial –, o artigo 13º do Código de Processo Tributário não é de considerar inconstitucional. Na verdade, tal norma, embora impondo aos administradores e gerentes o ónus probandi – solução que se justifica na linha da fundamentação do Acórdão n.º
328/94, considerando, designadamente, que se está perante as pessoas que exerceram funções de administração ou gerência durante o exercício ao qual se referem as contribuições e impostos em questão – sempre lhes permite a prova de ausência de culpa no surgimento da insuficiência patrimonial (ou seja, de uma actuação diligente no exercício das suas funções), com a sua consequente não responsabilização.
10. É esta jurisprudência – para cuja fundamentação se remete – que, por manter inteira validade, agora mais uma vez há que reiterar.
III. Decisão Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 7 de Dezembro de 2001 José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida